Logo Passei Direto
Buscar
Material
páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.
left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

Prévia do material em texto

Etnocenologia e a cena baiana:
textos reunidos
ARMINDO BIÃO
Etnocenologia e a cena baiana:
textos reunidos
P&A Gráfica e Editora
Salvador - Bahia
2009
Copyright 2009, Armindo Jorge de Carvalho Bião
Projeto gráfico
Editoração eletrônica
Antonio Raimundo Martins Cardoso
Capas e foto
João Paulo Perez Cappello
Revisão
Heloisa Prata e Prazeres
Normalização bibliográfica
Flávia Catarino Conceição Ferreira
FICHA CATALOGRÁFICA
B473t Bião, Armindo Jorge de Carvalho
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos / Armindo
Jorge de Carvalho Bião, PrefácioMichel Maffesoli. – Salvador:
P&A Gráfica e Editora, 2009.
389 p.
ISBN: 978-85-86268-71-7
1. Teatro popular - Bahia. 2. Etnocenologia. I. Maffesoli, Michel.
II. Título.
CDD 792.0222
P & A Gráfica e Editora
Endereço: Av. Iemanjá, 365 – Jardim Armação
CEP 41710-755 – Salvador – Bahia
Tel.: (71) 3371-1665
pagrafica@uol.com.br
Para meus alunos,
que colaboraram com a maior parte dos textos aqui reunidos,
sempre me motivaram a escrever e,
mais recentemente,
me sugeriram publicá-los.
Para meus professores,
Maritinha, que me preparou e me fez entrar num bom ginásio aos 10
anos,
Alvarez, que me ensinou geometria no espaço e xadrez,
Orlando, que me fez optar pela manuscrita em letras de imprensa,
Rui Simões (in memoriam), que praticamente salvou minha vida
universitária,
Carlos Costa e Francisco Pereira,
que me deram gosto pela Sociologia do Conhecimento e pela Lógica,
Jean Duvignaud (in memoriam), que me tem tanto inspirado,
e Michel Maffesoli, que se transformou em amigo.
E para meus amigos,
Álvaro César Barbosa Guimarães, Alvinho (in memoriam),
que me fez escrever de e sobre um tudo,
Vivaldo da Costa Lima,
que me tem ensinado tanta coisa e me levou até Michel Maffesoli,
Jean-Marie Pradier, que me deu tantas oportunidades
e Edivaldo Boaventura,
por seu estímulo entusiasmado e cativante
na ponta mais fina do cordel de minha vida.
Agradeço a minha mãe
Dulce Aleluia de Carvalho Bião,
pelo apoio incondicional,
a João Paulo Perez Cappello,
pelas capas, fotos e ajuda com os originais
e a Marcos Lopes,
pelo apoio.
SUMÁRIO
Nota do autor sobre a presente edição ........................................................ 11
Prefácio: A Profundeza das Aparências ...................................................... 19
Préface: La profondeur des apparences ....................................................... 25
Da Etnocenologia
Um léxico para a etnocenologia: proposta preliminar (2007) ........................ 33
Um trajeto: muitos projetos (2007) .................................................................. 45
Ah que culpa enorme, imensa, grande (2005) ................................................. 71
As Fronteiras e os Territórios das Linguagens Artísticas (2004) ................... 77
Aspectos epistemológicos e metodológicos da etnocenologia: por uma
cenologia geral (2000) ........................................................................................... 89
Etnocenologia: uma introdução (1998) ............................................................ 95
Um mesmo estado de graça: o teatro e o Candomblé da Bahia (1998) ....... 105
Questions posées à la théorie: une approche bahianaise de (1996) .............. 117
Estética Performática e Cotidiano (1995) .......................................................... 123
Etnocenologia e as artes contemporâneas do corpo (1995) .......................... 141
Da teatralidade
A metáfora teatral e a arte de viver em sociedade (1991) ................................ 153
Teatralidade e espetacularidade (1990) ............................................................... 161
Le jouir du jouer (1990) ....................................................................................... 169
L’interface théâtrale (1990) ................................................................................... 175
Théâtralité et spectacularité: les pratiques homosexuelles masculines
dans le Candomblé (1988) .................................................................................. 187
Da cena baiana
Uma Encruzilhada Chamada Bahia: o que está em jogo, qual é o
problema e algumas práticas relativas ao patrimônio cultural imaterial
na Bahia, Brasil (2004) .......................................................................................... 197
Xisto Bahia (2003) ................................................................................................ 209
O papel do teatro baiano contemporâneo no drama e na comédia da
contínua reconstrução da baianidade (2001) .................................................... 231
Matrizes estéticas: o espetáculo da baianidade (2000) ..................................... 251
O Teatro na Universidade (1999) ....................................................................... 273
Uma vida sombria ao sol de Salvador (1998) .................................................. 277
O obsceno em cena, ou o tchan na boquinha da garrafa (1998) ................... 279
Teatro e negritude na Bahia (1995) .................................................................... 287
Euforia e Ufanismo: Quantidade e Qualidade num mercado em
crescimento (1993) ................................................................................................ 293
Aspectos do comportamento corporal em performances de poesia oral
(1989) ...................................................................................................................... 301
Variantes do romanceiro tradicional na Bahia (1988) ...................................... 311
Miscelânea do mesmo
Homenagem a Jean Duvignaud (2008) ............................................................ 325
Prefácio para livro sobre folias do divino (2008) ............................................. 331
Apresentação de livro sobre a dança de Iemanjá (2008) ................................. 335
Prefácio de livro sobre o carnaval de Natal, no Rio de Grande do
Norte (2007) .......................................................................................................... 339
Apresentação do Relatório da Fundação Cultural do Estado da Bahia
2003/ 2006 (2006) ................................................................................................ 343
Teatro Castro Alves: história e memória (2005) .............................................. 355
Prefácio de livro sobre o projeto Bahia Singular e Plural (2005) ...................... 357
Pátria é nossa língua (2004) ................................................................................. 361
Etnocenologia na serra (2003) ............................................................................ 363
Conflito é exacerbação (2003) ............................................................................. 371
O estético dá a ligação comunitária (2001) ........................................................ 373
Homenagem ao talento (2002) .......................................................................... 377
Multiculturalismo: multiculturalidade (2000) .................................................. 381
Orelha de livro sobre a imprensa alternativa na Bahia nos anos 1970
(1996) ...................................................................................................................... 383
Uma viagem pela teoria em Paris (1988) ........................................................... 385
11
Armindo Bião
Nota do autor sobre a presente edição
A “presente edição” à qual se refere este título é a de dois livros,
nos quais esta mesma “Nota” aparece: Etnocenologia e a cena baiana
e Teatro de cordel e formação para a cena, ambos com a característica
idêntica, de reunirem textos de um só autor, quase todos já publicados
anteriormente em outros livros e periódicos.
Em Etnocenologia e a cena baiana, estão reunidos 40 textos, já
publicados entre 1988 e 2008 no Brasil e na França (dois dos quais ainda
no prelono momento da presente edição), nas linhas de pesquisa que
passei a desenvolver em função de meu doutoramento. Além do campo
de pesquisa privilegiado que tem sido a Bahia (inclusive seu teatro), foco
de mais de um quarto dos ensaios, artigos e outros textos aí reunidos,
esse livro traz um conjunto de abordagens de caráter epistemológico e
metodológico, no horizonte teórico da sociologia relativista e
compreensiva do atual e do cotidiano e da etnociência das artes do
espetáculo, a etnocenologia.
Em Teatro de cordel e formação para a cena, estão reunidos
52 textos, produzidos entre 1982 e 2008 nos Estados Unidos da América
do Norte, no Brasil e na França (cinco dos quais ainda inéditos no
momento da presente edição), relativos à interpretação teatral, a minha
prática de ator, encenador e professor de artes do espetáculo e às pesquisas
que venho desenvolvendo no âmbito da oralidade e da teatralidade da
literatura de cordel. A palavra bião, que identifica minha família paterna e
que aparece em textos do teatro de cordel lisboeta do século XVIII, é aí
motivo de reflexão pessoal, profissional, antropológica e etnocenológica.
Razões históricas da edição dos dois livros
Ao longo de 30 anos de atuação como docente universitário, na
área das artes do espetáculo, tenho me deparado com o grande problema
do texto didático: sua escassez e dificuldade de acesso. Na Bahia, em
12
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
particular, esse problema só me parece ser menor que o de nossas
bibliotecas públicas, cuja grandeza só me foi revelada, em toda sua
dramática extensão, quando estudei, no início dos anos 1980, nas
Universidades de Pittsburgh e Minnesotta, nos Estados Unidos da América
do Norte. De fato, ali, a abundância de textos disponíveis – e a eficiente
existência de bibliotecas, de grande acervo com acesso fácil e ágil, abertas
ao público de modo quase ininterrupto, com pessoal bem qualificado –
surpreenderam-me.
Talvez, e não por mera coincidência, fosse ali e quando eu
começaria a estudar, de fato, metodologia da pesquisa, passaria a valorizar
a produção de textos didáticos e a boa manutenção de bibliotecas públicas
e, além disso, começaria, também, a produzir textos para uso em salas de
aulas de cursos de teatro. Daí, resultaram meus artigos “O ator nu: notas
sobre seu corpo e treinamento nos anos 80” e “Dramaturgia brasileira
em aulas de interpretação”, publicados, respectivamente, em 1982 e 1984,
na Revista Art, da então Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade
Federal da Bahia, nossa UFBA.
A plena compreensão da pesquisa, em suas dimensões de pureza
e aplicabilidade, só me seria revelada um pouco mais tarde, no final dos
anos 1980, durante a realização de meu doutorado, nas velhas instalações
da Sorbonne, que eu escolhera por conta de sua proximidade física (em
Paris) de locais onde se praticavam técnicas teatrais de máscara, que eu
conhecera nos EUA, durante o mestrado, junto à companhia teatral franco-
norteamericana Théâtre de la jeune lune. Pois foi ali, apesar de alguma
dificuldade de acesso ao precioso acervo bibliográfico existente, que
aprendi o real e elevado valor da reflexão filosófica, da crítica e do livre
debate de ideias.
Minha atração pelo teatro, bem arcaica, quase infantil – segundo
amigos adeptos do espiritismo, de minha família, proveniente de outra
reencarnação – como se observa no parágrafo anterior, parece ser o
eixo norteador do acaso e da necessidade de minha vida acadêmica e de
minha produção bibliográfica, como se poderá confirmar no próximo
parágrafo. No entanto, a possibilidade de efetiva articulação de teoria e
prática, teatro e filosofia, artes do espetáculo e ciências do homem, só se
13
Armindo Bião
tornaria realidade para mim a partir de 1995, quando participei do evento
no qual se propôs a etnocenologia, também em Paris. Aí e então, teve
início um terceiro momento de minha produção textual, cujo formato
mais realizado só começaria a aparecer bem recentemente, em artigos
como “Um trajeto, muitos projetos” e “Um léxico para a etnocenologia”,
ambos de 2008.
Voltando ao momento chave de meu doutoramento, foi também
na Sorbonne, no final dos anos 1980, que passei a produzir textos numa
perspectiva mais teórica, como os ensaios “Le jouir du jouer” (1988) e
“Teatralidade e espetacularidade” (1990), religando-me a minha iniciação
universitária no campo da filosofia, curso, aliás, que eu escolhera, em
1967, mais uma vez, graças a minha atração primordial pelo teatro, menos
pelo conteúdo programático do curso e mais pela existência de um atuante
grupo de teatro na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA,
conforme relato no texto “O teatro mora na filosofia”, escrito para as
celebrações dos 50 anos da mais antiga universidade baiana, em 1996.
Na verdade, essa religação filosofia-teatro-pensamento francês estende-
se a minha participação adolescente em dois grupos: um de “teatro de
orientação espírita” e outro de estudos sobre “a filosofia de bases científicas
e consequencias religiosas”, que seria o espiritismo ortodoxo positivista
francês, segundo a tradição oral e escrita local.
Retornando, de modo mais pontual, à presente edição simultânea
de dois livros, reunindo textos (quase todos já publicados), em minha
avaliação, mesmo com o grande avanço tecnológico e telemático, dos
últimos anos, que amplia as possibilidades de acesso a textos didáticos e
a acervos bibliográficos, o que vivemos na área das artes do espetáculo,
na Bahia sobretudo, em termos de bibliotecas públicas (universitárias ou
não), é, ainda, uma situação dramática.
Para mim é muito claro que, atuando, prioritariamente, numa
metrópole regional brasileira de médio porte, como Salvador, de um
lado, nossas dificuldades locais de publicação de livros e de periódicos
são enormes. De outro lado, mesmo havendo, aqui, uma efetiva inserção
no avanço tecnológico e telemático ao qual aludi no parágrafo anterior,
graças à ampliação do acesso às telemáticas, na verdade, nosso acesso à
14
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
informação, que é o centro de minha atenção na presente “Nota”,
permanece problemático. Porque, além de nosso parco hábito de leitura
e de escrita, do pequeno conhecimento das metodologias da pesquisa e
das múltiplas formas escritas das línguas, em geral, talvez, até como
fato correlato, nossa produção bibliográfica pertinente seja muito escassa
e, o que é muito mais grave, continue a haver uma pequeníssima
circulação dos raros textos didáticos e dos resultados de pesquisa
efetivamente publicados, na área das artes do espetáculo.
Mesmo tendo publicado textos de minha autoria fora e dentro
do Brasil, inclusive fora da Bahia, o número pequeno de exemplares
das edições dos periódicos de nossa área de artes e sua precária circulação
internacional (e também até nacional) leva-me a um fato já muito
conhecido também em outras áreas do conhecimento em nosso país.
A questão é que, talvez, esse fato seja ainda mais grave em nossa área:
dos fenômenos efêmeros do espetáculo. Trata-se do crescimento do
uso de reproduções em fotocópias, nem sempre de boa qualidade e
eventualmente com danosas distorções das referências dos originais
copiados, de textos didáticos e de resultados de pesquisa.
Aliás, o hábito de professores deixarem, no serviço de reprodução
de textos de sua unidade acadêmica, cópias dos textos indicados para
os alunos, para serem, por sua vez, também, fotocopiadas, tem se
tornado prática cada vez mais frequente e, até, motivo de pesquisa
acadêmica.
Assim, selecionei quase uma centena de textos, publicados desde
1982, entre artigos, ensaios, palestras transcritas, entrevistas, editoriais,
prefácios, apresentações de livros e similares, por considerá-los de
alguma utilidade para as disciplinas que leciono e para as atividades de
pesquisa e extensão que desenvolvo. Como o volume do material ficou
muito grande para um só livro, fui levado a organizá-loem dois livros,
e não em dois volumes de um mesmo livro, porque, o esforço teórico,
prático e pragmático, de seleção e preparação dos originais assim me
sugeriu.
É o resultado desse esforço, que só me enriqueceu, e que, graças
ao CNPq, à ajuda profissional de, entre outros, Heloísa Prata e Prazeres,
e ao apoio técnico de João Paulo Perez Cappello, agora vem a público.
15
Armindo Bião
Razões imediatas da edição dos dois livros
Esta edição teve origem aproximadamente em março de 2008,
quando comecei a desenvolver o projeto de pesquisa Mulheres por um
fio: inferno, purgatório e paraíso no Atlântico Negro, com o qual
recebi nova bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, agora de
Nível 1A, por três anos.
Acompanhada de um grant mensal em recursos financeiros, que
podem ser investidos em publicações, a concessão dessa bolsa me
possibilitava reunir, com objetivo de promover sua edição, tudo (ou quase
tudo) o que já havia publicado. O que me permitiria, além de promover
doações a bibliotecas especializadas, vender o produto editado aos
interessados praticamente pelo preço dos custos não cobertos pelo grant
(serviços de pessoa física, de revisão, normalização e preparação dos
originais), já que esse cobriria os custos de impressão.
E, para mim, ficava cada vez mais clara a necessidade de um suporte
desse tipo para minhas atividades acadêmicas, de pesquisa, ensino e
extensão. De modo mais pragmático – confesso – eu também queria
facilitar minha vida de professor e a de meus alunos, sobretudo a de
meus orientandos, dando-lhes mais fácil acesso a parte da bibliografia
que eu já lhes indicara e que poderia usar em futuros cursos.
No processo de reunião e seleção dos textos que já publicara,
reuni também poemas diversos (publicados e inéditos) de minha autoria,
o que resultou num terceiro livro, Bloco mágico e lua e outros poemas,
já lançado no final de 2008.
Razões metodológicas
Os textos foram organizados, de acordo com sua temática central,
nos dois livros e, dentro de cada um deles, em blocos temáticos (para os
artigos, ensaios e similares) e num bloco final, denominado “Miscelânea”,
contendo as entrevistas, editoriais e afins. Com a implantação da nova
ortografia da língua portuguesa a partir de 2009, fiz um grande esforço
de adaptação dos textos originais, publicados exclusivamente ou também
em português, às novas regras hoje em vigor, o que, sem dúvida, se altera
16
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
o texto de referência já publicado, tirando-lhe algo do sabor de outra
época, também lhe dá uma atualidade desejável. Do mesmo modo, os
títulos foram revistos, para darem conta ao leitor, do modo mais preciso
possível, de seu conteúdo e, eventualmente, de seu contexto, como nos
casos de “Prefácio a...”, por exemplo. Quanto aos textos escritos e
publicados em francês e em inglês, ainda sem tradução para o português,
optei por republicá-los nas línguas em que estão disponíveis.
Quanto aos raros textos escritos e publicados em francês e em
inglês, ainda sem tradução para o português, optei por publicá-los nas
línguas em que estão disponíveis. Já os prefácios, de Michel Maffesoli,
para Etnocenologia e a cena baiana, e de Jean-Marie Pradier, para
Teatro de Cordel e formação para a cena, aparecem em suas versões
originais em francês e numa tradução para o português, por conta dos
principais leitores alvo: sobretudo lusófonos, mas também francófonos.
Com facilidade, o leitor poderá perceber que ideias recorrentes e,
até, trechos inteiros, reproduzem-se de um texto para outro. O que me
levou a optar por sua organização, dentro da cada bloco de textos, por
ordem cronológica, na esperança de que se possa acompanhar o processo
de transformação dessas ideias e formulações do discurso. Por isso a
ordem de apresentação dos textos em cada um desses blocos é
cronológica, do mais recente para o mais antigo, o que pode ser visualizado
nos Sumários, onde após o título de cada um deles informa-se o ano de
sua mais recente publicação, entre parênteses. O resultado dos dois livros,
assim, acaba por remeter ao universo da arte e da cultura barrocas, que
definiram a identidade de nosso país e, mais particularmente, de nossa
Bahia, de nossa Salvador e minha própria.
O fato de divulgar, para acesso e download gratuito, o conteúdo
de ambos os livros, através de www.gipe-cit.blogspot.com e de
www.teatro.ufba.br/gipe, pode comprovar minha intenção de superar
as dificuldades de acesso a textos didáticos e de resultados de pesquisa,
que classifiquei como dramáticas na área das artes do espetáculo e na
Bahia, em particular. É claro que a edição de apenas quinhentos exemplares
de cada um dos livros (para doação a bibliotecas e venda em raras livrarias,
através de um esforço muito pessoal e artesanal ou por meio daqueles
sítios virtuais acima indicados), por uma pequena editora local,
17
Armindo Bião
soteropolitana, não contribuiria de modo decisivo para o enfrentamento
daqueles problemas. Mas, também, fica claro que só a organização do
material que eu quis publicar no formato de livro me permitiu chegar até
sua divulgação pela rede mundial de computadores.
Finalmente, faz-se necessária uma referência à utilização de palavras
não dicionarizadas. A palavra “espetacularidade”, por exemplo, é definida
em vários dos textos nos quais aparece, em particular em “Um léxico
para a etnocenologia”, como a categoria dos fenômenos sociais
extraordinários. Outras palavras, provindas do vocabulário proposto por
Michel Maffesoli e de franca inspiração da filosofia alemã romântica,
contudo, merecem aqui uma, ainda que também breve, definição.
Assim, “sensorialidade” é a categoria da percepção sensorial que
se distingue de “sensibilidade”, cuja conotação de qualidade, emoção,
faculdade perceptiva e reativa e fragilidade é muito forte e distinta do
que se pretende compreender com essa nova palavra. Sensorialidade é,
mais especificamente, a condição humana de conhecer através dos sentidos.
Do mesmo modo, “afetual” é a condição humana, distinta do sensorial,
do racional e do emocional, que se refere ao conjunto de empatias,
simpatias e antipatias que aproximam e distanciam as pessoas. E
“reencantar” e “reencantamento” referem-se a uma nova forma de se
ver o mundo na cultura ocidental, fortemente marcada pelo
desencantamento da modernidade. Depois de um mundo desencantado,
estaríamos vivendo um novo momento, o do “reencantamento”, da
aceitação do mistério.
Por fim, no âmbito da história do teatro, a palavra “revistógrafo”,
que se refere ao especialista em teatro de revista, uma modalidade teatral
hoje em desuso, que gerou a palavra dicionarizada “revisteiro”, para designar
o autor de peças desse tipo, que aparece em alguns textos sobre esse tipo
de comédia musical, muito popular do final do século XIX a meados do
século XX, pode ser bem compreendida ao se conhecer o perfil de Xisto
Bahia (1841-1894), ator, músico, autor, encenador, produtor. Xisto Bahia
também pode ser considerado um revistógrafo, palavra cujo sufixo remete
mais à teoria e à grafia. Ora, teoria (e escrita) e teatro (e vida breve, na
prática) são faces da mesma moeda, até por sua origem etimológica. A
presente edição é um tributo a Xisto Bahia, ao teatro e à teoria!
19
Armindo Bião
Prefácio:
A Profundeza das Aparências
“Mas aquilo que na aparência é
claramente compreensível é penetrado e
regido pela obscuridade”
(M.Heidegger. Moira)
Lendo e, em alguns casos, relendo as belíssimas páginas sobre as
quais Armindo B. nos propõe meditar, tenho na memória nossos
inúmeros e profícuos encontros, no Rio Vermelho, pela primeira vez,
numa iniciativa do respeitado amigo Vivaldo da Costa Lima, e mais
tarde, é claro, em Paris. Tudo isso tendo como desfecho sua tese de
doutorado (em 1990, como o tempo passa, e nós também!), da qual me
lembro bem das contundentes análises.
O cerne dessas análises era a importância readquirida pelo corpo
na socialidade. Eis,também, uma das minhas idéias obsessivas: a pós-
modernidade será elaborada no “vazio das aparências”. E toda a obra
de A.B. (teórica e prática) é uma ilustração do lúdico, do festivo e do
emocional em jogo em todas as nossas sociedades. Mas, nesses assuntos,
a Bahia não é vanguardista?
Tudo isso é exteriorizado ainda que de maneira premonitória pelo
que Nietzsche denominava de ”a inocência do devir”. Aceitação do amor
fati. Dar consentimento a esta terra, a este mundo. Este, contrariamente à
doutrina judaico-cristã, não encontra sua origem numa criação ex nihilo,
mas está presente tal como um “dado” com o qual devemos, de qualquer
modo, concordar. Somos cidadãos deste mundo! Que é nossa cidade.
Certamente, tudo isso não está conscientizado, nem mesmo
verbalizado como tal. Mas amplamente vivenciado no retorno às
tradições, religiosas ou espirituais, no exercício das solidariedades
quotidianas, na revivescência das forças primitivas. O que conduz à (re)
valorização dos instintos, éticas, etnias.
20
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Esta nova sensibilidade, poderíamos dizer este novo paradigma,
é induzida por um poderoso imanentismo. Isto pode tomar formas
mais sofisticadas ou mais triviais. O hedonismo, os prazeres do corpo, o
jogo das aparências, o presenteísmo surgem como pontuação do que
não é um ativismo voluntarista, mas, sim, a expressão de uma verdadeira
contemplação do mundo.
Ou, dizendo-se em outras palavras, a aceitação de um mundo
que não é céu sobre terra, que também não é inferno sobre terra, mas é
terra sobre terra. Com tudo aquilo que contém de trágico (“amor fati”),
mas também de prazeroso. Deixar fazer, deixar viver, deixar ser. Eis,
portanto, o que poderiam ser as palavras-chaves dessas tribos inocentes,
instintuais, um tanto animalescas e, certamente, muito vivas.
A modernidade terminal, no seu sentido estrito, “desnervou” o
corpo social. O higienismo, a segurança, a racionalização da existência,
todos os tipos de interdição, tudo isso havia retirado do corpo individual
ou do corpo coletivo a capacidade de emitir as reações necessárias à sua
sobrevivência. Parece que assistimos, com a pós-modernidade, à
revalorização da vida instintual.
Instinto, primitivismo, é restituir o seu lugar ao sensível. É considerar
que o apanágio da natureza humana não se resume ao cognitivo, ao
racional, mas, sim, a um ”complexio oppositorum” que se poderia
traduzir por um conjunto, uma urdidura de coisas opostas. É tudo isso
que convém saber para ver a emergência de um novo elo social na
efervescência contemporânea. Algumas de suas manifestações podem
nos atormentar ou nos ofuscar. Mas nem por isso deixam de exteriorizar,
às vezes de maneira desajeitada, a afirmação que na antípoda do pecado
original, do lado oposto da corrupção estrutural, existe uma bondade
intrínseca no ser humano. E que o escrínio no qual ele se situa, a terra, é
também desejável.
Porém, tal imanentismo culmina com uma relativização do político.
Ou melhor, naquilo que este, estando de algum modo transfigurado, inverte-
se em doméstico, torna-se ecologia. Domus, oikos, termos que designam a
casa comum, que convém ser protegida das desordens às quais a
modernidade nos havia habituado. As maquinações deste homem,
“mestre e possuidor do universo” de acordo com a expressão de
21
Armindo Bião
Descartes, deram origem à devastação tal como se conhece. As tribos,
mais prudentes e também mais precavidas, dedicam-se menos a
“maquinar” as outras e a natureza, e é isso o que faz a inegável
especificidade delas. Realidades que nos forçam a constatar que a
heterogeneidade está de volta. O que Max Weber denominava de politeísmo
dos valores. Por conseguinte, a reafirmação da diferença, os localismos
diversos, as especificidades linguísticas e culturais, as reivindicações étnicas,
sexuais, religiosas, os múltiplos agrupamentos em torno de uma origem
comum, real ou mitificada. Tudo é bom para celebrar esse estar junto, que
se fundamenta menos na razão universal do que na emoção compartilhada,
no sentimento de pertencimento. Esta é a nova forma do elo social e,
talvez, não hesitemos ao dizer, da modalidade contemporânea da
cidadania. Isto é o que Armindo Bião revela muito bem.
Eis o que caracteriza aquilo que denominei de o “tempo das
tribos”. Sejam estas sexuais, musicais, religiosas, esportivas, culturais, e
mesmo políticas, elas ocupam o espaço público. Negar esta constatação
é pueril e irresponsável. Não é saudável estigmatizá-las. Seríamos mais
inspirados, fiéis a uma imemorial sabedoria popular, ao acompanhar tal
mutação. E isso, para evitar que esta sabedoria popular se torne perversa
e, em seguida, totalmente incontrolável. Afinal, por que não considerar
que a res publica, a coisa pública se organiza a partir do ajuste, a posteriori,
dessas tribos eletivas? Por que não admitir que o consenso social,
semelhante à sua etimologia (cum sensualis) pode se apoiar no
compartilhamento de sentimentos diversos?
Posto que existem, por que não aceitar as diferenças comunitárias,
contribuir para o seu ajuntamento e com elas aprender a compor? O jogo
da diferença, em vez de empobrecer, enriquece. Afinal, tal composição
pode participar de uma melodia social cujo ritmo talvez seja um pouco
mais desencontrado, mas não menos dinâmico. O ajuste dos samples da
música Techno traduz, também, uma forma de cultura.
No rastro do romantismo, e depois do surrealismo, os
situacionistas, nos anos sessenta do século passado, partiram em busca
dessa mítica passagem do noroeste que se abre para horizontes infinitos.
E para fazer isso, utilizaram uma psicogeografia, ou deriva, que lhes
permitiu descobrir que, além da simples funcionalidade da cidade, há
22
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
um labirinto do vivido muito mais profundo e que sustenta, invisivelmente,
os fundamentos reais de toda existência.
Pode-se extrapolar tal questionamento poético-existencial, e os
arcanos da cidade podem ser úteis para compreender uma estrutura
tácita que, em alguns momentos, assegura a perduração da vida em
sociedade. Tácito: que não se exprime verbalmente, que são subentendidos.
Implícito: que vai se aninhar nos recônditos do mistério e do inconsciente
coletivo. Nosso saudoso amigo Jean Baudrillard, na sua época, ficou
atento a esta “sombra das maiorias silenciosas”, a este “ponto vulnerável”
do social. Quanto a mim, de várias maneiras, analisei a centralidade
subterrânea, a socialidade alternativa e outras metáforas que assinalam a
retirada do povo do seu Monte Aventino.
Mas permaneçamos nesta ambivalência, nesta bipolaridade entre
o que se retira e o que se mostra. Muito mais recuado do que em evidência.
Lembremo-nos aqui do comentário feito por Lacan sobre o conto de
Edgar Poe, “A Carta Roubada”. Justamente pelo fato de a carta estar ali,
na cornija da lareira, o policial que a procura, não a vê. E como um eco,
escutemos o conselho de Gaston Bachelard : “só há ciência do oculto”.
Esclarecendo-se que esse oculto nos salta aos olhos. E por menos
que se leve a sério a teatralidade dos fenômenos, este theatrum mundi de
antiga memória, nele se saberá vislumbrar os novos modos de vida em
gestação. Além de nossas certezas e convicções: políticas, filosóficas,
religiosas, científicas, é conveniente concordar simplesmente,
humanamente, com aquilo que se deixa ver. Buscar o essencial no
inaparente das aparências. As da vida quotidiana. As dos pequenos
prazeres e as de pouca importância, que constituem o terreno fértil no
qual se desenvolve o ser-junto. Isso não é cultura ? “Os aspectos que nos
são mais importantes estão ocultos por causa da sua banalidade e
simplicidade” (Wittgenstein). O jogo das aparências, Armindo Bião o
segue a risca. “Etnocenologia” o testemunha com força e vigor. Nesse
sentido, trata-se de um livro que dá o que pensar.
Talvez seja a partir de tal princípio de incerteza que seremos capazes
de fazer um bom prognóstico.Isto é, ter a intuição dos fenômenos, esta
visão do interior que faz tanta falta à paranoia tão frequente nas elites.
Desde então, o olhar penetrante nos permitirá ver a semente fatídica das
23
Armindo Bião
coisas. Outra maneira de dizer e de viver o ser-junto. Outra maneira de
valorizar o que me une ao outro num lugar-comum: a cidade. Como
um fio vermelho, a Bahia de Todos-os-Santos se reencontra ao longo
destas páginas. E sentimos aquilo que A.Bião (Brasileiro de Salvador da
Bahia) deve a este “dado”, a este território. Ele mostra muito bem como
a empatia por um lugar e por um povo é única. Porque é verdade que o
lugar faz o elo.
Michel Maffesoli
Professor da Sorbonne
Membro do Instituto Universitário da França
Tradução de Marcia Bértolo Caffé
25
Armindo Bião
Préface:
La profondeur des apparences
« Mais ce qui en apparence est pure clarté
est pénétré et régi par l’obscurité »
(M.Heidegger. Moira)
En lisant, relisant pour certaines, les belles pages que propose
Armindo B à notre méditation, j’ai à l’esprit nos différentes et fécondes
rencontres, Rio Vermelho, la 1
er
 fois, à l’initiative de l’ami respecté Vivaldo
de Costa Lima, puis, bien sûr à Paris. Le tout aboutissant à sa thèse de
doctorat (1990, comme le temps passe, et nous avec !), dont je me souviens
bien les analyses aigues.
Le cœur battant de ces analyses était l’importance que reprenait ,
dans la socialité, le corps. Voilà, aussi, une des mes idées obsédantes : la
postmodernité s’élaborera dans le « creux des apparences ». Et toute
l’œuvre d’A.B ( théorique et pratique) est une illustration du ludique, du
festif et de l’émotionnel en jeu dans toutes nos sociétés. Mais est-ce que
Bahia n’est pas , en ces domaines, en avance sur son temps ?
Qu’exprime tout cela sinon ce que d’une manière prémonitoire,
Nietzsche nommait « l’innocence du devenir ». Acceptation de l’amor fati.
Consentement à cette terre, à ce monde-ci. Ce dernier, à l’encontre de la
doctrine judéo-chrétienne, ne trouve pas son origine dans une création ex
nihilo, mais il est là, tel un « donné » avec lequel il convient, tant bien que mal,
de s’accorder. On est citoyen de ce monde-ci ! Celui-ci est notre cité.
Certes, tout cela n’est pas conscientisé, ni même verbalisé en tant
que tel. Mais largement vécu dans le retour aux traditions, religieuses ou
spirituelles, dans l’exercice des solidarités au quotidien, dans la reviviscence
des forces primitives. Ce qui conduit à la (re)valorisation des instincts, des
éthiques, des ethnies.
Ce qu’induit cette nouvelle sensibilité, on pourrait dire ce nouveau
paradigme, c’est un puissant immanentisme. Cela peut prendre des formes
26
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
plus sophistiquées ou plus triviales. L’hédonisme, les plaisirs du corps, le
jeu des apparences, le présentéisme sont là comme autant de ponctuation
de ce qui n’est pas un activisme volontariste, mais bien l’expression d’une
réelle contemplation du monde.
Ou, pour le dire en d’autres termes, l’acceptation d’un monde qui
n’est pas le ciel sur la terre, qui n’est pas non plus l’enfer sur terre, mais
bien la terre sur la terre. Avec tout ce que cela comporte de tragique
(« amor fati ») mais de jubilation aussi. Laisser faire, laisser vivre, laisser
être. Voilà bien ce qui pourrait être les maîtres mots de ces tribus
« innocentes », instinctuelles, quelque peu animales et, pour sûr, bien
vivantes.
La modernité finissante a, en son sens strict, « dénervé » le corps
social. L’hygiénisme, la sécurisation, la rationalisation de l’existence, les
interdictions de tous ordres, tout cela avait enlevé au corps individuel ou
au corps collectif la capacité d’émettre les réactions nécessaires à sa survie.
Il semblerait que l’on assiste, avec la postmodernité, à une revalorisation
de la vie instinctuelle.
L’instinct, le primitivisme, c’est rendre leur place au sensible. C’est
considérer que le propre de l’humaine nature ne se résume point au
cognitif, au rationnel, mais bien une « complexio oppositorum » que l’on
pourrait traduire par un assemblage, un tissage de choses opposées. C’est
tout cela qu’il convient de savoir voir l’émergence d’un nouveau lien social
dans l’effervescence contemporaine. Certaines de ses manifestations
peuvent nous chagriner ou nous offusquer. Elles n’en expriment pas
moins, parfois d’une manière maladroite, l’affirmation qu’à l’encontre
du péché originel, qu’à l’opposé de la corruption structurelle, existe une
bonté intrinsèque de l’être humain. Et que l’écrin dans lequel ce dernier
se situe, la terre, est également désirable.
Mais un tel immanentisme aboutit à une relativisation du politique.
Ou plutôt, à ce que celui-ci, étant en quelque sorte transfiguré, s’inverse en
domestique, devient écologie. Domus, oikos, termes désignant la maison
commune qu’il convient de protéger des saccages auxquels la modernité
nous avait habitués. Les machinations de cet homme, « maître et possesseur
27
Armindo Bião
de l’univers » selon l’expression de Descartes, ont abouti à la dévastation
que l’on sait. Les tribus, plus prudentes, plus précautionneuses aussi,
s’emploient à moins « machiner » les autres et la nature, et c’est cela qui
fait leur indéniable spécificité.
Réalités qui nous forcent à constater que l’hétérogénéité est de
retour. Ce que Max Weber nommait le polythéisme des valeurs. Ainsi la
réaffirmation de la différence, les localismes divers, les spécificités
langagières et culturelles, les revendications ethniques, sexuelles, religieuses,
les multiples rassemblements autour d’une commune origine, réelle ou
mythifiée. Tout est bon pour célébrer un être ensemble dont le fondement
est moins la raison universelle que l’émotion partagée, le sentiment
d’appartenance. Voilà qu’elle est la nouvelle forme du lien social et, peut-
être, n’hésitons pas à le dire, la modalité contemporaine de la citoyenneté.
Voilà ce qu’indique bien Armindo Biao.
Voilà ce qui caractérise ce que j’ai appelé le « temps des tribus ».
Que celles-ci soient sexuelles, musicales, religieuses, sportives, culturelles,
voire politiques, elles occupent l’espace public. C’est un constat qu’il est
puéril et irresponsable de dénier. Il est malsain de les stigmatiser. L’on
serait mieux inspiré, fidèle en cela à une immémoriale sagesse populaire,
d’accompagner une telle mutation. Et ce, pour éviter qu’elle ne devienne
perverse, puis totalement immaîtrisable. Après tout, pourquoi ne pas
envisager que la res publica, la chose publique s’organise à partir de
l’ajustement, a posteriori, de ces tribus électives ? Pourquoi ne pas admettre
que le consensus social, au plus près de son étymologie (cum sensualis)
puisse reposer sur le partage de sentiments divers ?
Puisqu’elles sont là, pourquoi ne pas accepter les différences
communautaires, aider à leur ajointement et apprendre à composer avec
elles ? Le jeu de la différence, loin d’appauvrir, enrichit. Après tout une
telle composition peut participer d’une mélodie sociale au rythme peut
être un peu plus heurté, mais non moins dynamique. L’ajustement des
samples de la musique techno traduit, aussi, une forme de culture.
Dans la foulée du romantisme, puis du surréalisme, les
situationnistes, dans les années soixante du siècle dernier sont partis à la
28
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
recherche de ce mythique passage du nord-ouest ouvrant sur des horizons
infinis. Et pour ce faire, ils mettent en œuvre une psycho-géographie, ou
dérive, leur permettant de découvrir qu’au-delà de la simple fonctionnalité
de la ville existe un labyrinthe du vécu, autrement plus profond et assurant,
invisiblement, les fondements réels de toute existence sociale.
On peut extrapoler un tel questionnement poético-existentiel et
les arcanes de la ville peuvent être utiles pour comprendre une structure
tacite qui, à certains moments, assure la perdurance de la vie en société.
Tacite : qui ne s’exprime pas verbalement, quiest tout en sous-entendus.
Implicite : qui va se nicher dans les plis du mystère et de l’inconscient
collectif. Notre regretté ami, Jean Baudrillard, en son temps, avait rendu
attentif à cette « ombre des majorités silencieuses », à ce « ventre mou »
du social. Pour ma part, de diverses manières, j’ai analysé la centralité
souterraine, la socialité au noir et autres métaphores pointant le retrait du
peuple sur son Aventin.
Mais restons sur cette ambivalence, cette bipolarité entre ce qui est
en retrait et ce qui se montre. D’autant plus replié qu’il est en évidence.
Souvenons-nous ici du commentaire que fit Lacan du conte d’Edgar
Poe, « la lettre volée ». C’est parce qu’elle est là, sur le manteau de la
cheminée que le commissaire qui est à sa recherche, ne la voit pas. Et
comme en écho, écoutons le conseil de Gaston Bachelard : « il n’y a de
science que du caché ».
En précisant que ce caché nous crève les yeux. Et pour peu que
l’on prenne au sérieux la théâtralité des phénomènes, ce theatrum mundi
d’antique mémoire, l’on saura y voir les nouveaux modes de vie en
gestation. Au-delà de nos certitudes et convictions : politiques,
philosophiques, religieuses, scientifiques, il convient de s’accorder
simplement, humainement, à ce qui se donne à voir. Chercher l’essentiel
dans l’inapparent des apparences. Celles de la vie quotidienne. Celles
de ces plaisirs menus et de peu d’importance constituant le terreau où
croît l’être-ensemble. N’est-ce pas cela la culture ? « Les aspects les plus
importants pour nous sont cachés à cause de leur banalité et de leur
simplicité » (Wittgenstein). Le jeu des apparences, Armindo Biao le suit à
29
Armindo Bião
la trace. « Ethoscénologie » en témoigne avec force et vigueur. C’est, en
ce sens, un livre qui donne à penser.
