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Movimentos Sociais e Serviço Social Professora Luciana da Silva Santos APRESENTAÇÃO Olá, estudante! Sou a Professora Luciana Santos, formada em Serviço Social, com especialização em Gestão da Política de Assistência Social com ênfase no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e com MBA em Gestão Ambiental e Desenvolvimento Sustentável. Atual- mente, sou assistente social no serviço público e docente no ensino superior. Satisfatoriamente, tive a oportunidade de atuar em diversos espaços sócio-ocupa- cionais, os quais destaco as políticas públicas de assistência social, da saúde e da mulher; em conselhos gestores; bem como na política interdisciplinar para atendimento à população indígena, em instituição de assessoramento, defesa e garantia de direitos, do terceiro setor. O objetivo desta disciplina de Movimentos Sociais, é contribuir com sua formação acadêmica, profissional e, de forma singela, com seu desenvolvimento pessoal. Para expla- nar sobre a temática, dividimos o material em quatro unidades. Na Unidade I, intitulada “Conceitos Fundamentais: Estado e Classes”, vamos conceituar o que é Estado e sociedade civil, com base nos clássicos da teoria política. Em seguida, apresentaremos os conceitos de classe social, consciência de classe e lutas sociais. Faremos uma conexão entre as lutas sociais e a emancipação política e humana, que se relacionam, direta e indiretamente, com os tópicos abordados neste ponto. Já na Unidade II, denominada “O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes”, vamos buscar entender como funcionou o Estado no capitalismo monopolista, como as lutas de classes se relacionam com ele e como ele se relaciona no período pós- -guerra. Em seguida, na Unidade III, nomeada “Movimentos de Classes e os ‘Novos’ Movi- mentos Sociais”, aprofundaremos a discussão na história dos movimentos sociais no Brasil e na América Latina. Vamos historicizar os movimentos clássicos e expor o contexto de emergência dos novos movimentos sociais. Por fim, a Unidade IV, que traz como título “Os Desafios Postos aos Movimentos Sociais na Atualidade”, fará o fechamento deste material, apresentando quais são os novos movimentos sociais e esboçar uma simples análise de conjuntura da atualidade. Neste sentido, sinta-se convidado(a) a explorar o material apresentado. Leia, es- tude, reflita, critique! Isso só enriquecerá ainda mais seu aprendizado. Desejo que essa leitura te instigue ao ponto de fazer você buscar algo além do que lê e que, assim, navegue, cada vez mais, por águas mais profundas, onde poucos têm a ousadia de chegar. Bons Estudos! SUMÁRIO UNIDADE I ...................................................................................................... 5 Conceitos Fundamentais: Estado e Classes UNIDADE II ................................................................................................... 25 O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes UNIDADE III .................................................................................................. 48 Movimentos de Classe e os “Novos Movimentos Sociais” UNIDADE IV .................................................................................................. 75 Os Debates Postos aos Movimentos Sociais na Atualidade 5 Plano de Estudo ● O Estado moderno e a sociedade civil nos clássicos da teoria política. ● Classe social, consciência de classe e lutas de classes. ● As lutas sociais e a emancipação política e humana. Objetivos de Aprendizagem ● Conceituar o Estado moderno e a sociedade civil nos clássicos da teoria política. ● Compreender a concepção de classe social, consciência de classe e lutas de classes. ● Concatenar a relação entre as lutas sociais e a emancipação política e humana. UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes Professora Luciana da Silva Santos 6UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes INTRODUÇÃO Olá, estudante! Seja bem-vindo(a) à primeira unidade do material da disciplina de Movimentos Sociais e Serviço Social. O objetivo desta unidade é apresentar uma contextualização histórica, iniciando pelos clássicos da teoria política, sobre os conceitos de Estado moderno e sociedade civil, bem como entender de que maneira se estabelecem as lutas sociais e/ou de classes que possam, porventura, nos levar à possível emancipação humana. Esta unidade foi dividida em três tópicos, com o intuito de organizar as informações e contribuir na assimilação do conteúdo apresentado. No primeiro tópico vamos contextualizar historicamente o conceito sobre Estado e sociedade, apontando o entendimento de alguns filósofos e estudiosos sobre o tema, desde o período da Idade Antiga, percorrendo a Idade Média e Idade Moderna, chegando até os autores da Idade Contemporânea. Em seguida, buscaremos compreender a concepção de classe social, consciência de classe e lutas de classes, com base na teoria marxista, posto que, na análise, considera- mos a conjuntura em que esses conceitos estão inseridos no Modo de Produção Capitalista (MPC). No terceiro e último tópico desta unidade, estabeleceremos a relação entre as lutas sociais e de classe com a emancipação política e humana. Esperamos que você aprecie esta unidade e que consiga desenvolver seus estudos com o melhor aproveitamento possível. Bons Estudos! 7UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes 1 O ESTADO MODERNO E A SOCIEDADE CIVIL NOS CLÁSSICOS DA TEORIA POLÍ- TICA Com certeza você já ouviu que a Grécia é o berço da civilização, e não é sem mo- tivo, visto que ideias e reflexões importantíssimas nasceram e permearam aquele período. É importante destacar que os filósofos e pensadores buscam entender seu objeto de estudo com base em seus conhecimentos e cotidiano da época em que viveram. Essa riqueza de estudos permite constatar que não existe uma única verdade, mas sim diferentes teorias que podem se completar ou contradizer, podendo daí nascer uma outra teoria ou não. Seguindo nesse raciocínio, vamos estudar o que dizem os clássicos da teoria polí- tica e nos aproximar dos conceitos de Estado e sociedade. Vamos começar com o discípulo de Sócrates (Atenas, 469-399 a.C.), o ateniense Platão (429-347 a.C.), dado que ele nos apresentou seu mestre por meio de seus escritos, da mesma forma que não deixou de expor suas próprias reflexões. Com base nos estudos da alma, Platão caracteriza os indivíduos em três grupos: os filósofos, os guerreiros e os trabalhadores. Ele afirmou que os primeiros eram os mais aptos para governar a pólis (cidade), que os guerreiros poderiam auxiliar na garantia da ordem, e que os últimos forneciam os alimentos (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010). Segundo Cremonese (2016, p. 159), Platão, no Livro VIII da República, trata sobre as formas de governo e as classifica em ideais e corrompidas. As formas ideais de governo são: a 8UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes monarquia, considerada a melhor de todas (é o governo bom de um só); aristocracia (governo bom de um grupo) e a timocracia (desejo de honrarias). Já as formas de governo consideradas corrompidas são: a tirania (governo mau de um só), a oligarquia (governo mau de um grupo, governo dos ricos) e, por fim, a república/democracia (governo das multidões). Já o discípulo de Platão, Aristóteles, também de Atenas (384-322 a.C.), fez uma importante contribuição ao contrapor as ideias de seu mestre. Em seu escrito intitulado Política, afirmou que o tipo de governo dependeria da intenção do administrador, e se este possuía ou não bens, ou seja, se ele era rico ou pobre. Assim, visualizou duas possibilidades de governo: na primeira, caracterizou a tirania, a oligarquia e a democracia como “consti- tuições desviadas”, pois entendia que esse grupo buscava garantir os próprios interesses. E na segunda, caracterizou o reino, a aristocracia e a polítia, como “constituições retas” que buscavam o bem comum (MONTAÑO;DURIGUETTO, 2010). Acquaviva (2010, p. 96) esquematizou as formas de governo segundo Aristóteles: Figura 1 - As formas de governo para Aristóteles Fonte: Acquaviva (2010). 9UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes REFLITA Estudante, o que podemos observar em comum nas reflexões dos filósofos atenienses até o momento? Bom, Platão idealizou um Estado baseado em uma divisão dos indivíduos, nomeando os filósofos como os mais competentes para governar. Aristóteles afirmou que as inten- ções dos indivíduos que governam definem o tipo de Estado. Então, podemos constatar que a divisão entre os pare já é antiga, seja ela baseada na espiritualidade ou em poder econômico. Mas será que essa divisão gerou desconforto entre os pares? Fonte: a autora. Montaño e Duriguetto (2010) apresentam que segundo Aristóteles, é justamente o conflito de interesses que justifica a existência Estado, pois é ele que fará a mediação entre os grupos com interesses distintos. Avançando na linha do tempo, chegamos ao século XIV, na era do Renascimento, período de valorização do humanismo e da razão, época de grandes descobertas na ciência e de amplo desenvolvimento cultural, econômico e político por toda a Europa. Esse período se estendeu até o século XVII. Vamos até Florença, na Itália, para ver a obra O Príncipe, do pensador Nicolau Maquiavel (1469-1527). Segundo Acquaviva (2010), Maquiavel apresentou um estudo sobre o Estado e sobre a dinâmica política de maneira realista e fria. Afirma ainda que o autor vislumbrou, na política, uma forma de alcançar o poder e permanecer nele, independente dos meios utilizados para tal finalidade. Daí a frase conhecida do autor: “O fim justifica os meios”. Segue trecho da obra de Maquiavel (2010, p. 76): Creio que isso decorra do bom ou do mau uso da crueldade. A crueldade bem empregada – se é lícito falar bem do mal – é aquela que se faz de uma só vez, por necessidade de segurança; depois não se deve perseverar nela, mas convertê-la no máximo de benefícios para os súditos. Mal usadas são aquelas maldades que, embora a princípio sejam poucas, com o tempo aumentam em vez de se extinguirem. Os que seguem o primeiro método podem remediar seus governos perante Deus e os homens, como no caso de Agátocles; quanto aos outros, é impossível que se mantenham no poder. 10UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes Maquiavel viveu em um período conturbado por muitas lutas e vivenciou apenas duas formas de governo, a república e a tirania. Contudo, não as reconhece como tipos de gestão e em seus estudos aborda apenas a monarquia e a república como formas possíveis de governar (ACQUAVIVA, 2010). Em relação à sociedade, Maquiavel a viu como ambiente privado, um espaço em que as cotidianidades aconteciam, com destaque para as diversas transações econômicas e para as aquisições de propriedades privadas (MON- TAÑO; DURIGUETTO, 2010). O contexto histórico dos próximos três autores que abordaremos se deu na crise do sistema feudal e na transição para o capitalismo, com início a partir da baixa Idade Média, no século XIV. Nesse período, a conjuntura envolve a ascensão da burguesia devido ao desenvolvimento do comércio nas cidades medievais, a crise no campo e as revoltas camponesas, a Peste Negra, entre outras. Nesse contexto, três autores pensaram a relação entre Estado e sociedade civil, eles são denominados como contratualistas, aqueles que defendiam a relação de Estado e sociedade por meio de contratos entre ambas as partes. São eles: Hobbes, Locke e Rou- sseau. Esses autores fizeram suas análises considerando que o homem é um ser racional e individual, que se comporta movido por emoções. Dividiram o indivíduo em dois estados de ser/estar, que podem se confrontar ou se entrecorrer, são eles: estado de natureza, em que os indivíduos são iguais e livres; e o estado civil, em que os indivíduos atuam de acordo com normas constituídas por meio de um contrato social, legitimado por ambas partes. Aqui observamos a transição da vida privada para a vida pública (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010). “O homem é um lobo para o homem”. Para o inglês Thomas Hobbes (1588-1679), que publicou a obra Leviatã, o estado de natureza é caracterizado pelo desejo do indivíduo pelo poder, que é adquirido e mantido mediante a capacidade individual em acumular bens, reputação e domínio do outro. O conflito aparece quando não existe quantidade suficiente de bens para todos (guerra de todos contra todos), logo, precisa-se de um Estado que seja soberano, absoluto e indivisível, para dar fim à guerra e consolidar a paz e harmonia social. O modelo eleito pelo autor como a melhor forma de governo é a monarquia, e seu contrato funciona como forma de submissão do povo para com o Estado (MONTAÑO; DURIGUET- TO, 2010). Já para John Locke, da Inglaterra (1632-1704), em sua obra Segundo tratado sobre o governo, o autor concorda com Hobbes na questão de que no estado de natureza o indivíduo é livre, contudo, Locke difere dizendo que a propriedade privada não deve ser 11UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes conquistada pela guerra, mas sim por meio do trabalho individual. O conflito se instala quando o proprietário precisa manter sua terra, necessitando nesse momento do Estado para garantir e defender a propriedade privada. Locke não acreditava na ideia do Estado absoluto, por isso defendeu a divisão de poderes, entre legislativo e executivo, e que o primeiro teria mais força porque ditaria as regras de convivência, objetivando um pacto de consentimento entre os pares (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010). Para Jean Jacques Rousseau, da Suíça (1712-1778), a transição da vida privada para vida pública é totalmente diferente de seus antecessores. Em sua obra Discurso sobre a desigualdade, o autor afirma que o estado de natureza do homem é pacífico e feliz, já que estaria satisfeito com o que conseguisse na natureza, e não via a necessidade de combate. O conflito se instaura no processo de socialização, quando o egoísmo (motivação da vida humana, para o autor) do ser humano deseja a propriedade privada. Em sua obra Do contrato social, Rousseau não deseja eliminar a posse de terras, mas sim limitar o excesso de uns para garantir o acesso a todos. O autor defende a soberania popular como a melhor forma de governo, se essa conseguir representar o interesse comum, que, para ele, é considerar a opinião de cada indivíduo da sociedade, não de classes ou grupos específicos. A finalidade do contrato social, para Rousseau, é transformar o indivíduo em um ser justo (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010). O primeiro autor a interpretar que a sociedade civil coexiste com o Estado, foi o alemão Georg Wlheim Friedrich Hegel (1770-1831). Ele desconsidera os contratualistas e entende que a sociedade civil é o espaço em que ocorrem as “relações econômicas, jurídicas e administrativas”; e que o Estado é o espaço apropriado para expressar os inte- resses públicos e universais, esses interesses formados a partir dos desejos particulares existentes na sociedade civil (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010). Nesse período do capitalismo concorrencial, e com base na interpretação de Hegel, é que Karl Heinrich Marx, da Alemanha (1818-1883), desenvolve seus estudos sobre o Es- tado e sua relação com a sociedade civil. A forma de análise, para Marx, parte da realidade que possui significativas “determinações e é dinâmica”, logo, o autor não propôs conceitos, mas determinações segundo sua realidade e contexto histórico. Nesse sentido, a teoria de Marx sobre o Estado não é fechada, o que possibilita existir diferentes vertentes da tradição marxista, tais como estruturalistas, historicista, ontológica, entre outras (MONTAÑO; DURI- GUETTO, 2010). Marx se apropria criticamente, no mínimo, de três fundamentos de outros autores. Segundo Montaño e Duriguetto (2010, p. 34) são elas: 12UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estadoe Classes a) o “materialismo histórico-dialético” (da filosofia alemã, especialmente de Hegel e Feuerbach); b) as “teorias do valor-trabalho e da mais-valia” (da economia política inglesa, particularmente de Smith e Ricardo); c) a “teoria das lutas de classes” (dos socialistas utópicos franceses, especialmente Proudhon, Saint-Simon, Fourier, Blanc e Owen). Em suas obras, Marx reflete e apresenta algumas determinações sobre Estado e sociedade civil. Em A ideologia alemã, Marx e seu conterrâneo Friedrich Engels (1820- 1895) afirmam que a sociedade civil é o espaço em que o cotidiano se dá, é onde as rela- ções de produção e reprodução da vida material acontecem, é o lugar em que a estrutura econômica nasce e se desenvolve. Já o Estado se origina da sociedade civil e manifesta as contradições existentes nas relações entre capital e trabalho, inclusive como objetivo de conservá-las (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010). Na obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884), Engels, analisou a estrutura social e econômica da sociedade. A princípio o homem se reúne em grupos que têm uma organização comu- nitária e familiar, que não conhecem a propriedade e a divisão do trabalho. Essa é uma fase “pré-estatal”. Sucede-se a organização social baseada na divisão em classes antagônicas, no domínio de uma classe sobre ou- tra e pela constituição do Estado que representa a classe mais poderosa, economicamente dominante. Estado, diz Engels ao tirar conclusões de sua análise histórica, não existiu sempre nem está acima e fora da sociedade como árbitro imparcial. Nasceu da sociedade e é um produto desta em certa fase do seu desenvolvimento econômico, à qual correspondeu a cisão em classes distintas. O Estado nasce para conter e conservar os conflitos no limite da ordem. Assim o Estado é o produto e manifestação do fato de que as contradições de classe são inconciliáveis (ENGELS, 2002 APUD MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 41). SAIBA MAIS A obra marxiana é ampla e complexa, por isso, segue uma breve lista de algumas pro- duções do autor. Caso ainda não tenha lido, indico como leitura complementar: A ques- tão judaica (1843), Contribuição para a crítica da filosofia do Direito em Hegel (1844), Manuscritos econômico – filosóficos (1844), Teses sobre Feuerbach (1845), A ideologia alemã (1845-1846), Manifesto comunista (1848), Trabalho assalariado e capital (1849), O 18 brumário de Luís Bonaparte (1852), Para a crítica da economia política (1859), Salário, preço e lucro (1865) e O Capital: crítica da economia política (1867). Fonte: Internet Archive Marxists (1999). 13UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes O russo Vladimir Ilitch Ulianov Lênin (1870-1924), fundamentando-se na teoria dos seus compatriotas, Marx e Engels, apresentou na obra O Estado e a revolução (1917), período em que ocorria a Revolução Soviética, que era necessária “a substituição do Es- tado burguês pelo Estado proletário” e que essa transição, “não é possível sem revolução violenta”. Afirma, ainda, que o próximo passo seria “a abolição do Estado proletário, isto é, a abolição de todo e qualquer Estado…” (LÊNIN, 1983, p. 13). Lênin entendia que o proletariado precisava se apossar do Estado, eliminar a bur- guesia e se tornar a nova classe dominante, com um único objetivo: converter os meios de produção, antes privados, para domínio público. Com isso, em tese, não necessitaria mais do Estado, já que não existiria mais a divisão de classes, chegando ao final do objetivo da revolução, que é a eliminação da máquina do Estado (LÊNIN, 1983). Outros autores continuaram a estudar o Estado e a sociedade, tanto na perspectiva marxista, como na ótica liberal. Contudo, vamos apenas pontuar alguns nomes, no intuito de contribuir com o aprimoramento de seus estudos. ● Autores que fundamentaram seus estudos na teoria marxiana: Antônio Gramsci (Itália, 1891-1937) - estudou o capitalismo em seu estágio de monopólio, Rosa Luxemburgo (Alemanha, 1871-1919), Leão Trotsky (Rússia, 1879-1940), entre outros. ● Autores que estudaram o capitalismo pela ótica liberal: Charles Alexis de Toc- queville (França, 1805-1859), John Maynard Keynes (Inglaterra, 1883-1946), Friedrich August Von Hayek (Áustria, 1899-1992) entre outros. Após entendermos a concepção de Estado e sociedade civil desde os clássicos da teoria política, vamos buscar compreender, no próximo tópico, o que é classe social, consciência de classe e lutas de classes. 14UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes 2 CLASSE SOCIAL, CONSCIÊNCIA DE CLASSE E LUTAS DE CLASSES Seguindo a base teórica marxiana, vamos compreender o que é classe social, consciência de classe e lutas de classes no Modo de Produção Capitalista (MPC). Para Marx, no MPC a divisão de classes não está fundamentada na quantidade de dinheiro que o indivíduo possui, mas sim na função que este ocupa nas relações produtivas. Logo, se ele é o que compra ou vende a força de trabalho. Para Marx, diferentemente de Weber, as classes sociais não correspondem, a não ser a primeira vista, ao tipo e volume de suas rendas (idem, ibidem, p. 1013), mas se determinam inicialmente na esfera produtiva. Assim, estas se constituem, no MPC, em função do papel que desempenham e o lugar que ocupam os sujeitos no processo produtivo (ver Santos, 1987, p. 41 e ss). Ou seja, não é na esfera do mercado, mas no âmbito da produção que se determinam originalmente as classes; não é pela capacidade de consumo, mas pela função na produção que os indivíduos passam a pertencer a uma classe social; não é pelo tipo de renda que recebem mas pelo papel social na produção de riqueza. Ou seja, o tipo e o volume da renda, a capacidade de consumo, o acesso ao mercado são os elementos determinados das classes, o lugar e o papel na esfera produtiva são os aspectos determinantes; sua função na produção de riqueza é a causa, sua participação no mercado a consequência. (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 86). Analisando o tipo de trabalhador disponível nas relações produtivas, observa-se que Marx considera a diversidade de classes existentes na sociedade, tais como os operários, trabalhadores autônomos, pequeno produtor rural, comércio familiar, entre outras. Contudo, o autor entende que essa “multiplicidade e heterogeneidade de classes e subclasses” está 15UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes contemplada nas duas classes fundamentais no MPC, que são os trabalhadores e capita- listas (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 90). Sobre as classes, esses autores, com base na teoria marxista, apontam que os capitalistas, na época, a burguesia, eram os donos dos meios de produção que compravam a força de trabalho do proletariado, que, por sua vez, obrigatoriamente, vendia a força de trabalho para viver. Mas e atualmente, como se dão essas divisões? Na contemporaneidade, Montaño e Duriguetto (2010) analisam que junto à bur- guesia estariam os donos de propriedades e dos meios de produção, os donos dos meios de consumo (capital comercial) e das instituições de intermediação financeira. Apontam ainda que, na dimensão do capital, também pode existir uma subdivisão, visto que a alta burguesia pode ter objetivos diferentes daqueles que possuem menos bens. Nesse sentido, já que a posse econômica de cada grupo é distinta, isso pode ocasionar organizações diversas dentro da mesma classe social. Já em relação a classe trabalhadora, os mesmos autores compreendem que todo indivíduo que vende sua força de trabalho na indústria, no comércio, em empresa financeira, como operários de fábricas, dos setores administrativos, servidores públicos, trabalhadores autônomos, terceirizados, microempresas, desempregados (visto que precisam vender a força de trabalho), entre outros, fazem parte da classe dominada; sendo assim, todos fazem parte do proletariado. No entanto, essa heterogeneidade da classe trabalhadora não pode nos fazer perder de foco doseu caráter central e universal, no MPC: toda ela constitui-se em homens e mulheres “livres”, meros proprietários de força de trabalho, despossuídos dos meios fundamentais de produção e consumo, obrigados assim a vender sua força de trabalho ao capital, e troca do salário. Nesse processo e nessa relação, produzem mais-valia, apropriada pelo capi- tal (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 94). Os mesmos autores apontam a importante diferença em se pensar na “classe em si” e “classe para si”. No primeiro caso, a classe é formada pelos indivíduos que ocupam o mesmo lugar no processo produtivo e que não depende de uma organização para se constituir. Já nesta última, a concepção precisa ir além, precisa se reconhecer parte de um grupo com interesses em comum, e que tenham a intenção de se organizar para lutar pela sua classe. Montaño e Duriguetto (2010, p. 97), nos trazem um bom exemplo de “classe para si”: “entre 1830 e 1848, a classe trabalhadora se torna sujeito autônomo, consciente de seus interesses e do seu antagonismo ao capital, e organizado para as lutas de classes”. 16UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes Diante disso, temos uma oportunidade de trazer para a reflexão a questão da consciência. Montaño e Duriguetto (2010, p. 98) afirmam que “a consciência é determinada pela realidade social, e ela é condição para sua transformação”. Neste sentido, podemos compreender que o cotidiano é o espaço em que se dá a primeira forma de consciência e podemos chamá-la de consciência social, genérica; uma “consciência-em-si”. Ao superar a mera percepção imediata e parcial da realidade e a alienada vida cotidiana sob hegemonia do capital, desmistificando a ideologia hegemônica, desenvolve-se uma consciência humano-genérica, em que se dá o trânsito de uma consciência-em-si para uma consciência-para-si. Desenvolve-se uma consciência de classe. Com ela, diferentemente do “senso comum” e da “consciência-em-si”, pro- cura-se compreender as causas dos fenômenos, numa visão de totalidade. Os interesses imediatos e individuais, ou até de grupos, cedem espaço aos interesses de classe (e incluso humano-genéricos) e mediatos (que vão além da experiência imediata e da temporalidade dos sujeitos individuais e grupais) (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 110). Na medida em que cada indivíduo se percebe para além da “consciência-em-si” (consciência social, consciência humano-genérica, do “senso comum”) e se reconhece como parte de um grupo que possui questões e interesses iguais (já que estão situados no mesmo espaço, dentro do MPC); bem como, compreende as relações contraditórias entre os trabalhadores e capitalistas; provavelmente surgirá nesse grupo (aqui também podemos ler “classe”), um desejo de organização com a finalidade de buscar uma mudança. Neste ponto, podemos afirmar que está instituída a consciência de classe, uma “consciência-pa- ra-si”, que pensa para além do indivíduo, pensa na classe que pertence e nas questões que precisa enfrentar. A consciência de classe leva o indivíduo, inevitavelmente, para uma luta social, já que busca uma mudança. Um exemplo desse entendimento, é pensar na luta em favor da garantia dos direitos sociais (emprego, habitação, alimentação, saúde etc.) que nos remete às expressões da questão social, tais como o desemprego, violência, vulnerabilidade eco- nômica, entre outras. O fundamento estrutural (a exploração de uma classe por outra, sustentada no fato de o produtor estar separado, alienado, dos meios para produzir), que constitui o que chamamos de “questão social” (ver Netto, 2001), não pode esconder a diversidade de manifestações e sequelas, que se apresentam como “problemas sociais”, carências, formas de “exclusão”, discriminação, segregação. De idêntica forma, esta multiplicidade e variedade de “proble- máticas”, que se apresentam na aparência de fenômenos autônomos e inde- pendentes, como desarticulados da questão central entre capital e trabalho, não podem nos levar a ignorar o fato de que elas se fundam na contradição capital-trabalho (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 110). Observa-se que as expressões da questão social são espaços em que a consciên- cia de classe pode se desenvolver e possibilitar que a luta de classe seja instituída. 17UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes Montaño e Duriguetto (2010) sustentam que as lutas sociais são provenientes das lutas de classes, já que essas são fruto da relação contraditória entre capital e trabalho e não devem ser analisadas fora do MPC. Asseguram que “independentemente do grau de conhecimento e imagem que atores e analistas tenham das várias formas de lutas sociais, elas são expressões das lutas de classes” (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 119). A luta de classe está no cerne no estudo marxista, como já vimos anteriormente neste material. Ela é o reflexo das relações contraditórias e inconciliáveis entre os capi- talistas e trabalhadores. Segundo o autor, é a luta de classes que pode impulsionar uma mudança (econômica, social e política), em prol da eliminação dessas classes e, assim, das desigualdades. Desta maneira, “as lutas por igualdade de direitos de gênero, sexual, racial, pela defesa do meio ambiente, pelos direitos humanos, por demandas pontuais de uma comuni- dade” (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 119), fazem parte da luta de classes, elas não são antagônicas. Ainda segundo esses autores, as lutas sociais não podem esperar pelo avanço ou efetivação das lutas de classes, não podem esperar pela “grande revolução” (a eliminação da classe capitalista) para se resolverem, pois são demandas emergentes. Agora, no próximo tópico, buscaremos compreender melhor os objetivos dessas lutas, sociais ou de classes. 18UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes 3 AS LUTAS SOCIAIS E A EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E HUMANA No cotidiano de trabalho dos assistentes sociais, muito se ouve falar em emanci- pação, a tão desejada liberdade que os profissionais almejam trabalhar com o público que atendem, independentemente do espaço sócio-ocupacional que ocupam. Mas, depois de toda essa reflexão, será que é possível alcançar a emancipação? Marx (1843), em sua obra A questão judaica, reconhece a origem da emancipação política na transição do feudalismo para o capitalismo. A emancipação política é, simultaneamente, a dissolução da velha sociedade em que repousa o Estado alienador e a dissolução do poder senhorial. A revolução política é a revolução da sociedade civil [...] Não obstante, as funções e condições de vida da sociedade civil continuavam a ser políticas, se bem que políticas no sentido feudal; isto é, excluíam o indivíduo do conjunto do Estado [...] A sociedade feudal estava dividida em seu fundamento, no homem. Mas no homem, tal qual ele se apresentava como fundamento, no homem egoísta. Este homem, membro da sociedade burguesa, é agora a base, a premissa do Estado político. E, como tal, é reconhecido nos direitos humanos (MARX, 1843, on-line). Com base na teoria marxiana, Montaño e Duriguetto (2010, p. 130) refletem que a emancipação política “remete, portanto, ao conjunto de direitos políticos e sociais que garantem uma ‘liberdade’ e uma ‘igualdade’ formais dos cidadãos - a liberdade e igualdade perante a lei, portanto, meramente jurídicas”. Ou seja, considerando que vivemos em uma sociedade capitalista, assim, também desigual, sabemos que a atuação do Estado é para manter a ordem vigente (lucro e dominação do capital), não para minimizar ou eliminar as 19UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes desigualdades sociais. É por isso que a emancipação política na nossa sociedade, será apenas formal, por meio de leis. Como exemplo podemos citar o acesso universal à Política Pública da Saúde; é lei, mais isso não quer dizer que todos consigam acessar seus servi- ços, de fato, na sua totalidade. Contudo, essa independência política do ser, não tem o mesmo efeito que a eman- cipaçãohumana, que, por sua vez, extingue a “desigualdade, dominação e exploração, reunindo novamente o produtor com os meios para produzir; ela ocorre, portanto, na ne- cessária superação da ordem do capital para o comunismo” (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 131). Assim, a emancipação política está dentro das regras da sociedade capitalista (de- sigual), mas a emancipação humana pressupõe a superação dessa sociedade. Contudo, a luta anticapitalista não deve caminhar separada da luta contra o machismo e a desigualdade sexual, contra o racismo e a desigualdade racial e étnica, contra as diversas formas de segregação, desigualdade e preconceito. Ela deve reunir todos estes campos de batalha, orientados no curto prazo contra a forma específica de desigualdade (para a emancipação política específica), e no longo prazo contra a ordem burguesa, a sociedade de classes (para a emancipação humana) (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 132). É com essa elucidação que finalizamos a primeira unidade do material didático da disciplina de Movimento Sociais e Serviço Social. 20UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes CONSIDERAÇÕES FINAIS Prezado(a) estudante, finalizamos a Unidade I do material didático da disciplina de Movimentos Sociais e Serviço Social. No início do material estudamos a contextualização histórica e os conceitos sobre Estado e sociedade pelos clássicos da teoria política. Foi possível observar que a divisão de grupos ou classes sempre esteve presente em nossa sociedade. Nos aprofundamos principalmente nas reflexões de Marx, dado que a fundamentação da nossa disciplina segue essa teoria. Em seguida, buscamos compreender a concepção de classe social, consciência de classe e lutas de classes no MPC. Nesse momento, retomamos a discussão marxiana so- bre classes, podendo diferenciar as concepções do que é de interesse individual e coletivo. Por fim, no último tópico da Unidade I, compreendemos como as concepções de classe e consciência se conectam às lutas sociais e de classes no processo de emancipa- ção política e humana. Esperamos que você tenha apreciado a Unidade I desta disciplina, e que o conteú- do aqui apresentado tenha te instigado a aprofundar o estudo na referida temática. 21UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes LEITURA COMPLEMENTAR 1. O ESTADO É UM PRODUTO DO ANTAGONISMO INCONCILIÁVEL DAS CLASSES Dá-se com a doutrina de Marx, neste momento, aquilo que, muitas vezes, através da História, tem acontecido com as doutrinas dos pensadores revolucionários e dos diri- gentes do movimento libertador das classes oprimidas. Os grandes revolucionários foram sempre perseguidos durante a vida; a sua doutrina foi sempre alvo do ódio mais feroz, das mais furiosas campanhas de mentiras e difamação por parte das classes dominantes. Mas, depois da sua morte, tenta-se convertê-los em ídolos inofensivos, canonizá-los por assim dizer, cercar o seu nome de uma auréola de glória, para “consolo” das classes oprimidas e para o seu ludíbrio, enquanto se castra a substância do seu ensinamento revolucionário, embotando-lhe o gume, aviltando-o. A burguesia e os oportunistas do movimento operário se unem presentemente para infligir ao marxismo um tal “tratamento”. Esquece-se, esba- te-se, desvirtua-se o lado revolucionário, a essência revolucionária da doutrina, a sua alma revolucionária. Exalta-se e coloca-se em primeiro plano o que é ou parece aceitável para a burguesia. Todos os sociais-patriotas (não riam!) São, agora, marxistas. Os sábios burgue- ses, que ainda ontem, na Alemanha, se especializavam em refutar o marxismo, falam cada vez mais num Marx “nacional-alemão”, que, a dar-lhes ouvidos, teria educado os sindicatos operários, tão magnificamente organizados, para uma guerra de rapina. Em tais circunstâncias, e uma vez que se logrou difundir tão amplamente o marxis- mo deformado, a nossa missão é, antes de mais nada, restabelecer a verdadeira doutrina de Marx sobre o Estado. Para isso, teremos de fazer longas citações das obras de Marx e de Engels. Essas longas citações tornarão pesada e exposição e não contribuirão para torná-la popular; mas, é absolutamente impossível dispensá-las. Todas as passagens de Marx e Engels, pelo menos as passagens essenciais que tratam do Estado, devem ser reproduzidas sob a forma mais completa possível, para que o leitor possa fazer uma ideia pessoal do conjunto e do desenvolvimento das concepções dos fundadores do socialismo científico. Assim, apoiados em provas, demonstraremos, à evidência, que o atual “kautskys- mo” as deturpou. Comecemos pela mais vulgarizada das obras de Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada. e do Estado, cuja sexta edição apareceu em Stuttgart, em 1894. 22UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes Traduziremos os nossos extratos do original alemão, porque as traduções russas, embora numerosas, são, em sua maior parte, incompletas ou muito defeituosas. Resumindo a sua análise histórica, diz Engels: “O Estado não é, de forma alguma, uma força imposta, do exterior, à sociedade. Não é, tampouco, “a realidade da ideia moral”, “a imagem e a realidade da Razão como pretende Hegel. É um produto da sociedade numa certa fase do seu desenvolvimento. É a confissão de que essa sociedade se embaraçou numa insolúvel contradição interna, se dividiu em antagonismos inconciliáveis de que não pode desvencilhar-se. Mas, para que essas classes antagônicas, com interesses econômicos contrários, não se entre devoras- sem e não devorassem a sociedade numa luta estéril, sentiu-se a necessidade de uma força que se colocasse aparentemente acima da sociedade, com o fim de atenuar o conflito nos limites da “ordem”. Essa força, que sai da sociedade, ficando, porém, por cima dela e dela se afastando cada vez mais, é o Estado”. Eis, expressa com toda a clareza, a ideia fundamental do marxismo no que concer- ne ao papel histórico e à significação do Estado. O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis. É precisamente sobre esse ponto de importância capital e fundamental que começa a deformação do marxismo, seguindo duas linhas principais. De um lado, os ideólogos burgueses e, sobretudo, os da pequena burguesia, obrigados, sob a pressão de fatos históricos incontestáveis, a reconhecer que o estado não existe senão onde existem as contradições e a luta de classes, “corrigem” Marx de maneira a fazê-lo dizer que o Estado é o órgão da conciliação das classes. Para Marx, o Estado não poderia surgir nem subsistir se a conciliação das classes fosse possível. Para os professores e publicistas burgueses e para os filisteus despidos de escrúpulos, resulta, ao contrário, de citações complacentes de Marx, semeadas em profusão, que o Estado é um instrumento de conciliação das classes. Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de submisso de uma classe por outra; é a criação de uma “ordem” que legalize e consolide essa submissão, amortecendo a colisão das classes. Para os políticos da pequena burguesia, ao contrário, a ordem é precisamente a conciliação das classes 23UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes e não a submissão de uma classe por outra; atenuar a colisão significa conciliar, e não arrancar às classes oprimidas os meios e processos de luta contra os opressores a cuja derrocada elas aspiram. Assim, na revolução de 1917, quando a questão da significação do papel do Es- tado foi posta em toda a sua amplitude, postapraticamente, como que reclamando uma ação imediata das massas, todos os socialistas-revolucionários e todos os mencheviques, sem exceção, caíram, imediata e completamente, na teoria burguesa da “conciliação” das classes pelo “Estado”. Inúmeras resoluções e artigos desses políticos estão profundamente impregnados dessa teoria burguesa e oportunista da “conciliação”. Essa democracia pe- queno-burguesa é incapaz de compreender que o Estado seja o órgão de dominação de uma determinada classe que não pode conciliar-se com a sua antípoda (a classe adversa). A sua noção do Estado é uma das provas mais manifestas de que os nossos socialistas-re- volucionários e os nossos mencheviques não são socialistas, como nós, os bolcheviques, sempre o demonstramos, mas democratas pequeno-burgueses de fraseologia aproxima- damente socialista. Em Kautsky, a deformação do marxismo é muito mais sutil. “Teoricamente”, não nega que o Estado seja o órgão de dominação de uma classe, nem que as contradições de classe sejam inconciliáveis; mas, omite ou obscurece o seguinte: se o Estado é o produto da inconciliabilidade das contradições de classe, se é uma força superior à sociedade, “afastando-se cada vez mais da sociedade “, é claro que a libertação da classe oprimida só é possível por meio de uma revolução violenta e da supressão do aparelho governamental criado pela classe dominante e que, pela sua própria existência, “se afasta” da sociedade. Esta conclusão teoricamente clara por si mesma, tirou-a Marx, com inteira precisão, como adiante veremos, da análise histórica concreta dos problemas da revolução. E foi preci- samente essa conclusão que Kautsky “esqueceu” e desvirtuou, como demonstraremos detalhadamente no decurso da nossa exposição. Fonte: Lênin (1983, p. 6-7). 24UNIDADE I Conceitos Fundamentais: Estado e Classes MATERIAL COMPLEMENTAR LIVRO Título: Estado, Classe e Movimento Social Autor: Carlos Montaño e Maria Lúcia Duriguetto Editora: Cortez Sinopse: Com base na teoria marxiana, os autores analisam os conceitos de Estado, sociedade civil, classe social, consciência de classe, luta de classe e movimentos sociais. FILME/VÍDEO Título: 1900 (Novecento) Ano: 1976 Sinopse: Traz a história de dois amigos de infância que nasceram em classes sociais diferentes. 25 Plano de Estudo: • Breve desenvolvimento do capitalismo e o Estado e no capitalismo no estágio dos monopólios. • A (contra)reforma do Estado no regime de acumulação flexível. • A situação atual das lutas de classes. Objetivos de Aprendizagem: • Contextualizar o desenvolvimento do capitalismo e a ação do Estado no capitalismo monopolista. • Compreender a (contra)reforma do Estado no regime de acumulação flexível. • Apresentar a situação atual das lutas de classes. UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes Professora Luciana da Silva Santos 26UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes INTRODUÇÃO Olá, estudante! Seja bem-vindo(a) à Unidade II da disciplina de Movimentos Sociais e Serviço Social. Antes de entrar no tema desta unidade, vamos relembrar que na primeira unidade deste material entendemos a concepção de Estado e sociedade civil. Refletimos de onde vêm as formações de classes sociais e seus conflitos; e abordamos questões relacionadas a esses conflitos, que são a consciência de classe, luta de classe e luta social. Por fim, finalizamos com as diferenças entre emancipação política e humana. Agora, essa unidade, tem o objetivo de estudar o desenvolvimento do capitalismo e o papel do Estado frente a mundialização do capital, e como essas ações impactam a luta da classe trabalhadora. Esta unidade foi dividida em três tópicos com o intuito de organizar as informações e contribuir na assimilação do conteúdo apresentado. No primeiro momento, vamos contextualizar o desenvolvimento do capitalismo e a ação do Estado no estágio do capitalismo de monopólio, que passa por duas fases ou regimes. São eles: Regime de Acumulação Fordista/Keynesiano e Regime de Acumulação Flexível. Em seguida, buscaremos compreender a (contra)reforma do Estado, ou seja, as ações tomadas por este para atender as demandas emergenciais provindas do Regime de Acumulação Flexível. E, para fechar a Unidade II, apresentaremos os impactos das mudanças nos siste- mas capitalistas na luta trabalhista e na luta de classe. Bons Estudos! 27UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes 1 O ESTADO NO CAPITALISMO MONOPOLISTA E AS LUTAS DE CLASSES Antes de começar a abordar sobre o Estado na fase do capitalismo monopolista, vamos relembrar brevemente o desenvolvimento desse modo de produção. Netto e Braz (2012, p. 82-83) trazem: A crise do feudalismo abre-se no século XIV, num processo extremamente complexo – e, até hoje, objeto de controvérsias e polêmicas – que só cul- minará, em termos histórico-universais, no final do século XVIII. No decurso desses séculos, operando para a ultrapassagem do modo de produção feudal, as suas contradições internas foram potenciadas pelos efeitos do floresci- mento do comércio, expressos na consolidação crescente de uma economia de base mercantil. O processo de crise do feudalismo é, igualmente, o solo histórico do movimento que conduzirá ao mundo moderno – a Revolução Burguesa. A crise no modo de produção feudal (agricultura e pecuária), segundo Netto e Braz (2012), se originou, entre outras questões, no esgotamento das lavouras concomitantemen- te com a falta de técnicas para recuperação desses solos, que, por sua vez, influenciaram a busca por novas terras para cultivo. Contudo, os resultados alcançados nesses plantios não eram satisfatórios e a apropriação de terras para ampliar a agricultura influiu na diminuição das áreas para a criação de animais. Desta forma, o conflito entre as principais classes do feudalismo, donos de terras (senhores feudais) e camponeses (servos) foi inevitável. 28UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes SAIBA MAIS Nesse sistema, os reis arrendavam terras conhecidas como “feudos” para poderosos nobres em troca de lealdade e serviço militar. Os nobres, ou mesmo instituições religio- sas, dividiam suas propriedades em lotes e os entregavam a nobres menos importantes, que se tornavam seus vassalos. Na base da pirâmide estava uma classe de campo- neses (chamados de servos ou vilões) que vivia inteiramente sob a jurisdição de seus mestres. Desse sistema emergiram castelos fortificados (pois os nobres precisavam defender seus domínios), cavaleiros e um código de conduta conhecido como “código de cavalaria”. [...] o sistema feudal na Europa Ocidental começou a ruir, em parte como consequência do declínio populacional provocado pela Peste Negra e em parte pelo desenvolvimento do comércio [...]. Na Europa central e Oriental, no entanto, o trabalho servil que lastrea- va o feudalismo perdurou até meados do século XIX. Fonte: Marriott (2016, p. 93-94). Netto e Braz (2012) relatam que no século XVI, as relações econômicas modifica- ram-se gradualmente por meio da comercialização de terras (entre os senhores feudais) e pagamento em dinheiro pelas prestações de trabalho (relações entre os senhores e servos). Sobre as relações políticas, relatam que a divisão de classes era explícita com uma estrutu- ração considerável ao ponto dos senhores se organizarem para reprimir o movimento dos camponeses; esse cerceamento se deu pela centralização do poder no chamado Estado absolutista, que é um grupo formado por nobres e que concentra o poder em um deles, o então rei. Esses mesmos autores destacam que os financiadores desse Estado são os próprios senhores feudais em companhia das casas bancárias da época; e que, a partir desse modelo de Estado, foi possível vislumbrar as estruturas do Estado moderno, as quais salientamos a força armada, a burocracia e o sistema fiscal. Sobre o Estado moderno,Montaño e Duriguetto (2010, p. 143) apontam que é parte integrante da ordem burguesa e não externa a ela. É uma instituição desenvolvida e comandada pela ordem que o funda, portanto, um Estado inserido e produzido pela sociedade capitalista, no contexto e resultado das lutas de classes, não sendo portanto independente do sistema socioeconô- 29UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes mico e político que o criou, dos seus interesses em jogo e da correlação de forças sociais. É, portanto, um instrumento fundamental da ordem burguesa, garantidor da propriedade privada, das relações sociais e da liberdade indi- vidual (burguesa); porém como resultado tenso das contradições e lutas de classes, é também o espaço de desenvolvimento de direitos e conquistas sociais históricas. Assim como vimos na primeira unidade deste material, o papel do Estado vem para defender a ordem vigente, e neste momento, não será diferente. SAIBA MAIS “Não se nega que embriões do Estado possam ser encontrados na antiguidade Clás- sica, mas o Estado como nós o conhecemos hoje emerge historicamente, segundo di- versos pensadores, no período de formação do modo de produção capitalista através do Estado absolutista. Anderson (1986, p. 18) procura negar que o Estado absolutista constituiu-se na origem do Estado moderno. Segundo esse autor, o Estado absolutista ainda se encontra no marco do modo de produção feudal, configurando-se em uma ‘nova carapaça política da nobreza ameaçada’. O Estado absolutista era assim um Es- tado ainda feudal. Anderson nega a modernidade desse Estado, ressaltando a coerção política legal exercida pelas classes dominantes. Contrapondo-se a Anderson, Torres (1989) posiciona-se favorável à concepção de que as origens do Estado moderno se en- contram no Estado absolutista, embora chame a atenção sobre as monarquias feudais centralizadas que se formam na Inglaterra e na França, que não podem ser considera- das instituições tipicamente feudais”. Fonte: Pereira (2004, p. 14-15). Ainda sobre o desenvolvimento histórico do capitalismo, Se, com base nesta linha de análise, procurássemos estabelecer uma perio- dização histórica do desenvolvimento do capitalismo, registraríamos primeiro a existência de um estágio que começa com a acumulação primitiva [...] e vai até os primeiros passos do capital para controlar a produção de mercadorias e, nela, comandar o trabalho, mediante o estabelecimento da manufatura [...], cobrindo do século XVI a meados do século XVIII. Trata-se do estágio inicial do capitalismo, no qual o papel do grupo social dos comerciantes / merca- dores foi decisivo – estágio por isso mesmo designado como capitalismo comercial (ou mercantil) (NETTO; BRAZ, 2012, p. 183). 30UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes Netto e Braz (2012) refletem que os comerciantes e mercadores, são percebidos como uma classe revolucionária para sua época, já que esses questionaram a ordem feudal vigente e ultrapassaram os limites que lhes foram impostos. Um exemplo disso é a expansão marítima, que revelou a possibilidade de mundialização do capital, que, por sua vez, se estabeleceu na próxima fase do capitalismo, em meados do século XVIII. Essa passagem a outro nível vincula-se diretamente a mudanças políticas (está a completar-se a Revolução Burguesa, com a tomada do poder de Estado) e técnicas (vai irromper a Revolução Industrial), nesse estágio, o capital – organizando a produção através da nascente grande indústria – dará curso ao processo que culminará na subsunção real do trabalho [...]. Aproximadamente a partir da oitava década do século XVIII, configura-se esse segundo estágio do capitalismo, o capitalismo concorrencial (também chamado de “liberal” ou “clássico”), que perdurará até o último terço do século XIX (NETTO; BRAZ, 2012, p. 184). As diferentes formas de produzir a mercadoria resultam na Revolução Industrial, ocorrida nos séculos XVIII e XIX, num primeiro momento na Inglaterra, essencialmente a partir da criação da máquina a vapor por James Watt, em 1760. Foi o momento em que houve a transição da produção manufaturada para o trabalho feito por meio de máquinas. E o resultado dessa mudança foi muito mais que o aumento e agilidade na produção de mercadorias: foi a alteração na vida social, entre as quais citamos a migração das famílias dos campos para as cidades (FERNANDES, 2020). Segundo Netto e Braz (2012), na fase concorrencial, a disputa pelos mercados se dava de forma incontrolável e favorecia os grandes capitalistas que tinham maiores condi- ções de brigar no espaço financeiro, que, por sua vez, faziam com a consciente intenção de estabelecer uma economia mundial. Na transição do século XIX ao XX, as grandes indústrias mudaram o cenário capi- talista já que passaram a monopolizar os mercados nacionais e internacionais, ao mesmo tempo que “os bancos passaram a controlar massas monetárias gigantescas, disponibi- lizadas para empréstimos – e a concorrência entre os capitalistas industriais levou-os a recorrer ao crédito bancário para novos investimentos” (NETTO; BRAZ, 2012, p. 191). Esse casamento entre monopólios e bancos pode ser chamado de o “grande ne- gócio”, e permite ao capitalismo ingressar na fase imperialista ou monopolista. Nesse estágio, as pequenas e médias empresas podem até participar do mercado, mas totalmen- te subordinadas às coerções dos monopólios. Inclusive, estes fazem um tipo de partilha territorial e econômica no mundo, que posteriormente foi posta em questão no ano de 1914, já que não existia mais territórios livres. A expressão dos conflitos interimperialistas é um dos propulsores da Primeira e Segunda Guerra Mundial (NETTO; BRAZ, 2012). 31UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes O capital monopolista e sua corporação diferenciam-se da empresa não monopolista, para além do tamanho e volume de transações, pelo acesso à tecnologia de ponta, que determina uma capacidade diferente de produção. É esse diferencial de produtividade que se constitui como principal fonte de superlucro, mediante o desenvolvimento de máquinas motrizes, novos materiais e fontes de energia mais adequadas (ver Mandel, 1982, p. 129) (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 157). É importante destacar que o capitalismo foi adaptando seu modo de produção de acordo com a evolução das tecnologias aplicadas nas indústrias. Mas o objetivo sempre foi o mesmo, gastar pouco e lucrar mais. Neste sentido, não podemos deixar de apontar três modos de organização da produção industrial, são eles: Quadro 1 - Modos de organização da produção industrial Taylorismo É uma teoria administrativa criada pelo americano Frederick Winslow Taylor, no final do século XIX, início do século XX, cujo objetivo principal é racionalizar o trabalho e, assim, aumentar a produtividade. No Taylorismo a remuneração era estabelecida segundo a produtividade de cada indivíduo. Principais características: divisão do trabalho em tarefas específicas; aumento da frustração dos operários, já que ficavam restritos a apenas uma função; aumento da produtividade; grande nível de subordinação dos trabalhadores para com os capitalistas. Fordismo É um princípio organizador do trabalho desenvolvido por Henry Ford em 1908, sendo um desdobramento do Taylorismo. No Fordismo manteve-se o mecanismo de produção e a organização da gerência utilizada do sistema anterior, porém foi adicionada a esteira rolante, estabelecendo um ritmo de trabalho mais dinâmico. Henry Ford foi o primeiro a entender que seus operários eram também consumi- dores dos seus produtos e, por isso, limitou o expediente a 8h diárias e aumentou o salário de seus funcionários. Principais características: padronização dos produtos; produção em grande esca- la; uso de linhas de montagem; divisão do trabalho em pequenas tarefas. Toyotismo É uma forma de organização do trabalho desenvolvido pelo japonêsTaiichi Ohno, em 1962, na montadora japonesa Toyota. Essa filosofia define-se por dois prin- cípios: ● Princípio Just In Time (JIT): consiste em minimizar estoques, produzindo de acordo com a demanda; ● Princípio dos cinco zeros: zero de atraso, zero defeitos, zero de estoque, zero panes e zero papéis. No Toyotismo, o trabalho em equipe é um fator importante, com grupos que se or- ganizam e controlam seu próprio trabalho, de forma a obter um aperfeiçoamento contínuo. Surgiu, assim, uma organização de trabalho horizontal, com objetivo de conseguir produtos de ótima qualidade. O Toyotismo aparece como um modelo ideal em termos de produtividade, no entanto, sua implementação é difícil e mui- tas empresas que tentaram aplicá-lo falharam. Principais características: produção diversificada; eliminação de desperdício; au- tonomia; trabalhadores com múltiplas tarefas. Fonte: Bezerra (2020). 32UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes Montaño e Duriguetto (2010) apontam que o capitalismo monopolista passa por dois períodos históricos, e caracteriza-os como dois regimes de acumulação. São eles: Regime de Acumulação Fordista/Keynesiano e o Regime de Acumulação Flexível. Regime de Acumulação Fordista/Keynesiano, no período entre o segundo pós-guerra (1945) e a nova crise capitalista (1973-1974), caracterizado por um conjunto de práticas no processo de produção (taylorismo e fordismo), de controle do trabalho (gerência científica), de novas tecnologias (2ª Revolução Tecnológica), de hábitos de consumo (em massa) e das configurações de po- der político-econômico (keynesianismo, Estado Providência, ou “Bem-Estar Social”) (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 138, grifo nosso). Então, o Regime de Acumulação Fordista/Keynesiano foi um período em que pu- deram ser desenvolvidas as práticas fordistas (aqui, ressaltamos a produção em grande escala), que diretamente se conectam ao desenvolvimento tecnológico e científico na indústria. O alto consumo da população, também foi uma característica deste Regime, bem como o desenvolvimento de políticas sociais, por meio do Keynesianismo. Mas o que vem a ser o Keynesianismo? Segundo Henrique (2019), o Keynesianismo é uma teoria econômica desenvolvida pelo economista John Maynard Keynes, nas primeiras décadas do século XX. Importante ressaltar que até o século XIX só existiam duas teorias econômicas, que já vimos na primei- ra unidade deste material, contudo vamos relembrá-las: Teoria Liberal e Teoria Marxista. A última, tendo como maestro o ideólogo Karl Marx, defendia a ideia de que o Estado deveria ser forte e predominante, ou seja, controlando os meios de produção e toda a economia de um país. Contrapondo essas ideias, a teoria liberal, tendo como fundador o economis- ta e filósofo Adam Smith, defendia o funcionamento do livre mercado. Nessa teoria, o estado deverá garantir apenas direito à propriedade privada.Assim, o Keynesianismo surge com uma alternativa às teorias econômicas liberal e marxista (HENRIQUE, 2019, on-line). Neste sentido, o Keynesianismo não é uma teoria marxista e nem liberal. Ela defen- de a atuação do Estado para que a economia se desenvolva e que seja garantido o pleno emprego. As principais características do keynesianismo: defesa da intervenção estatal em áreas que as empresas privadas não podem ou não desejam atuar; oposição ao sistema liberal; redução de taxas de juros; equilíbrio entre demanda e oferta; garantia do Pleno Emprego; introdução de benefícios so- ciais para a população de baixa renda, a fim de garantir um sustento mínimo (HENRIQUE, 2019, on-line). Foi por meio de ações de conciliação entre as questões econômicas e sociais, que o Keynesianismo cria as bases do chamado Welfare State (Estado de Bem-Estar Social). Mas, quais são as diferenças entre o Estado de Bem-Estar Social e o Estado Liberal? O Politize nos mostra de uma forma bem didática: 33UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes Figura 1 - Diferenças entre o Estado de Bem Estar Social e o Estado Liberal Fonte: Nagamine (2017). 34UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes Nessa fase monopolista, em que o Regime de Acumulação Fordista/Keynesiano funciona muito bem, o capitalismo passa por 30 anos gloriosos, em que se desenvolve de maneira expansiva e madura, mas deu [...] sinais de esgotamento em fins dos anos 1960, com conseqüências avas- saladoras nas últimas décadas do século XX para as condições de vida e trabalho das maiorias, rompendo com o pacto dos anos de crescimento, com o pleno emprego keynesiano-fordista e com o desenho social-democrata das políticas sociais (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 1992). É nesse momento de crise que se dá a nova fase do capitalismo monopolista, o Regime de Acumulação Flexível, que apresentaremos no próximo tópico desta unidade. 35UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes 2 A (CONTRA)REFORMA DO ESTADO NO REGIME DE ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL O contexto histórico dessa nova fase do capitalismo monopolista é trazido por Mon- taño e Duriguetto (2010), que nos apontam os principais aspectos do novo cenário mundial da crise capitalista, iniciado em 1973 e que perdura até os dias atuais. São eles: ● Surgimento dos “Tigres Asiáticos” (Hong Kong, Cingapura, Coreia do Sul e Taiwan), com o Japão formam uma nova potência econômica e produtiva (Toyo- tismo); ● Crise mundial do capitalismo devido à concentração do capital para poucos, uma população desempregada e com tendência a sua pauperização; ● A financeirização do capital e a crise do Regime de Acumulação Fordista que já não respondia mais às demandas apresentadas; ● Crise do bloco soviético, entre outras questões causou a desarticulação de partidos comunistas e quase que a extinção dessa experiência concreta de uma sociedade comunista; ● Globalização, que se beneficiou, inclusive, da crise do bloco soviético, que cau- sou uma maior inserção de diversos países na economia capitalista; ● Impactos nas lutas de classes, também afetadas pela crise socialista, sua de- sarticulação política, bem como a elevada taxa de desemprego, dificultando a moeda de troca do trabalhador para com o empregado. 36UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes Importante destacar que a crise após 1973 (crise do petróleo) tem como principais características: a alta significativa da inflação, que marcará o fim das políticas keynesianas, e um novo movimento do liberalismo, o Neoliberalismo (KODJA, 2009). SAIBA MAIS O petróleo, por sua vez, tornou-se, a partir da década de 1970, a commodity mais ob- servada do planeta. [...] Contudo, o histórico dos preços negociados pelo barril do petróleo ao final do século XX envolveu questões políticas e abalou a economia mundial, apesar de o mercado ter buscado mecanismos mais elaborados para o controle da volatilidade do preço do petróleo, desenvolvendo instrumentos ligados à manutenção de estoques reguladores e à estruturação de operações de hedge no mercado financeiro, a partir da abertura das negociações do barril de petróleo na Bolsa de Mercadorias de Nova Iorque, em 1983 (New York Mercantile Exchange - NYMEX). O jogo político em torno da disponibilidade dos recursos ligados ao petróleo foi utilizado, vastamente, durante o final do século XX, gerando inúmeros conflitos e modificando, consideravelmente, a estrutura de negociação e os custos de boa parte da cadeia pro- dutiva ligada aos seus derivativos [...] Fonte: Kodja (2009, p. 47). Com a necessidade de dar uma resposta à crise de 1970, a estratégia pensada pelos neoliberalistas foi reduzir as conquistas trabalhistas do antigo Regime de Acumulação Fordista/Keynesiano, em prol de retomar a exploração ao trabalhador. Os neoliberalistas refletem sobre uma nova forma de ação e cogitam a implementação de um novo regime, mas que trate as questões de forma flexível. E, assim, instituemo Regime de Acumulação Flexível, que o autor David Havery denomina como ofensiva neoliberal (MONTAÑO; DURI- GUETTO, 2010). 37UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes REFLITA Desta forma, o “projeto/processo neoliberal” constitui a atual estratégia hegemônica de reestruturação geral do capital - em face da crise, do avanço tecnocientífico e das lutas de classes que se desenvolvem no pós-1970, e que se desdobra basicamente em três frentes: a ofensiva contra o trabalho (atingindo as leis e direitos trabalhistas e as lutas sindicais e de esquerda) e as chamadas “reestruturação produtiva” e “(contra) reforma do Estado”. Fonte: Montaño e Duriguetto (2010, p. 193). A primeira frente da ofensiva neoliberal foi o ataque ao trabalho. Nela houve a exclusão do pacto keynesiano, ou seja, definhamento das organizações de trabalhadores e sindicais; a desqualificação das demandas e do movimento trabalhista; além do retrocesso no que se refere aos direitos sociais e precarização do trabalho (MONTAÑO; DURIGUET- TO, 2010). Já a segunda frente, relacionada à reestruturação produtiva, teve como objetivo reduzir os custos da produção para o capital e elevar a taxa de juros; flexibilizar o trabalho e as leis trabalhistas; também buscavam o enfraquecimento das organizações sindicais para contribuir com a desmobilização, entre outros (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010). A última frente pensada pela ofensiva neoliberal, é a (contra)reforma do Estado. Ela ocorre por meio do ajuste estrutural do Estado, que atua no desmonte das políticas sociais, antes instituídas pelo keynesianismo; pelo desenvolvimento do Neoliberalismo; pela diminuição de gastos com a política pública; privatização de estatais; e contratação de serviços que deveriam ser ofertados pelo Estado, mas passam a ser ofertados por Or- ganizações não governamentais (ONGs) e outras organizações filantrópicas (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010). No próximo tópico veremos quais os efeitos dessa crise e (contra)reforma estatal na luta de classe dos trabalhadores. 38UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes 3 A SITUAÇÃO ATUAL DAS LUTAS DE CLASSES A crise do capital não contribui para o enfraquecimento da classe dominante e a ascensão dos trabalhadores. Pelo contrário, deixa-os vulneráveis, já que é o momento que propicia ao capital fazer ajustes e (contra)reformas estruturais em seu favor. É o que nos aponta Montaño e Duriguetto (2010, p. 212): O efeito da crise se reverte trágica e imediatamente em aumento do desem- prego e da pauperização e miserabilidade a ele associadas, em acirramento da exploração capitalista – que visará retomar e/ou ampliar as formas de extração de mais-valia absoluta, como aumento da jornada de trabalho [...] -, na perda de direitos trabalhistas [...], na precarização de políticas [...], e até na perda ou esvaziamento de direitos políticos e civis. Paralelamente, a clas- se trabalhadora, com os efeitos do aumento do desemprego (e do Exército Industrial de Reserva), passa a desenvolver uma atitude mais individualista e defensiva, até aceitando muitas perdas para garantir seu emprego, o que impacta nas lutas dos trabalhadores e nos seus efeitos sociais. Não se trata aqui do fim da luta de classes oriunda de uma possível resolução dos conflitos referentes à contradição e antagonismo de classes, mas sim de um período em que existe uma mudança na forma de produção, tornando-a mais agressiva ao trabalhador, que, por sua vez, precisa assumir posturas mais defensivas, já que a ameaça do desemprego é factual (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010). Além disso, o Estado do Welfare State liberal-democrático, contribuiu para a perda de identidade dos trabalhadores, conforme Montaño e Duriguetto (2010, p. 219) apontam: Assim, se na fase inicial do monopolismo, sob o regime de acumulação fordista-keynesiano, a racionalidade hegemônica do capital induziu os indi- 39UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes víduos a pensar que o capitalismo não precisava ser alterado/superado (pois ele tinha se “civilizado”, incorporando as demandas e os interesses de todos os setores sociais, a partir de um “pacto social”), no atual contexto de crise e hegemonia neoliberal, induz-se o trabalhador a pensar que o capitalismo não pode ser alterado / superado (pois ele seria a única e última forma possível de desenvolvimento social moderno e “globalizado”). Neste sentido, Na primeira fase do monopolismo (no Regime de Acumulação fordista-key- nesiano), a estratégia hegemônica do capital aponta para a diminuição das resistências operárias mediantes a incorporação sistemática de demandas trabalhistas, monstrando um sistema (e um Estado) supostamente capaz de gerar “bem-estar social” para todos. Na segunda (e atual) fase, de crise e financeirização do capital, a estratégia hegemônica aposta na desmobi- lização mediante a resignação frente a fenômenos supostamente naturais, irreversíveis, inalteráveis (MONTAÑO, DURIGUETTO, 2010, p. 219-220). Com essa citação esclarecedora terminamos o terceiro e último tópico da Unidade II deste material. 40UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes CONSIDERAÇÕES FINAIS Prezado(a) estudante, finalizamos a Unidade II desse material. Nesta unidade contextualizamos brevemente o desenvolvimento do capitalismo até sua fase monopolista, bem como identificamos quais as ações do Estado frente às deman- das apresentadas, chegando até o primeiro momento histórico do capitalismo monopolista, o Regime de Acumulação Fordista/Keynesiano. No segundo tópico, abordamos sobre a segunda fase histórica do capitalismo mo- nopolista, o Regime de Acumulação Flexível, bem como a resposta do Estado frente a essa nova forma de produzir. No último tópico, apresentamos o impacto desse cenário histórico na luta de clas- ses, ressaltando que a complexidade do processo produtivo, bem como o contexto histórico dificultou a proatividade dos trabalhadores, que tiveram que atuar mais na defensiva. Esperamos que você tenha apreciado a Unidade II desta disciplina, e que o conteú- do aqui apresentado tenha te instigado a aprofundar o estudo na referida temática. Até a próxima. 41UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes LEITURA COMPLEMENTAR AS CRISES EM NOSSA HISTÓRIA É freqüente a afirmação de que esta é a maior crise de nossa história. Acho, porém, que em vez de tentar estabelecer uma precária medida das crises brasileiras ao longo do tempo, vale a pena ressaltar, nessa comparação, os traços que distinguem a atual. Talvez, assim, acabe por acentuar o seu imenso alcance. Convém lembrar que essa comparação não é simples. Com relação ao passado, estamos confortavelmente instalados: as divergências de interpretações são inevitáveis mas sabemos, em linhas gerais, como se gestaram as crises, como se desenvolveram e como chegaram a um fim, mesmo precário. O presente é bem mais complexo. Para usar a velha imagem, estamos em plena travessia do túnel e, se a travessia parece ser bastante longa, não temos idéia de quão longa será. Mais do que isso, não sabemos se haverá luz no fim do túnel ou mais escuridão. É possível, em um sentido geral, traçar um padrão das crises brasileiras, a partir de 1930. Em recente artigo na revista Senhor n.º 139, Álvaro Caropreso e Raimundo Pereira lembraram que as rupturas de 1930, 1945, 1954 e 1964 se caracterizaram pela derrubada de forças no poder, enquanto as de 1937 e 1968 representaram uma consolidação de forças hegemônicas que, tendo tomado o poder em coligação com outras, conseguem eliminá-las para ter as mãos livres e implantar seus modelos de Estado. Obviamente, a ruptura atual se aproxima do primeiro tipo. É possível, também, distinguir entre conjunturas decisivas no sentido de que quebram uma ordem anterior (1930, 1964), das que acumulam condições, assinalam derrotas ou vitórias parciaisno caminho da ruptura, como é o caso de 1954. Entretanto, vistas sob a luz de um foco mais próximo, as diferentes conjunturas de crise têm um desenho próprio. Não só porque as forças sociais se posicionam de forma va- riável, como ainda porque estas forças (classes ou instituições) se transformaram bastante, sobretudo nos últimos tempos. Para ficar apenas nos exemplos mais expressivos, lembre- mos as profundas alterações internas e de inserção na área sócio-política que ocorreram na Igreja de um lado, e nas Forças Armadas de outro, nos últimos vinte anos. Em termos simplificados, a conjuntura atual corresponde à crise do regime militar instaurado em 1964 e que se consolidou em 1968. Parece, assim, mais frutífero no recurso à história comparar a crise dos anos 1963-1964, que desemboca no movimento de 31 de 42UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes março, com a crise presente que desemboca... não sabemos ainda onde. Como se tem assinalado com freqüência, a ex-’” pressão “golpe de 1964” vale como recurso da fala corrente, mas não dá conta da manutenção histórica iniciada naquele ano. Sob a forma do golpe, ocorria na verdade uma contra-revolução. Com isto, não quero dizer que as premissas de uma revolução social estivessem maduras no período. Mas o certo é que a intensa mobilização das “camadas inferiores” (das classes sociais aos subalternos das Forças Armadas) foi abafada pela violência e, mais do que isto, pela construção de uma ordem autoritária-conservadora, com apoio em uma base social significativa. Se, em termos simplificados, a crise de nossos dias é a crise do regime autoritário, instaurado -no país a partir de 1964 também em termos simplificados, a conjuntura dos anos 1962-1963 pode ser caracterizada, do ângulo político, pela crise do populismo. A aliança entre classes ou setores de classes — a burguesia nacional, parte da classe ope- rária e da classe média — promovida por um Estado que passava por ser a síntese das aspirações do povo, entrou em parafuso por várias razões: 1) pelos limites estruturais e políticos do modelo de desenvolvimento autônomo, baseado no pressuposto de uma forte burguesia nacional. Isto era visível já no governo Juscelino quando o “nacionalismo” foi se convertendo em “desenvolvimento”, com a crescente internacionalização da economia brasileira, não obstante as desavenças entre o governo e o FMI; 2) pela mobilização das classes trabalhadoras, inclusive dos setores do campo, tradicionalmente sem vez, a que veio somar-se a base das Forças Armadas; 3) pela ação de grupos localizados no aparelho do Estado, promovendo as reformas de base ou estimulando o movimento popular, na tentativa de dar conteúdo radical ao esquema populista esvaziado de uma sustentação de classe. Lembremos que a transição, ainda incerta, do modelo de desenvolvimento, no início da década de 60 em meio à instabilidade política, não se fez sem problema. Alguns deles são familiares aos nossos ouvidos; tendência à queda do PIB (Produto Interno Bruto), inflação crescente, pressão dos credores da dívida externa. Do ângulo social, o movimento de 1964 agregou sob o toque do clarim quase todos os que tinham a perder, dos latifundiários improdutivos (lembram-se)?, à classe média assediada pela inflação e pela reforma urbana. * * * As crises se nutrem de dados objetivos: problemas econômicos, descalabro admi- nistrativo, desastres políticos etc. Mas são também um fenômeno de consciência. Os seto- res sociais afetados, de maneira e em graus muito diversos, vivem uma sensação penosa 43UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes de crise. Tomando o período de um ano, entre novembro de 1982 e novembro de 1983, por exemplo, a percepção é da rápida passagem de uma situação de esperança a uma profunda intranqüilidade. De certo modo, convergiam para definir a situação de esperança o jogo de esconde-esconde do governo e das expectativas da oposição. Do lado do go- verno, não obstante as dificuldades no plano econômico-financeiro, havia todo um esforço para esconder o lixo debaixo do tapete. Com sua ironia pesada, hoje também em crise, o ministro Delfim desmentia, por exemplo, os boatos de que o Brasil iria pedir socorro ao FMI, a exemplo do México, um país encarado com o desdém que merecem os irresponsáveis. Do lado das oposições, parecia lógico concentrar-se na campanha eleitoral onde a crítica à política econômica entrava como ingrediente retórico, sem que se percebesse, com raras exceções, toda sua amplitude. Em alguns meses após as eleições, como sabemos (e vivemos), os problemas econômico-financeiros do país ganharam o primeiro plano. A multidão formada pelos as- salariados das mais variadas faixas acompanha a história de suspense da dívida externa, rói-se com a inflação descontrolada, com a ameaça de perda do emprego ou com a procura dele. O quadro de nossos dias, com suas repercussões sociais, é muito diverso e infini- tamente mais grave que o dos anos 1962-1963. A inflação e sua manipulação política foram elementos integrantes da crise que levou à derrubada de João Goulart. Basta lembrar como a inflação ajudou a deslocar a classe média e a estabelecer distâncias entre o governo e a massa trabalhadora. No seu conjunto, porém, os problemas vinculados à crise final de um modelo ocorriam quando outro — o do “desenvolvimento associado” — já se esboçava. A passagem se deu em uma conjuntura internacional de expansão das atividades econômi- cas, o que aliás permitiu a implantação em poucos anos do novo modelo, com o recurso da compressão salarial pela violência. Vê-se por aí que as diferenças entre as duas épocas não se medem apenas em termos quantitativos, segundo o vulto da dívida externa ou os índices de inflação. A crise atual se desdobra no interior de um organismo tomado por uma febre convulsiva sem que existam forças sociais em condições de impor profundas alterações no terreno econômico. Por isso as alternativas são medidas defensivas ou opções que se situam mais no plano do discurso do que da viabilidade imediata. Além disto (não é segredo para ninguém), a crise brasileira de nossos dias se desenrola em uma conjuntura internacional recessiva, da qual aliás faz parte. 44UNIDADE II O Estado no Capitalismo Monopolista e as Lutas de Classes Embora não conheçamos todos os possíveis desdobramentos da crise, é certo que ela se distingue de qualquer outra na história brasileira pelas perspectivas de sua duração, assim como por suas conseqüências profundamente negativas no plano econômico e social. Ainda não sabemos todo o significado da pauperização (juntando os órfãos do milagre e os órfãos da crise) e do desemprego, na vida cotidiana e na qualidade dos mo- vimentos sociais. Lembremos, no plano da vida cotidiana, o problema da criminalidade. É evidente o interesse de setores reacionários — com ampla repercussão popular, é bom que se diga — em aterrorizar a população para fazer retornar a violência policial em larga escala e propor medidas como a pena de morte. Não obstante, trata-se de um problema real, de grandes proporções e que não se reduz à violência da polícia. Questão de todos os dias cujo enfrentamento ultrapassa a simples denúncia da “violência do sistema”, por mais verdadeira que ela seja. Do ângulo dos movimentos sociais, a comparação ajuda a elucidar algumas coisa. As mobilizações de 1963-1964 caracterizaram-se por uma definição mais nítida de classe social ou de grupo; mobilização de setores operários, de diferentes segmentos sociais do campo, da base das Forças Armadas, dos estudantes. Não quero com isto dizer que não ocorressem manifestações de protesto do “povo em geral”, enquanto consumidor, tendo como alvo preferido os meios de transporte. Afinal de contas, os “quebra-quebras” fazem parte da história semi-oculta das grandes cidades brasileiras, desde pelo menos o início
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