Peut-être est-ce à partir d’un tel principe d’incertitude que l’on sera
capable de faire un bon pronostic. C’est-à-dire avoir l’intuition des
phénomènes, cette vision de l’intérieur faisant tant défaut à la paranoïa si
fréquente chez les élites. Dès lors le regard pénétrant nous permettra de
voir le noyau fatidique des choses. Une autre manière de dire et de vivre
l’être-ensemble. Autre manière de valoriser ce qui me lie à l’autre en un
lieu commun : la cité. Tel un fil rouge, Bahia de Todos os Santos se
retrouve tout au long de ces pages. Et l’on sent ce que A.Biao ( Brasileiro
de Salvador de Bahia) doit à ce « donné », à ce territoire. Il montre bien
ainsi que l’empathie à un lieu et un peuple est tout un . Car il est vrai que
le lieu fait lien.
Michel Maffesoli
Professeur à la Sorbonne
Membre de l’Institut Universitaire de France
DA ETNOCENOLOGIA
33
Armindo Bião
Um léxico para a etnocenologia:
 proposta preliminar
*
Desde a proposição da etnocenologia, em 1995, os preconceitos
linguísticos e a necessidade de um vocabulário epistemológico específico
têm sido questões centrais na construção dessa nova disciplina (PRADIER,
1995) ou, talvez, melhor dizendo, dessa nova perspectiva transdisciplinar,
conforme registra o documento final do V Colóquio Internacional de
Etnocenologia, realizado em Salvador, Bahia, Brasil, de 25 a 29 de agosto
de 2007.
O esforço de conhecer-se o diferente e o diverso implica o desafio de
compreender-se o discurso do entorno do novo objeto que se quer
conhecer, bem como o conhecer de seu próprio interior, inclusive seu
léxico e sua língua nativa. A nova forma de referir-se, por exemplo, ao
que se chamava, há alguns anos, na Europa ocidental, de “ópera de
Pequim”, agora denominada de “Jing-Ju”, revela essa busca e a
complexidade do nosso desafio. Pois aqui se trata de uma transcrição
fonética do chinês original para a língua francesa. Como se poderá
transcrever Jing-Ju para o português, por exemplo, admitindo-se que
todos, entre o Brasil e a França, compreendam o Jing-Ju como uma
forma, uma arte espetacular autônoma e não uma ópera, um teatro, ou
uma dança, da China? É fato que o que se chamava anteriormente de
Pequim – em português – e Pékin – em francês – passou-se a chamar
mais recentemente, no Ocidente, de Beijing. O peso crescente da China
no panorama mundial sugere muito novas mudanças, como, por exemplo,
a do antigo Cantão no contemporâneo Cuandong – em inglês, em
português? – ou Guangdong ou ainda Kouang-Tong – em francês?!.
* Publicado em BIÃO, Armindo (Org.). CONGRESSO INTERNACIONAL DE
ETNOCENOLOGIA, 5., 2007, Salvador. Anais... Salvador: Fast design, 2007. p. 43-
49.
34
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
A complexidade desse desafio é tão maior quão se pode facilmente
perceber tratar-se de uma busca sem fim e extremamente pretensiosa:
esta, de tudo se conhecer como cada um que vive e faz cada coisa conhece.
Talvez tão pretensiosa seja essa ideia quanto o próprio desejo humano
de construir um edifício até o céu, o que, segundo a Bíblia, teria resultado
na aparição de multiplicidade de línguas diferentes, no mito episódio da
Torre de Babel, do Antigo Testamento de tradição judaica. E talvez
menos pretensiosa ao pensar-se num só objeto. Mas, como comunicar o
seu conhecimento ao mundo?
Conhecer-se o que não se conhece é reconhecer-se no novo, que se busca
conhecer, algo que já existe no velho e, paulatinamente, irá se
transformando (o velho), ao mesmo tempo em que, inevitavelmente,
também se transforma o que se passa a conhecer (o novo). É nascer-se
de novo, a cada passo, junto com o próprio caminho que se percorre,
transformando-o, continuamente.
Na tentativa – vã? – de contribuir para a construção de um léxico para a
etnocenologia, e a partir do meu próprio trajeto – e do de meus colegas
e alunos mais próximos (BIÃO, 2007) – é que proponho o conjunto de
18 expressões da língua portuguesa, listadas abaixo, com uma descrição
mínima, na esperança de que eventualmente possa vir a ser útil.
No âmbito epistemológico
Assim, inicialmente, no âmbito da epistemologia, consideremos as 12
palavras seguintes, sendo metade delas apresentada a propósito do sujeito
da pesquisa e a outra metade, que comentarei em primeiro lugar, dedicada
ao mundo dos objetos.
Dos objetos
Teatralidade – palavra dicionarizada em língua portuguesa (HOUAISS,
2001, p. 2682; AURÉLIO, 1986, p. 1655), originada do vocábulo grego
que se constituiu para designar a ação e o espaço organizados para o
35
Armindo Bião
olhar, que compreendo como uma categoria reconhecível em todas as
interações humanas. De fato, toda interação humana ocorre porque
seus participantes organizam suas ações e se situam no espaço em função
do olhar do outro. Assim, penso em todas as interações, as mais banais
e cotidianas, nas quais, podemos compreender, todas as pessoas
envolvidas agem, simultaneamente, como atores e espectadores da
interação (aqui utilizo esses vocábulos do mundo do teatro certamente
– e apenas – como metáfora). A consciência reflexiva de que cada um
aí presente age e reage em função do outro pode existir de modo
claro ou difuso ou obscuro, mas nunca de modo explicitamente
compactuado – ou convencionalmente explicitado o tempo todo. Trata-
se de um hábito cultural enraizado –uma espécie de segunda natureza,
individual e coletiva – amplamente praticado pela maioria absoluta
dos indivíduos de cada sociedade, de um modo inerente a cada cultura,
que codifica suas interações ordinárias e transmite seus códigos para se
manter viva e coesa.
Espetacularidade – palavra ainda não incluída nos mais importantes
dicionários da língua portuguesa, editados no Brasil, que registram
“espetaculosidade”, como qualidade ou procedimento de espetáculo –
derivada do vocábulo espetáculo, de origem latina, destinada a designar
o que chama, atrai e prende o olhar (HOUAISS, 2001, p. 1229; AURÉLIO,
1986, p. 704), que compreendo como uma categoria também reconhecível
em algumas das interações humanas. De fato, em algumas interações
humanas – não em todas – percebe-se a organização de ações e do
espaço em função de atrair-se e prender-se a atençãoe o olhar de parte
das pessoas envolvidas. Aí, e então, de modo – em geral – menos banal
e cotidiano, que no caso da teatralidade, podemos perceber uma distinção
entre (mais uma vez, de modo metafórico) atores e espectadores. Aqui e
agora, a consciência reflexiva sobre essa distinção é maior e – geralmente
– mais visível e clara. Trata-se de uma forma habitual, ou eventual, inerente
a cada cultura, que a codifica e transmite, de manter uma espécie de
respiração coletiva mais extraordinária, ainda que para parte das pessoas
36
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
envolvidas possa se tratar de um hábito cotidiano. Assim como a
teatralidade, a “espetacularidade” contribui para a coesão e a manutenção
viva da cultura
1
.
Estados de consciência – esta expressão é parte do jargão das ciências
do homem interessadas nos rituais, que provocam a alteração do modo
mais habitual de ter-se consciência do mundo e de si próprio. Daí falar-
se de estados modificados (LAPASSADE, 1987) ou alterados
(BOURGUIGNON, 1973) de consciência, frequentemente associados,
por exemplo, ao transe, ao êxtase e à possessão (BIÃO, 1990, p. 132-
142). As interfaces entre as artes do espetáculo, os rituais e os estados de
consciência têm sido constantemente eleitos como objeto de pesquisa e
constituem-se em um grupo importante de objetos transversais de estudos
para a etnocenologia. O interesse pelos estados “alterados” de consciência
nos rituais de possessão e cultos religiosos é uma constante, por exemplo,
no âmbito da antropologia, que, eventualmente, alude ao teatro, como o
faz, por exemplo, Michel de Leiris (1958). Mais contemporaneamente, a
relação entre artes e formas de espetáculo e estados modificados de
consciência tem sido ressaltada
2
, levando-nos a sugerir que o treinamento
corporal e mental de dançarinos e atores, por exemplo, gera, não apenas
estados modificados de corpo – relembrando as reflexões de Marcel
Mauss (1985) sobre as técnicas de corpo – mas também gera estados
modificados de consciência.
Estados de corpo – expressão que utilizo em associação à anterior para
referir-me por um lado à indissociabilidade, tão cara à etnocenologia,
entre corpo e consciência e por outro para reportar-me às artes do
1
 Propus essas categorias em minha tese de doutorado: BIÃO, Armindo. Théâtralité et
spectacularité: une aventure tribale contemporaine à Bahia. 1990. Tese (Doutorado
em Artes Cênicas) - Université René Descartes. Paris: Paris 5, 1990. Orientador:
Michel Maffesoli, das quais também já tratei em português (1991, p. 104-110; 2000,
p. 364-367).
2
Ver, entre outras contribuições publicadas nessa obra, a de PIMPANEAU, Jacques.
“Les liens entre les cultes médiumniques et le théâtre, entre les chamans et les acteurs”.
In: _____ . Actes des Rencontres Internationales sur la fête et la
communication. Serre: Nice-Animation, 1986.
37
Armindo Bião
espetáculo que se sustentam em boa medida na prática e exercício de
alteração dos estados de corpo habituais do dia a dia. Problemática essa
que levaria, por exemplo, Eugenio Barba (1985), inspirado na noção de
técnicas de corpo de Marcel Mauss, a falar de técnicas “extracotidianas”
de corpo. É bem disso do que se trata. No entanto, do ponto de vista
léxico, considero que a expressão, antropologia teatral, reforça o
etnocentrismo europeu, que privilegia o teatro em detrimento de outras
artes e formas espetaculares, também prefiro as expressões estados de
corpo e estados de consciência para tratar dos objetos da etnocenologia.
Decerto que esses estados, dinamicamente construídos e mantidos apenas
temporariamente, quando nos referimos à vida da arte, são construídos
com base em práticas, comportamentos e técnicas, mas nosso objetivo
aqui e agora é propormos um léxico coerente e o mais simples possível
para o fortalecimento do corpo epistemológico da etnocenologia.
Transculturação – o conceito sugerido por Fernando Ortiz (1973) e
comentado por Rafael Mandressi (1999) aproxima-se decerto de algumas
possíveis leituras de outros conceitos correlatos mais antigos. Mas sua
proposição, cunhando um novo termo, reafirma o fenômeno do contato
cultural como gerador de novas formas de cultura, distintas das que lhes
deram origem, o que remete ao desejo de identificação de suas matrizes
culturais, fenômeno que só vale pesquisar, nunca é demais reafirmar,
considerando-se certa reconstrução constante e dinâmica da tradição.
Matrizes estéticas – Essa expressão é mais uma noção teórica “mole”
que um conceito “rígido” (MAFFESOLI, 1985, p. 51, 52 et seq., 63),
considerando-se que, no âmbito geral da cultura, assim como no campo
mais específico da estética, pode-se sempre buscar compreender um
fenômeno contemporâneo a partir do esforço de identificação de sua
filiação histórica e de seu parentesco atual com outros fenômenos. A
utilização dessa expressão – matrizes estéticas, sempre no plural, possui,
do ponto de vista retórico, uma consciente proposição paradoxal, posto
que a palavra matriz remete à ideia de mãe, que também remete à ideia
de unicidade, quando pensada como uma e única pessoa, do gênero
feminino, que alimenta em seu próprio corpo e assim é explicitamente
geradora de outra, enquanto a palavra matrizes multiplica esse ente, ainda
38
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
que se referindo a um mesmo fenômeno – seu descendente direto. O
que se pretende, ao recorrer-se a essa figura paradoxal de linguagem, é
chamar a atenção para o fato de que na cultura cada fenômeno possui
simultaneamente múltiplas matrizes, fruto que é de diversos processos
de transculturação. A isso, chamei de “família de formas culturais
aparentadas [...], identificadas por suas características sensoriais e artísticas,
portanto estéticas, tanto num sentido amplo, de sensibilidade, quanto
num sentido estrito, de criação e compreensão do belo” (BIÃO, 2000, p.
15). Assim, podemos falar, por exemplo, de matrizes estéticas, a partir
de referências linguísticas, religiosas, geográficas, históricas, geo-históricas,
étnicas, técnicas, temáticas, teóricas, tecnológicas etc..
Dos sujeitos
O conjunto das noções de alteridade, identidade, identificação
(MAFFESOLI, 1988), diversidade, pluralidade e reflexividade
(GARFINKEL, 1967; TURNER, 1979, p. 65; SCHÜTZ, p. 1987, p.
114 et seq.) remete à consciência das semelhanças e diferenças entre
indivíduos, grupos sociais e sociedades, por um lado e, por outro, à
capacidade humana de refletir a realidade e sobre ela, de modo consciente,
experimentando e exprimindo sensibilidade, sensorialidade, opções de
prazer, beleza, desejo e conforto. Nesse conjunto de noções, vale ressaltar
a emergência da noção de “identificação”, como uma construção
temporária, existencialista e dinâmica, contraposta à de “identidade”,
como uma categoria definitiva, essencialista e estática, que se encontraria
em crise na contemporaneidade.
Alteridade – A categoria de reconhecimento pelo sujeito de um objeto
humano (no caso da etnocenologia) distinto de si próprio.
Identidade – A categoria de reconhecimento da especificidade do sujeito
em relação à alteridade.
Identificação – A categoria de momentâneo reconhecimento do sujeito,
em parte ou no todo, na alteridade.
39
Armindo Bião
Diversidade – A categoria que permite ao sujeito reconhecer a
coexistência das diferenças humanas.
Pluralidade – A categoria que, como à anterior, dá ao sujeito condições
de reconhecer a coexistência das – reafirme-se – múltiplas e variadas
diferenças humanas.
Reflexividade – A categoria referente ao sujeito que dá conta de sua
capacidade de pensamento e teorização (reflexão), espelhando as
semelhanças e diferenças reconhecidas em sua relação com os objetos,
suas identidades e identificações.
No âmbito metodológico
O horizonte teórico-metodológico que busca revelar a presente
proposição preliminar de um léxico para a etnocenologia remete à
necessária e imprescindível articulação entre o sujeitoe o objeto,
retomando, por minha própria conta, as ideias de “objetivação do
subjetivo” de Erwin Panofsky (1975, p. 158-170), de “trajeto
antropológico” de Gilbert Durand (1969, p. 38 e s.) e de “trajetividade”
de Augustin Berque (1986, p. 147-153).
Dos trajetos
Objeto – O campo da pesquisa, o fenômeno espetacular de interesse.
Trajeto – As técnicas e princípios que buscam permitir o conhecimento
do objeto por parte do sujeito, bem como a história que reúne o sujeito
e sua opção pelo objeto.
Sujeito – O pesquisador.
Projeto – A proposta construída pelo pesquisador, que explicita o objeto
do estudo pretendido, o trajeto que levou o sujeito a se interessar por ele
e sua perspectiva de aproximação e pesquisa.
40
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Dos projetos
Apetência – A qualidade, simultaneamente essencial e existencial, que
justifica o interesse do sujeito em seu objeto e trajeto de pesquisa, sem a
qual não se pode construir competência.
Competência – O conjunto de capacidades, experiências e práticas,
que pode permitir ao sujeito a plena consecução de seu projeto.
Conclusão
A proposição desse léxico é apenas preliminar, mas fruto de reflexão de
uma boa dúzia de anos de pesquisa. Aqui se considerou o poder abstrato
e mágico da palavra, bem como suas possíveis implicações ideológicas,
ainda que – admitamos – a partir de nossos próprios preconceitos. Este
léxico não levou, por exemplo, em conta, a palavra performance, que
muitos colegas na etnocenologia utilizam. De fato, considero que essa
palavra só contribui para a confusão epistemológica e metodológica na
etnocenologia
3
.
Prefiro, também, para designar o artista do espetáculo, ou o participante
ativo da forma – ou arte – espetacular, palavras como aquelas usadas
pelos próprios praticantes dos objetos de nossos estudos, quando se
autodenominam de ator, dançarino, músico, brincante, brincador,
sambador e outros, por exemplo. Prefiro sinceramente isso a usar outras
palavras, como as que já foram sugeridas por outros (performer, actante,
ator-dançarino ou ator-bailarino-intérprete, por exemplo).
E à palavra performance, tão polissêmica (COHEN, 2006, p. 240-243),
prefiro, sempre, usar espetáculo, função, brincadeira, jogo ou festa,
conforme quem vive e faz, denomina aquilo o que faz e vive.
3
Eu próprio, ainda em 1995/ 1996, usei e justifiquei essa palavra (1996, p. 12-20), que
se encontra na denominação de uma outra perspectiva aparentada à etnocenologia,
performance studies, (SCHECHNER, 2002), que com ela não se identifica plenamente,
mas que com ela pode eventualmente se confundir (BIÃO, 2007, p. 24), o que temos
a pretensão de vir a evitar com a proposição deste léxico.
41
Armindo Bião
Referências
BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola (Org.). Anatomie de l’Acteur:
un dictionnaire d’anthropologie théâtrale. Tradução: E. Deschamps-Pria.
Paris: Bouffonneries-Contrastes, 1985. Cazilhac: Bouffonnneries.
BERQUE, Augustin. Le sauvage et l’artifice: les japonais devant la
nature. Paris: Gallimard, 1986.
BIÃO, Armindo. Théâtralité et spectacularité: une aventure tribale
contemporaine à Bahia. 1990. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) -
Université René Descartes. Paris: Paris 5, 1990. Orientador: Michel
Maffesoli.
BIÃO, Armindo. A metáfora teatral e a arte de viver em sociedade.
Cadernos do CRH, Salvador, n.15, p. 104-110, 1991.
BIÃO, Armindo. Estética Performática e Cotidiano. In: ________.
Performance, Performáticos e Cotidiano. Brasília: UNB, 1996. p. 12-
20.
BIÃO, Armindo. Aspectos Epistemológicos e Metodológicos da
Etnocenologia: por uma Cenologia Geral. In: CONGRESSO
BRASILEIRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES
CÊNICAS, 1. São Paulo. Anais... Salvador: ABRACE, 2000. p. 364-367.
BIÃO, Armindo. Matrizes estéticas: o espetáculo da baianidade. In: _____
et al (Orgs.). Temas em Contemporaneidade, Imaginário e
Teatralidade. São Paulo: Annablume, 2000. p. 15-30.
BOURGUIGNON, Érika (Ed.). Religion, Altered States of
Consciousness and Social Change. Columbus: Ohio State Press, 1973.
COHEN, Renato, Performance. In: GUINSBURG, Jacó et al (Org.).
Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo:
Perspectiva, 2006. p. 240-243.
42
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
DURAND, Gilbert. Les structures anthropologiques de
l’1imaginaire Introduction à l’archétypologie générale. 9. ed. Paris:
Bordas, 1969.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda (Org.). Novo Dicionário
Aurélio: novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986.
GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnomethodology. Englewood
Coffs: Prentice-Hall, 1967.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles (Org.). Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de janeiro: Objetiva, 2001.
LAPASSADE, Georges. Les états modifiés de conscience. Paris: PUF,
1987.
LEIRIS, Michel de. La possession et ses aspects théâtraux chez les
éthiopiens de Gindar. Paris: Plon, 1958.
MANDRESSI, Rafael. Transculturation et Spectacles Vivants en
Uruguay 1870 - 1930 : Une Approche Ethnoscénologique.
Tese(Doutorado) – Université Paris 8 Paris: Paris 8; Saint Denis, 1999.
MAFFESOLI, Michel. La connaissance ordinaire: précis de sociologie
compréhensive. Paris: Méridiens-Klincsieck, 1985.
MAFFESOLI, Michel. Le temps des tribus: déclin de l’individualisme
dans les sociétés de masse. Paris: Méridiens-Lincksieck, 1988.
MAUSS, Marcel. Sociologie et anthropologie. 9. ed. Paris: Quadrige-
PUF, 1985.
ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y del azucar. In:
_____. Taller de Letras, [S.l: s.n], 2003.
43
Armindo Bião
ORTIZ, Fernando. El contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar.
Barcelona: Ariel, 1973.
PANOFSKY, Erwin. La perspective comme forme symbolique. Paris:
Minuit, 1975.
PIMPANEAU, Jacques. Les liens entre les cultes médiumniques et le
théâtre, entre les chamans et les acteurs. In: ______ . Rencontres
Internationales sur la fête et la communication. [Actes]: Paris: Nice;
Serre/ Nice-Animation, 1986.
PRADIER, Jean-Marie. Ethnoscénologie. Théâtre Public, [S.l], n. 123,
p. 46-48, 1995.
SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction.
London: Routledge, 2002.
SCHÜTZ, Alfred. Le chercheur et le quotidian. Tradução de A.
Noschis-Gilliéron. Paris: Méridiens-Klincksieck, 1987.
TURNER, Victor. Process, performance and pilgrimage: a study on
comparative symbology. New Delhi: Concept, 1979.
45
Armindo Bião
Em apenas doze anos, desde a proposição da etnocenologia
1
,
multiplicam-se às dezenas as possibilidades de trajeto – e de projetos
futuros – para esta jovem perspectiva transdisciplinar, considerando-
se, simplesmente, o variado percurso acadêmico de cada um dos
pesquisadores presentes nos diversos colóquios internacionais, desde
então realizados, tanto no de instalação quanto nos de Cuernavaca
(Morelos, México), Salvador (Bahia, Brasil) e Paris (França). A ideia de
trajeto remete à articulação de um sujeito com seus objetos de interesse
e com outros sujeitos, cujos interesses, ainda que parcialmente comuns,
encontram-se na encruzilhada das ciências e das artes, onde múltiplos
grupos de pesquisa formam-se e transformam-se, ao longo do tempo.
É sobre um desses trajetos, fruto, flor e raiz de minha implicação
pessoal, e profissional, que trata este pequeno ensaio, organizado,
substancialmente, em quatro partes.
Na primeira, intitulada “Caracterização geral do objeto (no Brasil)”, situo
a etnocenologia no contexto histórico-geográfico brasileiro. Na segunda,
Um trajeto:
muitos projetos
*
*
Publicado In: BIÃO, Armindo (Org.). Artes do corpo e do espetáculo: questões de
etnocenologia. Salvador: P & A, 2007. p. 21-42.
1
A Maison des Cultures du Monde e a Universidade de Paris 8 Saint-Denis realizaram,
na UNESCO, em Paris, nos dias 3 e 4 de maio de 1995, o Colloque de Fondation
du Centre International d’Ethnoscénologie In: INTERNATIONALE DE
L’IMAGINAIRE - NOUVELLE SÉRIE, 5, MCM/ Babel, 1995). A esse respeito,
ver, em português:BIÃO, A. “Estética Performática e Cotidiano”. In: ______ .
Performance, Performáticos e Cotidiano. Brasília: UNB, 1996. p. 12-20 In:
ENCONTRO NACIONAL DE PERFORMÁTICOS, PERFORMANCE E
COTIDIANO. Anais... Grupo Transdisciplinar de Estudos sobre a Performance –
Transe, [Brasília, 1995], dos quais também constam excertos do Manifesto da
Etnocenologia (em francês Inn: Théâtre Public, n. 123, p. 46-48, 1995.) e BIÃO,
A. ; GREINER, C., (Orgs.). Etnocenologia: Textos Selecionados. São Paulo:
Annablume, 1998.
46
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
“Concretização específica de objetos (na Bahia)”, informo, brevemente,
e de modo comparativo, como, nesses doze anos, pesquisamos
etnocenologia, na Universidade Federal da Bahia, principal instituição
anfitriã do trajeto aqui tratado. Na terceira parte, “O trajeto teórico (no
mundo)”, busco descrever os conceitos e noções que têm sido
operacionais para nossas pesquisas, concluídas e em andamento, e,
finalmente, na última parte, “Um projeto metodológico (na vida)”,
resumo e sugiro algumas pistas relativas a um possível método para
futuras pesquisas.
Caracterização geral do objeto (no Brasil)
A proposição da etnocenologia aparece no horizonte teórico-
metodológico de nosso tempo, de transição do século XX para o século
XXI. Este Zeitgeist, anunciado pelas convulsões juvenis, artísticas, políticas,
étnicas e de costumes, dos anos 1960
2
, e mesmo anteriormente esboçado
pela nova configuração cultural que se definia internacionalmente, no
pós-guerra das duas décadas imediatamente anteriores, caracteriza-se pela
explosão, em múltiplos níveis, de todo tipo de fronteiras. Foi o que
ocorreu, por exemplo, com o advento, mais ou menos simultâneo – e
mais ou menos violento, de múltiplas proposições interdisciplinares,
multidisciplinares e transdisciplinares, fragmentando os limites entre as
diversas áreas de conhecimento, como, por exemplo, entre as ciências da
natureza e as ciências do espírito, e mesmo entre as ciências e as artes e,
inclusive, mais especificamente, no âmbito destas, entre as artes visuais e
as artes do espetáculo.
É neste mesmo Zeitgeist que se inserem outras perspectivas aparentadas.
Assim, aí também se conformam o interesse pelo espetáculo
3
 dos
estudiosos do campo das ciências humanas – e pela teatralidade na vida
2
Ver, por exemplo: BANES, Sally. Greenwhich Village 1963: avant-garde,
performance e o corpo efervescente. Tradução de M. Gama. São Paulo: Rocco, 1999.
3
Ver, por exemplo, de DEBORD, Guy. La société du spectacle (Buchet-Castel,
1971) e Commentaires sur la société du spectacle (LEBOVICI, 1988).
47
Armindo Bião
cotidiana
4
, as etnociências, a etnometodologia
5
, os estudos da
performance
6
 e a antropologia teatral
7
. Nesse contexto, a etnocenologia
tem contribuído para a ampliação dos horizontes teóricos da pesquisa
científica e artística, de um modo geral, e, de um modo mais específico,
para o trabalho dos pesquisadores dedicados às artes do espetáculo.
Nessas artes, não estão considerados somente o teatro, a dança, o circo,
a ópera, o happening e a performance
8
, mas, sim, também, outras
práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados, dentre
os quais alguns os rituais, os fenômenos sociais extraordinários e, até,
as formas de vida cotidiana, quando pensadas enquanto fenômenos
espetaculares.
No entanto, assim como as demais proposições congêneres, já citadas,
a etnocenologia também tem contribuído para a confusão conceitual
que vem caracterizando o campo das ciências do homem e das artes
contemporâneas, inclusive, de modo ainda mais contundente, as
pesquisas relativas aos objetos logo acima mencionados, tanto em seus
aspectos teóricos quanto práticos e pragmáticos. Essas ambíguas
contribuições possuem, assim, aspectos contraditórios, tanto positivos
(o crescimento das possibilidades e perspectivas para a pesquisa) quanto
negativos (o mal-entendido generalizado), que valem sempre ser levados
em conta.
4
Ver, por exemplo, de GOFFMAN, Erving. The Presentation of Self in Everyday
Life (Doubleday Anchor Books, 1959), de MAFFESOLI, Michel. La conquête du
present (PUF, 1979) e, de GEERTZ, Clifford. Negara: the Theater State in
Ninteenthcentury Bali. [S.l]: Princeton Univ. Press, 1980).
5
Ver, GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnomethodology. [S.l] :Prentice-Hall,
1967).
6
Ver, SCHECHNE, Richardr. Performance Studies, an introduction .
(ROUTLEDGE, 2002).
7
Ver, BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. Anatomie de l’Acteur ( Un
dictionnaire d’anthropologie théâtrale . Tradução de: E. Deschamps-Pria,
(Bouffonneries-Contrastes, 1985).
8
No sentido de prática artística situada na interface das artes cênicas e visuais, aparentada
ao happening, e não no sentido mais amplo que lhe é atribuído pelos estudos da
performance.
48
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Por isso, e particularmente para tentar reduzir os aspectos negativos desse
emaranhado conceitual, acredito necessário e útil, ainda na primeira parte
deste trabalho, dedicada à caracterização geral do objeto “etnocenologia”,
tentar identificar em que se assemelham e em que se distanciam essas
proposições, sugerindo a organização do quadro tabela abaixo:
Quadro 1: Etnocenologia
Campos de saber que se
relacionam com a
etnocenologia
O que os aproxima
As ciências humanas in-
teressadas na teatralidade
cotidiana e na metáfora
do espetáculo
As etnociências
A etnometodologia
O que os distancia
O reconhecimento da
teatrali-dade cotidiana e da
existência de fenômenos es-
petaculares, não necessaria-
mente artísticos
O caráter de pesquisa cientí-
fica que reconhece e valori-
za a diversidade cultural hu-
mana
O reconhecimento e a valo-
rização da necessidade de in-
serção (imersão) do sujeito
no objeto da pesquisa, o que
possibilita uma melhor
compreensão interna desse
objeto, de como os sujeitos
nele envolvidos o pensam e
conformam
O caráter teórico das ciênci-
as do homem, que busca,
sobretudo, explicar e com-
preender as estruturas e
modos da vida social, distan-
ciando-se do caráter teórico-
prático da etnocenologia, que
busca reconhecer e promo-
ver as diferentes formas de
espetáculo
Os campos de investiga-
ção, distintos em cada
etnociência, mesmo na
etnomusicologia e na
etnolinguística, apesar de
essas possuírem inter-
secções com a etnoce-
nologia, ao tratarem do
corpo humano e de sua
apresentação e representa-
ção coletivas
A proposição da etnometo-
dologia, de caráter claramen-
te metodológico para o ex-
clusivo âmbito da sociolo-
gia, distante da perspectiva
claramente estética – e teó-
rico – metodológica – da
etnoce-nologia, que se situa
no campo das diversas ar-
tes e formas de espetáculo
49
Armindo Bião
Campos de saber que se
relacionam com a
etnocenologia
O que os aproxima O que os distancia
A antropologia teatral
Os estudos da
performance
O interesse pela diversida-
de de práticas espetaculares,
a dedicação à prática artística
e à articulação entre teoria e
prática
A articulação entre antropo-
logia, estudos teatrais, teoria
e prática, o interesse pela di-
versidade cultural e, parcial-
mente, a aceitação de uma
perspectiva epistemológica
que permite a conformação
do objeto a partir do olhar
do sujeito
A ênfase da antropologia
teatral na busca de princípi-
os espetaculares universais,
simultaneamente reafirman-
do o étimo teatro como re-
ferência universal, distanci-
ando-se da ênfase da
etnocenologia nas semelhan-
ças e distinções das diversas
artes e formas de espetácu-
lo, com uma amplitude de
referência etimológica (cena,
corpo, espetáculo) simulta-
neamente maior e crítica do
“teatrocentrismo”
Os estudos da performance
vão do âmbito estético ao
fenomenológico e ao dos
aspectos antropológicos, so-
ciais e culturais, enquanto a
etnocenologia situa-se cla-
ramente no campo estéti-
co, do sensorial e dos pa-
drões compartilhados de
beleza
9
Fonte:Autor
A etnocenologia, assim, teria muitos pontos de contato com algumas
proposições do campo das ciências do homem, como a etnometodologia
e as etnociências, em geral, a etnomusicologia e a etnolinguística, em
particular, além da sociologia e da antropologia, interessadas na
teatralidade cotidiana e na metáfora do espetáculo. E, de um modo
ainda mais claro (e, do ponto de vista teórico-prático, talvez também
9
Segundo Renato Cohen, “[...], o estudo da performance desloca-se do campo estético
para o da fenomenologia e dos aspectos culturais, antropológicos e sociais[...]”, na
rubrica “Performance”. In GUINSBURG, J. et al (Org.). Dicionário do teatro
brasileiro: temas, formas e conceitos. Perspectiva, 2006. p. 240-243: ver p. 242.
50
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
10
 Ver, a esse propósito, o próprio manifesto (Nota 1) e, também, BIÃO, A. “Aspectos
Epistemológicos e Metodológicos da Etnocenologia: por uma Cenologia Geral”. In:
CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES
CÊNICAS, 1., 1999. Anais... Salvador: ABRACE, 2000. p. 364-367.
11
 Consultar, a esse respeito, para maiores detalhes, a Tabela de Área do Conhecimento
do CNPq, em: <http://www.cnpq.br/areas/tabconhecimento/index.htm>.
mais confuso), a etnocenologia se aproximaria da antropologia teatral e
dos estudos da performance. No entanto, a etnocenologia, de modo
bem visível distanciada das ciências do homem, distingue-se também da
antropologia teatral, por valorizar os princípios característicos de cada
forma, prática e comportamento espetacular, sem visar à identificação
de um conjunto de princípios universais, e por interessar-se – e abrigar
– criação e crítica, de modo integrado, mas não concomitante. A
etnocenologia, também, se distingue dos estudos da performance, por
sua clara opção pelo campo estético, compreendido simultaneamente
como o âmbito da experiência e da expressão sensoriais e dos ideais
de beleza compartilhados, e, ainda, por sua bastante ampla perspectiva
transdisciplinar, que vai, por exemplo, das ciências da educação e da
vida, como a pedagogia e a biologia, até as chamadas ciências exatas,
como a etnomatemática – enquanto os estudos da performance já se
constituem num campo transdisciplinar – ainda que mais restrito às
ciências sociais, e, menos, numa ampla perspectiva transdisciplinar, tendo
como campo o estético, como a etnocenologia.
Visando a maior clareza possível – neste esforço de esclarecimento
epistemológico, vale reafirmar o desejado caráter provisório
10
 desta nova
transdisciplina, desde seu nascimento, e tentar situar a etnocenologia em
termos de grande área de conhecimento, no quadro institucional brasileiro
contemporâneo. Aqui, em termos estratégicos, socioeconômicos,
geopolíticos e, sobretudo, conceituais, a etnocenologia inscreve-se na área
das “Artes”, e não, por exemplo, na área das “Ciências”. Assim, de acordo
com o que hoje é a classificação de referência da agência brasileira de
fomento à pesquisa, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico, o CNPq, do Ministério da Ciência e Tecnologia
11
, estamos
51
Armindo Bião
no âmbito da grande área denominada “Linguística, Letras e Artes”,
que, obviamente, compreende a área propriamente dita de “Artes”. É
certo que a etnocenologia poderia, também de acordo com essa mesma
classificação, inscrever-se nas grandes áreas das “Ciências Humanas” e
das “Ciências Sociais Aplicadas”, mas a primeira opção fortalece nossa
área das Artes, e, nela, os cursos de graduação e de pós-graduação, os
grupos de pesquisa e a produção artística, contribuindo para legitimarmos
nossa área de conhecimento, merecedora de financiamento e de
reconhecimento institucional, constituindo-se num campo epistemológico-
metodológico autônomo, embora, certamente, não independente e
isolado, mas, sim, integrado e transdisciplinar.
Concretização específica de objetos (na Bahia)
Buscando enfrentar a problemática que é a definição dos objetos da
etnocenologia, originalmente descritos como as “práticas e os
comportamentos humanos espetaculares organizados” (PCHEO)
12
,
posteriormente, eu próprio sugeri organizá-los em três subgrupos:
ar tes do espetáculo, ritos espetaculares e formas cotidianas,
espetacularizadas pelo olhar do pesquisador. Mais recentemente, eu
viria a atribuir a esses três conjuntos, ou subgrupos, a condição de
serem, respectivamente, objetos substantivos, adjetivos e adverbiais,
usando aqui, por minha própria conta, três classes gramaticais:
substantivo, adjetivo e advérbio.
Assim, substantivamente, seriam objetos da etnocenologia, no âmbito
do primeiro conjunto de objetos, o que se compreende, em língua
portuguesa (também em outras línguas, mas provavelmente de modo
mais explícito, sobretudo, naquelas linguisticamente aparentadas ao
português), como as diversas “artes do espetáculo”. Como não poderia
deixar de ser, em nosso quadro cultural – dito ocidental, de matriz greco-
12
 No manifesto já multicitado.
52
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
romana (num contexto tanto de caráter profissional quanto de caráter
amador), essas artes do espetáculo compreendem o teatro, a dança, a
ópera, o circo, a música cênica, o happening, a performance e o folguedo
popular, este último correspondente ao que Mário de Andrade
denominou, no Brasil, de danças dramáticas
13
. Seriam, esses objetos,
aqueles criados, produzidos e pensados, pelas comunidades nas quais
ocorrem, como atos explicitamente voltados para o gozo público e
coletivo, enquanto atos concretos de realização – reconhecíveis por todos
como “arte”, em seu sentido o mais gratuito e simplificado, tendo como
função precípua o divertimento, o prazer e a fruição estética (na acepção
sensorial e de padrão compartilhado de beleza) – e, em última instância,
o conforto comunitário menos compromissado com outras esferas da
vida social, ainda que podendo compreender práticas profissionais e
amadoras de seus artistas
14
 , remuneradas.
Também seriam objetos de interesse da etnocenologia, o que denominei
de ritos espetaculares, ou, dito de outra forma, aqueles fenômenos apenas
adjetivamente espetaculares. Esses fenômenos, sem possuírem, de modo
13
 Concordando com as considerações críticas de Edison Carneiro, a propósito da opção
de Mário de Andrade, prefiro a designação de folguedo à de danças dramáticas, esta
sendo mais restrita que aquela. Ver, a esse respeito, de Edison Carneiro, sobretudo,
Folguedos tradicionais, 2. ed. (FUNARTE/ INF, 1982), mas também Samba de
umbigada (MEC, 1961).
14
Vale ressaltar que, em português, no âmbito das artes do espetáculo estritamente
profissionais, no qual se encontram artistas que vivem de sua arte, ganhando a vida
com suas atividades nesse mesmo âmbito, o léxico habitualmente utilizado remete a
trabalho, enquanto, no campo das práticas amadorísticas, nas quais seus participantes
(artistas) também podem ser remunerados, mas ganham a vida no exercício de outras
profissões, fora do âmbito das artes do espetáculo, o léxico habitual inclui palavras
como brincar, brincadeira, brinquedo, brincante e brincador. Esta é mais uma razão por
preferirmos a designação de folguedo, para esse subconjunto de objetos substantivos
da etnocenologia. Curiosamente, em outras línguas, o léxico relativo ao lúdico encontra-
se, mesmo no âmbito do exercício profissional, por exemplo, do teatro : em inglês to
play, em francês jouer, em alemão spiellen.
53
Armindo Bião
explícito e cabal, todas as mesmas características acima descritas,
mormente no que tange à gratuidade, ainda assim, envolvem, em sua
realização, também concreta e coletiva, formas sociais de representação,
aparentadas às do teatro e às da ópera, por exemplo, formas de padrões
corporais ritmados, como os compartilhados com a dança e a música
cênica; formas de brincadeira comunitária; assim como certos folguedos,
e formas de ações coletivas, envolvendo o prazer do testemunhodo
risco físico, como as artes circenses, por exemplo. É o campo dos rituais
religiosos e políticos; dos festejos públicos; enfim dos ritos representativos
ou comemorativos – na terminologia de Émile Dürkheim
15
. Nesse grupo
de objetos, ser espetacular implicaria uma qualidade complementar,
imprescindível, decerto, para sua conformação, mas não substantivamente
essencial.
É certo que distinguir, de modo perfeito, esses dois primeiros grupos,
um de objetos substantivamente espetaculares e outro de objetos
adjetivamente espetaculares, é um exercício teórico-conceitual complexo
e delicado. No entanto, consideremos, como é hábito na construção
epistemológica, e mesmo na comunicação humana mais comezinha, poder
distinguir, desde um ponto de vista apenas teórico, esses dois grandes
grupos e admitir a possibilidade de interfaces, de cruzamentos e de
transgressões de fronteira, e, sempre que assim for o caso, nomear e
descrever esse pertencimento, talvez duplo, ou não claramente uno, como
se verá logo a seguir.
Finalmente, seriam, adverbialmente, objetos espetaculares, aqueles que
comporiam o terceiro grupo de objetos da etnocenologia, os fenômenos
da rotina social que podem se constituir em eventos, consideráveis, a
depender do ponto de vista de um espectador, como espetaculares, a
partir de uma espécie de atitude de estranhamento, que os tornaria
extraordinários, para um estudante, um estudioso, um curioso, um
15
Ver DÜRKHEIM, Émile. Les formes élémentaires de la vie religieuse. [S.l]:
Quadrige; PUF, 1985. p. 542-546.
54
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
pesquisador, enfim, um grupo de interessados em pesquisá-los. Isto nos
diferencia da perspectiva de Jean-Marie Pradier, exposta em nosso
manifesto fundador, por exemplo, bem como da perspectiva de Chérif
Khaznadar
16
, exposta em sua comunicação ao III Colóquio Internacional
de Etnocenolgia, realizado, em Salvador, Bahia, Brasil, em 1997, que
excluem esse terceiro grupo de objetos do campo da etnocenologia.
A partir desta definição, esquemática e extremamente simplificada, de
três conjuntos de objetos da etnocenologia, considerados
substantivamente, adjetivamente e adverbialmente como espetaculares,
busquei organizar, retrospectivamente, as pesquisas que, meus colegas,
estudantes e eu desenvolvemos na Bahia, ao longo dos últimos anos, e
que conformaram o trajeto da etnocenologia de que trata o presente
trabalho. Na verdade, selecionei, de modo mais ou menos arbitrário, 22
trabalhos
17
, que me pareceram mais pertinentes para essa discussão
epistemológica, quanto à constituição de objetos de estudo, segundo a
sugestão de classificação inspirada na gramática, aqui apenas esboçada.
Assim, sugiro a organização do quadro da tabela abaixo, em quatro
colunas, dedicadas, respectivamente, aos objetos, trajetos, sujeitos e
projetos de cada uma dessas pesquisas, eventualmente reunidas em uma
só, em havendo continuidade e contiguidade, por exemplo, entre dois
projetos de pós-graduação, um de mestrado e outro de doutorado.
16
Ver KHAZNADAR, Chérif. “Contribuição para uma definição do conceito de
etnocenologia”. Tradução de: S. Guedes. In: BIÃO, A ; GREINER, C. (Orgs.).
Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo: Annablume, 1999. p. 55-59.
17
Além das pesquisas que coordenei pessoalmente, as demais, ainda que contando com
minha orientação acadêmica, foram realizadas por Adailton Silva dos Santos, Alexandra
Gouvêa Dumas, Antonio Jorge Vítor dos Santos, Eloísa Brantes Bacelar Mendes,
Érico José Souza de Oliveira, Euvaldo Moreira Mattos, Giselle Guilhon Antunes
Camargo, Isa Maria Faria Trigo, Jorge das Graças Veloso, Josias Pires Neto, Larissa
Latif Plácido Saré, Lúcia Fernandes Lobato, Makários Maia Barbosa, Maria de Fátima
Barretto Bastos, Mary Weinstein, Renata Pitombo Cidreira, Sonia Maria Costa Amorim
e Washington Drummond.
55
Armindo Bião
Quadro 2: Conjuntos de objetos da etnocenologia
Objeto Trajeto Sujeito Projeto
Articulação ensino/
pesquisa/ extensão
eintegração
graduação/ pós-
graduação, no campo
das artes cênicas, com
leituras dramatizadas,
solos poéticos,
encenaçõesE palestras
com demonstrações
articulação ensino/
pesquisa/ extensão e
experimentação na
formação de atores
com máscaras e
dramatização de
folhetos de cordel
construção de corpus
documental de textos
teatrais impressos,
leituras dramatizadas e
etnocenologia
inserção na
comunidade e
etnografia densa
inserção na
comunidade,
pesquisa-ação e
criação artística
integração da
universidade com a
comunidade,
observação
participante e história
das mentalidades
inserção na
comunidade, criação
musical e jornalismo
ator,
encenador,
professor e
gestor
ator,
encenador,
professor e
gestor
ator,
encenador,
professor e
gestor
atriz,
encenadora
e professora
atriz,
encenadora
e professora
dançarina,
coreógrafa,
professora e
gestora
músico e
professor
análise de excertos da
literatura barroca baiana e
de jornais locais, sobre
imaginário, arte,
sexualidade, costume,
gênero e cor; e definição
das matrizes da oralidade –
e de outras correlatas – na
formação da cultura baiana
contemporânea
encenação e registro de
corpus de folhetos de cordel
brasileiros e de lundus;
estudo de espetáculos do
teatro de cordel em Salvador,
BA. e de folhetos e
entremezes do teatro de
cordel português
análise e experimentação
das relações entre
oralidade, cena e impressos
descrição, análise, registro
e produção audiovisual de
ritual e folguedo
recriação de folguedo
tradicional em novo
contexto espaciotemporal
ressignificação da
memória africana na
Bahia, criação e produção
audiovisual e de cortejo
coreográfico carnavalesco
descrições e análises de
comportamentos locais e
globais
ADVERBIAL:
as matrizes estéticas
da teatralidade e da
espetacularidade da
Bahia
contemporânea
SUBSTANTIVO:
o teatro de cordel
na Bahia e em
Lisboa, enquanto
um teatro de
profissionais
SUBSTANTIVO:
oralidade, imprensa
e cena lusófonas na
Bahia e na Europa
SUBSTANTIVO:
o reisado numa
comunidade rural
feminina negra da
Bahia
SUBSTANTIVO:
ternos de reis da
Lapinha em
Salvador, BA.
SUBSTANTIVO E
ADJETIVO:a dança
e o cortejo
coreográfico do
Male Debalê no
carnaval da Bahia
ADJETIVO:tribos
de roqueiros
tatuados na Bahia
56
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Objeto Trajeto Sujeito Projeto
SUBSTANTIVO:
a música afro-
carnavalesca da
Bahia
ADVERBIAL:
práticas corporais
tribais
contemporâneas
relativas à moda
SUBSTANTIVO:
folguedos
tradicionais da
Bahia
ADVERBIAL:
sotaques e
gestualidade no
telejornalismo da
Bahia
SUBSTANTIVO:
máscaras
carnavalescas do
interior da Bahia
profunda
SUBSTANTIVO:
oralidade e
gestualidade no
Centro-Oeste
brasileiro
SUBSTANTIVO:
treinamento de
atores com
máscaras
expressivas na
Bahia
ADJETIVO:
estados de corpo e
de consciência
dos promesseiros
do Círio de
Nazaré de Belém
do Pará
inserção na
comunidade, na
comunicação e na
criação artística
antropologia do
imaginário e
sociologia
compreensiva do
atual e do cotidiano
reportagens
audiovisuais, interesse
pelos estudos teatrais
e a etnocenologia
reportagens escritas
sobre patrimônio
cultural e
etnocenologia
psicologia da cultura
e etnocenologia
inserção na
comunidade,
etnografia densa e
criação dramatúrgica
integração com a
comunidade artística,
confecção e aplicação
de técnicas de
máscara neutra e
expressiva, criação de
tipos, improvisações
observação
participante, inserção
no fenômeno e
etnografia densa
professor e
diretor
teatral
jornalista e
professora
jornalista,
videasta e
professor
dançarina e
jornalista
psicóloga e
professora
ator,
dramaturgo,
encenador e
professor
atriz,
psicóloga e
professora
atriz,
bacharel em
comunicação
documentação, descrições
e análises de uma nova
reconfiguração da cultura
baiana
descrições, comparações
e análises
realização de 15
vídeodocumentários,reportagens sobre
folguedos típicos da Bahia
descrições e análises de
características identitárias
de tele jornalistas
caracterização, descrição e
análise da dinâmica
contemporânea das
máscaras do carnaval de
Rio de Contas
encenação de espetáculo
teatral, produção áudio-
visual de folguedo
tradicional rural e análises
encenação e produção
audiovisual, descrição e
análise do processo de
criação
documentação, produção
audiovisual e análise
57
Armindo Bião
Objeto Trajeto Sujeito Projeto
SUBSTANTIVO E
ADJETIVO:
conhecimento e
profissionalismo na
prática sufi dos
dervixes giradores
da Turquia
SUBSTANTIVO:
o espetáculo de um
cavalo marinho da
zona da mata
pernambucana
ADVERBIAL:
signos femininos,
masculinidade,
teatralidade e
erotomania do
“baiano”
SUBSTANTIVO E
ADJETIVO:
técnicas teatrais no
telejornalismo e
técnicas da mídia na
teledramaturgia
brasileira
SUBSTANTIVO:
o teatro de cordel
profissional em
Salvador, Bahia
INFINITIVO
18
:
a produção teórica
em etnocenologia
na França e no
Brasil (Bahia)
SUBSTANTIVO:
dois folguedos
lusófonos inspiradas
no ciclo carolíngio,
na África e na
América (Bahia)
etnologia da dança,
etnografia densa
einserção na prática
musical e coreográfica
etnografia densa e
construção de
cadernos de diretor
clínica, entrevistas e
etnografia densa
estudos comparados e
entrevistas
história documental e
entrevistas
identificação de teses
e publicações
produzidas e
entrevistas
observação
participante, inserção
na comunidade e
entrevistas
social e
professora
dançarina e
ator,
encenador e
professor
psicanalista
atriz e
jornalista
ator,
encenador e
professor
ator e
professor
atriz e
professora
documentação, produção
audiovisual e análise
transcrição do texto oral,
dos figurinos e marcações
cênicas, produção
audiovisual e análise
composição de histórias
de vida, descrição e
análises
documentação, descrições
e análises
descrição e análise de
corpus de espetáculos de
cordel produzidos em
Salvador
constituição docorpus de
referência, identificação
conceitual e análise
epistemológico-
metodológica
descrições, comparações,
análises, documentação e
produção audiovisual
Fonte: Autor
18
Trata-se de um projeto eminentemente de ordem histórico-epistemológica, cujo objeto
é a própria etnocenologia.
58
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Certamente, o leitor e, sobretudo, os pesquisadores implicados com os
projetos incluídos nessa tabela, perceberão que aqui se expõe um trajeto
decerto coletivo, mas apresentado a partir de uma perspectiva estritamente
individual, a minha, claramente sujeita a equívocos e a idiossincrasias.
Nesse trajeto, dinâmico e ainda muito jovem, nada pode ser considerado
como definitivo. Trata-se, sem dúvida, de uma primeira proposição de
organização, que poderá ser revista a partir das críticas e aportes que
porventura apareçam e serão bem-vindos.
Contudo, já poderíamos arriscar algumas análises sobre esse esforço
de síntese e de comparação. Por exemplo: predominam projetos que
tratam de objetos “substantivos”, 12 em 22 ou 54,5%; há apenas quatro
projetos, ou 18,2%, com objetos “adverbiais”; há, também, apenas
três projetos, ou 13,6%, cujos objetos podem ser considerados
simultaneamente substantivos e adjetivos, o que, conforme anunciado
aqui anteriormente, é um indicador da complexidade de distinção entre
essas duas categorias; e, finalmente, há somente dois projetos, ou 9,1%,
cujos objetos são exclusivamente “adjetivos”, o que, graças à delicadeza
da fronteira entre as categorias substantiva e adjetiva, se não minimiza
ainda mais essa última categoria ao menos a sustenta como categoria,
onde ser espetacular é uma qualidade simplesmente acessória, embora
intrínseca.
Nesse panorama, ainda contido num quadro de conteúdos e contornos
temporários, o fato dos objetos substantivos destacarem-se (somando-
se os 12 exclusivamente dessa categoria com os três simultaneamente da
categoria substantiva e adjetiva, seriam 15 ou mais de 68% do conjunto)
é muito provavelmente correlato com o fato de serem (ou de terem
sido), em sua grande maioria (mais de 77%), os sujeitos desses projetos,
artistas eles mesmos do campo das artes do espetáculo, 14 originários
do teatro e 3 da dança. Ainda que se considere que os 14 da área do
teatro sejam, de fato, 11, posto um deles aparecer, nessa tabela com três
projetos, e, mais um, em dois outros projetos, a relação seria de 11,
59
Armindo Bião
dessa área, mais três, da área de dança, ou 14, para o total de 19, ou
73,7%, o que continua a ser muitíssimo expressivo.
Essa primeira análise revela também o forte predomínio de objetos de
estudos correlatos com o próprio local de origem dessas pesquisas, a
Bahia, 13 em 22, ou mais de 77,2%, ainda que cinco desses projetos
inscrevam-se numa perspectiva de comparação com o estado de seus
objetos na Bahia, em Portugal, na França e na África, que, não por acaso,
são três referências fundamentais para a etnocenologia na Bahia. No
entanto, a existência nesse corpus em análise de um projeto cujo campo
de pesquisa se encontra na região Norte do país (Pará), de outro situado
na região Centro-Oeste (Goiás), de mais um na região Nordeste
(Pernambuco), de um outro em nível nacional, na grande mídia da
televisão, e, ainda, de mais um, fora do Brasil, entre a Europa e a Ásia
(Turquia), revela a vocação desse trajeto da etnocenologia encontrar-se
fortemente ancorado na Bahia, mas também de navegar e expandir-se
para outras regiões e continentes.
O trajeto teórico (no mundo)
Do ponto de vista epistemológico, além de um conjunto de noções de
referência conceitual, que nomearemos a seguir, vale considerar quatro
condições desejáveis para o bom, belo e útil desenvolvimento da pesquisa:
a serenidade, a humildade, o humor e o amor. Vale, também, assumir a
necessária implicação do sujeito, responsável pela generosa construção
de um discurso sobre o trajeto que liga objetos a sujeitos, numa busca
poética, comprometida e libertária.
A experiência e a expressão dos artistas, provenientes das mais diversas
formas de espetáculo, singulares e distintas nas culturas as mais variadas,
somadas à experiência de sistematização de processos de trabalho, dos
encenadores, atores, coreógrafos, dançarinos e outros artistas do
espetáculo, que convivem, em seu cotidiano, com o ambiente acadêmico,
60
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
servem de suporte para a constituição do horizonte teórico da
etnocenologia. Esse horizonte também pode, conforme já sugerimos,
beneficiar-se das contribuições da antropologia teatral, dos estudos da
performance e das ciências humanas e sociais aplicadas, particularmente
em suas vertentes dedicadas à antropologia do imaginário
19
, à sociologia
compreensiva do atual e do cotidiano
20
, à descrição etnográfica densa
21
,
à história de vida
22
, à história oral e à história das mentalidades
23
 e,
finalmente, aos estudos da literatura oral
24
.
Vale nomear as noções epistemológicas de referência para a pesquisa em
etnocenologia, dentro do trajeto aqui brevemente esboçado:
• Alteridade, identidade, identificações, diversidade, pluralidade e
reflexividade – conjunto de noções que remete à consciência das
semelhanças e diferenças entre indivíduos, grupos sociais e sociedades,
por um lado e, por outro, à capacidade humana de refletir a realidade
e sobre ela, de modo consciente, experimentando e exprimindo
sensibilidade, suscetibilidade, opções de prazer, beleza, desejo e
conforto; nesse primeiro conjunto de noções, vale ressaltar a emergência
da noção de “identificação”, como uma construção temporária,
19
Ver, DURAND, Gilbert. Les structures anthropologiques de l’1imaginaire
Introduction à l’archétypologie générale. 9. ed., Bordas, 1969.
20
Ver, MAFFESOLI, Michel. La connaissance ordinaire, Précis de sociologie
compréhensive. Méridiens-Klincsieck, 1985.
21
Ver, GEERTZ, Clifford.“Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da
Cultura” Tradução: F. Wrobel. In: _____. A interpretação das culturas, Zahar,
1978.
22
Ver, FERRAROTTI, Franco. Histoire et histoires de vie. Méridiens, 1983 e, de
QUEIROZ, Maria Isaura P. et al. Experimentos com Histórias de Vida, Vértice,
1988.
23
Ver, JOUTARD, Philippe. “L’histoire orale”. In: BURGUIÈRE, A., dir.,
Dictionnaire des sciences historiques, PUF, 1986 e, de DUBY, Georges. “L’histoire
des mentalités”, L’Histoire et ses méthodes, In: Encyclopédie de la Pléiade, Paris,
1961, p. 937-966.
24
Ver, ZUMTHOR, Paul. Introduction à la poésie orale, Seuil, 1983 e SANTOS,
Idelette Muzart-Fonseca dos. Memória das vozes: cantoria, romanceiro e cordel.
Tradução de: M. Pinheiro, SCT/ FUNCEB, 2006.
61
Armindo Bião
existencialista e dinâmica, contraposta à de “identidade”, como uma
categoria definitiva, essencialista e estática, que se encontraria em crise
na contemporaneidade
25
;
• Teatralidade e espetacularidade – o par de categorias ideal-típicas
referente à convivência em sociedade; sendo a primeira aplicada às
pequenas interações rotineiras, nas quais os indivíduos agem em função
do interlocutor (para o olhar do outro, como no sentido etimológico
do teatro), de modo mais ou menos consciente e confuso, sem distinção
clara entre “atores e espectadores”, por desempenharem, aí, todos,
simultaneamente os dois “papéis”; e a segunda aplicada às maiores
interações extraordinárias, quando coletivamente a sociedade cria
fenômenos organizados para o olhar de muitos outros, que dele têm
consciência clara como “atores” ou “espectadores”
26
;
• Estados de corpo e estados de consciência
27
 – o interesse pelos estados
“alterados” de consciência nos rituais de possessão e cultos religiosos
é uma constante no âmbito da antropologia, que, eventualmente, alude
ao teatro, como o faz, por exemplo, Michel de Leiris
28
; mais
contemporaneamente, a relação entre artes e formas de espetáculo e
estados modificados de consciência tem sido ressaltada
29
, levando-
nos a sugerir que o treinamento corporal e mental de dançarinos e
atores, por exemplo, gera, não apenas estados modificados de corpo,
relembrando as reflexões de Marcel Mauss
30
 sobre as técnicas de corpo,
mas também gera estados modificados de consciência;
• Transculturação e Matrizes Estéticas
31
 – o conceito sugerido por
Fernando Ortiz aproxima-se decerto de algumas possíveis leituras de
outros conceitos correlatos mais antigos, como o de aculturação, por
exemplo, mas sua proposição, cunhando um novo termo, reafirma o
fenômeno do contato cultural como gerador de novas formas de
cultura, distintas das que lhes deram origem, o que remete ao desejo
de identificação de suas matrizes culturais, fenômeno que só vale
pesquisar, nunca é demais reafirmar, considerando-se certa
reconstrução constante e dinâmica da tradição.
62
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
O horizonte teórico-metodológico aqui esboçado insere-se, como não
poderia deixar de ser, no mesmo trajeto de que trata este ensaio, e que é
apenas um, dentre muitos outros possíveis. E é exatamente assim, que
aqui se compreende a noção de trajeto, retomada na última parte deste
trabalho, como a necessária e imprescindível articulação entre o sujeito e
o objeto, retomando, por minha própria conta, as ideias de “objetivação
do subjetivo” de Erwin Panofsky, de “trajeto antropológico” de Gilbert
Durand e de “trajetividade” de Augustin Berque
32
.
25
Sobre identidade e identificação, ver, de MAFFESOLI, Michel. Le temps des
tribusdéclin de l’individualisme dans les sociétés de masse, Méridiens-
Lincksieck, 1988 e, sobre reflexividade, ver, de GARFINKEL, H., op. cit. (Nota 5), de
Victor Turner, Process, performance and pilgrimage (A study on Comparative
Symbology), Concept, 1979, p. 65 e, de SCHÜTZ, Alfred. Le chercheur et le
quotidien. Tradução de: A. Noschis-Gilliéron Méridiens-Klincksieck, 1987. p. 114 e
seguintes.
26
 Propus essas categorias em minha tese de doutorado Théâtralité et spectacularité:
une aventure tribale contemporaine à Bahia, orientada por Michel Maffesoli (Paris 5
Université René Descartes, Sorbonne, 1990); ver, também de minha autoria, “A metáfora
teatral e a arte de viver em sociedade”. In: Cadernos do CRH, n. 15, p. 104-110,1991.
27
Ver BOURGUIGON, Érika. (Ed.). Religion, Alterde States of Consciousness
and Social Change, Ohio State Press, 1973 e, de LAPASSADE, Georges. Les états
modifiés de conscience, PUF, 1987 e, na minha tese, citada na Nota anterior, “Un
état de conscience”, p. 132-142.
28
 Ver, LEIRIS, M. La possession et ses aspects théâtraux chez les éthiopiens de
Gindar, Plon, 1958.
29
Ver, entre outras contribuições publicadas nessa obra, a de PIMPANEAU, Jacques.
“Les liens entre lês cultes médiumniques et lê théâtre, entre les chamans et les acteurs”.
In: Actes des Rencontres Internationales sur la fête et la communication,
Serre/ Nice-Animation, 1986.
30
Ver, MAUSS, M. Sociologie et anthropologie, 9. ed., Quadrige-PUF, 1985.
31
Sobre transculturação ver, de ORTIZ, Fernando. “Contrapunteo cubano del tabaco
y del azucar”, In: Taller de Letras, 2003 e, de MANDRESSI, Rafael.
Transculturation et Spectacles Vivants en Uruguay 1870 - 1930 - Une Approche
Ethnoscénologique, tese de doutorado aprovada em Paris 8, Saint Denis, 1999;
sobre matrizes culturais, ver, de BIÃO, Armindo. “Matrizes estéticas: o espetáculo
da baianidade”. In: PEREIRA, A . et al (Orgs.). Temas em Contemporaneidade,
Imaginário e Teatralidade. São Paulo: Annablume, 2000. p. 15-30.
32
Ver, PANOFSKY, E. La perspective comme forme symbolique, Minuit, 1975, p.
158-170; DURAND, G., op. cit., p. 38 et seq. e BERQUE, A., 1986. p. 147-153.
63
Armindo Bião
Um projeto metodológico (na vida)
Na perspectiva do trajeto aqui tratado, começou-se a esboçar uma
estrutura para futuros projetos de pesquisa, com base, inicialmente, na
escolha e descrição de um objeto de estudo, a partir de uma reflexão
pessoal sobre as apetências e competências do sujeito, seguidas da
definição e experimentação de um possível trajeto teórico-metodológico
e da definição, desde esse ponto de vista, do sujeito da pesquisa,
concluindo-se, por fim, pela elaboração do projeto. Nele, o pesquisador
deverá indicar as técnicas que presume serão úteis para o pleno
desenvolvimento do trabalho. E aí haveria dois conjuntos principais de
técnicas a considerar.
Há as técnicas, ou instrumentos, de pesquisa, que podem ser tomados de
empréstimo às ciências do homem, aqui brevemente citadas. Aí se
encontram as entrevistas (abertas, fechadas, com e sem roteiro estruturado
etc), as observações participantes, as descrições etnográficas densas, os
cadernos de pesquisa de campo, as histórias de vida, as coletas e transcrições
de textos da literatura oral, os registros fonográficos e audiovisuais. Nesse
âmbito, o pesquisador artista, proveniente do campo das artes do
espetáculo, só muito dificil e excepcionalmente poderá se equiparar aos
profissionais da antropologia, das perspectivas teóricas e teórico-
metodológicas de referência
33
, posto que esses as praticam por mais
tempo – e também recebem maior preparação teórica, prática e
pragmática específica – técnicas como as das descrições etnológicas
densas, por exemplo. Já o pesquisador das artes cênicas, para quem essas
técnicas são apenas complementares às específicas de sua própria área
de conhecimento e de atuação, compensa o seu menor tempo de prática
e de formação específicas, com sua “competência única” (voltando a
usar um jargão da etnometodologia), identificada por diversos
33
Um caso exemplar é a obra MARTINS, Leda. Afrografias da Memória : o Reinado
do Rosário no Jatobá (Perspectiva/ Mazza, 1997), que, sem se inserir no âmbito da
etnocenologia (da qual não há menção na obra), pode inspirar muitas pesquisas nessa
perspectiva.
64
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
examinadores de suas tesese dissertações, de observar detalhes relativos
à expressão corporal e vocal, movimentação e caracterização dos
integrantes de seu objeto de estudo, invisíveis para pesquisadores com
experiência restrita às ciências humanas.
O outro conjunto de técnicas e instrumentos de pesquisa resulta da
adaptação e da construção de novas técnicas, no âmbito mesmo das
artes do espetáculo, informadas principalmente pela experiência dos
artistas no registro de seus processos e projetos de criação, ou seja, na
expressão sistemática de sua própria experiência. Nesse âmbito
encontram-se os cadernos de direção, os diários de ator e as anotações
para caracterização de personagens, para construção de cenários e para
confecção de adereços, por exemplo. Além disso, pode-se pensar em
buscar inspiração, para a constituição desse conjunto de técnicas e
instrumentos de pesquisa para as artes do espetáculo, nos relatórios de
pesquisa e em seus respectivos anexos, particularmente nas teses e
dissertações de pós-graduação de etnocenologia, e nos próprios
resultados de trabalhos publicados, que também se reclamem pertencer
ao espectro de pesquisas em etnocenologia.
Destaque-se, no âmbito desse segundo conjunto de técnicas e
instrumentos de pesquisa, principalmente para futuros projetos que
contenham criações artísticas em seu trajeto e/ ou que prevejam criações
artísticas em seus resultados, a importância de trabalhos similares já
realizados. Por exemplo, voltando a apreciar o conjunto de dados contidos
na tabela comparativa de projetos aqui apresentada, percebe-se que oito
dos 22 trabalhos listados, ou mais de um terço desse total, 36,4%,
inscrevem-se mais claramente na vertente de pesquisas que aliam teoria
científica e prática artística, reflexão crítica e criação (ainda que outros
tenham usado a experiência de sistematização do trabalho artístico em
seus projetos, cuja caracterização é exclusivamente teórico-crítica). São
esses os trabalhos similares que valem ser conhecidos pelos pesquisadores
interessados em aliar criação e crítica em seus futuros projetos.
65
Armindo Bião
É fato que projetos de pesquisa envolvendo criação artística demandam
um planejamento extremamente meticuloso, incluindo variantes de difícil
controle, posto implicarem sempre maior volume de recursos humanos,
financeiros e materiais do que os projetos de pesquisa, digamos, mais
tradicionais, nos cursos de pós-graduação brasileiros, mesmo na área
das artes do espetáculo, que se caracterizam, exclusivamente, por seu
aspecto crítico-teórico. Essa outra vertente, crítico-criativa, ainda que já
algo expressiva, do ponto de vista estatístico, ainda permanece menos
representativa, do ponto de vista quantitativo, que a predominante, de
projetos que não abrigam em seu trajeto, nem em seu conjunto de
resultados, qualquer nova encenação ou outra forma de espetáculo. No
entanto, essa menor representatividade numérica é relativamente
compensada pelo também algo expressivo volume de produtos
audiovisuais, das pesquisas produzidas no âmbito do trajeto descrito no
presente trabalho, e que repetem os mesmos indicadores, ou seja, oito
em 22 dos trabalhos listados, ou mais de um terço desse total, 36,4%.
Assim, o caráter de fenômeno vivo, ou “ao vivo”, das artes do espetáculo
afirma-se nesse trajeto por seus resultados de prática artística usufruída
ao vivo – e devidamente registrada – e de prática artística registrada ao
vivo e usufruída através de um produto audiovisual, de modo também
devidamente captado.
Antes de concluirmos, vale ainda uma reflexão, ainda que extremamente
breve e arriscada, sobre a expressão francesa “spectacle vivant”
34
, que, em
nossa opinião, traduz-se mal para “espetáculo vivo”. Na verdade, talvez
fosse melhor como tradução a expressão “espetáculo ao vivo”, para
designar aquele fenômeno que ocorre num mesmo tempo/ espaço
compartilhado por artistas e público e que se constitui no cerne dos
objetos de estudo da etnocenologia. O fato eventual dele também ser
compartilhado por outros artistas ou espectadores, ao mesmo tempo,
mas em espaços distintos, é efetivamente apenas acessório. No entanto,
34
Ver, a esse propósito, de PRADIER, Jean-Marie. “Os estudos teatrais ou o deserto
científico”. Tradução de: A . Pereira. Repertório Teatro & Dança, [S.l.], n. 4, 2000,
p. 38-55.
66
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
aí se insere a problemática da relação das artes do “espetáculo ao vivo”
com os meios audiovisuais, mais um campo arriscado, também merecedor
de reflexões, repleto de mal-entendidos e de polêmicas. Em nossa
perspectiva, esses meios interessam, sim, à etnocenologia, sempre que
registrem “espetáculos ao vivo” ou sempre que com eles se articulem,
de algum modo, conforme mais uma leitura da tabela de 22 trabalhos
que aqui apresentamos pode revelar.
Conclusão
Este ensaio revela um momento de um trajeto, de apenas um dos
inúmeros possíveis e reais trajetos da etnocenologia, que poderão contribuir
para a construção de um paradigma científico compartilhado,
internacionalmente, por um grupo de pesquisadores e artistas. Trata-se,
sem dúvida, de uma, simultaneamente, humilde e pretensiosa contribuição.
Mas, também, trata-se de uma proposição sincera e otimista quanto à
possibilidade de convivência, nesse novo paradigma, de coincidências,
diferenças, contradições e debates, condição indispensável para o exercício
profícuo da criatividade científica e da criação artística.
Referências
BANES, Sally. Greenwhich Village 1963: avant-garde, performance e
o corpo efervescente. Trad. M. GAMA. [S.l.]: Rocco, 1999.
BARBA, Eugenio; Nicola SAVARESE. Anatomie de l’Acteur : Un
dictionnaire d’anthropologie théâtrale. Trad. E. Deschamps-Pria. [S.l]:
Bouffonneries-Contrastes, 1985.
BERQUE, Augustin, Le sauvage et l’artifice: les japonais devant la
nature. [S.l]: Gallimard, 1986. p. 147-153.
BIÃO, Armindo. Théâtralité et spectacularité: une aventure tribale
contemporaine à Bahia. Sorbonne: Paris 5: Université René Descartes,
1990.
67
Armindo Bião
BIÃO, Armindo. “A metáfora teatral e a arte de viver em sociedade”.
Cadernos do CRH, Salvador, n. 15, p. 104-110, 1991.
BIÃO, Armindo. “Estética Performática e Cotidiano”. In: Performance,
Performáticos e Cotidiano, Brasília, UNB, 1996, p. 12-20.
BIÃO, Armindo. “Aspectos Epistemológicos e Metodológicos da
Etnocenologia: por uma Cenologia Geral”. In: CONGRESSO
BRASILEIRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES
CÊNICAS, 1., 1999. Anais... Salvador: ABRACE, 2000, p. 364-367.
BIÃO, Armindo. “Matrizes estéticas: o espetáculo da baianidade”. In:
PEREIRA, A. et al (Org.). Temas em Contemporaneidade, Imaginário
e Teatralidade. [S.l]: Annablume, 2000. p. 15-30.
BOURGUIGNON, Erika (Ed.). Religion, Alterde States of
Consciousness and Social Change. [S.l.]: Ohio State Press, 1973.
CARNEIRO, Edison. Samba de umbigada. [S.l]: MEC, 1961.
CARNEIRO, Edison. Folguedos tradicionais. 2. ed. [S.l]: FUNARTE/
INF, 1982.
COHEN, Renato. “Performance”. In: GUINSBURG, J. et al (Org.).
Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo:
Perspectiva, 2006. p. 240-243.
CNPQ. Disponível em: <http://www.cnpq.br/areas/tabconhecimento/
index.htm>. Acesso em: 22 out. 2007.
DEBORD, Guy. La société du spectacle. [S.l]: Buchet-Castel, 1971.
DEBORD, Guy. Commentaires sur la société du spectacle. [S.l]: G.
Lebovici, 1988.
DUBY, Georges. “L’histoire des mentalités, L’Histoire et ses méthodes’.
In: ENCYCLOPÉDIE de la Pléiade. Paris: [S.n], 1961. p. 937-966.
68
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
DURAND, Gilbert. Les structures anthropologiques de
l’1imaginaire Introduction à l’archétypologie générale. 9. ed. [S.l]:
Bordas, 1969.
DÜRKHEIM, Émile. Les formes élémentaires de la vie religieuse.
[S.l]: Quadrige; PUF, 1985. p. 542-546.
“ETHNOSCÉNOLOGIE”. Théâtre Public, [S.l], n. 123, p. 46-48,
1995.
FERRAROTTI, Franco. Histoire et histoires de vie. [S.l]: Méridiens,
1983.
GARFINKEL, Harold. Studiesin Ethnomethodology. [S.l]: Prentice-
Hall, 1967.
GEERTZ, Clifford. “Uma Descrição Densa: Por uma Teoria
Interpretativa da Cultura”. Trad. F. Wrobel. In: ______ A interpretação
das culturas. [S.l]: Zahar, 1978.
GEERTZ, Clifford, Negara: the Theater State in Ninteenthcentury Bali.
[S.l]: Princeton Univ. Press, 1980.
GOFFMAN, Erving, The Presentation of Self in Everyday Life.
[S.l]: Doubleday Anchor Books, 1959.
GREINER, Christine ; BIÃO, A., (Org.). Etnocenologia, Textos
Selecionados. [S.l]: Annablume, 1998.
INTERNATIONALE de l’Imaginaire. Nouvelle Série, [S.l], n. 5,
MCM/ Babel, 1995.
KHAZNADAR, Chérif. “Contribuição para uma definição do conceito
de etnocenologia”. In: BIÃO, A. ; GREINER, C. (Orgs.).
Etnocenologia: textos selecionados. [S.l]: Annablume, 1999. p. 55-59.
69
Armindo Bião
JOUTARD, Philippe. “L’histoire orale”. In: BURGUIÈRE, A. (Dir.).
Dictionnaire des sciences historiques. [S.l.]: PUF, 1986.
LAPASSADE, Georges. Les états modifiés de conscience. [S.l]: PUF,
1987.
LEIRIS, Michel de. La possession et ses aspects théâtraux chez les
éthiopiens de Gindar. [S.l]: Plon, 1958.
MANDRESSI, Rafael. Transculturation et Spectacles Vivants en
Uruguay 1870 – 1930 : Une Approche Ethnoscénologique. 1999. Tese
(doutorado), Paris 8 Saint Denis, 1999.
MAFFESOLI, Michel. La conquête du present. [S.l]: PUF, 1979.
MAFFESOLI, Michel. La connaissance ordinaire, Précis de
sociologie comprehensive. [S.l]: Méridiens-Klincsieck, 1985.
MAFFESOLI, Michel. Le temps des tribus: déclin de l’individualisme
dans les sociétés de masse. [S.l]: Méridiens-Lincksieck, 1988.
MARTINS, Leda, Afrografias da Memória: O Reinado do Rosário
no Jatobá. São Paulo: Perspectiva ; Mazza, 1997.
MAUSS, Marcel. Sociologie et anthropologie. 9. ed. [S.l]: Quadrige-
PUF, 1985.
ORTIZ, Fernando.”Contrapunteo cubano del tabaco y del azucar”. Taller
de Letras, [S.l], 2003.
PANOFSKY, Erwin. La perspective comme forme symbolique. [S.l]:
Minuit, 1975.
PIMPANEAU, Jacques, “Les liens entre les cultes médiumniques et le
théâtre, entre les chamans et les acteurs”. Actes des Rencontres
70
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Internationales sur la fête et la communication. [S.l]: Serre; Nice-
Animation, 1986.
PRADIER, Jean-Marie. “Os estudos teatrais ou o deserto científico”.
Repertório Teatro & Dança, [S.l], n. 4, p. 38-55, 2000.
QUEIROZ, Maria Isaura P. de et al. Experimentos com Histórias de
Vida. [S.l.]: Vértice, 1988.
SANTOS, Idelette Muzart-Fonseca. Memória das vozes: cantoria,
romanceiro e cordel. Trad. M. Pinheiro. Salvador: SCT; FUNCEB, 2006.
SCHECHNER, Richard. Performance Studies, an introduction. [S.l]:
Routledge, 2002.
SCHÜTZ, Alfred. Le chercheur et le quotidien. Trad. A. Noschis-
Gilliéron.Méridiens-[S.l]: Klincksieck, 1987.
TURNER, Victor. Process, performance and pilgrimage : A study
on Comparative Symbology. [S.l]: Concept, 1979.
ZUMTHOR, Paul. Introduction à la poésie orale. Seuil: [S.n.], 1983.
71
Armindo Bião
Boa tarde a todas e a todos,
agradeço o convite da colega
rainha e amiga Leda Martins,
aplaudindo em seu nome, nos meus modos,
as instituições, que sem dar trégua,
estão conosco nesses bons confins.
Para tratar aqui deste objeto,
por 10 minutos peço a atenção,
começando a falar deste sujeito,
para bem seguir neste trajeto,
de pesquisa, arte e de gestão,
lá na Bahia, de onde abro o peito.
Em primeiro lugar, reconheço que sou meu corpo e minha língua, esta,
o português, última da família latina a formar-se, muito marcada pela
oralidade celtibera e lusófona, que no Brasil bebeu jurema, garapa,
jurubeba, mingau, sangue e muito igarapé tupi, além do dendê, que veio
da África e da água-de-coco, que veio da Índia. Servindo para expressar,
exprimir, saborear e saber, a língua, as línguas são cheias de ditos, não-
ditos, subentendidos, mal-entendidos, malditos e benditos, fontes de
conhecimento e de muita confusão. Daí a bela formula italiana traduttore,
traditore.
Em segundo lugar, identifico-me como um corpo de baiano de Salvador,
de mãe de matriz cabocla com marcas africanas, do litoral, e de pai do
agreste, do sertão, de matriz também cabocla com marcas luso-judeo-
Ah que culpa enorme, imensa, grande
*
*
 Comunicação para a Mesa Redonda Artes e Mercados. In: ENCONTRO
INTERNACIONAL DE PERFORMANCE, 5., 2005, Belo Horizonte. Anais... (13.
mar. 2005, inédita).
72
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
mouro-cristãs. Em minha primeira infância, vi meus pais converterem-
se ao espiritismo ortodoxo, positivista, francês, que se queria uma filosofia,
de bases científicas e consequências religiosas. Aos 10 anos, mandaram-
me para um colégio militar. Aos 15, desconfortável pelo meu entorno,
reuni os estímulos, até então recebidos no seio da família, dos dramas
católicos e da literatura de cordel, bem como dos rituais e rotinas de
matriz banto e sudanesa, que podia perceber em minha cidade e joguei-
me inteiro no teatro, na experiência e expressão vocal e corporal, que
passaria a ser o meu conforto.
Aos 20 anos, vivi o choque contracultural, após três interpelações da
ditadura, de viajar de ônibus de Salvador para o Rio de Janeiro, de navio
daí para Lisboa e de carona de Lisboa a Londres, onde dormi na rua,
roubei comida, bati tapete e convivi com artistas baianos – entre outros
– maravilhosos. Para mim, foi a volta ao mundo, em apenas 80 dias, e,
de volta à Bahia, foi mais uma vez o teatro que me confortou, e a pesquisa
e a escritura, que me deram sobrevivência.
Aos 30 anos, com bolsa da Fundação Fulbright, fui estudar interpretação
teatral em Minneapolis, onde morei – e namorei – na maior comunidade
indígena urbana dos EUA. Foram quase três anos de contato com as
identidades ojibuê, meskwaki, hopi e, também, afro-americana, esta
representada por uma pequeníssima comunidade na Mini Apple. De volta
a Salvador, sempre no teatro e em universidades, já com o diploma de
Master of Fine Arts, preparei-me para o doutorado em antropologia do
teatro e da teatralidade na Sorbonne, onde vivi quase cinco anos – e
completei os meus 40 anos, vivendo bem identificado junto à comunidade
de judeus pied noirs de Paris. Voilà.
O terceiro momento deste trajeto metodológico é minha afirmação
seguinte: talvez, eu, como muitos outros seres humanos, talvez como
todos e todas, de acordo com os mais recentes estudos do genoma
humano, talvez seja eu descendente de uma pequena família que se
consolidou, há milhões de anos no centro-sul do continente africano e
que teria gerado sucessivas proles, que, migrando e adaptando-se às
73
Armindo Bião
diferentes regiões do globo terrestre, foram ficando negras, brancas,
amarelas, vermelhas, multicores enfim, repito, eu, que me declaro
BAIANO, não posso falar de identidade, nem mesmo de identidades,
no plural, aliás, no plural, e nunca no singular, só posso falar de
identificações, sucessivas, simultâneas, eventualmente contraditórias, mas
todas sinceras, com fé vital e fé cênica, talvez por isso ser ator me conforte
tanto. Aliás, identifico-me com Zelig, aquele personagem de Woody Allen,
que se transformava em sósia de seus interlocutores.
Em quarto lugar, chegando agora ao meu objeto, Artes e Mercados,
lembro que o fenômeno da Commedia dell’Arte pode ser traduzido, sem
muita traição, por teatro profissional. Refiro-me aos artistas, os primeiros,
na Europa, a viverem do seu trabalho teatral, apresentando-se em feiras,
espaços de mercados públicos e em ambientes privados, que viriam a
gerar a moderna arquitetura teatral. Ora, sabe-se da longa história de
estigma contra o trabalho no Brasil e contra o teatro, aqui e também na
Europa. Talvez por isso os primeiros elencos profissionais brasileiros
fossem compostos por negros e mulatos, nos séculos XVIII e XIX.
Talvez por isso, também na Europa, os judeus, impedidos de possuir
terras ou prestígio social, teriam se dedicado tanto ao mercado, ao
comércio e ao teatro. Não é à toa que a presença dos judeus é tãoexpressiva no teatro profissional europeu e norte-americano e no cinema
hollywoodiano, por exemplo, e que os afro-americanos, convertidos ao
cristianismo na América do Norte, onde aliaram sua fortíssima
musicalidade ao acesso aos instrumentos de metal e sopro e aos serviços
musicais religiosos, gerando o jazz, o soul, o gospel, o blues etc.
Para tratar do quinto tópico de meu trajeto, quero lembrar a contribuição
da sociologia compreensiva de Max Weber. Como ele, a meu modo,
não pretendo explicar o mundo, tirar o pli, as dobras, não quero achatar
o mundo, quero compreendê-lo em sua complexidade; e, diferentemente
dele, Weber, não quero falar de desencantamento do mundo, muito pelo
contrário, quero falar de “reencantamento” do mundo, com base na
possibilidade das múltiplas identificações corporais e linguísticas que se
oferecem, cada vez mais, à humanidade.
74
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Então, ainda no que se refere a este quinto tópico metodológico, eu
queria lembrar que a palavra trabalho – trabajo, travail – remete a castigo
de escravo. Para Weber isso seria um indicador de que, para os latinos e
católicos, o trabalho é punição, enquanto para os anglo-saxões e
protestantes, trabalho – work, werk – seria ação e salvação, a própria ética
do capitalismo e do mercado, sem culpa. É interessante que, em
português, fala-se em trabalho de ator e não em jeu d’acteur, que aqui em
nosso país não é player nem schauspieler. Brincante aqui é o artista da
brincadeira, aquele que não vive de sua performance musical, coreográfica,
dramática ou ritual, como os pescadores, comerciantes ou agricultores
que fazem seus folguedos tradicionais.
Para concluir, quero saudar, com muita alegria, os dançarinos e músicos
que vimos ontem à noite, sem culpa, quero saudar sua vinculação yupki,
dos confins do Alaska, afro-americana, polar, dinamarquesa, brasileira e
baiana, esta com meu colega Jelon Vieira, da Capoeira Foundation, sediada
em Nova York.
De fato, nós, na Bahia onde a vocação para o turismo – baseada em sua
natureza e cultura mestiça, marcantemente negra, e que se estabeleceu ao
lado de forte imaginário musical, literário, cinematográfico etc. da Boa
Terra mãe do Brasil e que, há algumas décadas, interpela o artista, o
pesquisador e o gestor – questionamos: qual o impacto do turismo na
natureza? E na cultura? Como engordar a galinha dos ovos de ouro, que
gera renda, emprego e melhora de qualidade de vida, se não pudermos,
sem preconceito estreito, arrogante e imperialista, de inconsciente e falsa
boa-consciência, enfrentar, simultaneamente, as questões do turismo e
da cultura, inclusive do turismo de eventos, como este V Encontro
Internacional de Performance, por exemplo, ou mesmo do turismo
de férias e de lazer, ou do turismo baseado na história, nas artes e em
aspectos das culturas locais e regionais, de festas e rituais religiosos, por
exemplo? Como pensar o impacto de todas essas formas de cultura nas
gentes? Como lidar com essa importante – e cada vez mais – atividade
socioeconômica, no que tange particularmente as suas consequencias
socioculturais? Como pensar as questões também da natureza e da cultura,
75
Armindo Bião
condições em que o homem é ao mesmo tempo, natureza e cultura, que
dão vida, mas que também dão morte, posto que há vulcões e maremotos
naturais e sociais, por exemplo?
De fato, nós, na Bahia, para o bem e para o mal – talvez, associemos,
sem culpa, artes e mercados, há muitos séculos, mas, como emblema,
quero referir-me apenas a Carlinhos Brown, grande artista, grande
mercador e grande animador de sua comunidade, no Candeal, em
Salvador. Mas queria fazer um mea-culpa, também, com amor e com o
humor, para os que já se foram, para vocês e para os que virão.
Ah, que culpa imensa, ah, que culpa grande, ah, que culpa enorme!
- a de meus tios tupinambás que chamavam pejorativamente seus primos
de tapuias e os expulsaram do litoral de kiri-murê antes de kiri-murê
ser chamada de Bahia de Todos-os-Santos, em 1501, por Américo
Vespúcio;
- a de meus tios tupis, os de lá da Bahia, que, para se identificarem
perante sua família, precisavam fazer sempre guerra e matar um primo;
- a de meus tios judeus, que comerciaram tanto, que chegaram até a
comercializar gente, aliás como também meus tios mouros e africanos
o fizeram; o homem inventou a escravidão há muitos séculos e ela
ainda persiste, e escravizar não foi apanágio só dos brancos;
- a de meus tios iorubá, que são poder econômico, político e cultural,
hoje, por exemplo, na Nigéria, e que continuam a maltratar seus primos
de outras etnias; aliás o etnocentrismo é muito mais amplamente
difundido do que se pensa, ou parece, e a escravidão e a violência
contra o outro marcaram inúmeras culturas, inclusive na África;
- a de meus tios europeus, os que mais se beneficiaram com a colonização
moderna e que, em atitude de mea-culpa, iniciariam as ciências do
homem, a antropologia, por exemplo; ah, que culpa enorme, imensa,
grande, todo mundo sabe disso;
76
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
- a de meus primos norte-americanos, os que melhor realizaram o melhor
e o pior do sonho moderno europeu;
- a dos governos, dos empresários e das ONGS, que controlam e
instituem benefícios e criam artes e mercados, como, por exemplo, o
da solidariedade, para o bem e para o mal;
- a de nós artistas e intelectuais, quando queremos impor um padrão,
uma ideia, uma regra, uma ideologia, omitindo verdades e inibindo a
reflexão;
- ah, que culpa enorme, imensa, grande!
Pronto. Fiz meu mea-culpa, fiz a minha performance e estou aberto à
conversação.
77
Armindo Bião
As artes – da maneira como as compreendo desde o meu horizonte
teórico-metodológico, demarcado pela antropologia do imaginário, pela
sociologia compreensiva do atual e do cotidiano e pela etnocenologia –
não são linguagens. A meu ver, as artes são, sim, experiência, expressão e
fruição, simultâneas e coletivas. As artes são do âmbito da estética, enquanto
sensibilidade, suscetibilidade, sentido compartilhado: são representação,
festa, ritual, brincadeira, espetáculo, jogo e cotidiano “estéticos”.
A dinâmica histórica e interativa de definição de fronteiras entre as artes
constrói-se, e tem-se construído, sobre as noções de espaço, poder,
tolerância e domínio, ou predomínio – hierárquico? – de uma arte sobre
outra.
Na arte há sempre pessoa em cena – no espaço/ tempo de referência.
Há aí, no mínimo, uma pessoa, ou, no ótimo econômico, duas pessoas.
Os poderes estéticos – dos sentidos e sensações – diferem do primeiro
para o segundo caso, dividindo as artes, ou formas de experiência e
expressão artísticas ou estéticas, em, pelo menos, dois grandes campos
ou territórios: o das artes visuais tradicionais, onde é possível existir em
cena apenas um fruidor da obra de arte, solitário; e o das artes cênicas,
teatrais, coreográficas e musicais, onde, habitualmente, o artista e o fruidor
podem – e devem – estar no mesmo tempo e espaço, simultâneos,
coetâneos e contíguos. Assim se poderia pensar em dois tipos de estética,
diferentes, as visuais e as cênicas.
As fronteiras e os territórios das linguagens
artísticas
*
Sentidos e sensações: os poderes da pessoa em cena
* Textos de referência para a participação em três mesas redondas, integradas e realizadas
em sequência, nos dias 1, 2 e 3 de julho de 2004, no II Encontro Nacional de Pesquisa
em Arte, promovido pela Fundação Municipal de Artes de Montenegro RS, publicados
In: REVISTA DA FUNDARTE, ano 4, v. 4, n. 7, 2004. p.05-09.
78
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
A pesquisa universitária em artes cênicas, no Brasil, só se institucionaliza
com o primeiro mestrado na área, em 1972, e o consequente doutorado,
em 1980, na USP.
Este processo amplia-se com novos mestrados na UNICAMP (1989) e
na UNIRIO (1991), o mestrado e doutorado da UFBA (1997), os
doutorados da UNIRIO (2001) e da UNICAMP (2004), além domestrado da UDESC (2003). O termo “artes cênicas” compreende
usualmente, neste contexto, só o teatro, embora na UFBA as artes cênicas
compreendam, além do teatro, também a dança.
Acreditamos que dança e teatro possam realizar, como na UFBA, nos
anos 90 do século XX – para a criação de um programa comum de
pós-graduação – uma aliança estratégica, viabilizando o desenvolvimento
conjunto – ou contíguo – da pesquisa, através da realização de projetos
e relatórios; da criação e manutenção de grupos de pesquisa teórico-
prática; da busca e captação de financiamentos; da institucionalização e
do intercâmbio entre as áreas e as instituições a elas afins.
A arte, como fenômeno revelador, constitutivo da vida, da vivência e da
convivência humanas, configura um universo de realidade e de sentido
cujas dimensões ultrapassam as de outros universos paralelos, a saber:
• da precisão, clareza e univocidade da ciência;
• do caráter teleológico, didático e ético da educação;
• da prática e teoria da política;
• das certezas dogmáticas da religião e da ideologia;
• da intencionalidade e do acaso dinâmico da mídia;
• do inefável e do não-racional dos sonhos e delírios;
e o próprio universo da coerência meridiana do sensato, do razoável e
do racional da vida cotidiana.
A arte pode eventualmente submeter-se a um desses universos, que
normalmente a constrangem a aí reduzir suas dimensões artísticas a outras
79
Armindo Bião
dimensões do imaginário e do simbólico – mais específicas dos discursos
e dos fenômenos da ciência, da educação, da política, da religião, da
mídia, da loucura, dos sonhos e do dia a dia – sem, contudo, nessas
outras dimensões diluir-se completamente.
As universidades firmaram sua tradição utilizando-se do termo ARTE
para designar a gramática, a retórica, as “belas” letras, o estilo e a
lógica. Nesse sentido, o termo ARTE não cobriria o direito, a
medicina, a teologia, nem mesmo compreenderia o que a tradição
clássica greco-latina associou à constelação semântica matemática-
geometria-astronomia-música.
A música singularizou-se por sua familiaridade com a matemática,
desenvolvendo uma tradição de “teoria musical” de vasta literatura de
notações e partituras. Sua vocação para a pesquisa universitária, que gerou,
entre outras disciplinas, a etnomusicologia, atinge os campos da educação,
da informática, do canto, da prática de instrumentos, da composição e
da regência, e da própria “teoria” específica, afirmando-se,
simultaneamente, nos terrenos “científico” e “artístico”.
O texto escrito (inicialmente manuscrito, depois impresso) sempre
interessou à Academia. Secundariamente, esta se interessou pela
performance, incluindo a dicção, a inflexão, o ritmo, a postura, o gestual
e a aparência pessoal. Mas foi em função do texto escrito, a matéria por
excelência das Faculdades de Artes, que se firmou o domínio universitário
da ARTE.
As “BELAS” LETRAS, mais que a MÚSICA, participaram da própria
fundação de uma tradição universitária. Não é de surpreender que sua
vocação para a pesquisa se firmasse de modo irresistível, desdobrando-
se em disciplinas específicas e sugerindo abordagens interdisciplinares,
principalmente quando se constata que nessa área – das letras – declinou-
se, em grande parte, no ambiente universitário, da criação, para investir-
se na crítica e na reflexão.
80
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
As “BELAS” ARTES, designando especificamente as artes plásticas, só
se instituíram como Academia no século XIX. Já as ARTES CÊNICAS,
só no século XX, através das “belas letras”, mas também através da
educação física e da pedagogia, penetraram os muros universitários
(BAYEN, 1970 e CARVALHO, 1989). Talvez a tardia, e recente,
incorporação acadêmica dessas artes da representação pictórica e
dramática seja um indicador da especificidade de suas vocações para a
pesquisa – in vivo e in vitro.
A palavra pesquisa pode ser considerada apenas enquanto substantivo,
seguido eventualmente dos adjetivos científica, artística, acadêmica etc.
No caso das artes cênicas: a pesquisa desenvolve-se, sempre, a cavalo
num barbante, sobre o fio da navalha, entre uma coisa e outra, entre a
ciência e a arte, entre a teoria e a prática, entre o erudito e o popular,
entre o tradicional e o contemporâneo, entre a realidade e o imaginário,
entre o conflito dramático, as peripécias e o deus ex machina, ou, dito de
outro modo, na “liminalidade”, na encruzilhada, no espaço e tempo
de Exu, de Dionísio, de Hermes, de Mercúrio.
Buscando-se no Dicionário do Teatro de Patrice Pavis, vai-se encontrar uma
série de entradas associadas ao campo das artes cênicas, ao teatro e à
dança, associados ou não à música e, também, às artes plásticas. O maior
número de entradas – 35 – refere-se, como seria de se esperar num
dicionário de teatro, ao próprio teatro, acompanhado de adjetivos ou de
expressões explicativas.
Assim se identificam nesse dicionário as seguintes entradas: Teatro:
alternativo, ambiental, antropológico, autobiográfico, burguês, da
crueldade, das mulheres, de agit-prop, de arena, de boulevard, de
câmara, de diretor, de guerrilha, de imagens, de massa, de
participação, de rua, de tese, dentro do teatro, didático,
documentário, equestre, espontâneo, experimental, gestual,
invisível, laboratório, materialista, mecânico, mínimo, musical,
pobre, popular, político, total.
81
Armindo Bião
Relacionando o teatro à dança aparece nesse dicionário de teatro uma
única entrada: Dança-Teatro. Já se referindo à música, e talvez
implicitamente à dança, aparecem quatro entradas: Música: de cena, (e
teatro), Interlúdio, Intermédio, Divertissement.
No limite das artes cênicas e das artes visuais são apenas três as entradas:
Performance, Happening e Instalação. Em todos esses casos, de artes
nas fronteiras das artes, prevalece, no entanto, a especificidade das artes
cênicas e não a das artes visuais, que subentende, de modo tradicional, a
possibilidade da fruição solitária de um único espectador para a obra de
arte, prevalecendo, na mais ampla maioria dos casos, o poder da pessoa
em cena, onde artista(s) e público encontram-se no mesmo tempo e
espaço, simultâneos, coetâneos e contíguos.
Do gosto e do gozo da cena e da disciplina positivista ao relativismo
compreensivo da prática acadêmica, do ensino, da extensão e da
pesquisa artística e científica, teórica e prática
De modo resumido, a trajetória de pesquisa do palestrante ancora-se em
sua própria história de vida e autobiografia, uma trajetória que se inicia
no Agreste (onde se situa seu berço paterno, na cidade de Alagoinhas) e
no Recôncavo baianos (onde se situa seu berço materno, na cidade
Maragogipe), e enraíza-se no catolicismo popular, no espiritismo
kardecista ortodoxo e no positivismo militar brasileiro, de onde se
desenvolve o seu interesse:
1. pela história de sua cidade natal, a cidade da Bahia, por suas relações
intercontinentais, históricas, contemporâneas e futuras;
2. pelo cinema alemão, francês, italiano, norte-americano, japonês e
brasileiro, ao qual teve acesso na juventude, sobretudo através do
Cinema de Arte da Bahia, animado e orientado pelo crítico de cinema
e pesquisador Walter da Silveira;
82
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
3. pelo teatro musical, pela dança moderna, pelo espetáculo de rua,
que conheceu através do cinema comercial e de arte, das vivências
adolescentes pelas ruas da cidade da Bahia, no Instituto Cultural Brasil-
Alemanha, na Universidade Federal da Bahia e pela televisão;
4. pela política estudantil, de 1966 a 1968, quando ingressa como aluno
regular de graduação na UFBA, até 1969, quando abandona
momentaneamente os estudos formais, pela sociedade alternativa,
daí até 1976, passando por viagem de carona na Europa e breve
exílio em Londres, em 1970;
5. pelo turismo e pela publicação de periódicos de artes e serviços, de
1972 a 1981;
6. por intensa prática de ator e iniciação à direçãoteatral e à dança,
sobretudo de 1967 a 1997;
7. pela licenciatura em filosofia, pelo ensino de filosofia e de história da
dança, de 1968 a 1981;
8. pelo estudo teórico e prático (iniciação à pesquisa e mestrado) na
área da interpretação teatral em universidade norte-americana, de
1981 a 1983;
9. pelo ensino, extensão, pesquisa em oralidade e dramas, e pelo
doutorado em antropologia na Sorbonne, de 1984 a 1990;
10. pela gestão pública, desde 1991, e pela criação da etnocenologia,
desde 1995.
O cordel da vida e o teatro
O cordel é o fio, o cordão, o eco do coração.
E o coração é o emblema mesmo da vida e pode sê-lo também da
cordialidade. Pois é este cordel, numa perspectiva absolutamente pessoal,
simultaneamente interativa e “trajetiva” (trajective), entre o sujeito e o objeto,
que me serve de cavalo para chegar até as artes do espetáculo.
83
Armindo Bião
Nasci em Salvador, de um homem do Agreste, do Pedrão de Irará, da
Fazenda Desterro, e de uma mulher do Recôncavo, do Iguape do
Paraguaçú, de Maragogipe, Bahia.
Na infância vivi em Roma, um bairro então de imigração recente, na
península de Itapagipe, e visitei, com frequência, minhas avós, ambas
viúvas e vivendo no interior do Estado. A materna, Evangelina, em
Maragogipe, no verão. A paterna, e madrinha, Jesuína, em Alagoinhas,
no inverno, no entorno das festas de Santo Antonio. Pois foi na sala de
convívio da casa de Vó Dindinha que conheci – deslumbrado – os
almanaques e folhetos de feira. E foi no alpendre do seu sítio, ainda nos
anos 50, que vi e ouvi um tio paterno folgar com seu trio nordestino. 
Estes objetos e sujeitos pareciam acenar-me com um mundo maravilhoso,
do qual eu tinha certeza participaria um dia. Para o aluno, de uma escola
particular católica – a Nossa Senhora da Guia, no bairro da Boa Viagem
– e de acordeom, no bairro vizinho do Mont Serrat, mais afeto ao
mundo feminino da casa, bem na tradição moçárabe, aquele mundo,
contido no impresso, transformava-o em gente no mundo masculino
da varanda e da rua e mostrava-se misterioso e estimulante. As lapinhas,
fotos, quadros religiosos e folhetos, de Alagoinhas, transformavam-se
então, com a música e a poesia, em cenas vivas, que só depois eu
relacionaria com os presépios e quadros vivos dos dramas escolares
católicos, da matriz maragogipana da família.
 
As diferentes culturas, tradições esotéricas, conselhos úteis para a lavoura
e a pesca, trechos de grandes autores e calendários, dos almanaques,
articulavam-se com as histórias maravilhosas dos folhetos, na cena aberta
de minha imaginação. Aí eu me via chefe de trem, navegador, militar,
artista da cena, diplomata...
Na cena mais fechada do drama da vida eu vivia o paradoxo de um
núcleo familiar espírita ortodoxo positivista, inscrito num ambiente familiar
mais largo e comunitário, barroco. O ingresso na adolescência, dos 10
aos 15 anos, corresponde ao contato cotidiano com o mundo masculino
84
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
do Colégio Militar de Salvador (primeiro em Pitangueiras, depois na
Pituba), com o mundo da rua, do ônibus e do Elevador Lacerda, no
qual eu reencontrei o mistério do espetáculo da poesia e da cena.
Foi quando e onde presenciei, contar, cantar e vender folhetos, aquela
pessoa de chapéu coco que se parecia com o Carlitos, que eu já conhecia
de um cinema improvisado na casa de um tio materno no bairro de
Roma. A pessoa era Ele, o Tal, Cuíca de Santo Amaro. O cinema, familiar
e de vizinhança, era a escada e a área de circulação entre a fábrica de velas
Nova Aurora, de meu tio, no andar térreo, e a residência de sua família,
no andar superior.
A alternativa até então fora o presépio vivo, o casamento na roça e o
teatro espírita. Mas, a partir de 1965, com o conhecimento do Cinema de
Arte da Bahia, do Instituto Cultural Brasil-Alemanha, do Instituto de Cultura
Hispânica, da Aliança Francesa, do Teatro Vila Velha, dos espetáculos na
Escola de Teatro e concertos na Reitoria da UFBA, as alternativas
multiplicaram-se e o maravilhoso fez-se cena real e verdadeira. De fato,
em 1966, já aluno do Colégio Estadual da Bahia – o renomado Central –
e ator do Grupo Amador de Teatro Estudantil da Bahia, GATEB,
testemunhei encantado o “Lançamento do Teatro de Cordel”, na expressão
de João Augusto Azevedo, então diretor do Vila Velha e do Teatro dos
Novos, com quem eu trabalharia entre 1967 e 1979 em pelo menos quatro
espetáculos e em outros tantos eventos artístico-político-culturais.
Entre 1978 e 1979, tive a enorme satisfação de fazer João Grilo na
montagem de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, dirigida por
Maurice Vaneau, então diretor do Teatro Castro Alves, e aceitei o desafio
de ser diretor e protagonista de uma encenação do folheto As Proezas de
João Grilo, de João Martins Athayde, apresentada em refeitórios de fábricas
do Centro Industrial de Aratu, com patrocínio da Fundação Cultural do
Estado, e, com produção independente, em escolas e praças públicas de
Salvador e Recôncavo. As boas críticas ao espetáculo do TCA, e a
receptividade a minha primeira experiência como diretor teatral
asseguraram-me de que o bom caminho começara a ser trilhado,
fortalecendo, assim, o cordel de minha vida.
 
85
Armindo Bião
Desde os anos 90, passei a desenvolver pesquisas de caráter histórico e
de encenação, com jovens estudantes de teatro, na Universidade Federal
da Bahia, tratando com as possibilidades épicas (narrativas) e dramáticas
(de ação) do cordel. Deste trabalho resultaram as encenações: Isto é bom!,
em 2001 (no Teatro do SESI) e Isto é bom demais! em 2002, 2003 e 2004
(na Sala 5 da Escola de Teatro, no Teatro do SESI, no Cine-Teatro Boa
Vista, na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, na Praça Pedro Arcanjo,
no Pelourinho, na Bienal do Livro e em salas de espetáculos em Camaçari,
Dias Dávila, Ilhéus, Itabuna, Vitória da Conquista, Jequié e Alagoinhas).
É também resultado desta história a publicação de 33 folhetos e a gravação
de um CD do cordelista santo-amarense Antônio Vieira.
O que se passou com a ópera barroca e com a dança sob o nazismo,
com as artes na Bahia nos anos 50, o que se passou em Nova York
nos anos 60, do século XX, e na Bahia desde então
No início da tradição ocidental na Grécia clássica, como em outros
momentos fundadores da experiência e da expressão estética organizada,
nas mais diversas culturas, as fronteiras entre as artes inexistiam. Para só
posteriormente serem criadas e, ainda, mais posteriormente, rompidas,
motivadas por uma espécie de nostalgia das origens fundadoras, como
ocorreria de maneira espetacular no Ocidente. De fato, foi assim que, na
Europa ocidental, a partir do Renascimento, buscou-se o teatro total,
com nostalgia da Grécia antiga, da teoria e do teatro fundadores, filhos
da supervalorização do sentido da visão, da ação e espaço organizados
para o olhar e do olhar consciente e reflexivo para todas as coisas, do
sujeito para o objeto.
Daí viria a criação barroca da ópera, com sua repetida derrota das
mulheres e ênfase em personagens liminares, parentes próximos dos – e
das – personagens de encruzilhada, arquétipos dos exus da tradição iorubá
e dos bobos das cortes, dos palhaços dos circos, dos xamãs dos rituais,
dos travestis, dos judeus do humor “negro”, de Woody Allen, por
exemplo, dos proibidos de representar – os judeus – que marcariam a
codificação da dança (Thoinot Arbeau), a profissionalização do teatro
na Broadway e o sucesso do cinema norte-americano, por exemplo.
86
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Também daí viria da ópera – que rompeu as fronteiras da música, das
artes cênicas e das artes plásticas – à arte como profissão para além das
questões ideológicas e das futuras vanguardas intelectuais. Shakespeare
foi bem-sucedido artista ou empresário? Chaplin quis ganhar a vida
quando substituiu, ainda criança, sua mãe – judia – alcoolizada, que não
conseguia, em determinada noite, fazer seu número de variedadesno
cabaré em que costumeiramente se apresentava e ganhava dinheiro para
comer, ou quis ser o gênio do cinema?
Que têm em comum o nazismo, o naturismo, o vegetarianismo, o
antitabagismo, a busca coreográfica e filosófica do movimento
espontâneo e orgânico, da dança coral, da tradição popular local e nacional,
da arte de massa, do poder pedagógico, criativo e terapêutico da dança
e do esporte com Rudolf Van Laban e Mary Wigman, a arte total e a
arte totalitária, a construção e o rompimento de – novas – fronteiras,
Monte Verita e a Suíça neutra, a Theatertanz ou “dança absoluta”, enquanto
arte primeira e a Theatertanz – apenas uma entre muitas outras das artes
cênicas?
Que têm em comum a vanguarda nova-iorquina do início dos anos 60,
com a busca do corpo efervescente, da renovação das artes e do
rompimento das velhas e novas fronteiras – do oeste continental da
América do Norte, das raças, das classes, das leis, que tem tudo isso a ver
com os judeus e os negros, identificados através da Bíblia e da música
religiosa, a Broadway e o off-Broadway, Holywood e o cinema
alternativo?
Talvez tudo isso tenha a ver com a falta de fronteiras das baías, acidentes
geográficos femininos e sempre abertos, como a Baía e a Bahia de Todos-
os-Santos, abertas ao ecumenismo, à tolerância, ao humor judeu, ao inferno
dos negros, ao purgatório dos brancos, ao paraíso – poético – dos
mulatos, à migração de influências culturais, artísticas e tecnológicas
variadas, que costumam atingir todas as cidades portuárias.
Talvez tudo isso tenha a ver com os estereótipos do humor baiano, de
sua musicalidade, negritude, mestiçagem e despotismo esclarecido, que
87
Armindo Bião
gerariam as escolas de artes na Universidade da Bahia, nos anos 50, quando
a “boa terra” da primeira capital do Brasil voltava a ver movimentado e
animado o seu antes próspero, decadente e promissor mercado, que
então iniciava o que passaria a ser apelidado de “Renascimento baiano”,
abrigando novas – e velhas – tecnologias, velhas como as dos antigos –
e paradoxais? – mestiços negreiros, ampliando importação e exportação,
artesanato e indústria cultural, qualidade de vida, renda e emprego, na
encruzilhada do turismo e da cultura.
Encruzilhada é onde se rompem – ou encontram-se – as fronteiras? O
certo é que as encruzilhadas são o lugar, por excelência, de Exu e de
Dionísio.
Referências
BANES, Sally. Greenwich Village 1963: avant-garde, performance e o
corpo efervescente. Tradução de: M. Gama. Rio de Janeiro: Rocco,
1999. 405 p.
BIÃO, Armindo et al. (Orgs.). Temas em Contemporaneidade,
Imaginário e Teatralidade. São Paulo: Annablume, 2000. 364p.
BIÃO, Armindo ; GREINER, Christine, (Orgs.). Etnocenologia: Textos
Selecionados. São Paulo: Annablume, 1998, 194 p.
BIÃO, Armindo. “A especificidade da pesquisa em artes cênicas no
ambiente universitário brasileiro”. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE
PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 1., 1999.
São Paulo. Anais... Salvador: ABRACE, 2000. p. 254-257.
CLÉMENT, Catherine. L’opéra ou la défaite des femmes. Paris:
Grasset & Fasquelle, 1979. 359 p.
CORVIN, Michel. Dictionnaire encyclopédique du Théâtre. Paris:
Larousse-Bordas, 1998. 1986 p.
88
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
FERRAROTTI, Franco. Histoire et Histoires de Vie. Paris: Librairie
des Meridiens, 1983. 175 p.
GUILBERT, Laure. Danser avec le III Reich: Les danseurs modernes
sous le nazisme. Bruxelles: Éditions Complexe, 2000. 358 p.
HAUSER, Arnoldo. Historia social da Arte e da Literatura. São Paulo:
Martins Fontes, 2000. 1034 p.
HELBO, Andre; JOHANSEN, J. Dines; PAVIS, Patrice; UBERSFELD,
Anne. Thèâtre Modes d’approche. Bruxelles: Labor 1987. 270 p.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. 512 p.
RISÉRIO, Antonio. Avant-garde na Bahia. São Paulo: Instituto Lina
Bo e P.M. Bardi, 1995. 261 p.
SCHECHNER, Richard. Performance Studies an introduction. New
York: Routledge, 2002. 288 p.
89
Armindo Bião
Aspectos epistemológicos e metodológicos da
etnocenologia: por uma cenologia geral
*
A partir de uma visão histórica e panorâmica sobre os estudos relativos
ao teatro e à dança, das proposições dos performance studies, da “antropologia
teatral”, e da “etnocenologia”, pretende-se definir um conjunto de
parâmetros epistemológicos e metodológicos que contribuam para a
instituição de uma nova disciplina científica, que poderia ser denominada
de cenologia. Os estudos da cena, aí inclusas as diversas formas
espetaculares envolvendo o teatro, a dança e a música, serviriam para
situar, de forma estrutural e coordenada, as características do treinamento
dos executantes (artistas ou especialistas da cena), de seus modos específicos
de apresentação pública e das variantes de fruição e recepção desses
fenômenos. Por outro lado, a cenologia contribuiria para a discussão
dos valores éticos, estéticos e políticos associados às múltiplas formas
cênicas espetaculares, bem como para a afirmação do caráter de
intencionalidade e de variação dos estados de consciência, tanto individuais
quanto coletivos, necessários para a identificação dos fenômenos da cena.
Esta proposição encontra-se registrada no manifesto lançado em 1995,
quando da fundação de um Centro Internacional de Etnocenologia em
Paris
1
. O histórico específico e panorâmico das relações entre o teatro, a
pedagogia, a psicologia, a psicanálise, a antropologia, a filosofia e a
sociologia pode ser percorrido através de obras pilares que contribuíram
para a construção desses campos do conhecimento, particularmente
através daquelas obras dedicadas aos jesuítas, aos jogos e experiências
*
Publicado In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
EM ARTES CÊNICAS, 1., 1999, São Paulo. Anais... Salvador: Memória ABRACE,
2000.
1
“ETHNOSCÉNOLOGIE, manifeste”. In: Théâtre Public 123, Paris, p. 46-48
maio/jun. 1995. Ver também trecho do manifesto publicado em português. In:
PERFORMÁTICOS, Performance e Sociedade. Brasília: UNB, 1996.
90
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
dramáticas de teatro-educação, ao psicodrama, ao sociodrama, às teorias
freudianas, à antropologia da performance (aos performance studies e à
antropologia teatral), ao interacionismo simbólico, à fenomenologia
pragmática e à sociologia do cotidiano. É com base nessa história e nesse
escopo de conhecimento que se pode pensar em conjunto de parâmetros
que permita a busca e a plena realização dessa proposta de constituição
de uma nova disciplina, que seria a cenologia.
Em quatro anos de encontros, colóquios, experiências didáticas e de
pesquisa, e publicações, notadamente em francês, português e espanhol,
o que seria um Centro Internacional de Etnocenologia, com sede na
Maison des Cultures du Monde, em Paris, tem-se revelado mais uma
rede internacional de etnocenologia, sem um centro, mas com nós
– de rede – identificáveis de forma clara, sobretudo na França e no
Brasil. Dois desses nós de rede encontram-se em processo de
formalização de seus vínculos institucionais, através da assinatura de um
convênio: a Universidade de Paris 8 (em Saint Denis) – através de seu
Departamento de Estudos Teatrais e Coreográficos, da Escola Doutoral
de Artes do Espetáculo e do Laboratório Interdisciplinar sobre as Práticas
e Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados – e a
Universidade Federal da Bahia, através de sua Escola de Teatro, do
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e do Grupo
Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade,
Imaginário e Teatralidade (GIPE-CIT).
Essa rede internacional de etnocenologia é constituída de modo flexível e
ágil, em torno de relações institucionais menos formalizadas que as
estabelecidas entre Paris 8 e a UFBA, envolvendo núcleos de pesquisa e
pesquisadores universitários, simultaneamente atuantes nos domínios
científicos e artístico. É o que ocorre nas Universidades Federal da Santa
Maria, na Universidade Estadual de Campinas, na Universidadede Brasília,
na Universidade de Paris 7 (em Jussieu), na Universidade de Bordeaux,
na International School of Theatre Anthropology, na Universidade da Califórnia
(em Berkeley), na Universidade de North Carolina, na Universidade
Autônoma do México, no Instituto Cultural de Modelos (em Cuernavaca)
91
Armindo Bião
e na Universidade Católica do Uruguai. Uma parte dessa rede,
relacionando artistas e pesquisadores da Maison des Cultures du Monde e
de universidades do Marrocos, da Tunísia e do Líbano, passou a ter como
referência, desde o colóquio realizado em 1997, a proposição de uma
etnoteatrologia, próxima, porém distinta da etnocenologia, definida
em ensaios e comunicações nos colóquios de Paris (1995), Cuernavaca
(1996) e Salvador (1997). Este fato inviabilizou a realização de um quarto
colóquio previsto em Asilah, no Marrocos, 1998. As perspectivas agora
são da realização de um novo colóquio em Paris, no ano 2000, e do
lançamento simultâneo do periódico Cahiers Internacionaux d’(Ethno) scénologie.
Esse breve histórico da etnocenologia revela seu atual estado pré-
paradgmático. Um momento recente definível por datas (1995-1999),
de confusão conceitual, de conflitos intelectuais, de realização de eventos
internacionais e publicações
2
, de busca da constituição de um paradigma
3
.
A própria ideia de que o prefixo etno, para referir-se à cultura, grupo
social, seria uma utilização estratégica da compreensão da multiculturalidade
e da transculturação, como formas de combate ao etnocentrismo,
atribuindo um caráter temporário à etnocenologia, que seria substituída
pela cenologia, o que se revela no título do periódico acima anunciado,
contribui para essa sensação de vertigem e incerteza, típica dos momentos
da história das ciências definidos por Thomas Kuhn como pré-
paradigmáticos
4
. Por outro lado, considerando-se a história das ciências
no século XX estudada por Eric Hobsbawn, vale assinalar a coexistência
simultânea de paradigmas contraditórios desde os anos 30, o que foi
2
Ver: BIÃO, Armindo; GREINER, Christine (Orgs.). Etnocenologia, textos
selecionados. São Paulo: Annablume, 1998. PRADIER, Jean-Marie. La scène du
et la fabrique du corps: Ethoscénologie du spetacle vivant en Occident ( Ve. Siècle
av. J.-C. – XVIIIe. Siècle). Talence: Presses Universitaires de Bordeaux, 1997.
DUVIGNAUD, Jean; KHAZNADAR, Chérif. (Org.). La scène et terre: questions
d’ethnoscénologie. Paris: Maison des Cultures du Monde, 1996.
3
Sobre esta questão ver SANTOS, Adailton. “O estado pré-paradigmático da
etnocenologia”. In: Cadernos do GIPE-CIT 1. Salvador: UFBA; PPGAC; GIPE-
CIT, 1998.
4
KUHN, Thomas. The structure of scientific revolutions. Chicago: The University
of Chicago Press, 1962.
92
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
resumido por Niels Bohr (contraria sunt complementa) e utilizado como lema
do Odin Teatret de Eugenio Barba
5
.
O desenvolvimento de um Projeto Integrado de Pesquisa, no período
de agosto de 1997 a julho de 1999, com apoio institucional do CNPq –
e a concessão de cinco bolsas de pesquisa, duas de produtividade para
professores, doutores, duas de aperfeiçoamento para recém-graduados
e uma de iniciação científica – permitiu a organização e análise de dados
relativos à produção de 12 grupos de artes cênicas, atuantes na cidade de
Salvador, bem como a definição do seguinte conjunto de parâmetros
epistemológicos e metodológicos.
Exprimindo os conflitos de fronteiras epistemológicas entre natureza e
cultura e entre as ciências contemporâneas entre si, a perspectiva
transdisciplinar da etnocenologia reúne os domínios das ciências humanas
clássicas, das ciências definidas, mais contemporaneamente, como ciências
da vida e ciências cognitivas e, através dessas, das tradicionais ciências
naturais. Como ciências pilares para o desenvolvimento de nossa
proposição, reunimos dois conjuntos sob as denominações ciências do
homem e ciências da vida. O primeiro congrega a antropologia, a
sociologia, a psicologia, a história, a etnomusicologia, a etnolinguística e
as interfaces científicas dedicadas ao estudo do folclore. O segundo reúne
a ecologia, a anatomia, a biologia, a neurobiologia da aprendizagem, a
bioquímica e a biofísica.
O horizonte metodológico pode ser circunscrito pela fenomenologia
pragmática, pela etnometodologia, pelo interacionismo simbólico, pela
antropologia do imaginário, pela história das mentalidades, pela sociologia
do cotidiano, pela proxêmica (proxemics), e pela pedagogia centrada na pessoa.
Como conceitos básicos, aqui entendidos mais como “noções moles”
que como “conceitos duros”
6
, identificamos cinco pilares
5
HBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia. das Letras,
1996.
8
Ver a esse propósito os títulos de suas obras aqui citadas.
93
Armindo Bião
epistemológicos. O primeiro refere-se aos estados de consciência
(alterados, modificados ou não) e aos estados de corpo (técnicas cotidianas
e extracotidianas). O segundo remete às categorias da teatralidade (quando
o sujeito age e se comporta para a alteridade, com uma consciência mais
ou menos clara mais ou menos confusa de organizar-se para o olhar do
outro) e da espetacularidade (quando o sujeito toma consciência clara,
reflexiva, do olhar do outro e de seu próprio olhar alertar para apreciar a
alteridade). O terceiro remete ao debate antropológico sobre os contatos
culturais, sob a forma do conceito de transculturação
7
, como o que
melhor exprime a criação de novos fenômenos culturais informados por
tradições diferentes com as quais guardam formas de semelhanças. O quarto
pilar corresponde à ideia de matrizes culturais, compreendida em termos
linguísticos (matrizes da oralidade, da escrita fonética e de outras formas de
escrita), religiosos (monoteísmo, politeísmo, cristianismo, judaísmo, islamismo,
catolicismo, protestantismo, etc.), estéticos (formas de sensibilidade e de
cultivo das artes), técnicos e temáticos.
O último pilar epistemológico é a definição de “práticas e
comportamento humanos espetaculares organizados – PCHEO”,
o mais importante do ponto de vista ontológico e metodológico, e por
isso o mais complexo. Antes de detalhá-lo, vale reafirmar que os pares de
conceitos de alteridade/ identidade, de multiculturalismo/ dinâmica
cultural, de tradição/ contemporaneidade e de performance/
fenômenos espetaculares compõem um campo epistemológico auxiliar
de grande importância.
Os PCHEO podem ser agrupados em três subconjuntos, que
tentaremos aqui definir. O conjunto mais fácil de ser caracterizado seria o
conjunto das artes do espetáculo, compreendendo o teatro, a dança, a
6
MAFFESOLI, Michel. O Conhecimento Comum. Tradução: A. R. TRINTA. São
Paulo: Brasiliense, 1988.
7
ORTIZ, Fernando. El contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Barcelona:
Ariel, 1973. Ver também: MANDRESSI, Rafael. Transculturation et spectacles
vivants en Uruguay. 1870-1930. Tese (Doutorado) – Universidade de Paris 8,
Paris
94
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
ópera, o circo e outras artes mistas e correlatas, no qual usualmente se
distinguem artistas e espectadores. A prática espetacular aí é substantiva.
Um segundo conjunto poderia ser definido pela expressão ritos
espetaculares englobando: de um lado, rituais religiosos, festas, cerimônias
periódicas, cíclicas e sazonais, nos quais os participantes tendem a se
confundir entre si; e, de outro lado, eventos políticos e competições
esportivas, nos quais a distinção entre participantes e espectadores parece
mais evidente. Nessas últimas, os espectadores participam como
torcedores, compondo ativamente e evidentemente o espetáculo, como
ocorre também naturalmente em muitos eventos políticos, religiosos,
cerimônias e festas. Mas há, nesse segundo subconjunto como um todo,
sempre, uma caracterização além da simples caracterização de espectador
para a pessoa que desempenha simultaneamente o papel de torcedor,
eleitor, adepto,noivo, ou outro, que soma o caráter ritual, como
substantivo, ao caráter espetacular, como adjetivo.
O terceiro conjunto é o que apresenta maior grau de complexidade.
Tentamos defini-lo como as formas cotidianas que são repetidas
rotineiramente num mesmo espaço, com pessoas caracterizadas em papéis
sociais (educador/ educando, vendedor/ cliente, médico/ paciente,
sacerdote/ fiel, transportador/ transportado, esportista/ transeunte/
banhista, etc.), reconhecíveis socialmente por seus figurinos, adereços e
posturas corporais, por suas formas de expressão vocal e gestual,
reveladoras de estados de consciência e de corpo, simultaneamente de
teatralidade e espetacularidade, conforme definido acima. O caráter
espetacular deste subconjunto seria mais adverbial que substantivo, ou
mesmo adjetivo.
Assim, acreditamos contribuir para o debate teórico em torno da ideia
de uma cenologia geral, sem necessitarmos recorrer ao conceito de
espetáculos vivos, caros a alguns pesquisadores como Jean-Marie Pradier
e Rafael Mandressi
8
. Este conceito, que remete ao domínio das ciências
da vida, exclui as formas espetaculares veiculadas pelos mais variados
meios de comunicação. E nós acreditamos que justamente aí reside um
dos desafios à etnocenologia, ou à embrionária cenologia.
95
Armindo Bião
Etnocenologia, uma introdução
*
A proposição de uma nova disciplina científica revela a emergente
consolidação de pesquisas desenvolvidas por um grupo de estudiosos
mais ou menos articulado internacionalmente numa determinada área
do conhecimento.
Optando pelo termo etnocenologia, esta nova disciplina identifica-se
com a contemporânea construção de um paradigma.
1
 Aproximada, e
não apenas etimologicamente, da perspectiva clássica e matricial da
reflexão sobre a variabilidade humana no espaço e no tempo, denominada
de etnologia,
2
 em 1787, a etnocenologia inscreve-se na vertente das
etnociências e tem como objeto os comportamentos humanos
espetaculares organizados,
3
 o que compreende as artes do espetáculo,
principalmente o teatro e a dança, além de outras práticas espetaculares
não especificamente artísticas ou mesmo sequer “extracotidianas”.
À guisa de introdução ao estudo desta nova disciplina, apresentamos a
seguir algumas referências históricas, epistemológicas e bibliográficas.
*
Publicado In: GREINER, Christine; BIÃO, Armindo (Orgs.). Etnocenologia: textos
selecionados. São Paulo: Annablume, 1999. p. 15-21.
1
Sobre o conceito de paradigma como as descobertas universalmente reconhecidas
que, por um tempo, fornecem a uma comunidade de pesquisadores problemas-tipo e
soluções, ver: a fundamental obra de referência de KUHN, Thomas. The structure
of scientific revolutions. Chicago: The University of Chicago Press, 1962, com
uma segunda edição ampliada em 1970.
2
Ver sobre a construção científica e universitária da etnologia, a obra introdutória a
esta temática de POIRIER , Jean. Histoire de l’ethnologie. Paris: Coleção Que
sais-je?, 1969 (terceira edição em 1984) sob o número 1338.
3
De acordo com o manifesto divulgado durante o lançamento oficial desta proposição
em 1995, no Colóquio de Fundação do Centro Internacional de Etnocenologia, em
Paris, sob os auspícios da UNESCO, da Maison des Cultures du Monde e da Universidade
de Paris 8, do qual participaram pesquisadores e praticantes de dezenas de países de
todo o mundo.
96
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
O paradigma da alteridade e da multiculturalidade
É no ambiente intelectual romântico alemão, o mesmo que gerou a ciência
do folclore, a valorização das tradições populares e das especificidades
culturais que definiriam e identificariam cada nação, que se começa a
estruturar o ideal científico das etnociências. A etnopsicologia é
denominada por seus fundadores Lazarus e Steinthal Völkerpsychologie
em 1850.
4
 Sua história pode remontar ao grego da Antiguidade,
Heródoto, passando pelo Renascentista italiano, Vico, pelos fi1ósofos
franceses do Século das Luzes e pelo alemão inovador da filosofia e da
história da cultura, Herder.
A etnomusicologia foi estruturada como campo de conhecimento ao longo
dos anos 1880, sob a expressão musicologia comparada. Mas, só nos
anos 1950, apareceria o termo etnomusicologia, proposto pelo holandês,
Kunst, e motivo, em 1956, da criação de uma sociedade científica específica.
5
A etnolinguística desenvolveu-se dentro da mesma tradição, nos Estados
Unidos da América do Norte, no período que antecede e naquele que
sucede a segunda Grande Guerra. Do mesmo modo, a partir da Europa
e da América do Norte, a recente proposição da etnobotânica, da etno-
história e da etnopsiquiatria, ou ainda da etnoculinária e da etnomatemática,
revela a consolidação de um paradigma científico baseado no conceito
de alteridade e na afirmação do multiculturalismo.
Questionando os aspectos de hierarquização histórica e cultural das teorias
de extração evolucionista clássica em relação aos diversos povos e raças,
este paradigma pretende evacuar os preconceitos etnocêntricos e
positivistas e discutir, quase sempre com medo e mesmo alguma paranoia
(em nossa pessoal e humilde opinião) os velocíssimos avanços
tecnológicos nos campos da comunicação. De acordo com sua própria
história, as etnociências têm a identidade como conceito pilar articulado
ao conceito de alteridade.
4
Ver POIRIER, op. Cit., p. 48.
5
THE NEW Encyclopaedia Britannica. 15. ed. Chicago:Micropaedia, 1990. v. 4, p. 583.
97
Armindo Bião
A questão epistemológica
Também neste contexto teórico-histórico, vale considerar a contribuição
de pesquisadores norte-americanos, como Garfinkel, que propõe já nos
fins dos anos 1950 a etnometodologia como perspectiva metodo1ógica
e não como uma disciplina.
6
 De fato, o que as etnociências podem ter
como perspectiva comum é a busca da compreensão dos discursos dos
diversos agrupamentos sociais sobre sua própria vida coletiva, inclusive
e, talvez, principalmente, suas práticas corporais.
Assumindo esta proposta, a psicologia, a musicologia, a linguística, a botânica,
a história, além de outras disciplinas científicas, utilizando técnicas de pesquisa
etnometodológicas, poderiam se beneficiar tanto do ponto de vista de sua
consolidação específica quanto de sua articulação interdisciplinar. Na
verdade, o acréscimo do prefixo etno a essas disciplinas serviu para
explicitar uma perspectiva epistemológica e metodológica.
No caso da etnocenologia, de modo singular, a disciplina já aparece
acompanhada do prefixo etno.
7
 Com apenas três anos de debate
6
A esse propósito ver: GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnomethodology,
Englewood Clifs. New Jersey: Prentice Hall, 1967.
7
Este prefixo, originalmente designando raça, funciona conceitualmente, hoje, como
referência à diversidade cultural da humanidade, à variedade de povos e línguas que
caracteriza a raça humana. É bem verdade que teatrologia, num sentido estrito de estudos
do teatro, não é um termo inédito, e que etnoteatrologia, num sentido próximo ao de
etnocenologia, já aparece na obra do pesquisador baiano Nelson de Araújo (falecido
recentemente, cuja obra é objeto parcial de estudos do mestrando em artes cênicas da
Universidade Federal da Bahia, Adailton Santos) e na comunicação de Chérif Khaznadar,
incluída neste livro. Mas a ideia de uma cenologia geral só aparece no manifesto de
lançamento da etnocenologia. Vale lembrar a ocorrência do termo cenologia para designar
cenografia, a criação e construção de cenários, a organização do espaço cênico para o
espetáculo. Na verdade, a origem grega da palavra cena remete ao corpo do artista cênico
e ao espaço no qual ele atua, mas a cenologia não pode ser reduzida à cenografia nem
poderá excluir uma ou outra dessas duas vertentes semânticas (corpo e espaço cênicos) de
seu corpus de pesquisa. Embora a ideia de corpo, desaparecida do sentido usual atribuído
ao termo cena, seja o que prevalece hoje na proposição da etnocenologia.98
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
epistemológico, a partir da criação de um Centro Internacional de
Etnocenologia em Paris, que tende a se afirmar mais como Rede
Internacional do que como um Centro, a nova disciplina tem motivado
complexos e sutis debates sobre a extensão de seu objeto (espetáculos,
rituais, cerimônias e interações sociais em geral) e sobre a sua própria
denominação. Indicador dessas questões é o processo, já em curso, de
preparação de lançamento dos Cahiers lnternationaux d’ (Ethno)
scénologie, com o prefixo etno assim mesmo entre parênteses. A ideia
é afirmar o caráter temporário da denominação etnocenologia, válida,
segundo nós, responsáveis por esse planejado periódico para lançamento
em 1999, ao lado de Jean-Marie Pradier e de outros pesquisadores,
enquanto perdurar a necessidade do combate ao etnocentrismo.
A ciência contemporânea (diferentemente da ciência moderna), interessada
em estudos sobre a humanidade, tem confundido as fronteiras entre
natureza e cultura, ciências sociais e biológicas. Do mesmo modo, o
conceito de identidade, que, segundo Maffesoli, é um instrumento eficaz
para a ciência moderna deveria ser substituído pela noção de identificação,
pela ciência contemporânea “pós-moderna”.
8
 Acreditamos que sua
sugestão possa ser útil à etnocenologia, porque os processos de
conhecimento e a estética da recepção, pesquisados pelas ciências cognitivas
e pelos humanistas contemporâneos, assim nos permitem pensar.
Identificações sucessivas, e não- identidade única e eterna, seriam de maior
utilidade heurística, atualmente.
No entanto, a lógica da indistinção – que parece querer se impor à lógica
moderna da distinção – deve ser tratada com humor e sem preconceitos.
Acreditamos que a arte, a religião, a política e o cotidiano possuem aspectos
8
8. Estas questões aparecem de modo recorrente em muitas das obras de Michel
Maffesoli. Ver, sobretudo MAFFESOLI, Michel. La connaissance ordinaire: précis
de sociologie compréhensive. Paris: Méridiens-Kliencksieck, 1985, publicado pela
Brasiliense em 1988. Traduzido por: A. R. TRINTA, com o título O Conhecimento
Comum.
99
Armindo Bião
espetaculares (inserindo-se assim no campo de estudos da etnocenologia),
mas não são áreas de conhecimento indistintas. O que as articula, em
sua distinção conceitual e funcional, é justamente uma relativa indistinção
corporal, comportamental, enquanto interação coletiva, necessariamente
incorporada nas pessoas participantes, ou o que se poderia denominar
de comportamentos espetaculares (mais ou menos) organizados e
objeto desta almejada cenologia geral, hoje denominada
temporariamente etnocenologia.
Este novo paradigma epistemológico e metodológico, que a
etnocenologia pretende expressar, tem como outros sinais reveladores
de sua emergência no domínio dos estudos sobre o teatro, a teatralidade,
o cotidiano e a “espetacularidade”, as também recentes proposições dos
Performance Studies por Schechner e Turner, da Antropologia Teatral
por Barba, da abordagem dramatúrgica da vida social por Goffman, da
sociologia da teatralização do cotidiano por Maffesoli, dos estudos sobre
as relações entre o teatro e o transe, fecundados por Leiris, da sociologia
do teatro de Duvignaud, das experiências transculturais dos espetáculos
e oficinas de Grotowski, Brook e Mnouchkine.
9
Referencial bibliográfico
Em três anos de produção bibliográfica, o referencial disponível é
reduzido a menos de uma dúzia de títulos. Estes livros e artigos publicados
na França e no Brasil são resultado do diálogo internacional estruturado
em torno dos três encontros de pesquisadores já realizados, em 1995, na
França, em 1996, no México e, em 1997, no Brasil. O presente livro
9
 Ver SCHECHNER, Richard. Performance Theory. Ed. rev., ampl. Routledge, 1988,
edição original de 1977 como Essays on Performance Theory, Drama Book
Specialists. Ver também PRADIER, J.-M. “Ethnoscénologie, manifeste”. In: Théâtre-
Public 123, maio-junho 1995, p. 46-48 e BIÃO, A. Théâtralité et spectacularité:
une aventure tribale contemporaine à Bahia. 1990. Tese (Doutorado em Artes Cênicas)
- Université René Descartes. Paris: Paris 5, 1990. Orientador: Michel Maffesoli.
100
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
reúne, a seguir, a maioria das comunicações deste último Colóquio,
acrescidas de algumas comunicações dos outros dois ainda não disponíveis
em publicações em língua portuguesa.
PRADIER, Jean-Marie. “Ethnoscénologie, manifeste”. Théâtre-Public
123, Paris, p. 46-8, maio/jun. 1995. (Manifesto lançado para o Colóquio
de Fundação da Etnocenologia, publicado parcialmente em português
em Performáticos, Performance e Sociedade, Brasília, publicado pelo
grupo TRANSE - Núcleo de Estudos Transdiscipinares sobre a
Performance da UNB, em 1996).
DUVIGNAUD, Jean; KHAZNADAR, C., (Orgs). La scène et la terre:
questions d’ ethnoscénologie. Paris: Maison des Cultures du Monde, 1996.
(Número especial da série Internationale de l’Imaginaire, n.5, reunindo
as comunicações apresentadas no Colloque de Fondation du Centre
International d’Ethnoscénologie, realizado em Paris em 1995).
PRADIER, Jean-Marie. La scène et la fabrique des corps:
ethnoscénologie du spectacle vivant en Occident (Ve. Siècle av. J.–C. -
XVIIIe. Siècle). Talence: Presses Universitaires de Bordeaux, 1997. (Análise
refinada das relações entre os espetáculos e as ciências na história
ocidental).
PRADIER, Jean-Marie. “Ethnoscénologie: la chair de l’esprit”. Théârtre
1, Paris, Universidade de Paris 8, p. 17-37, 1998. (Desenvolvimento das
proposições anunciadas no manifesto, também disponível em português
In: REPERTÓRIO TEATRO & DANÇA 1, Salvador, UFBA; PPGAC;
GIPE-CIT, p. 9-22,1998.).
BIÃO, Armindo. “Estética Performática e Cotidiano”. In: ______ .
Performáticos, Performance e Sociedade. Brasília: UNB; TRANSE
1996. p. 12-20. (Transcrição de conferência de abertura de um evento de
caráter nacional realizado na UNB em dezembro de 1995, promovido
pela pelo Núcleo de Estudos Transdisciplinares sobre a Performance -
TRANSE, dedicado aos performance studies, no qual a etnocenologia
101
Armindo Bião
foi apresentada pela primeira vez a expressivo grupo de pesquisadores e
artistas cênicos brasileiros).
BIÃO, Armindo. “Etnocenologia e as Artes Contemporâneas do Corpo
na Bahia”. Revista de Antropologia 1, Recife, p. 31-81, 1997.
(Transcrição de conferência realizada em Ciclo de Estudos do Imaginário,
realizado na UFPE em maio de 1996, promovido pelo Núcleo de
Estudos Interdisciplinares sobre o Imaginário, dedicado à temática
“localidade afetiva”, inspirada em Michel Maffesoli, na qual o pesquisador
analisou o crescimento da indústria cultural na Bahia contemporânea,
baseado na valorização da tradição e da condição portuária de Salvador,
a partir de sua história de vida familiar).
BIÃO, Armindo. “Un seul état de grace: le théâtre et le candomblé de
Bahia”. Théârtre 1, Paris, p. 89-101. (Análise das interfaces entre a
teatralidade, a “espetacularidade” e os estados modificados de consciência,
a partir da releitura de autores de teatro e de estudos sociais que se
referiram a essa temática, articulada em torno dos cultos afro-brasileiros).
BIÃO, Armindo. COLLOQUE INTERNATIONAL
D’ETHNOSCÉNOLOGIE, 3., 1998, Paris. Anais... Paris. In:
NOUVELLES 64, Paris, UNESCO/ Institut International de Theatre,
Jan.-abr. 1998. p.16. (Notícia sobre o evento realizado na Bahia, em
setembro de 1997).
BIÃO, Armindo. “O Obsceno em Cena, ou o Tchan na Boquinha da
Garrafa”. Repertório 1, Salvador: UFBA/PPGAC/GIPE-CIT, p. 23-
61, 1998. (Versão em português de comunicação apresentada ao II
Colóquio Internacional de Etnocenologia, realizado em Cuernavaca,
Morelos, México, em 1996, que, ao lado do artigo de Pradier, citado
acima, e de mais dois outros, um sobre a dança no candomblé da Bahia
e outro sobre a teatralidade e “espetacularidade” de um culto de jurema
em Pernambuco, compõem a temática centraldeste novo periódico
acadêmico, vinculado ao GIPE-CIT e ao PPGAC/ UFBA, que abrigam
projetos de pesquisa em etnocenologia).
102
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Contatos com grupos de pesquisa
Para concluir esta introdução, relacionamos abaixo as coordenadas para
contato de grupos de pesquisa atuantes no domínio da etnocenologia e
campos afins:
GIPE-CIT - Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em
Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade, Coordenador: Armindo
Bião
Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia
Av. Araújo Pinho 292
40110-150 Salvador – BA, Brasil
Faxe 00 5571 2450714
e-mail: ppgac@ufba.br
Homepage <http://www.ufba.br/instituições/ufba/escolas/teatro>.
Maison des Cultures du Monde, Coordenadores: Jean Duvignaud e
Chérif Khaznadar
101, Boulevard Raspail, 75006, Paris, França.
GRACE/ CEAQ, grupo de pesquisa sobre antropologia do corpo,
Coordenador Olivier Sirost.
e-mail: grace@ceaq.unev-paris5.fr
Centro de estudos sobre o cotidiano (CEAQ - Paris 5), Coordenadores:
Michel Maffessoli e Pierre le Queau
e-mail: ceaq@univ-paris5.fr
CIPE/ Uruguai - Centro de Investigación en Prácticas Espetaculares,
Coordenadores: Lucia Calamaro e Rafael Mandressi
Horacio Quiroga 6188
11500 Montevideo, Uruguay
Fax 00 598 2 958729
103
Armindo Bião
Instituto de Cultura de Morelos, Coordenadora: Mercedes Iturbe
Argüelles
Jardín Borda
Av. Morelos 103 - Centro
C. P. 6200 Cuernavaca, Morelos, México
Faxe 005273 186372
TRANSE/ UNB Núcleo de Estudos Transdiciplinares sobre a
Performance, Coordenador: João Gabriel Teixeira.
e.mail: limacruz@guarany.cpd.unb.br
NIEI/ UFPE Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Imaginário,
Coordenadora: Danielle Rocha Pitta.
e-mail: fougeray@npd.ufpe.br
105
Armindo Bião
Os cultos afro-brasileiros, inclusive o Candomblé da Bahia, têm sido
objeto de importantes pesquisas. Consultando essa bibliografia, e
interessado na construção epistemológica de uma etnociência dos
fenômenos espetaculares, decidi reunir algumas notas comparativas,
concernentes ao teatro e aos rituais de possessão. Gostaria, assim, de
contribuir para o projeto proposto por Jerry Grotowski, ao longo de
suas aulas magistrais para o Collège de France, que criou especialmente
para ele em 1997 a cadeira de Antropologia Teatral: o de investigar a
experiência mística e a teatral em torno de suas performances públicas.
Grotowski é um dos homens de teatro que mais tem atuado na construção
dessa área interdisciplinar de conhecimento teórico e prático. Seu interesse
pelos cultos afro-americanos tem se mantido e ampliado ao longo dos
últimos oito anos.
Jean Duvignaud (1973, p.13), fazendo referência aos “múltiplos aspectos
da prática social do teatro”, que, segundo ele, permitem “estabelecer
este laço tão procurado entre a estética e a vida social”, qualifica o
Candomblé da Bahia como forma “de teatralização por assim dizer
espontânea”. A propósito da festa, e igualmente do Candomblé da Bahia,
ele afirma: “O transe de possessão é um espetáculo... aqui atuar e ser, na
Um mesmo estado de graça
o teatro e o candomblé da Bahia
*
*
Texto escrito originalmente em francês para o periódico do Département Théâtre, da
Université Paris 8 (Théartre, Paris, n. 1, p. 89-101, 1998), traduzido por Isa Trigo
(Mestranda em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, UFBA) e Ana Luiza
Friedmann (Bolsista de Aperfeiçoamento CNPq na Escola de Teatro da UFBA), com
revisão final do autor, e publicado in: Urdimento: revista de estudos sobre teatro na
América Latina, Florianópolis, n 2,: p. 3-12, 1998.
106
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
festa desencadeada pelo transe, literalmente se confundem”
(DUVIGNAUD, 1965, p.246).
1
Michel Simon, em seus comentários sobre o teatro brasileiro, incluiu as
cerimônias do Candomblé e outras dos cultos afro-brasileiros num tipo
de “teatro popular do Brasil”.
2
Roger Bastide, para quem “os cultos de possessão englobam uma
enorme variedade de tipos”, fala de “transes espontâneos, criativos...
de mitos, animadores de espetáculos reatados e renovados, como
aqueles dos zâr, estudados por Leiris”. Segundo Bastide, um dos
maiores especialistas em cultos afro-brasileiros, as funções manifestas
dos cultos de possessão são: 1) “a necessidade de assegurar a harmonia
do cosmos e da sociedade; 2) a profecia [...]; 3) a cura das doenças”
1
Cf. DUVIGNAUD, Jean. Les ombres collectives: sociologie du théâtre. São Paulo:
PUF, 1973. p. 13. (para a primeira citação), e DUVIGNAUD. Fêtes et civilisations.
[S.l]: Scarabée, 1984. p. 195 (para a segunda referência); Também sobre o Candomblé
da Bahia, cf. DUVIGNAUD. L’acteur: sociologie du comédien. [S.l]: Gallimard,
1965. p. 246.
Permito-me aqui uma digressão a propósito dos rituais de de-possessão e o teatro: a
propósito de práticas espetaculares de exorcismo (ou, dito de outro modo, de rituais
de de-possessão), na Inglaterra, no tempo de William Shakespeare, Stephen Greenbalt
analisa as acusações feitas aos católicos pelos protestantes. Estes denunciavam a
fraude e a encenação praticadas, segundo eles, em particular pelos Jesuítas/ exorcistas,
posto que a possessão, e por consequencia a de-possessão, seria “teatral”. Além disso,
ele mostra como as referências ao exorcismo nas peças de Shakespeare (The Comedy of
Errors, Twelft Night, All’s Well That Ends Well, A Mid Summer Night’s Dream, e sobretudo
King Lear) servem de reforço à ideia do amálgama fraude/ teatro/ exorcismo, assim
que à rejeição ao catolicismo. O autor mostra igualmente as influências mútuas (inclusive
o empréstimo de frases inteiras) entre o teatro de Shakespeare e os textos publicados
por autoridades protestantes sobre o tema à época. Mas ele conclui, utilizando o
exemplo da cena da falsa possessão de Edgar em King Lear: “rituais evacuados de sua
significação original são preferíveis à ausência total de rituais” (eu traduzo), In:
GREENBALT, Stephen. Shakespearean Negotiations. [S.l]: University of
California Press, 1988. p. 127 e passim.
2
Cf. SIMON, Michel. “Théâtres Nationaux : le Brésil”. In: DUMUR, Guy (Dir.).
Histoire des Spectacles. [S.l]: La Pléiade, [19-?]. p.1303-1304.
107
Armindo Bião
(BASTIDE, 1972). 
3
Ao lado destas funções ‘manifestas’, ainda há outras,
que ele denomina ‘latentes’, mas que não seriam “menos importantes”
que as primeiras. Entre estas funções ‘latentes’, ele afirma que os cultos
de possessão teriam função de catharsis, que as aproximaria “dos
psicodramas (René Ribeiro), dos sociodramas (Roger Bastide), ou ...
etnodramas (Lois Price-Mars)”.
4
 Além disso, no seu livro Le Candomblé de
Bahia (Rite Nagô), Bastide fez inicialmente referência aos “aspectos
espetaculares ou dramáticos” do culto: “A dança resulta em uma ‘ópera
fabulosa’; a expressão célebre de Rimbaud aplicando-se exatamente ao
fenômeno”.
5
 Da mesma maneira que Duvignaud ou Simon, Bastide
(1958), no entanto, mais atento aos aspectos religiosos dos cultos, bem
como às “sobrevivências” africanas no “novo mundo”, não deixou de
assinalar os pontos comuns ao teatro e aos cultos de possessão.
Umberto Eco (1985, p. 151), num contexto menos teórico que jornalístico,
afirma, a propósito das injustiças sociais no Brasil, que os cultos afro-
brasileiros “são perigosamente próximos dos ritos do carnaval e do
futebol”, como maneiras diferentes de “conter as massas deserdadas nas
suas reservas”.
6
 Não é demais pontuar que o autor de A guerra do falso
(uma coletânea de artigos de jornal) aproxima os cultos de possessão
afro-brasileiros daquilo que se pode chamar “práticas espetaculares” (o
carnaval, as competições esportivas). Sobre suas intenções neste livro, ele
afirma: “Se estes artigos tentam denunciar alguma coisa aos olhos do
leitor, não se trata de descobrir as coisas sob os discursos, mas muito
mais os discursos sob as coisas... É uma escolha política criticar os mass
3
Cf. BASTIDE, Roger. “Prolégomènes à l’étude des cultes de possession”(communication au Colloque 1968 sur la possession). In: BASTIDE, R. Le rêve, la
transe et la folie. Paris: Flammarion, 1972. p. 84-85.
4
BASTIDE, op. cit.
5
Cf. BASTIDE, R. Le candomblé de Bahia: rite nagô. Paris: Mouton, 1958. p. 174.
(o autor insiste sobre os aspectos de violência e de “sexualidade” das danças rituais).
Uma nova edição deste livro, que se tornou um clássico, está sendo organizada por
Jean Duvignaud.
6
ECO, Umberto. “Avec qui sont les Orixa?”. In: ______ . La guerre du faux. Paris
: Grasset & Fasquelle, 1985. p.151.
108
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
mídia através dos mass mídia. No universo da representação ‘mass-
midiática’, esta é talvez a única escolha de liberdade que nos resta” (ECO,
1985, p. 13).
7
O espírito crítico demonstrado pelo grande mestre italiano, a respeito
do assunto, certamente salutar, não obstante, inscreve-se na postura dos
intelectuais a quem a história do Ocidente e da Modernidade ensinou a
desconfiança em relação ao espetacular. Infelizmente, não se encontrou
ainda o texto de Aristóteles sobre a comédia, que fazia um dos centros
da intriga do Nome da Rosa. Se ele tivesse sido achado, talvez tudo fosse
diferente. A Poética de Aristóteles que conhecemos é um dos documentos
fundadores da cultura ocidental e da modernidade, assim como, pelo
menos parcialmente, a origem desta desconfiança em relação ao caráter
espetacular do teatro.
Victor Turner tem uma abordagem dos cultos afro-brasileiros, bem como
do futebol e do carnaval brasileiros, oposta à de Eco. De fato, Turner é
um dos intelectuais contemporâneos que representam melhor o novo
paradigma que parece querer se constituir, criticando o da modernidade.
A partir da interface teatro/ antropologia, onde inscreve sua noção de
‘drama social’, ele se interessou, já nos últimos anos de sua vida,
particularmente pelo Brasil e pelo Japão. O que se poderia chamar de
“práticas espetaculares” corresponde, em grande parte, ao que ele chama
de “gêneros de performance”.
8
 A respeito precisamente do Brasil, ele
afirma que esses “gêneros de performance” (cultos, carnaval, futebol)
gozam aí de grande popularidade, impressionando todos os que o visitam.
“Importantes nações industrializadas como o Brasil e o Japão não
desprezaram seus festivais públicos. Elas os elevaram à categoria de suas
realizações seculares – tudo isso sem destruir o encantamento e a
7
ECO, Umberto. “Préface à l’édition française”, op. cit., p.13.
8
Cf. “Social dramas in Brazilian Umbanda: the dialetics of meaning”, “Carnaval in
Rio”, “Dionysian drama in industrializing society” et “Rokujo’s Jealousy: liminality
and the performative genres”. In: TURNER, Victor . Anthropology of
Performance. New York: PAJ, 1986.
109
Armindo Bião
teatralidade de suas raízes” (TURNER, 1926, p. 128)
9
. Depois de ter
analisado em detalhe o sistema proposto por Roger Caillois para descrever
o elemento lúdico, Turner (1986, p. 137) mostra que todas as categorias
de lúdico sugeridas por Caillois encontram-se no carnaval do Rio. E
conclui: “O Carnaval é feito para servir como uma sorte de paradigma,
ou de modelo, para todo o mundo moderno e pós-moderno”.
10
Julian Beck, na época diretor do Living Theater, e Georges Lapassade,
pesquisador especialista em transe e outros estados modificados de
consciência, visitaram juntos diferentes lugares de cultos de possessão no
Brasil. O primeiro observou a falha essencial do ‘teatro religioso’, a saber,
o de ser “a mais válida apatia, o ópio do povo”. Mas ele afirmou
igualmente, a propósito mais particularmente dos rituais de quimbanda
(uma variante dos cultos afro-brasileiros do Rio), num texto intitulado
“Teatro Sexual”: “É o caminho do povo oprimido. É a sua revolução.
É a expressão verdadeira de um sonho popular. É o teatro desesperado
pleno de esperança” (BECK, 1978, p.152).
11
 As observações sobre o
“teatro religioso” e sobre o “teatro sexual” são reveladoras de uma atitude
que se desejava ao mesmo tempo “revolucionária” e “anarquista”. Esta
atitude, da qual Beck é um dos representantes, caracterizou certas aventuras
artísticas do começo dos anos 70. Se a elas me refiro, não é porque as
sustente, mas simplesmente porque quero reunir o maior número possível
de comentários de homens de teatro e de ciência, relativos à interface
teatro/ rituais afro-brasileiros.
12
 Em minha opinião, Beck não fez senão
caricaturar de maneira exacerbada as qualidades “conservadora” e
“revolucionária” que podem eventualmente ser atribuídas às formas sociais
designadas pela expressão “práticas espetaculares”.
9
TURNER, op. cit., p. 128. (Tradução do autor).
10
TURNER, op. cit., p. 137. (Tradução do autor).
11
BECK, Julian. La vie au théâtre. Paris Gallimard, 1978. p.152 et Seq.
12
A propósito de temas parecidos, ver ROUGET, Gilbert. La musique et la transe.
Paris: Gallimard, 1980 e PIMPANEAU, Jacques. “Les liens entre les cultes
médiumniques et le théâtre, entre les chamans et les acteurs”. In: ______ . Actes des
Rencontres internationales sur la fête et la communication: transe, chamanisme
possession. [S.l] : Serre/ Nice-Animation, 1986.
110
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Lapassade (1990), que prosseguiu suas pesquisas sobre os
“estados modificados da consciência”, escreveu para a coleção
“Que sais-je?” um livro sobre o transe
13
, onde faz referência
ao comentário de Beck – “a melhor comediante do Rio” –
sobre uma adepta dos cultos. Nessas reflexões sobre
“Possessão e Teatralidade”, reconhece a “dimensão de
teatralidade nessas práticas, como sublinhou Michel Leiris”
e conclui com uma citação de Jean Duvignaud:
A ambiguidade mesmo desses estados – sobre a qual Leiris é o único a
insistir porque é artista tanto quanto etnógrafo – constitui a realidade do
fenômeno. É porque a simulação não seria um estado marginal entre o
teatro e o êxtase, a mentira e a verdade, mas um dos elementos
componentes do estado de possessão. Esta abreviação feita a propósito
da possessão ritual e de seu teatro poderia ser generalizada ao conjunto
dos transes (DUVIGNAUD Apud LAPASSADE, 1990, p.98). 
14
Não tenho a intenção de discutir o “conjunto de transes”, mas no que
concerne à possessão ritual, penso já ter demonstrado que a questão da
sinceridade aí não é pertinente (BIÃO, 1990, p.132)
15
. Não obstante,
salvaguardo a “ideia de ambiguidade” de Duvignaud, que me parece
aproximar-se da noção de “liminaridade” de Turner, isto é, da qualidade
do que está ao nível do limiar, ou dito de outra forma, o que está entre
duas manifestações. Ora, o teatro reunindo jogo e vida, e o transe,
reunindo divindade e humanidade, são bem o domínio da ambiguidade
e da “liminaridade”.
Peter Brook (1985), outro homem de teatro sempre muito ativo,
pronunciou-se também sobre os cultos afro-brasileiros. A propósito destes
contatos com os adeptos do culto no Rio ele fez a seguinte reflexão: “ [...]
a possessão entre eles parece repousar inteiramente sobre o fato de que a
13
LAPASSADE, Georges. La transe. “Que sais-je?” Paris: [s.n.], 1990. p. 2508.
14
LAPASSADE, Georges, op.cit, p.98; cf. “EXISTENCE et possession”. In
DUVIGNAUD, J. L’acteur: sociologie du comédien. [S.l]: Gallimard, 1965. p.244.
15
BIÃO, Armindo Jorge de Carvalho. Théâtralité” et “Spectacularité: une aventure
tribale contemporaine à Bahia. Paris, 1990. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas, Université René Descartes Paris V Sorbonne, Paris,
1990. p. 132-142. (Sob a orientação de Michel Maffesoli).
111
Armindo Bião
pessoa perde a consciência”
16
 (BROOK, 1985, p.201). Ora, como Ruth e
Seth Leacock (1972) observaram, a propósito dos cultos afro-brasileiros
da região do Pará, na Amazônia, a total perda de consciência não é verossímil
posto que os adeptos em transe de possessão, apesar de se encontrarem
numa aparente desordem, não se chocam
17
. De fato, o que me interessa
aqui é colocar lado a lado duas opiniões contraditóriassobre uma questão,
a propósito da qual já me exprimi
18
. O que é mais notável segundo Brook
(1985), é a comparação que ele faz entre o rosto de uma pessoa em transe
de possessão e uma máscara de teatro desde que esta comparação remete
à convenção teatral de persona. É a posição de evidência ocupada por uma
pessoa, temporariamente, com relação ao grupo.
André Villiers (1961), em “O Claustro e a Cena – Ensaio sobre as conversões
dos atores” considera o ator como natureza de “personagem sagrado”. A
partir dos exemplos documentados de conversões de atores, ele traça um
quadro de “disposições caracterológicas” e de “circunstâncias favoráveis”.
E comenta o fato de que um número dessas conversões, cujo melhor
exemplo é o de São Genésio, tornou-se tema de peças de teatro: “Lope de
Vega, Rotrou, Francisco de Rojas, Henri Ghéon, levaram à cena exemplos
edificantes de atores iluminados pela graça durante a representação”
(VILLIERS, 1961, p. 9 e 161).
19
 É Villiers quem nos sugere uma feliz
expressão, a saber, “estado de graça”. Talvez devêssemos utilizá-la em lugar
de “estado de consciência”, a propósito do desempenho do ator de teatro
e do transe do adepto do culto de possessão. Este estado é o exemplo
paradigmático do que chamei “o gozar do jogar” (BIÃO, 1990, p.21-25).
20
16
Cf. BROOK, Peter “Mensonge et adjectif superbe”. In: Le masque: du rite au
théâtre.[S.l]: CNRS, 1985. p.201. (Entrevista).
17
LEACOCK, Ruth; LEACOCK, Seth. Spirits of the Deep. [S.l]: Doubleday, 1972.
Ver: MOTTA, Roberto. O desenvolvimento da noção de “gradação de papéis, do jogo
de papéis cotidianos ao jogo teatral, à hipnose, à histeria e ao êxtase”. [S.l: S.n., 199-
?]. p.214., que igualmente utilizou referências teatrais (“dramatis persona” e “original
drama”) fala, também no contexto de cultos afro-brasileiros, de “excitação dionisíaca”,
a partir de um ponto de vista próximo a Nietzsche. Cf.
18
 BIÃO, A., op. cit, p. 127-132.
19
 VILLIERS, André. Le Cloître et La Scène: essai sur les conversions d’acteurs,
Nizet. Paris: Nizet, 1961. p. 9 e 181 et seq. Cf. GHEON, Henri. Le comédien et la
grâce. Paris: Plon-Nourrit, 1925. (Peça de teatro sobre a conversa de São Genésio).
20
BIÃO, A. “Le jouir du jouer”. In : SOCIÉTÉS, Paris, n.17, p.21-25, 1990.
112
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Para encerrar essas reflexões comparativas teatro/ rito de possessão,
retive três pontos essenciais da obra mais citada sobre o assunto, do livro
de Leiris (1958) sobre os etíopes de Gondar:
1. A Commedia dell’Arte constitui para Leiris uma referência
paradigmática para estudar o culto dos zâr. Uma referência que resta,
contudo, marginal, no curso da história do teatro “erudito” na Europa,
porque contém as fontes de uma forma de teatro muito “corporal” e
muito popular. E isso ainda que seja retomada de tempos em tempos
– como é o caso dos últimos trinta anos. Com efeito, a Commedia
dell’Arte difundiu-se pela Itália, passando principalmente pela França,
em direção ao resto da Europa e, em seguida, para o Novo Mundo,
em particular aos países de colonização ibérica. Estes, em graus diversos,
tinham sido já talvez fecundados pela Commedia diretamente pelo
contato entre as companhias italianas com as da Espanha e Portugal.
Um possível sinal deste fato é a presença do Arlequim em “danças
dramáticas populares” do Nordeste brasileiro, como a do Bumba-
meu-Boi (DUCHARTRE, 1985)
 21
. A Commedia dell’Arte, tendo a
mesma forma tradicional que deu origem tanto ao Punch inglês quanto
ao trio Pierrot/ Arlequim/ Colombina, sempre presente no carnaval
brasileiro. Diferentemente de outras formas sociais que sofreram do
21
Sobre as origens e expansão da Commedia Dell’Arte na Europe, ver DUCHARTRE,
Pierre-Louis. La Commedia dell’arte . Paris: Librairie Théâtrale, 1985; e
MAMCZARZ, Christian Bec et al .. Le théâtre italien en Europe: XVème –
XVIIème siècles. São Paulo: PUF, 1983.
A propósito de personagens ligados à tradição da Commedia Dell’Arte no carnaval
brasileiro, pode-se pensar que eles aparecem a partir da metade do séc. XIX, com a
moda do carnaval veneziano; Cf. QUEIROZ, Maria I. P. de. “Carnaval brasileiro: da
origem europeia ao símbolo nacional”. Ciência e Cultura, [S.l], n.39, v.8, 1987; e
DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandras e Heróis. Rio de Janeiro: Zahar,
1983.
Ver também BROCKETT, Oscar. History of Theatre. Boston: Allyn and Bacon,
1982.
Sobre a “dança dramatica” do Bumba meu Boi, de origem ibérica, onde existe um
personagem chamado Arlequim, cf FOUGERAY, Sylvie. Le bouef le sang et le
jeu, Paris, 1991. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas,
Paris 7 Jussieu, 1991. (Sob a orientação de J. Duvignaud).
113
Armindo Bião
mal de ficarem muito tempo fechadas no edifício teatral, cuja matriz
foi a sala desenhada em função da perspectiva, a Commedia dell’Arte
conheceu tanto os palcos ao ar livre quanto os salões burgueses e as
cenas à italiana. Mais enraizada no “mundo da vida cotidiana”, ela
procurou sempre se misturar ao público. Ora, Leiris considera “como
da mesma ordem” os personagens das antigas Atellanas, os
predecessores da Commedia dell’Arte e os “gênios possuidores da
Etiópia” (LEIRIS, 1958, p.9).
22
 Pode-se pensar de maneira semelhante,
no tocante à “mesma ordem”, em relação aos Orixás do Candomblé.
2. O segundo ponto que gostaria de reter da obra clássica de Leiris
(1958) é a semelhança que ele nota entre os costumes e os acessórios
utilizados no culto e aqueles “de carnaval ou de teatro”.
23
 Na Bahia,
há vários pontos de comércio especializado que servem aos foliões
de carnaval e aos atores de teatro e também aos adeptos do
Candomblé. Além dessa observação, uma pequena anedota ilustra,
em particular, no tocante ao teatro e ao carnaval, como as roupas e
acessórios do primeiro podem servir ao segundo. Na Bahia, em 1878,
o governo local decidiu proibir a forma pela qual se brincava o carnaval
na época. Essa forma, chamada entrudo, consistia em jogar-se – uns
nos outros – água, farinha, e outras coisas para sujar corpos e roupas.
Ora, para promover o novo “carnaval”, “mais limpo e civilizado”, o
governador autorizou o empréstimo à população da rica coleção do
teatro oficial à guisa de fantasias (RUY, 1959, p.38).
24
3. Minha última observação sobre esta obra pioneira é a seguinte: Leiris
(1958) sugere que os “aspectos estéticos e teatrais do ritual”, assim
como as exigências quase cênicas em matéria de iluminação, além de
seu valor como “divertimento” e “espetáculo”, são sinais de um
“desenvolvimento possível no sentido do teatro.”
25
 A sugestão de
Leiris insere-se perfeitamente na linha sociológica, cujas balizas foram
22
 Cf. LEIRIS, Michel. La possession et ses aspects théâtraux chez les éthiopiens
de Gondar. Paris: Plon, 1958. p. 9.
23
 LEIRIS, op.cit., p. 36.
24
 Cf. RUY, Affonso. História do Teatro na Bahia. Salvador: UFBA, 1959.p. 38.
114
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
colocadas pelo pai fundador da sociologia. Com efeito, a propósito
dos “ritos representativos ou comemorativos”, Émile Dürkheim (1985)
faz referências explícitas a um “ator que desempenha seu papel”, a
uma representação figurada, assim como ao “elemento recreativo e
estético”
26
. E conclui:
O mundo das coisas religiosas é então, mas somente na sua
forma exterior, um mundo particularmente imaginário e
que, por esta razão, se presta mais dificilmente às livres
criações do espírito. Aliás, porque as forças intelectuais, que
se prestam a sua construção são intensas e tumultuosas, a
única tarefa que consiste em exprimir o real com a ajuda de
símbolos convenientes não é suficiente para os ocupar. Um
excedente fica geralmente disponível que procura se
empregar em obras suplementares, supérfluas e de luxo,
isto é, em obras de arte. [...] Quando um rito só serve para
distrair, ele não é mais um rito [...] (DURKEIM, 1985,
p.545-546).
27
Evidentemente, não se pode conhecer o que não seconhece a não ser a partir
do que se conhece já. Mas daí a se poder concluir que as “coisas” sociais
“evoluem” todas no mesmo sentido, há uma grande distância problemática.
Por outro lado, a ideia de que as obras de arte são “obras suplementares,
supérfluas e de luxo”, com relação ao “mundo das coisas religiosas”,
tampouco se resolve sem colocar problemas da ordem da axiologia e da
filosofia da história, que ultrapassam o objetivo do presente trabalho.
Em minha opinião, o desejo de Leiris (1958) é o de testemunhar o
nascimento de uma nova forma teatral, o que a leva a raciocinar desta
maneira, a saber, imaginando um “desenvolvimento possível”, para não
dizer “provável”, do culto dos zâr para o teatro. Eu me identifico
25
 LEIRIS, op.cit., p. 98-99; também a propósito, ver BOURGAUX, Jean. Possessions
et simulacres aux sources de la théâtralité. Paris: Epi, 1978.
26
 Cf. DÜRKHEIM, Émile. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris:
Quadrige; PUF, 1985. p. 542.
27
 DÜRKHEIM, op.cit, p. 545-546.
115
Armindo Bião
completamente com o seu encaminhamento neste caso particular, por
que já tive certeza de que o Candomblé da Bahia poderia se desenvolver
na mesma direção. No entanto, hoje, tenho mais dúvidas do que certezas
a respeito. E no lugar de prever, contento-me em tentar ver. E, neste
momento, o que vejo, é que o Candomblé, assim como outros cultos de
possessão afro-baianos, ou algumas formas de teatro, e mesmo o
carnaval, da maneira como se brinca na Bahia, oferecem aos seus adeptos/
atores/ foliões a possibilidade de se atingir o estado de graça.
À guisa de conclusão, é importante que os leitores compreendam minha
posição ao mesmo tempo prática e teórica, no que diz respeito a estas
reflexões que acabo de apresentar. Baiano de nascimento e formação
cultural, encenador, comediante, ator de teatro
28
, curioso do Candomblé
e folião eventual, situo-me na linhagem de antropofagia cultural. A
“antropofagia” é bem um traço forte da arte que se produz no Brasil,
acompanhada de um discurso tipicamente brasileiro, que pode ser
compreendido pelos estrangeiros, desde os anos 20 deste século.
Sim, o paradigma moderno da distinção está em crise. Sim, a confusão
conceitual se instala por todos os lugares. Sim, a Bahia é o produto da
escravidão dos africanos, do genocídio mais ou menos intencional dos
índios nativos e da aventura marítima dos portugueses. Sim, a indústria
cultural e do turismo podem ajudar a Bahia a espantar a miséria, assim
como a reduzir os extremos contrastes socioeconômicos. Sim, o cotidiano
baiano mistura carnaval, religião e teatro. Mas há três coisas diferentes
entre as quais se pode (e deve) fazer distinções: a religião, a arte teatral e
a festa carnavalesca. É a partir destas distinções e de suas interfaces que
poderemos contribuir para a construção da etnociência dos
28
 Os jesuítas utilizaram o teatro entre os séculos XVI e XVII, no Brasil, para a catequese
de nativos e a educação de colonos aventureiros, tornando-os atores, público e, até
mesmo, personagens. Este teatro “educativo” misturava o português às diferentes línguas
utilizadas pelos seus participantes para construir os espetáculos. A Escola de Teatro da
Universidade Federal da Bahia, que forma atores, diretores e professores de teatro, foi
fundada em 1956. Hoje em dia, no Brasil, existe aproximadamente uma dezena de
instituições parecidas. Historicamente, as primeiras escolas formais de teatro, ainda não
universitárias (no Rio e São Paulo) datam da primeira metade do século XX.
116
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
“comportamentos espetaculares organizados”, a etnocenologia (MARIE-
PRAIER; KHAZNADAR; DUVIGNAUD, 1995).
29
Na Bahia fazemos teatro (aí compreendendo a variante profissional/
comercial que é reconhecida em todo o Brasil e mesmo na Broadway,
onde um primeiro espetáculo baiano fez temporada em português em
novembro de 1997). Utilizamos o teatro na educação (tanto regular quanto
para pessoas com limitações sensoriais – cegos e surdos – mudos, por
exemplo). Nós o utilizamos igualmente na afirmação étnica (dos negros
baianos, por exemplo), para fins terapêuticos ou, ainda, para simples
divertimento. Nós temos rituais religiosos espetaculares, importantes e
formidáveis festas. Gostamos de espetáculos vivos onde as interações
face a face (ou corpo a corpo, como prefiro designá-las) são dominantes.
Mas gostamos também das novas tecnologias (aí compreendidas as
telemáticas, das quais um polo começa a se consolidar na Bahia) e seu
lado espetacular, acreditando que uns e outros podem se alimentar
mutuamente. Por fim, assumo uma característica bem baiana, um tipo
pretensioso de ambição cultural, visto que me faço porta-voz de uma
cultura. Nós queremos não somente atingir o estado de graça, mas
também estar em consonância conosco mesmos e com os outros, de
maneira que possamos “comê-los” (como nossos ancestrais tinham por
hábito). Nosso objetivo é trazer para nós o que possamos encontrar de
belo, bom e útil em cada pessoa, seja ela próxima ou estrangeira. É por
isso que estamos participando da construção da etnocenologia.
29
 A este propósito ver os resultados do Colóquio de Fundação do Centro Internacional de
Etnocenologia in: La Scéne et la terre: Questions d’Ethnoscénologie –
Internationale de l’Imaginaire, 5., Maison de Cultures du Monde, 1996. Organizado
por MARIE-PRADIER, Jean; KHAZNADAR, Chérif e DUVIGNAUD, Jean (Paris,
maio de 1995), este centro tornou-se mais uma organização informal do tipo rede (bem
de acordo com nossos tempos). Após ter participado do II Colóquio, no México em
1996, tive a honra de coordenar a organização do III Colóquio Internacional de
Etnocenologia, com o apoio dos meus colegas da Escola de Teatro e das Universidades
Federais da Bahia, Brasília e Pernambuco, e Paris 8 (Jean-Marie Pradier). Este Colóquio
foi realizado em Salvador, Bahia, Brasil (de 24 a 28 de setembro de 1997), com o apoio
institucional da UNESCO e o patrocínio do Governo do Estado da Bahia. Seus resultados
devem aparecer publicados brevemente em português e, parcialmente, em francês.
117
Armindo Bião
Questions posées à la théorie:
une approche bahianaise de l’ethnoscénologie
*
Le contexte
Ce n’est pas un hasard si le terme « ethnoscénologie » puise ses racines
dans la langue grecque. Celle-ci demeure toujours la référence des codes
linguistiques dominant l’univers intellectuel dans le monde.
D’une part, la critique de l’ethnocentrisme, qui s’est développée dans le
milieu intellectuel européen ces derniers temps, les conflits interculturels,
notamment avec les immigrants d’origine maghrébine en France,
l’importance et la violence des mouvements d’affirmation ethnique et
religieuse, d’autre part, la banalisation des nouvelles technologies de
communication et l’expansion d’un marché de consommation mondial,
forment le contexte qui a donné naissance à cette nouvelle discipline.
De pair avec l’air du temps et sa mise en cause des paradigmes de la
science moderne, l’ethnoscénologie se constitue sous le signe du paradoxe.
Il s’agit bien d’une discipline mais que se veut interdisciplinaire.
Questions
Le terme ethnologie correspond en France à ce qu’on appelle habituellement
aux États-Unis anthropologie culturelle et en Angleterre anthropologie sociale. Il
s’agit de la discipline scientifique qui s’attache à étudier un groupe racial
(une ethnie), un peuple, une nation. Sa méthode privilégiée est
l’ethnographie, c’est-à-dire, la description des phénomènes sociaux de la
population choisie comme objet de recherche.
* Publié à l’origine dans Internationale de l’imaginaire, Nouvelle série, n. 5 : La scène
et la terre, questions d’ethnoscénologie, Paris: Babel; MCM, 1996. p. 145-152.
118
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Ethnobotanique, ethnolinguistique et ethnomusicologie sont des dérivés
de cette discipline qui étudient des différents aspects (linguistiques ou
musicaux, parexemple) du patrimoine réel et du patrimoine imaginaire
d’une ethnie et par extension d’un groupe culturel donné s’exprimant par
des habitudes, des usages relevant de la communication et des rituels.
L’ethnoscénologie s’inscrit dans la même perspective et partage les mêmes
problèmes épistémologiques.
1. Tout d’abord, ressort la difficulté de bien circonscrire l’objet de
la recherche.
Selon le manifeste du Centre international d’ethnoscénologie, la diversité
culturelle comprend, du point de vue des pratiques spectaculaires
organisées, des façons d’être, «de se comporter, de se mouvoir, d’agir
dans l’espace, de s’émouvoir, de parler, de chanter et de s’orner qui
tranchent sur les activités banales du quotidien ou les enrichit et fait sens».
Dans quelle mesure, le théâtre, la danse, la musique, les rituels religieux,
les compétitions sportives, les manifestations politiques, les défilés, ainsi
que d’autres célébrations collectives, s’inscrivent dans cet ensemble?
Est-ce que les habitudes partagées par les gens de Bahia (la ville de Salvador
de Bahia, au Brésil) lorsqu’ils fréquentent la plage presque quotidiennement,
par exemple, y trouvent leur place?
2. Se pose ensuite la question de l’ambiguïté de la méthodologie.
En s’opposant au préjugé ethnocentriste afin d’essayer de résoudre un
des plus importants problèmes de ses disciplines-sœurs, l’ethnoscénologie
propose la réalisation «d’analyses intérieures» et «d’analyses extérieures» et
d’abandonner les notions telles que «mentalité prélogique», «primitif» et
«sociétés appelées à disparaître». Elle propose également la création d’un
inventaire des pratiques spectaculaires organisées.
Comment établir les conditions de la recherche, les relations entre le
chercheur et l’objet de son étude, le trajet qui va du sujet à l’objet?
119
Armindo Bião
Comment la sympathie et l’empathie
1
 y sont prises en compte? Quoi
faire de la capacité de juger? Comment décrire les rites d’excision, par
exemple?
Quelles limites fixer entre l’éthique et l’esthétique? Maffesoli
2
 parle de
l’éthique de l’ésthétique, du sentir ensemble qui fait lien.
Lorsque le chercheur est (ou devient) partie prenante de son objet d’étude,
comment juge-t-il le préjugé ethnoscentriste?
Comment traduire (traduttore traditore) dans des langues et donc des façons
de penser et d’être diverses, des phénomènes semblables mais différents?
Pour tenter de répondre à ces questions, il faudra décider de l’ampleur et
de la diversité de l’objet d’étude. Un critère peut être l’appétence du
chercheur qui lui donnera cette «compétence unique» dont parlent les
ethnométhodologistes nord-américains. Grâce au concours des chercheurs
de différentes «ethnies» de la Planète, l’ethoscénologie pourrait construire
son inventaire des pratiques spectaculaires.
D’autre part, le chercheur devra assumer son implication dans l’objet de
son étude, soit avec l’ethnie soit avec le groupe social qui l’intéresse.
3. La dernière question concerne l’affirmation du manifeste
suivante: «le triomphalisme technologique conduit à la
massification des formes culturelles. Les modéles dominants
sont diffusés et donnés pour universels, tandis que l’extrême
variété des pratiques ne trouve pas droit de cité.»
Or, la caractéristique spectaculaire de l’exotique est de plus en plus explorée
par les médias, l’industrie culturelle et l’industrie du tourisme. L’appel
commercial de l’exotique devient, en quelque sorte, une tarte à la crème.
1
SCHELER, Max. Nature et formes de la sympathie. Paris : [S.n.], 1971.
2
MAFFESOLI, Michel, Temps des tribus: le déclin de l’individualisme dans la
société de masses. Le Livre de poche, Paris, 1986 (rééd. 1991). 288 pages.
120
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Les modèles culturels dominants, marqués principalement par la façon
de vivre et de penser aux États-Unis et en Europe occidentale, sont des
piliers du marché mondial et de l’expansion des nouvelles technologies.
L’attraction et le rejet de l’étranger y trouvent simultanément droit de
cité. Pourtant, nombre de chercheurs contemporains y voient une tendance
différente de la « massification » exprimée par le manifeste. Maffesoli,
par exemple, évoque la société de masses mais aussi l’affirmation croissante
du local et du tribal. Le triomphalisme technologique peut-il être un allié
de l’ethnoscénologie? Je crois que si l’on parvient à relativiser ce triomphe,
on peut répondre affirmativement.
Un état des lieux dans les études théâtrales a Bahia
La « nation » bahianaise est unique du fait qu’elle résulte d’un mélange
d’ethnies d’origines native, européenne et africaine. En cela, elle est
comparable à certaines «nations» antillaises et nord-américaines.
Par ailleurs, les traditions et les nouvelles technologies y semblent faire
bom ménage. C’est ce que j’ai cherché à montrer dans mes recherches
sur les transformations dans la vie quotidienne et le théâtre au cours des
années 1968-1980 à Bahia.
3
L’industrie du tourisme et l’industrie culturelle se fondent (comme ailleurs)
sur la tradition. Ville portuaire, marché et forteresse, Salvador de Bahia a
été capitale du Brésil et la plus importance ville de l’Hémisphère Sud
pendant près de deux siècles. La vocation bahianaise à affirmer tout à la
fois sa singularité, ses traditions et une sympathie envers les nouveautés
s’exprime notamment dans l’invention du trio elétrico (depuis 1950): un
gros camion qui circule lors du carnaval ou d’autres célébrations collectives,
transportant des musiciens bien équipés qui jouent, pour la danse, une
musique fortement influencée par les percussions africaines sur des paroles
3
BIÃO, Armindo. Théâtralité et spectacularité: une aventure tribale contemporaine
à Bahia. Paris, 1990. Thèse (Doctorat) - Université René Descartes, Sorbonne, Paris,
1990.
121
Armindo Bião
à dominante portugaise avec des instruments originaires des trois
Continents.
L’industrie phonographique connaît à Bahia un essor considérable depuis
une dizaine d’années. Le show business en général et le théâtre en particulier
en tirent profit. Les manifestations religieuses, les fêtes populaires et les
habitudes quotidiennes, qui servent d’assise à ce bouillonnement,
connaissent une croissance remarquable, contrairement aux intuitions de
certains intellectuels, notamment Roger Bastide. On pensait en effet que
le développement industriel de la région de Bahia depuis une vingtaine
d’années ferait disparaître par exemple le candomblé, rite religieux fondé
sur la transe et la possession.
C’est une toute autre réalité qui se dessine aujourd’hui, si l’on en juge
d’après les travaux des historiens, sociologues, anthropologues,
ethnologues, folkloristes, et d’après les témoignages d’artistes et de curieux
en général.
Le théâtre professionnel, en tant qu’activité permanente et régulière apparaît
comme un événement dans les années quatre vingt ; le théâtre universitaire,
quant à lui, célébrera l’année prochaine son quarantième anniversaire.
C’est au début du XIX
e 
siècle que les élites bahianaises commencéèrent à
fréquenter les salles de théâtre de la ville. Celles-ci étaient apparues au
XVIII
e
 mais ne fonctionnaient alors que de manière épisodique.
Entre le XVI
e
 et le XVII
e
 siècle, afin d’éduquer les populations indigènes
et les colons, les jésuites avaient utilisé les techniques théâtrales européennes
dans les écoles et les places publiques en les associant aux mythes et aux
matériaux locaux.
Parallèlement, des Portugais: aventuriers, fonctionaires, exilés, parmi
lesquels un bon nombre de juifs convertis, ainsi que des esclaves africains,
avaient apporté des formes musicales et des rites collectifs qui se sont
mélangés aux musiques et aux rituels indigènes. Cette capacité à échanger
122
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
des codes avec ceux de la culture théâtrale catholique a permis l’elaboration
d’un patrimoine qui permet aujourd’hui de considérer Bahia commele
cadre d’un ensemble de « danses dramatiques »
4
 et de formes de « théâtre
populaire » original, bref comme un foyer de culture et partant, un terrain
d’une grande fertilité pour l’ethnologie.
Simultanément à l’émergence du théâtre bahianais professionnel, on peut
assister à une utilisation croissante des signes de la culture traditionnelle et
des thématiques locales, allant de pair avec l’usage des acquis technologiques
les plus récents. Ceci se remarque également dans les médias.
Toute cette problématique n’a pas encore été sérieusement explorée.
Néanmoins, hormis des études récentes sur le candomblé
5
, nombre de
recherches se sont développées ces dernières années à Bahia, que ce soit
sur le théâtre, sur les relations entre tradition, imaginaire et
télécommunication, sur l’industrie musicale, ou les groupes de carnaval à
dominante afro-américaine. D’un point de vue ethnoscénologique, tous
ces travaux mériteraient de faire l’objet d’une bibliographie commentée.
Conclusion
Les perspectives de travail proposées lors du colloque de fondation du
Centre international d’ethnoscénologie sont très positives. Elles devraient
permettre de développer une connaissance mutuelle des divers groupes
culturels dans le monde et de constituer une mémoire de leurs pratiques
spectaculaires organisées, en suggérant la mise en place de recherches
communes selon une méthodologie relativiste et comparative.
4
Selon l’expression de ANDRADE, Mário de.
5
Dont une des cérémonies publiques a été décrite comme un spectacle par SIMON,
Michel dans un article paru dans l’Histoire des spectacles, Encyclopédie de la Pléiade.
Paris: Gallimard, 1965.
123
Armindo Bião
* Conferência de Abertura do I Seminário Nacional sobre Performáticos, Performance
e Sociedade, Brasília, UnB, 22.nov.1995. In: PERFORMÁTICOS, Performance e
Cotidiano. Brasília: UNB, 1996. p.12–20.
Estética performática e cotidiano
*
Estética performática é a experiência sensorial da expressão da alteridade;
ou, dito de outro modo gramatical e retoricamente reflexivo, trata-se da
expressão da experiência sensorial da alteridade; ou, ainda, o
conhecimento da forma pela qual essas duas ações interdependentes e
caracterizadoras da vida humana revelam-se ao conhecimento. Cotidiano
remete à vida do dia a dia. Sob esse título, proponho uma reflexão em
torno das formas pelas quais sentimos, percebemos, experimentamos e
exprimimos, todos os dias, nosso conhecimento dos outros e do mundo.
Com uma argumentação em 15 tópicos, indicarei as três características
gerais de todas as práticas espetaculares (até o 13º). Destacando, dentre
elas, a performance e buscando apropriar-me de um possível paradigma
da contemporaneidade, descrito em seis aspectos essenciais (14º), proporei
a utilização das redes de pesquisa já existentes, em torno da etnocenologia
(15º), novo campo científico, cujo manifesto foi lançado em Paris, em
1995. Concluindo, apresento três campos de investigação teórica a
propósito desse singular tipo de disciplina acadêmica, que se pretende
inter, múlti e trans disciplinar, como crítica ao Manifesto da Etnocenologia,
mas, também, como sugestão para organizar nosso debate, visando à
dinamização das redes.
1º
O teatro, como arte dramática e não como espaço, tem como
característica dominante na tradição ocidental, e recorrente em outras
tradições do Oriente, a compreensão do drama como ação. Ação na
124
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
qual personagens são ora superiores ora inferiores, nunca iguais a
espectadores. É a tradição aristotélica que assim diferencia a tragédia da
comédia. Essa diferença qualitativa fundamental entre a ação teatral e a
vida implica a “espetacularização” do que se vê em cena. Implica a
definição de limites entre cotidiano e extracotidiano, ordinário e
extraordinário, a teatralidade banal do dia-a-dia e a espetacularidade da
cena. Essa tensão essencial, entre cenas rituais e rotina diária, é a condição
“liminal” (Victor Turner) que caracteriza todas as práticas espetaculares,
constituindo-se terreno propício para os conflitos que promovem e
provocam a ação.
2º
No teatro do absurdo, no qual ação se mascara em inação, os limites
emba-ralham-se e revelam-se na 1ógica da repetição, na base estrutural
da vida cotidiana e de seu absurdo. O teatro do absurdo revela essa
estrutura do cotidiano. Repetir ações é ensaiá-las para a próxima e iminente
performance do dia, até que um incidente inesperado provoque um
conflito e, com isso, rompa-se o fluxo da ação cotidiana.
3º
O cotidiano seria este conjunto de situações que se repetem, no qual as
ações parecem estar em seus próprios limites, e os conflitos entre a pessoa
e a alteridade experimentam-se, experienciam-se, exprimem-se e
expressam-se em rotinas e ritos diários, repetitivos e repetidos, como
num ensaio (em francês ensaiar é répeter, é repetir).
4º
O conhecimento do limite acontece na convivência permanente da pessoa
com a alteridade. A pessoa forma-se simultaneamente com o
conhecimento dos limites que aparecem no jogo diário da vida, na
descoberta da dor e da violência. O indivíduo, ainda criança, com um
125
Armindo Bião
conjunto de desejos, confronta-se muito cedo com a impossibilidade de
tê-los todos atendidos e passa a desenvolver estratégias para satisfazê-
los. Tendo fome e sem poder atendê-la, expressa isso chorando, gritando,
com verdade e com sinceridade, mas, rapidamente, entende que o outro
não está nela, que é preciso “espetacularizar” esse sentimento, exprimi-lo
de uma maneira forte, comunicativa. O fundamento da teatralidade está
nessa consciência mais ou menos difusa que a pessoa vai desenvolvendo
ao passar dos anos, de que é preciso negociar com a alteridade para
satisfazer os desejos. Não exatamente mentir, mas, talvez, exacerbar,
exprimir de uma maneira eficaz o desejo ou o sentimento que se pretende
que o outro compreenda. Então, à condição “liminal” que caracteriza as
práticas espetaculares, acrescenta--se uma segunda condição, a dimensão
1údica (Johan Huizinga). O jogo, esta negociação que fundamenta a vida
pessoal e social, é outra das características básicas das práticas espetaculares.
5º
O conhecimento de si e do mundo é um fenômeno reflexivo e trajetivo
(trajective). “Trajetivo” no sentido de revelar essa duplicidade e
ambiguidade da relação entre o subjetivo e o objetivo. O conhecimento
dá-se nesse trajeto (Gilbert Durand) permanente entre o si e a alteridade,
entre o eu e o mundo. A melhor metáfora compreensiva é a experiência-
expressão do espelho (Jacques Lacan), que multiplica ao infinito a
reflexividade. A noção de pessoa em Marcel Mauss, no seu ensaio clássico
sobre como o direito dos protagonistas de usarem máscaras para
diferenciarem-se do grupo, no teatro grego, é codificada pelo direito
romano como a possibilidade, para alguns indivíduos, de serem
reconhecidos como diferentes e tendo direito à cidadania – o que não
era, evidentemente, para todos, nem para os escravos nem, eventualmente,
para estrangeiros e mulheres. A cidadania, em sua origem, tem uma ideia
de exclusão. Quando se fala em cidadania, hoje, não se tem a dimensão
histórica de que era a afirmação para alguns do direito a uma máscara,
de serem reconhecidos como pessoas. Direitos humanos são os direitos
de cidadão para todas as pessoas, “cidadãos” ou não.
126
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
6º
A produção de símbolos reúne algo que é de uma dimensão a uma
outra dimensão do signo, ou, como diz Durand, “o símbolo é a epifania
de um mistério”, é a aparição de algo que liga, que une uma coisa a outra
(daí seu amplo uso religioso). A produção de símbolos é o fundamento
metodológico dos meios de comunicação, é a dimensão do real que
representa e transporta as experiências e as expressões estéticas com todos
os riscos inerentes à tradução (traduttore/ traditore). O risco é também a
garantia de sua eficácia: é o de remeter a outra realidade, oua outra
língua, sem, no entanto, naturalmente, substituí-la. Essa é a natureza do
símbolo, a concretude em uma dimensão sensorial, dominantemente,
mas não exclusivamente visual, de algo que está em outra dimensão.
As experiências humanas só se realizam plenamente quando expressas,
exprimidas, “espremidas” (Georg Simmel). Não há expressão sem
experiência, nem há experiência sem expressão (Monclar Valverde). Se
há experiência sem expressão, ela não me interessa, pois não tenho como
alcançá-la. Só posso alcançá-la por meio da expressão daquela experiência.
Assim, poder-se-ia entender, no máximo, uma expressão vazia de
experiência, o que já em si seria um paradoxo, porque neste hipotético
caso há, pelo menos, a própria experiência da expressão. É aí que reside
o fundamento essencial e existencial da teatralidade. Teatralidade entendida
como a condição organizadora do espaço, em função do olhar, que se
constitui no sentido do reflexo.
Teatro e espetáculo referem-se ao olhar, o sentido privilegiado na tradição
ocidental desde a Grécia clássica, que cunhou essas duas palavras com a
mesma origem etimológica: teatro, que é espaço organizado em função
do olhar; e teoria, que é olhar sobre. Desde a Grécia clássica, passando
pelo Renascimento e chegando ao Século das Luzes, o que se vê é a
crescente afirmação do sentido da visão como o principal, em detrimento
dos demais sentidos. Isso vai se consolidar com a criação da imprensa e
da técnica da perspectiva, no Renascimento, ou, depois, no Século das
127
Armindo Bião
Luzes, com sua metáfora evidentemente visual. A criação da fotografia e
do cinema, no século XIX, e, mais recentemente e paradoxalmente, da
televisão e das telemáticas, começa a reverter este quadro de privilégios
da visão, estimulando todo tipo de reação multissensorial.
7º
Os ritos e as rotinas do dia a dia desempenham-se em função de
comportamentos esperados diante das mesmas circunstâncias ou de
circunstâncias reconhecíveis pelo imaginário como algo já conhecido
(Alfred Schütz). Esses comportamentos são algo sobre o que não se
pensa no momento em que acontecem. Pensar sobre a necessidade de
deslocar-se o peso do corpo para frente, para que o caminhar seja possível,
é, se não paralisar, ao menos modificar substancialmente o caminhar.
Analisar a ação é atribuir-lhe um caráter espetacular e afastar--se da
espontaneidade teatral cotidiana.
Esses ritos e rotinas do dia a dia, concre-tizados e vividos em formas
que se repetem (como nos ensaios para o teatro), compõem a teatralidade
cotidiana e tornam a vida possível. Mas há também momentos na vida
durante os quais o conhecimento revela-se de modo espetacular. O
conhecimento desse mecanismo dá-se no momento espetacular em que
se assume uma postura que possibilita a reflexão sobre os pequenos ritos
do dia a dia. Isso ocorre quando se quebra o fluxo desses ritos, quando
algo extraordinário acontece.
Esses momentos compõem uma espécie de espetacularidade, ou de
teatralidade extracotidiana. Os ritos, rotinas (mas também as práticas
espetaculares), que organizam a vida no tempo e no espaço, são
imprescindíveis para que se possa viver, conviver e vivenciar, inclusive a
dor e até a morte, todo dia, sempre igual (Chico Buarque de Holanda).Os
ritos são a condição de coexistência da pessoa com a alteridade. O
espetáculo continua, the show must go on.
128
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
8º
Os rituais e os espetáculos são formas extraordinárias de realização dessa
competência humana reflexiva. São grandes ritos e rotinas sociais
equivalentes aos pequenos ritos e rotinas pessoais de todo dia.
9º
Ritos, rotinas, rituais e espetáculos são performances da vida individual e
coletiva, são a forma sensorial e perceptível pela qual experiência e
expressão reúnem-se, são jogos que se fazem com a alteridade, em todos
os sentidos, com todos os sentidos, são comunicação.
10º
As expressões práticas espetacu-lares e comportamentos humanos
espetaculares organizados servem para dar conta desse conjunto de
fenômenos sociais nos quais está o teatro, nos quais está a performance,
mas nos quais também estão o ritual religioso, a procissão, as festas
públicas, as competições esportivas ou as manifestações políticas. Esses
grandes fenômenos sociais que reúnem coletividades e que interferem na
vida cotidiana promovem uma espécie de respiração social.
11º
A teatralidade (Evreinoff) e a espetacularidade são categorias “ideal-típicas”.
Mas este par de aparente oposição teatralidade/ espetacularidade é
invenção “ideal-típica” (Max Weber) para poder-se compreender a
realidade e, depois, descartar-se dela. São noções moles contra os conceitos
duros, são noções líquidas, como diz Jean Duvignaud, que permitiriam
compreender-se, por exemplo, o Brasil, impermeável que seria aos
conceitos duros da tradição sociológica. Para compreender o Brasil seriam
úteis noções líquidas, liquefeitas, moles, como também diria Michel
Maffesoli.
129
Armindo Bião
Entre essas, encontram-se as categorias da teatralidade e da espetacularidade,
que revelam a relação entre o sentido da visão, o teatro e o espetáculo, e
compreendem a relação que se estabelece com a alteridade de modo
mais ou menos consciente e reflexivo. Os demais sentidos, olfato, tato,
paladar, audição e percepção extrassensorial, mais próximos dos ritos e
rotinas cotidianos e dos rituais extracotidianos, são os vetores que,
transversalmente, interferem na compreensão dos limites, transformando
teatralidade em espetacularidade e permitindo a experiência e a expressão
de variados estados de consciência, inclusive o transe e o êxtase.
O conhecimento do conhecimento, a possibilidade do conhecimento,
do nascer com a coisa que se conhece, fica associado necessariamente ao
multissensorial, a esse campo largo da estética, da sensibilidade, do
sentimento, e, naturalmente, a essa capacidade reflexiva do ser humano.
12º
Sem alteridade não há estética, que é a capacidade humana que permite
se conhecer o outro por meio de si próprio. Não se sente o que existe
completamente fora de si. Sem forma não há relação, sem cotidiano não
há extraordinário e sem coletivo não há pessoa.
13º Três Características Gerais de todas as Práticas Espetaculares
As noções de “espetacularidade” e de teatralidade que proponho são
descartáveis porque a contemporaneidade, com seus fenômenos de
proliferação telemática e de globalização, “confundem” cotidiano e
extracotidiano e recuperam as possibilidades sensoriais que a tradição
greco-latina evacuou com a invenção do alfabeto e da imprensa. A
invenção do alfabeto, no século V a.C., e a da imprensa, durante o
Renascimento, banalizaram uma tecnologia de comunicação de signos
simples, quase abstratos, representando todas as possibilidades fonéticas
da língua, escrita da esquerda para a direita, organizada de uma forma
linear, que permitiu o desenvolvimento racional na tradição do Ocidente
e a valorização do sentido da visão.
130
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Há uma evacuação quase total do símbolo e do mistério nessa tradição
do alfabeto e da imprensa. Ora, hoje, o que se vê é a utilização de ícones
em abundância pelas redes telemáticas, reintroduzindo o caos rejeitado
pela lógica racional linear do alfabeto. Os ícones, tão desprezados na
tradição ocidental, que sempre desconfiou da imagem e do sonho,
reaparecem vitoriosos. A tradição ocidental é iconoclasta, passando,
inclusive, pela revolução cultural protestante. Freud, quando reabilita, no
campo da discussão acadêmica, a ideia de sonho e de imagem, o faz
como algo do terreno obscuro e não-iluminado do inconsciente. Sartre,
quando retoma a questão da importância da imagem, depois da grande
guerra, dedica-se ao imaginário, mas com certa desconfiança.
A tradição ocidental é a tradição da desconfiança em relação à imagem.
Hoje, com todas as novas tecnologias, a imagem, os ícones ganham o
centro da cena social. Trata-se deuma revolução sensorial que tem como
sintomas a explosão dos outros sentidos nas práticas corporais artísticas,
religiosas e políticas, enfim, nas diversas experiências e expressões estéticas:
a proliferação dos cultos evangélicos; afro-brasileiros; católico-
carismáticos; a proliferação das terapias corporais, inclusive olfativas; das
massagens; das técnicas corporais orientais – recuperadas no Ocidente –
da necessidade de dançar, de estar-se junto e de perder-se a consciência
do dia a dia, de entrar-se em transe ou êxtase.
Ao “liminal” e ao lúdico, que estão na base das práticas espetaculares,
acrescente-se a dimensão temporal da contemporaneidade. A condição
espacial encontra-se aí embutida pelas telemáticas e pela realidade virtual.
As características gerais de todas as práticas espetaculares são, então, o
“liminal”, o lúdico e a contemporaneidade, compreendida como a
possibilidade de compartilhar-se espaço e tempo reais e virtuais.
14º Seis Aspectos da Contemporaneidade
Definir a contemporaneidade é tentar identificar os principais aspectos
de um possível novo paradigma. Tentando não entrar na discussão
modernidade/ pós-modernidade, podemos afirmar que o paradigma
131
Armindo Bião
moderno (que privilegia a visão) foi dominante, como modo civilizatório
(Norbert Elias), na Europa ocidental, na América do Norte, espalhando-
se pelo mundo, e é um processo cultural que vem desde o século XVIII,
que tem no século XIX o seu grande apogeu e chega glorioso ao século
XX. A própria arte moderna, no entanto, questionou os paradigmas do
pensamento moderno, apelando para as perspectivas simultâneas, o acaso
e o estranhamento. A contemporaneidade multissensorial, hoje,
submergindo a visão iluminista no campo das sombras de todos os
sentidos, é um dos aspectos que caracterizam o novo paradigma que
está se formando e que se anunciou no laboratório que foi a cidade de
Viena fim de século (Jacques LeRider) e na ação das vanguardas
modernistas, que criaram a performance.
Um segundo aspecto é o diálogo de amor e humor entre tradição e
novas tecnologias. Amor e humor lembrando Oswald de Andrade e
Caetano Veloso. Não é o momento da tradição selecionada, como a
Grécia clássica como modelo para o Renascimento, mas a disponibilidade
para toda tradição. Isso se verifica, inclusive, na performance.
Um terceiro aspecto é a tendência à banalização da vivência e do convívio
no mercado telemático. Vale ressaltar que há problemas em relação à
performance e a sua inserção nesse mercado, onde funcionaria como
uma espécie de tática de guerrilha, do tipo que já se utilizou para acessar
os computadores do Pentágono norte-americano, ou para roubar dinheiro
de bancos e de cartões de crédito.
Um quarto aspecto é a interdisciplinaridade ou uma certa lógica da
indistinção. Em todos os níveis, as fronteiras e os limites caem e fica
difícil defini-los. As fronteiras intelectuais e sociais exacerbam-se, eventual
e efemeramente, ao mesmo tempo em que as redes permitem a
transversalidade entre elas. No campo intelectual a interdisciplinaridade
é, sem dúvida, um aspecto provável deste novo paradigma que se forma.
Quinto, o relativismo em oposição ao positivismo, e os métodos e as
abordagens comparativas, em oposição às técnicas exaustivas, e
concentradas em objetos bem recortados, e definidos.
132
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Finalmente, a noção de performance também seria uma das características
deste novo paradigma. Umberto Eco, em seu belo livreto Apostila sobre o
nome da rosa, conta como criou O nome da rosa e define a performance
como um conceito, como uma ação artística interdisciplinar, que
caracterizaria, eventualmente, a pós-modernidade. Sobre pós-
modernidades e pós-modernismos, remeto a Mike Featherstone, que tem
uma obra exemplar sobre a questão.
Umberto Eco diz também não gostar das palavras pós-modernismo/
pós-modernidade, mas coloca a performance como sintoma da crise do
paradigma moderno. A performance é o que quebra as fronteiras entre
disciplinas e linguagens, o que associa tradição e contemporaneidade, o
que provoca a ideia da citação, não mais uma rejeição à tradição, ao
movimento artístico anterior, mas um olhar descomprometido em relação
a todos os movimentos artísticos anteriores, utilizando-os, livremente,
sem problemas. Os modernismos, o Dadaísmo em particular, o Teatro
do Absurdo, nos anos 1950, e a expansão dos mídia a partir dos anos
1960, estão na base do aparecimento dessa ideia de evento artístico, de
happening, em última instância, de performance.
Grotowski, que agora faz algo que ninguém (nem ele) sabe exatamente o
que seja, também valoriza a noção de performance. Vivendo em
Pontedera, viaja muito, publica alguma coisa e leva, eventualmente, três a
cinco pessoas para ficarem alguns dias assistindo às oficinas que faz, inclusive
utilizando rituais afro-americanos. Grotowski tem firmado a performance
e o performer como noções melhores e mais eficientes para dar conta do
“teatro” contemporâneo, das práticas espetaculares contemporâneas.
15º A Etnocenologia
A história do teatro, a antropologia social e comparada, a sociologia do
atual e do cotidiano podem ser as bases da teoria da comunicação. Esse
conjunto de disciplinas teóricas, em interface com as noções de teatralidade
e “espetacularidade” e a definição do paradigma de performance
permitem pensar a contemporaneidade. Esse paradigma de performance
133
Armindo Bião
deve incluir, necessariamente, a conotação de eficácia. A destreza com as
telemáticas e com o mercado competitivo, contemporâneo faz com que
os mídia utilizem muito a noção de performance nesse outro campo
semântico – performance como destreza e habilidade para lidar com as
telemáticas e com o mercado, como algo desejado, como algo querido,
como algo importante para o ser humano contemporâneo. O paradigma
de performance, inclusive com essa conotação, associado a esse conjunto
de disciplinas e de noções, permite pensar a contemporaneidade.
Essa contemporaneidade, que se caracteriza por uma multiplicação
cibernética de meios de experiências e de expressões estéticas, pode
contribuir, como conceito, para a construção epistemológica de uma
nova disciplina científica, de caráter transdisciplinar, relativista e
comparativo.
Trata-se da etnocenologia, cujo objeto poderia ser a diversidade cultural
das performances coletivas inscritas na tradição e contemporâneas das
dinâmicas transformações tecnológicas e antropológicas dos mídia.
A palavra etnocenologia, segundo o Manifesto, retoma três referenciais da
língua e da cultura gregas. Etno, significando o que é pertinente a um
grupo social, um povo, uma nação; ceno, cobrindo um grande conjunto
de significados, simultaneamente os sentidos de abrigo provisório, templo,
cena teatral, local coberto onde os atores punham suas máscaras, banquete
sob uma tenda, corpo humano, mímicos, malabaristas e acrobatas
apresentando-se em barracas provisórias em momentos de festa – todos
esses sentidos remetem à ideia de ceno na palavra etnocenologia; e logia,
naturalmente, designa a proposição de estudos sistemáticos.
Crítica ao Manifesto da Etnocenologia e Proposição de Campos
de Debate para as Redes
O objetivo das questões que a seguir busca-se formular é estabelecer um
processo de crítica ao Manifesto da Etnocenologia, sugerindo campos teóricos
para o debate e propondo o uso da rede, das redes de pesquisa
potencialmente existentes, não como coisa inédita, mas no sentido de
uma possibilidade de intercâmbio e de diálogo no momento em que há
134
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
uma proliferação de noções e de formas de abordagem concernentes
ao teatro, à performance e às demais práticas espetaculares
contemporâneas. Essas redes teriam, simultaneamente, um caráter
telemático, multimídia, interinstitucional e interpessoal e seus possíveis
recortes restam a definir.
São três as questões fundamentais para o debate.A proposta da
etnocenologia remete à etnologia, que é uma denominação muito
frequente, na França, daquilo que, muito frequentemente, nos Estados
Unidos chama-se de antropologia cultural, e, na Inglaterra, de antropologia
social. Constitui a disciplina científica que se ocupa de estudar um grupo
social, um povo, uma nação. Seu método privilegiado é a etnografia, a
descrição dos fenômenos sociais da população tomada como objeto de
pesquisa. Várias disciplinas surgiram daí: a etnobotânica, a etnolinguística
e a etnomusicologia, por exemplo. A etnocenologia inscreve-se nessa
tradição, com todos os problemas epistemológicos pertinentes.
Campo nº1
O primeiro problema é: como circunscrever o objeto de pesquisa? A
diversidade cultural, no que concerne às práticas espetaculares organizadas,
compreende, segundo o Manifesto, “as maneiras de ser, de comportar-se,
de mover-se, de agir no espaço, de emocionar-se, de falar, de cantar e de
enfeitar-se, que se distinguem sobre as atividades banais do cotidiano, ou
as enriquecem e dão sentido”. É muito difícil de circunscrever-se um
objeto por aí.
Em que medida o teatro, a dança, a música, os rituais religiosos, as
competições esportivas, as manifestações políticas, os desfiles cívicos e
militares, além de outras celebrações coletivas como: frequentar praias e
shopping centers, por exemplo, inscrevem-se nesse conjunto? Como falar
dos grupos e das pessoas que frequentam praias, onde há todo um display
para o espetáculo? As escadarias, as calçadas, as balaustradas, as barracas,
isso também se inscreveria no campo da etnocenologia? Esse é o primeiro
problema: como definir seu campo de investigação?
135
Armindo Bião
Campo nº2
O segundo problema refere-se à ambiguidade da metodologia. Contra
o preconceito etnocentrista, numa tentativa para resolver um dos
problemas importantes das disciplinas irmãs, a etnocenologia propõe a
realização de análises interiores e de análises exteriores, além do abandono
de noções tais como mentalidade pré--lógica, primitiva e sociedades fadadas a
desaparecerem. Propõe, igualmente, a elaboração de um inventário das
práticas espetaculares organizadas. Como estabelecer as condições da
pesquisa, as relações entre o pesquisador e o objeto de estudo, o trajeto
que vai do sujeito ao objeto? Como levar a simpatia e a antipatia em
conta? O que fazer da capacidade de julgar? Aí reside um dos grandes
problemas da etnologia clássica. Como descrever o rito da excisão em
certas comunidades africanas, por exemplo, sem, eventualmente, indignar-
se?
A questão ética está associada evidente-mente à ideia de estética. Maffesoli
fala em ética da estética. Ética como aquilo que dá ligação, aquilo que
cimenta a relação social. Apenas aquilo que se sente em conjunto e que se
partilha é que tem a possibilidade de ligar e de dar o sentimento do
coletivo. Como é que o pesquisador vai poder julgar seu próprio
preconceito etnocentrista? Ele vai estudar algo que conhece, seja porque
lhe pertence, seja porque dele se aproximou – aí remeto à etnometodologia
dos norte-americanos Garfinkel e Cicourel, quando falam da competência
única. A competência única sendo uma condição que o pesquisador tem
de pertencer ao seu objeto de tal maneira que ele tenha a competência
necessária, associada a sua apetência, para estudar aquilo. Como
desvincular, como explicitar os preconceitos, ou as simpatias, ou as
antipatias? Como traduzir nas línguas diferentes, diferentes maneiras de
pensar e de ver fenômenos semelhantes, porém distintos?
Sobre as Duas Primeiras Questões
Para começar a responder a essas duas primeiras questões será necessário
decidir a amplitude do inventário de objetos a serem estudados e explicitar
136
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
o vínculo do pesquisador com seu objeto, que tipo de simpatia, que tipo
de apetência o trouxe para estudar aquilo, para que fique claro o tipo de
abordagem que fará.
Há antropólogos que abandonaram suas culturas de origem e há quem
os considere a todos (inclusive os que não as abandonaram) como pessoas
com problemas de ajustamento social em suas próprias culturas, que,
por isso, se dedicariam ao estudo de outras. Eles seriam responsáveis
pelo conhecimento da diversidade humana, e, segundo alguns, mais
críticos, também pela justificativa do colonialismo econômico, político e
cultural da Europa ocidental e da América do Norte. Há os que,
abandonando suas culturas, casaram-se com o líder ou alguém da
estrutura de poder do grupo ao qual se uniu. A interferência que isso traz
para a comunidade e o conhecimento que esse ato permite para o
pesquisador são ambiguidades com as quais é preciso lidar. As relações
entre o pesquisador e o seu estudo, o trajeto do sujeito ao objeto, deveria
ser sempre a primeira problemática a ser abordada, ainda que brevemente,
em qualquer pesquisa da etnocenologia.
Campo nº 3
A ultima questão é uma discordância com a seguinte afirmação do
Manifesto: “O triunfalismo tecnológico conduz à massificação das formas
culturais; os modelos dominantes são difundidos e tidos como universais,
enquanto que a extrema variedade de práticas não encontra direito de
cidadania”. Artur Gianotti, recentemente, explicou como a explosão da
globalização do mercado e das novas tecnologias reafirma o local e a
diferença. Há quem fale em segmentação de mercados, em sistemas e
subsistemas culturais e, até, em glocal, como a mistura de local com global.
Como a tradição e as novas tecnologias podem conviver?
Há quem date 1998 como o momento em que a indústria do turismo e
a indústria cultural transformem-se nas forças econômicas geradoras de
emprego e renda mais importantes do mundo. Sua matéria- prima é a
tradição e o local. Alguns centros culturais de grande vocação turística (a
137
Armindo Bião
Bahia, por exemplo) já vivenciam uma dinâmica que valoriza,
simultaneamente, as numerosas e variadas práticas espetaculares da tradição
e a experimentação de novas performances e tecnologias. Há o exemplo
organizacional do Grupo Cultural Olodum (Marcelo Dantas), onde
relações familiares tradicionais coexistem com relações amigáveis baseadas
num imaginário libertário, igualitário e cidadão e com as relações de
mercado e de globalização tecnológica, comunicadora e econômica.
Embora perfeitamente justificável, o receio da corrida tecnológica e dos
movimentos bruscos e cruéis da globalização econômica, talvez, também,
se constitua mais como a perplexidade de poder-se perceber aí, em
meio a esse caos assustador, a celebração da tradição por novos meios
que permitam a melhoria da qualidade de vida de um maior número de
pessoas. A tradição, frequentemente, implica privilégios e exclusões sociais.
As tecnologias podem ratificá-los, suavizá-los, eliminá-los ou invertê-los,
mas, de qualquer modo, parecem poder, sempre, contribuir para a
valorização de suas práticas espetaculares e performances.
Referências
DANTAS, Marcelo. Olodum: de bloco afro a holding cultural. Salvador,
Olodum; FCJA, 1994.
DURAND, Gilbert. Les structures anthropologiques de imaginaire.
9.ed. Paris: Bordas, 1969.
DUVIGNAUD, Jean. L’acteur, sociologie du comédien. Paris:
Gallimard, 1965.
______ . Les ombres collectives : Sociologie du theater. Paris: PUF,
1973.
______ . Fêtes et civilizations. 2.ed. Paris: Scarabee, 1984.
______ . Héresie et subversion: Essais sur l’anomie. Paris: La
Découverte, 1986.
138
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
ELIAS, Norbert. La civilization des moeurs. trad. P Kamnitzer. Paris:
Calmann-Lévy, 1973.
______ . Tradução: P Kamnitizer. La societé de couer. Paris: Calmann-
Lévy, 1974
______ . Tradução: P Kamnitizer. La dynamique de l’Occident. Paris:
Calmann-Lévy, 1975.
EVREINOFF, Nikolas. Le theater dans la vie. Stock. Tradução: E. Grevin.
Librairie Stock: Paris, 1936.
GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnometodology. New Jersey:
Prentice, 1967.
HUIZINGA, Johan. Tradução: C. Seresia. Homo Ludens: Essai surla
function sociale du jeu. Paris: Gallimard, 1951.
LE RIDER, Jacques. Modernité viennoise et crises de l’identité.
Paris: PUF, 1990.
MAFFESOLI, Michel. La conquête du present: Pour une sociologie
de la vie quotidienne. Paris: PUF, 1979.
______ . L’ombre de Dionysos: Contribuition à une sociologie de
l’orgie. Paris: Méridiens, 1982.
______ . Essais sur la violence banale et fondatrice. Paris, Méridiens,
1984.
______ . La connaissance ordinaire: Predis de sociologie
comprehensive. Paris, Méridiens, 1985.
______ . Les temps des tribus: Déclin de individualisms dans les societés
de masse. Paris: Méridiens; Klincksieck, 1988.
139
Armindo Bião
______ . Au creux des apparences: Pour une éthique de l’esthétique.
Paris: Plon, 1990.
______ . La transfiguration du politique: La tribalisation du monde.
Paris: Grasset, 1992.
SCHÜTZ, Alfred. Tradução: A. In: NOSCHIS-GILLIÉRON. Le
chercheur et le quotidien: Phénomenologie des sciences sociales. Paris:
Méridiens;Klincksieck, 1987.
SIMMEL, Georg. Tradução: L. Gasparini. Sociologie et épistémologie.
Paris: PUF, 1981.
______ . Tradução de S. Cornille e P. Ivernel. La tragédie de la culture
et autres essais. Paris: Rivages, 1988.
TURNER, Victor. From Ritual to Theatre: The Human Seriouness of
Play. Nova York: PAJ, 1982.
______ . Anthropology of performance. Nova York: PAJ, 1986.
VALVERDE, Monclar. “A instituição do sentido: a linguagem e a
experiência da comunicação”. Salvador: UFBA, 1993. (Textos de Cultura
e Comunicação, 29).
141
Armindo Bião
* Publicado originalmente, na Revista de Antropologia, da série “imaginário”, vol. 1,
nº1, dedicado á temática “Imaginário e Localismo Afetual”, do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia da UFPE, organizado por Danielle Perin Rocha Pitta e
Maria de Fátima Lopes Nogueira (NIEI/ UFPE), Recife, 1995, p. 31-38.
A etnocenologia e as artes contemporâneas do
corpo na Bahia
*
É o exercício do que se chama localismo afetual, dizer o prazer que
tenho em voltar ao Recife. Tive prazer de fazer uma palestra no mestrado
em antropologia, há uns dois anos atrás. Recife, uma cidade foco de
cultura, muito próxima daquilo que ocorre na cidade de Salvador.
Enquanto focos de culturas, ambas são duas nações irmãs muito parecidas
e também diferentes. Depois, terei oportunidade de tecer comentários
comparativos em termos culturais em relação à etnocenologia em
Pernambuco e na Bahia.
Meu tema é a etnocenologia e as artes contemporâneas do corpo na
Bahia, que é o tema da pesquisa. Vou começar a dar pequenos dados
autobiográficos, como uma forma metodológica de abordagem do tema
que eu quero tratar e justificarei essa abordagem metodológica no final
da minha fala.
Nasci em Salvador, na Bahia há 40 e poucos anos atrás, filho de uma
mulher da Zona da Mata e de um homem do Agreste. Pessoas de
formação católica tradicional do Recôncavo da Bahia, muito semelhante
à Zona da Mata de Pernambuco. Fui exposto desde criança através da
vizinhança e da convivência com pessoas de diversas classes sociais a
manifestações da cultura chamada afro-baiana e minha família (muito
cedo, eu nem tinha quatro anos) aderiu ao espiritismo kardecista ortodoxo,
que é uma forma de conhecimento que pretende ser uma filosofia de
base científica e consequências religiosas. É uma forma de conhecimento
142
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
de origem francesa influenciada pelo positivismo. Todos esses detalhes,
para situar um percurso que é pessoal, com o qual vou tentar fazer o
paralelo com a cultura contemporânea na qual eu me inscrevo.
Então, com uma formação desse tipo, que não admite o ritual de danças
e canto, por exemplo, ou de imagens simbólicas, como a cruz cristã ou
as insígnias dos orixás, (estou falando da forma ortodoxa do espiritismo,
não das formas sincréticas atuais), fui sempre exposto a essa cultura baiana
tão forte em termos de formas teatrais e espetaculares (tal como na
Zona da Mata Pernambucana). Eu vou chamar de formas teatrais e
espetaculares esse conjunto de folguedos, danças dramáticas e de outras
formas artísticas aparentadas da tradição popular.
Fiz teatro desde sempre, desde criança, dentro dos presépios vivos, dos
casamentos na roça, dos desfiles cívicos... esses tipos de manifestações.
De classe média, mestiço com predominância de branco, do Nordeste,
tive oportunidade de frequentar algumas pouquíssimas casas de
candomblé, muitos carurus de Cosme e Damião – festa do mês de
setembro na Bahia. Imagino que alguma coisa semelhante tem em
Pernambuco. Mas, quando fui estudar na universidade, não quis estudar
teatro, porque pensava que o teatro que se fazia então na universidade
não era um teatro suficientemente contemporâneo e bom, como o teatro
que imaginava que já estivesse fazendo na escola secundária.
Então, com a pretensão, que caracteriza inclusive a cultura baiana, fui
estudar filosofia (licenciatura), depois tive a oportunidade de fazer o
Mestrado em Interpretação Teatral nos Estados Unidos, na cidade de
Minneapolis, com a maior população indígena urbana dos Estados
Unidos ( morei no gueto dos índios Cherokee e Chipwa). Então me
expus, mais uma vez, a um conjunto de práticas teatrais espetaculares,
com as quais não tinha nenhum tipo de intimidade. Retornando à Bahia,
continuei fazendo teatro, televisão... A partir dessas vivências, resolvi fazer
um Doutorado em Antropologia, na França, para estudar como a cultura
regional se relaciona com a cultura mundial, com a banalização das novas
tecnologias e com a globalização do mercado.
143
Armindo Bião
Por isso, tive a oportunidade de conhecer Michel Maffesoli e fiz-lhe uma
proposta de estudo. Fiquei cinco anos na França, atuando em revistas,
organizando congressos e encontrando pessoas, como Sylvie, com quem
compartilhei a criação de um grupo de pesquisa na Sorbonne, Paris V,
chamado GRACE (misericórdia seria uma tradução literal), quer dizer,
um grupo de pesquisas sobre a antropologia do corpo e seus “enjeux”
(contextos, âmbitos, apostas), o Groupe de Recherches sur
l’Anthropologie du Corps et ses Enjeux. Acho que um estudante tem
muito mais condições de produzir se estiver inserido num grupo de
pessoas que estejam vivendo a mesma situação que ele e com as quais ele
tem a oportunidade de compartilhar as mesmas dificuldades, as ideias,
as referências bibliográficas... Esse grupo foi criado em 1987 e continua
a existir, produzindo trabalhos interessantes e reunindo brasileiros e
franceses, árabes, japoneses, pessoas de múltiplas nacionalidades, o que
permite o intercâmbio cultural não somente em termos de formação
teórica, mas de vivência pessoal.
Este tempo na França permitiu-me entrar em contato com o grupo de
Paris VIII, Universidade criada em 1968, marcada pelo anarquismo e o
movimento de estudantes franceses naquele período. Uma universidade
ousada tanto quanto marginalizada, na qual existe o laboratório
interdisciplinar de estudos sobre as práticas espetaculares humanas e
organizadas. Um nome muito grande e um grupo de estudos de
comportamentos espetaculares, quer dizer, essas práticas que não são
necessariamente artísticas, que não são, de modo evidente, identificáveis
como lúdicas, mas que compreendem desde o teatro, aos rituais religiosos,
às manifestações políticas, competições esportivas, etc. Enfim, toda “mise
en scène” coletiva de um grupo social.
Então, com esse grupo, o GRACE, o NEII (o Núcleo de Estudo
Interdisciplinar sobre o Imaginário) e o TRANSE (grupo Transdisciplinar
de Estudos sobre Performance) da UNB, estamos iniciando uma rede
mais ou menos informal e afetiva de relações intelectuais (rede internet,
correspondências, presença de um ou outro nos encontros...)
144
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Situando autobiograficamente, então, o sujeito que fala, vou me propor a
falar de etnocenologia, que vou definir a partir de um roteiro de três palavras:
estética, performance e cotidiano. Vou definir inicialmente anoção de drama,
de origem etimológica grega, significando ação e entendida no teatro como
a ação em situação limite. Aristóteles, quando define a tragédia ou a comédia,
sempre se referiu ao conflito, à necessidade da situação limite, algo diferente
do dia-a-dia, algo que é extraordinário: seja o filho que casa com a mãe,
seja um homem que tem um fálus de um metro, enfim todos os personagens
em situações que fogem ao cotidiano, tanto cômicas, quanto trágicas do
teatro grego. São seres que vivem a ação numa situação limite. Tudo isso,
para situar bem, para falar de um ou de outro tipo de teatro, do Teatro do
Absurdo, a partir dos anos 50, após a guerra, com todos os horrores do
nazismo, as ideologias do século XIX, todas as visões do mundo
estruturadas em torno de uma forma organizada de pensar, de ver a
sociedade, entram em colapso e o teatro é uma das primeiras manifestações
artísticas que vai revelar o absurdo da situação do dia a dia. E é o Teatro
do Absurdo que vai aparecer e revelar um cotidiano entendido como
uma situação não-limite, onde o conflito não aparece de uma forma tão
clara como no Teatro Clássico. São pessoas sentadas ao lado de uma lata
de lixo, esperando Godot, que ninguém sabe quem seja, e onde não há um
conflito claro. É um teatro da inação, de conflito intelectual, se assim se
quiser, interpelado pelo nada de extraordinário que acontece, porque,
quando acontece o que sai da rotina, um acidente, uma morte, uma dor,
algo que lhe retire do cotidiano, onde você não pensa o que você faz, aí
sim, você se dará conta de ser um “ser no mundo”.
A criança quando nasce tem uma série de necessidades para satisfazer e
começa logo a descobrir formas estratégicas de alcançar o que quer:
chorando, rindo, gritando... tem desejos, necessidades, mas o mundo
não pode atender a todas elas, e a criança é obrigada a jogar, a entrar
numa relação lúdica com o outro, com o mundo, com a alteridade, com
aquilo que está fora, com o objetivo de satisfazer seu desejo.
É dessa “ludicidade” básica da vida humana que, a meu ver, surge tudo
o que poderemos chamar de teatro. É dessa consciência, mais ou menos
145
Armindo Bião
clara (mais ou menos obscura), que a criança tem, de que sorrindo,
chorando, gritando, vai conseguir satisfazer os seus desejos, é daí que se
estabelece o lúdico. O choro pode ser verdadeiro, mas, se for mais alto,
pode ser mais funcional; o riso pode ser natural, mas, se for mais
escancarado, pode ser estrategicamente mais funcional. É quando começa
a se formar a consciência da teatralidade cotidiana: uma consciência
reflexiva. A criança, o ser humano, desempenha vários papéis: filho, irmão,
amigo, inimigo, colega, pai... Enfim, uma série de papéis sociais. Da
administração dessas máscaras diferentes poderá vir a existir uma espécie
de saúde humana (Monique Augras, então presente na sala, Piaget e Gilbert
Durand trataram dessas questões).
Esse conhecimento é reflexivo porque é no momento de dor, no
momento extraordinário que você se dá conta de si próprio e de si
como algo diferente do mundo... é daí que surge a possibilidade da
produção de símbolos e de meios de expressão. Não existe expressão
sem experiência como não existe experiência sem expressão. Não posso
admitir que criança não tenha experiência, mas, no momento em que ela
não a expresse, esta não existe para mim. Da mesma maneira, algo que
esteja sendo comunicado com expressão pode ser oco, se não há
experiência. Estou fazendo esta relação da experiência com a expressão
porque nos permite pensar uma série de palavras como exprimir,
espremer, comprimir, reprimir, oprimir... todas as palavras relativas a
esta capacidade humana de estar no mundo e de expressar-se.
A palavra teatro vem da origem grega, do termo theastai, significando
ver, olhar; do theatrum, espaço organizado em função do olhar, do mesmo
modo que theorein, teoria. Ambas essas palavras têm a mesma origem,
associadas ao sentido de olhar, um sentido eminentemente da reflexão,
reflexivo, que permite o conhecimento da própria imagem no mundo,
como num espelho.
Quando falo de teatralidade e cotidiano, estou querendo me referir a
esse jogo lúdico do dia a dia, onde desempenhamos uma série de papéis
de uma forma mais ou menos consciente; sempre de uma forma lúdica,
no sentido de satisfazer nossa vontade, nossa necessidade. Todos vivemos
146
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
em função do olhar do outro. Não estou dizendo que as pessoas não
são sinceras, estou dizendo que há uma consciência mais ou menos difusa
do poder que tem o riso, pela manhã, quando você diz “bom dia!”, que
é o desejo de um bom dia para si próprio, é um comportamento
estratégico nesse sentido. Cibernética, no sentido de tentativa de organizar-
se o caos. Na teatralidade cotidiana, estamos sempre atuando para o
outro.
O comportamento social é necessariamente baseado nisso, que chamo
de teatralidade, que é a consciência mais ou menos difusa do olhar do
outro, seja para agradar, seja para agredir. Sempre levamos em
consideração o outro.
No dia-a-dia precisa-se de certas rotinas, de certos hábitos para aliviar o
medo do estranho, do extraordinário, em última instância, da morte.
Todas as pessoas têm suas rotinas, ritos diários, na maneira de se acordar,
de se levantar, de um lado ou de outro da cama, de escovar os dentes,
antes ou depois do café. Há uma série de atos de rotina que se precisa
criar para poder-se organizar a vida de todo dia.
Quebra-se esse padrão, de vez em quando, em férias, em visitas, em
viagens. Quando isso acontece, tudo o que vemos ganha uma conotação
espetacular, de uma coisa extraordinária. Enquanto no ordinário da
teatralidade quase nem se vê, não se percebe. Quando se anda, não se
para a fim de pensar que para deslocar o corpo tem-se que transferir o
peso da perna que está atrás para a perna que está à frente; se pensa-se
nisto, bloqueia-se a ação. Passa-se a refletir e se terá dificuldade em agir.
Introduzo a necessidade que a sociedade, os grupos sociais têm, eles
próprios, de criar ritos, rotinas, rituais coletivos para que a vida de todo
dia seja possível no grupo social. Quando acontece um acidente, no qual
as pessoas têm que correr, como numa surpresa, ou quando acontece a
passagem de um ídolo da televisão ou de um homem público e as pessoas
correm, ou por conta do time que você prefere, ou uma procissão religiosa
(somos afetos a isso no Nordeste), quando há um ritual grandioso, algo
que sai da rotina, que sai do ordinário, aí se configura o extraordinário.
147
Armindo Bião
Entro agora no terreno que eu chamaria de “espetacularidade”, remetendo,
como quando falei de teatralidade, ao sentido da visão, spectare, ver,
sobretudo como estou entendendo, diferente do que é quase invisível no
dia-a-dia, que aí é quase inconsciente, porque é um comportamento que
precisamos ter, de qualquer jeito, sem pensar muito, para levar a vida de
todos os dias. Mas, eventualmente, percebemos, nos damos conta disso,
da rotina, do ordinário e pensamos. Por exemplo, quando se deseja
conquistar uma pessoa (refiro-me aqui a Erwing Goffman), ou quando se
quer conseguir um emprego. Nessas circunstâncias, somos capazes de tomar
consciência da necessidade de nos vestirmos e de falarmos de determinada
maneira; somos capazes de tomar consciência desse caráter “teatral” da
vida social, da necessidade de se organizar, até “ensaiando” (como
atualmente um comercial mostra na televisão: alguém ensaiando na frente
do espelho). Todo mundo passa por esse tipo de coisa. O que quero dizer
é o seguinte: quando a pessoa toma consciência dessa teatralidade, ela vive
um momento extraordinário, um momento espetacular. Os rituais e
espetáculos são formas extraordinárias de realização dessa competência
humana reflexiva. São grandes ritos de rotinas sociais, equivalentes dos
pequenos ritos de rotinas pessoais de todo dia.
Ritos, rotinas, rituais, espetáculos são performances das vidas individuale coletiva. São jogos que se fazem com a alteridade. Sem a compreensão
desse outro não há estética. O que me permite compreender a existência
de algo – que não sou eu – é o que sinto disso: calor, frio, alegria, amor,
interesse, atração. A estética ou o sentir juntos, a estética entendida como
sentir, só vai ser possível quando eu tomar consciência do outro, de mim
em relação ao outro.
A história do teatro, a antropologia social e a sociologia do atual e do
cotidiano, hoje, podem estar na base do que se pode chamar de teoria da
comunicação. Essas noções de espetacularidade e teatralidade que proponho,
penso fazer delas uma interface com relação ao assunto de performance.
O que é a performance? É a colocação em forma de alguma coisa.
Temos dois sentidos para performance, um ligado aos happenings dos
148
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
anos 60, um tipo de arte que não é bem teatro, nem artes plásticas, nem
dança, nem cotidiano ou convenção artística no cotidiano. É um tipo de
arte que ficou muito popular naquela época, e existe hoje todo um
conjunto de instalações, de performances e formas artísticas que podem
ser caracterizadas, conceitualmente, de modo preciso, como performance.
Uma espécie de curto-circuito nas formas de arte clássicas.
Uma outra maneira de entender a palavra é no sentido de eficácia, de
desempenho de uma pessoa que é eficiente. O primeiro sentido da palavra
é o do que quebra os limites entre as diversas disciplinas artísticas e o
segundo é o da necessidade contemporânea de eficácia e eficiência. São
as duas marcas do mundo contemporâneo, como o diria Victor Turner,
que trata da experiência e do teatro, que a noção de performance é uma
noção muito operativa, operacional para compreender-se o mundo
contemporâneo. É neste contexto, que vejo o aparecimento da
etnocenologia.
O diretor de tese de Sylvie Fougeray, e presidente do meu júri de
doutorado, o grande sociólogo francês Jean Duvignaud e colegas, do
grupo de Paris VIII – personalizado em Jean-Marie Pradier – resolveram
criar uma nova disciplina chamada etnocenologia. E com o patrocínio
da Unesco realizaram um evento em maio desse ano em Paris (na
UNESCO e na Maison des Cultures du Monde) onde lançaram o
Manifesto da Etnocenologia.
Este neologismo se inspira num uso grego que sugere a dimensão orgânica
da atividade simbólica. Na origem, skené significava uma construção
provisória, uma tenda, um pavilhão, uma choupana, uma barraca. Em
seguida, a palavra ganhou, eventualmente, o sentido de templo e de cena
teatral. A skené era o local coberto, invisível aos olhos do espectador,
onde os atores vestiam suas máscaras. [...] A partir da ideia de espaço
protegido, de abrigo temporário, skené significou as refeições comidas
sob a tenda, um banquete. A metáfora gerada pelo substantivo deu a
palavra masculina skenós: o corpo humano, enquanto abrigo para a alma
que nele reside temporariamente; de alguma maneira, o “tabernáculo da
149
Armindo Bião
alma”, o invólucro da psyché. [...] A raiz gerou igualmente a palavra
skenoma, que significa também o corpo humano. Skenomata: mímicos,
malabaristas e acrobatas, mulheres e homens, apresentando-se em barracas
de feira no momento das festas [trata-se aqui de um extrato do manifesto
de etnocenologia, que resumo e do qual critico, entre outras, a expressão
“triunfalismo tecnológico que conduz à maximização das formas
culturais”, que me parece revelar uma espécie de paranoia, à qual eu
contraponho a noção de Michel Maffesoli de localismo afetual].
Eu poderia dizer, por exemplo, que o “triunfalismo tecnológico” e a
“massificação da cultura” têm fortalecido uma cultura regional, a da
Bahia, do carnaval e da organização Olodum (entre outras), que realizaram
a união da tecnologia e do regionalismo, simultaneamente entrando numa
rede de industrialização cultural. A globalização das leis do mercado e a
banalização das novas tecnologias têm sim permitido o intercâmbio
cultural e, inclusive, têm fortalecido uma cultura regional, reconhecida
internacionalmente enquanto cultura regional, mas de consumo
potencialmente mundial.
A categoria de world music, que é uma invenção do mercado fonográfico
norte-americano para classificar tudo o que não pode concorrer com
tudo o que não é música popular norte-americana, digamos, é um artifício
do mercado para dar conta de manifestações culturais que estão
invadindo o mercado norte-americano [...].
O exemplo da Bahia: a presença africana na Bahia é muito grande
(Gilberto Freyre discutiu como ela se diferencia da presença africana em
Pernambuco). Essa cultura baiana tem uma presença musical, lúdica, na
vida, muito grande, desde sempre.
Mas os registros mais recentes são do século XIX, quando aparece no
carnaval da Bahia uma coisa que se chama afoxé; esse afoxé sendo uma
versão lúdico-profana do candomblé. Em 1974 aparecem os grupos Ile
Ayê e Olodum. Há uma tese de mestrado em administração, em
andamento, sobre a forma de gestão do Olodum, porque ela tem
150
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
aspectos da forma de organização afetiva dos grupos vinculados à
tradição afro-baiana e, ao mesmo tempo, das mais novas formas de
organização empresarial, que lida com as novas tecnologias com uma
graça maior do que muitos de nossos colegas da academia, usando fax,
e-mail, com um escritório avançado, de rede, em Nova York... Uma
estrutura de organização muito complexa com caráter empresarial e
afetivo, político, de afirmação da cidadania da população negro-mestiça
da Bahia, que mantém escola, grupo de teatro, butique e a grife Olodum,
que não tem vergonha de mexer com esses aspectos da sociedade
contemporânea em termos de mercado e tecnologia.
Para concluir: a banalização das tecnologias e a globalização do mercado
estão fazendo com que grupos sociais dominados, política, cultural e
economicamente, transformem-se numa marca consumível pelo público
local, pelo turista e pelo consumidor internacional, aliando à tradição as
novas tecnologias. É por isso que é genial a invenção da etnocenologia,
porque permite que pensemos nessas coisas, intercambiemos e
discutamos.
DA TEATRALIDADE
153
Armindo Bião
A metáfora teatral e a arte de viver em sociedade
*1
Jogar com as relações teatro/ linguística é um projeto ambicioso. Em
troca, pode-se jogar com a utilização de referências e noções teatrais
pela sociologia e a antropologia. Trata-se ainda de um projeto bem
ambicioso, do qual só se pode propor um esboço. Eis-nos aqui então
com um ponto de partida; penso que se pode fazer distinções heurísticas
entre teatro e espetáculo, teatral e espetacular, teatralidade e
espetacularidade, tendo por fim uma contribuição epistemo-
metodológica às ciências do homem.
Antes de ir mais longe, é preciso ressaltar que a presente reflexão, apesar
de suas referências teatrais, não pretende ser uma discussão em torno
das técnicas teatrais ou ainda uma contribuição aos estudos teatrais e
artísticos, nem mesmo uma reflexão sobre as experiências que tentaram
romper as fronteiras entre a arte e a vida cotidiana (GALLAND, 1987;
BOAL, 1978). Nosso domínio, aqui, é aquele da arte de viver em
sociedade, quando não se tem a intenção de fazer arte. É o domínio da
vida social, da antropologia e da sociologia.
Teatro, antropologia e sociologia
O fato de que essas palavras sejam formadas, na maior parte de raízes
gregas, remete-nos primeiramente à matriz da história e do pensamento
* Publicado (com tradução de Antonio Oliveira e revisão de Michel Agier, de texto
publicado originalmente In: JOUBERT, Sylvie; MARCHANDET, Eric (Eds.). Le
social dans tous ses états. Paris: L’Harmattan, 1990. p. 36-43. e CADERNOS DO
CRH, Salvador, v.15, p.104 – 110, 1991.
1
Trata-se, originalmente, de uma comunicação ao Colóquio ÉTAPES (États Généraux
pour la Jeune Sociologie) na Universidade Paris I Panthéon Sorbonne, em 1989, que
contém, de forma embrionária, os aspectos epistemológicosdesenvolvidos na tese de
doutorado em Antropologia Social e Sociologia Comparada, da Universidade Paris V
René Descartes Sorbonne, “Théâtralité et spectacularité: une aventure tribale
contemporaine à Bahia”, aprovada em dezembro de 1990.
154
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
ocidental: a cultura grega. E uma primeira referência se faz obrigatória: a
Paideia, de Werner Jaeger. De seus comentários sobre a tragédia
(literalmente o canto do bode), se poderá lembrar: tratava-se “da mais
elevada manifestação de uma humanidade para quem a religião, a arte e
a filosofia formavam uma unidade indivisível” (JAEGER, 1986, p.203).
Pode-se, pois, pensar que o teatro, no mundo grego, desempenhava, de
maneira importante, múltiplas funções, a saber: estética, antropológica,
sociológica e política.
A palavra teatro entrou na língua francesa por volta de 1200 e na inglesa
no curso do século XIV, procedente do latim “theatrum”, do grego
“theatron” (lugar arrumado em função do olhar), do grego “theastai”
(olhar). Atualmente, seja em francês, inglês, ou ainda em português,
sobrepõe dois conjuntos de significação: um espacial, arquitetural (um
edifício, um lugar, uma sala); e um outro, que se organiza em torno da
definição de uma atividade: “arte visando representar diante de um
público, segundo as convenções que variaram com a época e as
civilizações, sequência de acontecimentos... onde são engajados seres
humanos agindo e falando” (PETIT ROBERT, 1996, p. 2244).
A palavra antropologia já era utilizada pelos clássicos gregos. Em francês,
só aparece em 1832. Façamos apelo a um clássico alemão do fim do
século XVIII, exemplar do cuidado de distinções, classificações e
precisões racionais do pensamento europeu das Luzes e que está na
base da modernidade ocidental: Kant. Ele define a antropologia: uma
“doutrina do conhecimento do homem, sistematicamente tratado”; e
afirma: ela “pode sê-la do ponto de vista fisiológico ou do ponto de
vista pragmático”. Interessando-se mais por este último, ele propõe:
“Não há na verdade fontes para a antropologia, mas apenas meios de
socorro: a história, as biografias, mesmo o teatro e os romances”
(KANT, 1988, p. 11-12).
Além da atualidade desta proposição no que concerne à importância
metodológica das histórias de vida (FERRAROTI, 1983; CATANI;
MAZE, 1982), a curiosidade é atraída em direção à ideia do teatro como
155
Armindo Bião
“meio de socorro” para a antropologia. E aqui abro curtos parênteses
para lembrar, de passagem, outro clássico alemão: Nietzsche, que faz
uma crítica radical ao pensamento da modernidade europeia. O assunto
com o qual ele estreia sua produção intelectual é verdadeiramente a
tragédia grega. Quase um século após a proposição kantiana, não teria
ele feito um ensaio de antropologia pragmática (NIETZCHE, 1949).
A palavra sociologia (composta a partir de uma raiz latina e outra grega)
foi proposta por Comte para definir um estudo científico novo, aquele
“dos fatos sociais humanos”. Dois textos clássicos da sociologia francesa,
um de Dürkheim sobre a vida religiosa (DÜRKHEIM, 1985); outro de
Mauss sobre a noção de pessoa (MAUSS, 1985, p. 333-362) vão utilizar
noções, referências etimológicas e históricas que remetem ao teatro.
Dürkheim (1985) compara certos rituais às representações dramáticas,
mostrando seus pontos comuns (atores que representam personagens;
espaço arrumado para a representação; sequência de acontecimentos
narrados, etc.).
Os ritos representativos e as recriações coletivas são mesmo
coisas tão vizinhas, que se passa de um gênero a outro, sem
solução de continuidade” (DÜRKHEIM, 1985; p. 543).
E conclui. “Quando um rito não serve mais a não ser para distrair, não
é mais um rito (DÜRKHEIM, 1985, p. 546).
De outra parte, Mauss abriu importantes vias de pesquisa (MAYERSON;
1948; DUMONT; DAMATTA, 1983) com sua abordagem transcultural
da noção de pessoa. Disto resulta a ideia das categorias do “eu” como
produtos de uma inserção de indivíduos em sistemas interrelacionais, de
uma tomada de consciência das variações dos papéis sociais e dos
personagens na vida cotidiana. No que concerne à tradição greco-latina,
a noção de pessoa é uma elaboração do direito romano baseada no
casamento cultural grego e etrusco, a palavra “persona” remetendo à
máscara, máscara ritual, máscara do antepassado, máscara teatral.
156
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Com estas poucas referências pode-se afirmar o teatro como
incontornável pela sociologia e antropologia. O que, aliás, Erwing
Goffman (1973), o interacionismo simbólico e a sociologia do cotidiano
já têm facilmente confirmado.
Teatro(al), espetáculo(ar)
Vimos, no início deste texto, que a palavra teatro abrange dois conjuntos
de significações: um espacial, outro de referência à atividade artística. O
sentido etimológico primeiro remetendo à ideia de espaço arrumado
para que se possa olhar algo. Encontramos aí nossa primeira fonte de
dificuldades para operar a distinção entre teatro e espetáculo, de origem
latina, que remete também ao ato de olhar (“spectare”). Por outro lado,
após uma primeira definição – “conjunto de coisas ou de fatos que se
oferece ao olhar, capaz de provocar reações”, o Petit Robert (1996,
p2132.) dá duas outras, que fazem referência ao teatro. Há a ideia daquilo
que se apresenta em público, de uma representação teatral, cinematográfica,
coreográfica; e de outra parte a ideia mesma de mise en scène.
A atividade teatral ganha reconhecimento social, quando é realizada em
espetáculo, mas não se reduz a este. Além disso, existem espetáculos que
não se pode dizer teatrais. Por conseguinte, se poderá ressaltar, no que
concerne a teatro, sobretudo a ideia de uma atividade artística, de uma
realização grupal temporária, que chega normalmente a um período de
apresentações públicas de um espetáculo, mas que não se reduz a isto:
considerar, em segundo lugar, uma outra significação estrita relacionada
ao espaço – ou seja, o teatro como lugar arrumado para o olhar. E
ressaltar, o que concerne ao espetáculo teatral, mas também os espetáculos
de dança, de música, de cinema, de circo, de esporte, de natureza e... de
vida social.
Considerando os adjetivos espetacular e teatral, vê-se que o primeiro
significa o “que fala aos olhos, e se impõe à imaginação” (PETIT
ROBERT, 1996, p .2133). Teatral (à parte os sentidos do que pertence
ou é específico ao teatro) possui também um sentido figurativo e
157
Armindo Bião
pejorativo. “Que tem o lado artificial, enfático, exagerado do teatro”.
Por espetacular, o Petit Robert remete a chocante, espantoso,
impressionante. Por teatral remete ao dramático, cênico, e... espetacular.
Apesar desse círculo que parece se fechar, penso poder insistir em nossa
distinção: recuperando do teatro sobretudo a referência à representação
(pessoas que representam personagens), ao artifício, mas deixando de
lado o sentido pejorativo, e remetendo o sentido figurativo ao espetacular,
que fará sempre referência ao chocante, ao impressionante.
Teatralidade e espetacularidade
Há um século, a codificação da arte teatral conheceu duas grandes
tendências. Uma tenta ir em direção ao despojamento dos “exageros
teatrais” (em direção à “vida”), cuja grande referência é Stanislavski. A
outra tenta ir em direção ao “teatral”, ao espetacular (diferente da vida)
– a referência pode ser Meyerhold. A finalidade da primeira linhagem é
fazer parecer o teatro com a vida do dia a dia, e as personagens
apresentadas no espetáculo com os atores sociais reais. Neste sentido, se
trataria de fazer com que os atores teatrais dominassem as técnicas
cotidianas do corpo, a ponto de poder repeti-las perante o público sem
perder a sensação de espontaneidade – isto simplificando muito para
poder avançar. De outro lado, a linhagem do teatro “teatral” (ou
espetacular) tem por finalidade fazer com que os atores teatrais dominem
técnicas extracotidianas do corpo, no sentido utilizadopela “Antropologia
teatral” de Eugenio Barba (BARBA; SAVARESE, 1986). De acordo com
nossa hipótese, a primeira tendência buscaria mais a teatralidade, enquanto
a segunda privilegiaria mais a espetacularidade.
Buscando os princípios comuns às diversas tradições teatrais, Barba
propôs uma noção de técnica extracotidiana do corpo para dar conta
das alterações de andar e de equilíbrio corporal dos atores. Suas referências,
entre outras, foram os atores e dançarinos Katakali e de Ballet. Para ele,
estas técnicas seriam a própria base do teatral. De fato, elas seriam mais,
a meu ver, uma das principais referências não somente do espetacular
teatral ou coreográfico, mas também do espetacular mais geral – do
158
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
espetacular esportivo ou de circo, por exemplo (LE BRETON, 1985, p.
82) – no qual estas técnicas extracotidianas são levadas ao paroxismo.
Por outro lado, existe ainda o espetacular de certos rituais religiosos com
transe, e onde os “atores” podem até andar sobre as brasas sem queimar
os pés. E aqui se abre uma rica via especulativa sobre o que se pode
chamar de “estados alterados de consciência” em relação ao teatral e ao
espetacular, via esta a se enveredar numa outra ocasião.
Há alguns anos, numerosos intelectuais insistem sobre o lado espetáculo
da sociedade, do Estado, do corpo contemporâneo ou, ainda, sobre as
tendências atuais à teatralização e “espetacularização” do mundo. É, a
meu ver, bem aqui que se deve distinguir a teatralidade da espetacularidade,
como duas categorias da sociedade contemporânea.
Minha proposição é a seguinte:
A teatralidade seria o jogo cotidiano de papéis sociais e pertenceria,
sobretudo, ao domínio dos ritos de interação de ordem íntima e pessoal
(HALL, 1971). É o reino da pessoa e da rotina, onde se formam e se
enraízam as possibilidades da espetacularidade e da própria atividade
teatral. Trata-se também do reino das formas de delicadeza e de cortesia
(ou ainda, do que as contraria) numa cultura dada.
A “espetacularidade” (spectacularité) seria a colocação em cena
extracotidiana de relações sociais que têm lugar nos espaços sociais e
públicos. É o reino da grandiosidade, do chocante, do impressionante.
Claro que estas categorias não podem ser compreendidas como dois
estados distintos e afastados um do outro. Na realidade, os fatos sociais
possuem frequentemente as duas dimensões. Evito aqui discutir questões
de ordem semiológica ou filosófica, colocando em relações estruturais o
corpo, a teatralidade e a espetacularidade – as pesquisas sobre
expressividade do corpo desenvolvidas por Michel Bernard, há alguns
anos (BERNARD, 1976), podem ajudar no aprofundamento desta
discussão. De outra parte, as experiências educacionais de jogo e de
expressão dramática, assim como a educação artística na França, Brasil,
159
Armindo Bião
Tunísia e Montreal, tendo como referência principal a pessoa e a
comunidade, no mundo profissional e na vida social, poderão ser também
úteis para o refinamento da distinção heurística que nos interessa. No
momento, contento-me em lançar algumas pistas de uma pesquisa em
curso.
Referências
BARBA, E.; SAVARESE, N. Anatomie de l’acteur: un dictionaire
d’anthropologie théâtrale. Paris: Bouffonneries; Contraste, 1986.
BERNARD, M. L’expressivité du corps: La recherche em danse. Paris:
Chiron, 1976
BOAL, A. Jeux pour acteurs et non-acteurs. Paris: Maspéro, 1976.
CANTINI, M.; MAZE, S. Tante Suzanne. Paris: Méridiens, 1982.
DAMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. 4.ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 1982.
DUMONT, L. Essais sur l’individualisme. Paris: Seuil, 1982.
DÜRKHEIM, E. Les formes élémentaires de la vie religieuse. 7.ed.
Paris: P.U.F, 1983. (Coleção Quadrige).
FERRAROTI, F. Histoire et histoires de vie. Paris: Méridiens, 1983.
GALLAND, B. Art sociologique: méthode pour une sociologie
esthétique. Genève: Georg, 1983.
GOFFMAN, E. La mise en scène de la vie quotidienne. Paris: Ed.
De Minuit, 1973.
HALL, E. T. La dimension cachée. Paris: Seuil, 1971.
160
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins
Fontes, 1983.
KANT, E. Anthropologie du point de vue pragmatique. Paris: Librarie
Philo J. Vrin, 1984.
LE BRETTON, D. Corps et societés: essai de sociologie et
d’anthropologie du corps. Paris: Méridiens, 1983.
LE NOUVEAU Petit Robert. Paris: dictionnaires Le Robert, 1996.
MAUSS, M. Sociologie et anthropologie. 9 ed. Paris: PUF, 1983.
(Coleção Quadridge)
t les oeuvres. Paris: Librairie Philo J. Vrin, 1948.
NIETZSCHE, F. La naissance de la tragédie. Paris: Gallimard, 1949.
POIRIER, J.; CLAPER-VALADON, S.; RAYBAUT, P. Les récits de
vie. Paris: PUF, 1983.
161
Armindo Bião
Teatralidade e espetacularidade 
*
Este artigo contém os temas centrais de uma tese de doutoramento. O
ponto de vista teórico é a interface teatro/antropologia. O campo de
pesquisa principal é o percurso de uma “tribo” de jovens intelectuais
baianos, entre 1968 e 1978, que fizeram teatro e jornalismo (Verbo
Encantado e Viver Bahia), viveram em comunidade (“Begônias”) e (alguns)
se exilaram mais ou menos voluntariamente na Europa em 1970.
Caricatura é, ao mesmo tempo, simplificação e exagero. E, assim sendo,
uma forma de comunicação muito eficaz. No discurso científico pode
ser um recurso precioso. Se eu digo que nove entre dez astros da política,
na Índia, são também estrelas do cinema indiano, vocês me entendem.
Um ex-ator de Hollywood e presidente americano, duas vezes, fez de
seu vice- sucessor. O papa também foi ator na juventude...
As relações poder político/ mundo dos espetáculos são evidentes em
todas as culturas. Georges Balandier (O poder em cena) demonstra-o. Quanto
à sociedade contemporânea, essas relações são detalhadas por Guy
Debord (Sociedade – e comentários – do espetáculo) e Roger-Gérad
Schwartzenberg (O estado espetáculo).
Por outro lado, o discurso científico do século XX está recheado de
metáforas, noções e figuras técnicas teatrais, sem que o teatro seja o
objeto eleito do discurso. Bem assim a concepção freudiana do complexo
de Édipo, a noção de papel social de G. H. Mead, o psicodrama de
Moreno, os estudos sobre comportamento animal (Lorenz p. ex.), as
abordagens do elemento lúdico como base da vida social (O homo ludens
de Huizinga), as leituras teatrais dos ritos cotidianos (TURNER,
GOFFMAN, MOLER, MAFFESOLI) dos rituais políticos e religiosos
(EVREINOV, LEIRIS, NAMER).
*
 Publicado In: A TARDE, Salvador, 13 jan., 1990. Caderno Cultural.
162
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
O teatro, após Artaud e, sobretudo, depois das experiências polonesas
de Grotowski, passou a incorporar noções e temas das ciências sociais.
Os grandes centros atuais geradores de pesquisa nessa área são a ISTA –
International School of Teatre Anthropology, dirigida por Eugenio Barba, em
Holstebro, Dinamarca; o centro de Grotowski, em Pontedera, Itália; os
teatros Bouffes du Nord, de Peter Brook, e do Soleil, de Arianne Mnouchkine,
em Paris; e o trabalho do antropólogo e homem de teatro Richard
Schechner, em Nova York.
Essa interface teatro/ antropologia é reveladora do grande problema
do discurso científico da modernidade: a definição dos termos. Depois
que as diversas ciências (mesmo as ditas exatas), passaram a reformular e
nuançar conceitos tidos como preciosos (como, por exemplo, os de
tempo, espaço, energia, rede, vírus, microorganismo, alteridade), um novo
tipo de discurso elabora-se, não mais baseado em conceitos “duros”,
mas em noções “moles”. Em “formas”, como denomina Maffesoli.
Essas são noções operacionais, descartáveis mesmo, que não possuem
existência real, mas que ajudam a pensar a realidade (como os “idealtipos”
da sociologia compreensiva de Max Weber). São alavancas metodológicas
para o conhecimento (“conascimento”) do mundo contemporâneo, num
contínuo vaivém – “formas” para pensar/ “formas” de viver, onde
umas eoutras se transformam.
É nesse sentido que proponho definir as noções de “teatralidade”,
“espetacularidade” e “pós-modernidade”.
Teatralidade e Espetacularidade
São conceitos que implicam o elemento lúdico que lubrifica as articulações
do corpo social. São os jogos cotidianos e os rituais extraordinários que
constituem essas articulações: teatralidade e espetacularidade. Para
simplificar, exageremos: as características do teatral são o que se refere
ao espaço ordenado em função do olhar (do grego theatron); espetacular
é o que caracteriza o que é olhado (do latim espectare). Quando fazemos
163
Armindo Bião
teoria (theorein = ver de longe) e “olhamos” o mundo, todo o seu espaço
é espaço teatral, e tudo o que aí se vê pode ser espetacular. Os microeventos
da vida cotidiana formam a teatralidade. Os macroeventos, que
ultrapassam a rotina, são extracotidianos, e formam a espetacularidade.
Teatralidade é o jogo cotidiano das interações face a face, onde somos
simultaneamente atores e espectadores. Num mesmo dia, em diversas
situações, a mesma pessoa é mãe, filha, mulher, amante, dominadora,
dominada, estrangeira, compatriota, introspectiva, extrovertida, patroa e
empregada: o que depende do “outro”. O grau de sinceridade e de
simultaneidade, na interpretação dos papéis, pode variar. Até a hipocrisia
pode entrar em jogo. Aliás, o termo hipócrita, em sua origem grega,
designava o ator de teatro, o que finge. Depois passou a designar
pejorativamente aquele que finge em sociedade. Hipocrisia, cortesia,
polidez, respeito e rebeldia às convenções sociais são os jogos cotidianos
de inte (g) ração social.
Na teatralidade agimos raramente pensando em “como”. Se penso
“como pôr o pé adiante do outro”, no ato de andar, é possível que
perca o equilíbrio. O mesmo ocorre com o ator em cena: ele não age
inconscientemente (como os radicais stanislavskianos podem até querer),
nem completamente consciente (como os brechtianos extremados
parecem sugerir). O ator de teatro, no palco, vive uma espécie de estado
modificado de consciência, semelhante, mas diferente, do estado de uma
pessoa na teatralidade cotidiana.
Eventualmente, tenho consciência de que para conseguir um favor, ou
para conquistar alguém devo agir, vestir-me e apresentar-me de tal e tal
modo. Mas, durante a “performance” é preciso que eu me entregue ao
jogo. São as vivências desse estado modificado de consciência da
teatralidade que formam o “eu”, sucessão e convivência de máscaras
(do greco-latino persona): a pessoa.
Espetacularidade é a categoria dos jogos sociais onde o aspecto ritual
ultrapassa o aspecto rotina: são os rituais religiosos, as competições
164
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
esportivas, os desfiles e comícios, as grandes festas. O espaço “teatral” é
aí mais definido que na teatralidade cotidiana (onde este compreende
todo o espaço social). São os templos, estádios, salões, palanques,
determinadas ruas e praças.
O circo romano é exemplar: lá se passavam combates, acrobacias, ritos
esportivos e religiosos, apresentações musicais e teatrais, danças,
palhaçadas e massacres. Os romanos admiravam. A distinção entre atores
e espectadores também é mais clara. Se as técnicas corporais (uma noção
clássica de Marcel Mauss) são banais e cotidianas na teatralidade, na
espetacularidade elas são extracotidianas e exigem um treinamento
específico (o dos iniciados, esportistas, militares, modelos, líderes, etc).
Uma vez essas técnicas banalizadas (o que ocorre muito com as novas
modas de vestimentas, esportivas e de cuidados do corpo), penetram o
mundo cotidiano e transformam-se em técnicas corporais da teatralidade.
As formas sociais de espetacularidade são tentativas de manipulação da
realidade, para “organizar” o caos cotidiano, e permitir a vivência do
trágico da vida (a morte inevitável), de caráter extraordinário. São as
formas definidoras dos grupos sociais e das relações poder/ contra
poder. As formas sociais da teatralidade são minúsculas soluções, já
incorporadas à tradição cultural, para os mesmos problemas. São as
formas singularizadas das pessoas e das relações interpessoais. O teatro é
o modelo apolíneo do curto-circuito teatralidade/ espetacularidade. O
carnaval é a versão dionísica.
Nessas formas lúdico-sociais, entre ter e não ter consciência, existe um
amplo leque de estados modificados de consciência. Melhor que leque, a
figura da esfera dá conta desses estados (entre os quais a hiperconsciência
e a subconsciência), pois a gradação é sutil e infinitas são as possibilidades
de combinação. O transe, o êxtase, a possessão, o estado de orgasmo, a
brincadeira infantil do faz de conta, a interpretação teatral de personagens,
o estado de graça, o hipnótico, o histérico, o esquizofrênico, e os diversos
estados de espírito, além dos estados de consciências dos artistas em
cena, interpenetram-se.
165
Armindo Bião
Método
A perspectiva é a da antropologia clássica, de estudo sistemático e
multidisciplinar do homem. Não na forma positiva da “modernidade”
colonial-racionalista do progresso. Mas numa forma relativista. A completa
objetividade científica é falsa. A subjetividade também. Minha base
metodológica é a “trajetividade” (noção de A. Berque): o curto-circuito
subjetividade/ objetividade; pois estou implicado como sujeito no objeto
de estudo (um grupo de jovens 1968/ 78).
Estudo algo que vivi: o “outro” está em mim. Radicalizo o que os etnólogos
exigem: que o pesquisador seja, o mais possível, um integrante do grupo
social estudado. Assumo a ideia de “competência única” da
etnometodologia, e a noção de “implexidade” (implicação + complexidade)
de Le Grand. A teoria anarquista de Feyerbend, que postula as conquistas
científicas como transgressões aos sistemas culturais dominantes, exige rigor
teórico. A sociologia como arte, de Maffesoli, exige pesquisa poética e
rigor acadêmico. Pretendo satisfazer essas exigências.
As técnicas de pesquisa: 11 entrevistas, não-diretivas gravadas (25h.) e
coleta de documentos (22 edições do Verbo Encantado e 22 de Viver
Bahia; reportagens, poemas e artigos publicados em jornais e revistas
locais e nacionais; fotos, gravações, programas e cartazes de espetáculos).
Pós-modernidade
A modernidade é o apogeu da cultura europeia. É a cristalização filosófica
da antropofagia do velho continente no século XVIII. É o racionalismo,
que privilegia o sentido da “visão” de mundo: o homem, confrontado
ao destino, joga com sua própria vida e se individualiza. Com o
Renascimento, a Europa exerce sua antropofagia com a herança grega,
que lhe foi transmitida pelos árabes. A criação pictural da perspectiva
(cujo modelo arquitetônico é o teatro) e o aproveitamento das técnicas
orientais de impressão tipográfica reafirmam o primado da “visão” e,
pela comparação com as culturas “exóticas”, da ideia de progresso. O
166
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
mito do “bom selvagem”, que permeia a filosofia “das luzes”, é o
produto antropofágico europeu de suas incursões no Brasil e nas
Américas. Daí uma humanidade que se quer universal e que se exporta
para o mundo.
Sem escrita, a sociedade baseada na oralidade, privilegia o tato, a audição
e o olfato. E é o passado, e não o futuro, que predomina no imaginário
da temporalidade. Essas afirmações poderiam também ser testadas em
estudos sobre as culturas de escrita pictográfica (de imagens de coisas, e
não de signos abstratos). Mas são cada vez mais raras as sociedades
isoladas de um tipo ou de outro. O processo cultural contemporâneo
tem mesclado as diversas formas de comunicação escrita, oral e corporal,
graças à proliferação e à mobilidade cada vez maior das imagens e das
teleinformáticas. O tátil e o digital desenvolvem-se, sem por isso
ofuscarem a visão. E abandonamos o futuro (da modernidade) e o
passado (da não-modernidade?).
A Europa, no dizer de Baudrillard, viu sua utopia de modernidade
“realizada” na América do Norte, umséculo após o registro poético da
modernité por Baudelaire (1850). Índios fora, a América é extensão da
Europa. Mas o Japão incorpora a modernidade europeia, baseando-se
solidamente em sua própria tradição (o que seria o inverso da
modernidade). O que surpreende nesse processo antropofágico é a eficácia
(pelos próprios padrões da modernidade) do “sincretismo” do espírito
cartesiano com religiosidade e formas da espetacularidade tradicionais.
A esse tipo de fenômeno há quem chame de “transmodernidade”.
(BERQUE, 1982), ou “epimodernidade” (SCHERER;
HOCQUENGHEM, 1986). Prefiro o termo “pós-modernidade”, não
para definir um “após” histórico, mas um outro tempo lógico da velha
modernidade europeia. E não também como conceito, mas como
“forma”, noção temporária e descartável. E que hoje define um estilo
arquitetônico datado, que prefere a forma à função, misturando elementos
“arcaicos” e modernos. Umberto Eco designa pós-moderno o estágio
de impasse e radicalização de todo movimento artístico, que o dilui
enquanto surge um novo movimento. Embora eu não esteja aqui me
167
Armindo Bião
referindo ao movimento modernista, nem à modernização como
renovação, mas à “modernidade”.
Bahia
Os jesuítas, esses primeiros “modernos” (BAUDRILLARD, 1982),
usaram um teatro polilíngue para a formação de pessoas cristãs. Na
Bahia (e no Japão). Aqui o genocídio e a escravidão são elementos
fundadores. Assim como a modernidade, que se cristaliza com a
industrialização e a urbanização. Euclides da Cunha, com “Os Sertões”, e
Nina Rodrigues, com “Os Terreiros”, são nossos clássicos da modernidade
(racismos inclusos).
Da estação da Calçada partem as tropas para Canudos. Entre a construção
do porto, a partir de 1911, e a do aeroporto, durante a Segunda Guerra,
os remanejamentos das ruas de cumeeira do centro urbano, são marcos
da modernidade, que têm ainda impacto reduzido no conjunto da
população. Depois vêm a Fonte Nova, o Fórum e a Av. Otávio
Mangabeira. Nos anos 50, aparecem o petróleo e os supermercados.
Nos anos 60, o Túnel Américo Simas, o CIA e as avenidas de vale. O
crescimento urbano, e o do parque hoteleiro e de equipamentos turísticos,
o Centro Administrativo e o Polo de Camaçari redefinem o novo espaço
“teatral” da região Metropolitana. O incêndio do “moderno” Teatro
Castro Alves é anterior à não-modernidade, que na verdade pegou fogo
na feira livre e popular de Água de Meninos. Que o incêndio do Mercado
Modelo seja símbolo (reunindo pesquisa teórica e pesquisa de campo): a
aventura tribal pós-moderna em estudo passa por esse espetáculo, visto
do Varanda, aquele bar mítico da Ladeira do Pau da Bandeira.
A análise (ainda em curso) dos dados reunidos na pesquisa de campo
revela a crescente importância, entre 68 e 78, das formas espetaculares
de matriz cultural negro-africana. Elas ocupam o novo espaço urbano,
que interliga vales e cumeeiras, centros e periferias, invasões e shopping
centers, contraculturas e instituições. Graças a vivências limites (drogas,
marginalidade, teatro, misticismo e sexualidade polimorfos), essa tribo
168
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
de jovens de classe média, de brancos da Bahia, participa (a reboque ou
na vanguarda) desse processo que defino como pós-modernidade
antropofágica da cidade da Bahia. O que há de novo é a inte (g) ração
modernidade tecnológica e intelectual/ não- modernidade mística e sensual.
A palavra axé está no linguajar cotidiano e nos textos publicitários dos
anos 80. Entre 68 e 78 era um termo de espetacularidade. Hoje resume,
assim como a nova música baiana, a própria teatralidade da Bahia pós-
moderna.
Referências
BAUDRILLARD, Jean. Modernité. In La modernité ou l’esprit du
temps. Catálogo da Bienal de Paris, secção “Arquitetura”. Paris: L’Equerre,
1982. p. 28-31.
BERQUE, Augustin. Vivre l’espace au Japon. Paris: PUF, 1982.
SCHERER, René; HOCQUENGHEM, Guy. L’âme atomique: pour
une esthétique d’ère nucléaire. Paris: Albin Michel, 1986.
169
Armindo Bião
Le jouir du jouer
*
L’élément ludique baigne les articulations du corps social. Les jeux des
rôles sociétaux au quotidien et les mises en scène extra-quotidiennes des
rapports sociaux font l’articulation entre les corps humains individuels et
le corps social. On joue et on utilise l’espace comme une scène pour être
en société et pour vivre les socialités de tous les jours.
Cette idée me semble se dégager de façon de plus en plus nette de la
nébuleuse de l’imaginaire contemporain. En Occident, depuis une
cinquantaine d’années, l’utilisation de la métaphore théâtrale par les sciences
sociales est révélatrice d’une prise de conscience, dans le milieu intellectuel,
de l’articulation corps propre/corps social en termes de jeu et de mise
en scène (MEAD; HUIZINGA; GOFFMAN, 1963)
1
. C’est bien le
comportement ludique qui permet l’être ensemble, la jouissance de la vie
sociale et la vie tout court.
Pour satisfaire les besoins vitaux, on se confronte à l’altérité. Un processus
de négociation s’installe, dont sont exclus le conflit et la violence. La
douleur et la mort sont toujours des possibilités concrètes. Dans la tentative
de les dépasser, on se place dans la sphère du ludique. Toute activité
inter-relationnelle dans laquelle un corps humain, au moins, s’engage
concrètement, peut être comprise dans cette sphère. On peut toujours y
discerner les paradoxes liberté-règle et plaisir-contrainte, qui caractérisent
le jeu (HUIZINGA; CAILLOIS, 1951)
2
. La liberté et la recherche du
* Publié à l’origine dans Sociétés : revue des sciences humaines et sociales, Paris, n. 27,
p. 21-25, 1990 .
1
MEAD, George Herbert; KAELIN, E; THIBAULT, G. L’esprit, le soi et la societé.
Trad. Jean Cazeneuve. Paris: PUF, 1963.
2
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: essai sur la fonction sociale du jeu. Trad. Cécile
Seresia. Paris: Gallimard, 1951.
170
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
plaisir sont humaines. Les règles et les contraintes relèvent du domaine
du personnel, du social ou de la nature elle-même. Il s’agit bien d’un
besoin vital : pour jouir de la vie il faut jouer.
Cette affirmation a une caractéristique utilitariste évidente. Mais je ne
m’inscris pas dans la tradition moraliste, explicitée au XVII
e
 siècle par
Shakespeare et Caldéron de la Barca (le monde est une scène où chacun
joue un rôle), et qui se base sur une vision platonicienne et éthique du
monde. J’opte pour ce que Michel Maffesoli (1979)
3
 nomme
« l’immoralisme éthique ». Il est bon et beau de jouer. Et pour essayer de
mieux cerner ce jeu social beau et utile, je propose les notions de théâtralité
et de spectacularité.
Deux formes du jeu social
Ces notions sont des forms idéal-typiques, des mini-concepts qui se
chevauchent et n’existent pas indépendamment l’un de l’autre. Néanmoins,
if faut bien les distinguer. Partons des notions de théâtre et de spectacle.
Grosso modo, le mot théâtre, du grec théâtrum, renvoie à l’espace
aménagé pour le regard et à l’art de la représentation théâtrale elle-même.
Bien sûr, le spectacle en est l’aboutissement et la fin ultime. Mais il n’est
qu’un moment d’un processus plus complexe : un processus qui se
constitue principalement de répétitions, de jeux de rôles, de travail à partir
de textes et d’improvisations autour de partitions connues.
En transposant ce raisonnement à l’univers du jeu social, la théâtralité
serait les rites d’interaction répétitifs de la vie de tous les jours, l’univers
de la routine.
Je rappelle la notion de personne dans le Droit romain (MAUSS, 1950)
4
qui a élaboré la tradition théâtrale grecque du masque, lequel singularisait
3
MAFFESOLI, Michel. La conquête du présent. PUF: Paris, 1979.
4
MAUSS, Marcel. Une catégorie de l’esprit humain: la notion de personne, celle de
«moi». In: Sociologie et anthropologie. Paris: Quadrige; PUF, 1950. p 332-362.
171
Armindo Bião
l’individu au sein du groupe. En effet, lorsque l’acteur s’est détaché du
chœur est apparuel’idée de personne. La théâtralité serait, donc, le
domaine de la formation de la personne, la conscience de soi et de son
corps apparaissant dans les jeux de relations interpersonnelles de tous
des jours (MEAD, 1963)
5
.
J’établis le lien entre le développement du théâtre grec, la primauté
sensorielle du regard, l’apparition d’une forme d’écriture horizontale à
caractères graphiques représentant des sons et, enfin, la prépondérance
dans l’imaginaire social de la modalité temporelle d’avenir, en un mot :
du projet. Autant de symptômes qui sont à la base de la culture occidentale
et qui déboucheraient longtemps après dans la modernité. Ce n’est qu’avec
l’écriture abstraite que l’on peut vouloir changer le monde. Il s’agit d’une
source de liberté, de joie, mais aussi d’angoisse et de peur de l’inconnu
(DE KERCKOVE, 1983)
6
.
Avec l’apparition récente des langages télématiques, l’imaginaire, dans le
monde contemporain, privilégie le présent et, sur le plan sensoriel, même
si le regard reste toujours très important, la tactilité tend à prendre la
première place (MCLUHAN; DE KERCKHOVE; BAUDRILLARD;
MAFFESOLI, 1967)
7
. Serait-ce là la post-modernité?
Pour comprendre le monde comme un théâtre, non à partir d’une vision
éthique et pré-moderne du monde (Platon), mais à partir d’une
compréhension esthétique (NIETZCHE, 1949 )
8
 de l’univers, il faut déjà
se placer dans un autre temps logique que celui de la modernité. Ma
proposition des notions de théâtralité et de spectacularité s’inscrit dans ce
5
MEAD, George Herbert. L’esprit, le soi et la societé. Trad. Jean Cazeneuve, E.
Kaelin et G. Thibault. Paris: PUF, 1963.
6
DE KERCKHOVE, Derrick. Synthèse sensorielle et tragédie: l’espace dans les Perses
d’Eschyle. In : Tragique et tragédie dans la tradition occidentale. Montréal :
Détermination inc., 1983. p.69-83.
7
MCLUHAN, H. M. La galaxie Gutemberg. Paris: Mame, 1967.
8
NIETZCHE, Friedrich. La naissance de la tragédie. Trad. Geneviève Bianquis.
Paris: Gallimard, 1949.
172
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
type de sensibilité, percevant le monde comme un théâtre tragique : du
grand, du vrai, du beau théâtre. Mais revenons au monde classique : rien
de plus post-moderne que d’y revenir.
La notion de spectacle, du latin spectare (regarder) assume toute sa puissance
dans la societé romaine, où des spectacles de tout ordre ont acquis une
importance jusqu’alors inconnue (DUPONT, 1985)
9
. C’est la civilisation
du panis et circenses. On voit que la notion de spectacle englobe ici celle de
spectacle théâtral, mais qu’elle s’élargit pour incorporer d’autres formes
spectaculaires, comme la danse, la musique, le cirque, les compétitions
sportives, les fêtes de célébration et les commémorations religieuses,
militaires et politiques. Par ailleurs, le spectaculaire renvoie à l’extraordinaire.
La spectacularité serait donc ce qui dépasse dans la vie quotidienne ;
l’ampleur du jeu social y est supérieur à celle de la théâtralité répétitive de
tous les jours.
Le théâtre lui-même est un des courts-circuits possibles entre la théâtralité
et la spectacularité. Il s’enracine dans la théâtralité, dans la routine, et
s’approche des rites spectaculaires, les trois mots (théâtre, théâtralité et
spectacularité) renvoyant au sens du regard et à univers culturel de
l’Occident, où la modernité est l’événement le plus important. On ne
peut bien les comprendre que maintenant, une fois que l’actuel et le
quotidien commencent à présenter des signes qui ne s’identifient plus
avec l’ère du temps de la modernité (MAFFESOLI, 1988)
10
.
Confusion et distinction
La distinction entre les deux notions ici proposées est importante à de
multiples égards. D’une part, la méfiance moraliste traditionnelle envers
le théâtre tend à se poser actuellement vis-à-vis du spectacle (DEBORD;
9
DUPONT, Florence. L’acteur-roi ou le théâtre dans la Rome antique. Paris:
Les Belles Letres, 1985.
10
MAFFESOLI, Michel. Le temps des tribus : le déclin de l’individualisme dans la
société de masse. Paris : Méridiens Klincksieck, 1988.
173
Armindo Bião
SCHWARTZENBERG, 1987)
11
. D’autre part, une approche cynique
du monde contemporain, compris comme le monde du simulacre
(BAUDRILLARD, 1982)
12
, renvoie souvent au scénique et au théâtral.
Par ailleurs, une lecture emphatique de ce même monde (MAFFESOLI,
1985)
13
 valorise la notion d’apparence et de théâtralisation.
Finalement, l’importance de la distinction théâtralité/spectacularité tient
au fait que le théâtre lui-même, depuis Artaud, essayant de dépasser la
tradition occidentale récente, cherche de plus en plus les bases de cet art
dans les traditions les plus anciennes (GROTOWSKI, 1989)
14
 ; en faisant
appel à l’anthropologie et à une compréhension transculturelle des
techniques du corps (BARBA, 1989)
15
. Il s’agit d’une recherche de la
théâtralité, où le théâtre prend ses racines. Mais il s’agit aussi d’une
recherche des traditions spectaculaires du chant, du théâre, de la danse, et
des rituels religieux où le chant et la danse sont fort présents.
Cet ensemble d’approches différentes et d’idées paradoxales (ou confuses
?) sur le monde contemporain et sur le théâtre caractérisent peut-être la
pensée et les performing arts post-modernes. La prolifération des
métaphores et des notions théâtrales dans le discours des sciences sociales,
et la vaste utilisation des termes anthropologiques dans le discours des
hommes de théâtre n’étant que des symptômes parmi d’autres. Mon
intention est de rajouter un « petit mot » à ce bouillon, un « mot » (le
11
DEBORD, Guy. La société du spectacle. Paris : Gérard Lebovici, 1987 (la l
 re
:
Buchet-Castel, 1967).
12
BAUDRILLARD, Jean. Fin de la modernité ou l’ère de la simulation. In : La modernité
ou l’esprit du temps, catalogue Biennale de Paris – section architecture. Paris :
L’Équerre, 1982. p. 32-33.
13
MAFFESOLI, Michel. La connaissance ordinaire : précis de sociologie
compréhensive. Paris: Méridiens Klincksieck, 1985.
14
GROTOWSKI, Jerzy. Tu es le fils de quelqu’un. Revue littéraire mensuelle, Paris,
n. 726, p. 13-25, 1989.
15
BARBA, Eugenio. La troisième rive du fleuve. Le théâtre ailleurs autrement:
Europe, revue littéraire mensuelle. Trad. Brigitte Kaquet. Paris, p. 26-35, n. 726,
Europe/ Messidor, 1989.
174
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
verbe) qui distingue une chose (la théâtralité) de l’autre (la spectacularité),
qui ne les explique peut-être pas et ne fera que les confondre...
Et pourtant, la distinction me semble très claire : la théâtralité est le résultat
de la tradition vécue d’une communauté. Il s’agit des rites routiniers
d’interaction qui incorporent tous les changements sociaux. On vit comme
cela, on n’y pense plus. Nous jouons nos rôles et c’est tout. C’est le tragique,
le destin et la fatalité. La spectacularité, par contre, représente toute tentative
de manipuler la société, de l’organiser, de la comprendre, dont les résultats
sont des formes spectaculaires d’interaction sociale. C’est la scène
dramatique, l’univers de l’action humaine sur le monde. Et, enfin, le
comique et la monnaie d’échange dont on dispose pour négocier avec
les deux formes de jeu social. C’est ce qui épiphanise le substrat ludique
de la vie sociale.
Les formes sociales de spectacularité poursuivent un monde idéal, tandis
que les formes sociales de la théâtralité sont les petits ajustements que l’on
fait tous les jours pour vivre le monde réel : peu importe s’il est fait de
simulacres. Les apparences, c’est-à-dire le monde, qui est apparence, forme
la théâtralité quotidienne. Les moments spectaculaires, qui ne sont plus
seulement des apparences banales, mais des apparences spectaculaires,
sont aussi des projections d’essences qui n’existeront jamais.
175
Armindo Bião
L’ Interface Théâtrale
*1
Les influences mutuelles France-Brésil, relevant plus particulièrement du
domaine du théâtre, sont d’une granderichesse qui n’est peut-être pas
visible d’emblée. Elles recouvrent, en effet, presque la totalité des cinq
siècles d’histoire du Brésil. Les grandes périodes de ces échanges sont
néanmoins faciles à identifier. Pour les définir de la façon la plus simple, je
propose la classification suivante : la première période, qui est aussi la
plus longue, va jusqu’à la fin du XVIII
e
 siècle ; la seconde période est celle
de l’influence prépondérante du théâtre français sur le théâtre brésilien,
qui comprend le XIX
e
 et la première moitié du XX
e
 siècle ; enfin, la
troisième période, la plus récente, est celle où des pieces et des compagnies
brésiliennes commencent à apparaître sur la scène française.
La première période
Avant 1750, un seul fait significatif mérite d’être signalé à propos de
l’interface «théâtre» France-Brésil. Un seul fait, dont l’importance n’est
pourtant pas des moindres. Il s’agit de la participation d’Indiens brésiliens
à des «spectacles» en France, dont le qualificatif «théâtral» reste cependant
douteux. C’est le cas de la «fameuse Fête Brésilienne», réalisée à Rouen en
1550 et présidée par Catherine de Médicis. Dans ce spetacle monumental,
que l’on pourrait qualifier d’ «entrée princière», une cinquantaine d’Indiens
brésiliens et autant de marins français apparaissaient sur scène, les corps
* Publié à l’origine dans Cahiers du Brésil contemporain, nº 12, Paris, MSH/ CRBC
(EHESS) / IHEAL (Paris III), 1990, p. 113-125 et ensuite dans Estudos
Lingüísticos e Literários, nº 16, Salvador, ML/ UFBA, 1994, p.19-25.
1
Pour une approche socio-anthropologique des données ici présentées, voir Armindo
BIÃO, Jorge Armindo. « Théâtralité » et « spectacularité » : une aventure tribale
contemporaine à Bahia, thèse de doctorat sous la direction de Michel Maffesoli,
Université René Descartes, Paris V, Sorbonne, 1990, p.279-313.
176
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
peints et ornés de parures à l’indienne. Pour le décor, on avait aussi amené
à Rouen des animaux et des plantes du Brésil
2
.
Par ailleurs, on trouve de nombreuses références aux cérémonies de
baptême d’Indiens brésiliens en France. Le premier de ces baptêmes
spectaculaires est sans doute celui de la «mère» des familles métisses de
Bahia, l’Indienne Catherine du Brésil (Catarina Paraguaçu baptisée à
l’occasion Catarina do Brasil). Mariée au Portugais Diogo Alvares Correia,
plus connu sous son nom indien Caramuru (qui s’est installé au Brésil
suite à un naufrage), elle a été baptisée à Saint-Malo, en 1528
3
. Un autre
exemple des cérémonies de baptême d’Indiens brésiliens en France est
celui des Maragnons, «ramenés par les Capucins en leur couvent de Paris,
[et] obtenant le succès public que l’on imagine»
4
. Cela s’est passé lors du
rêve de la «France équinoxiale» entre 1612 et 1615.
Ces pratiques spectaculaires ont certainement contribué à la construction
et diffusion du mythe du «bon sauvage», même si le document
fondamental à ce propos est, comme le suggère Mario Carelli, le récit de
voyage «en la terre du Brésil» du Français Jean de Léry, un des participants
à l’aventure de la «France antarctique» entre 1555 et 1557
5
.
2
La Fête Brésilienne a été notamment étudiée par Ferdinand Denis en 1850. Pour les
« entrées princières » voir BALANDIER, Georges. Le pouvoir sur scène, Balland,
1980, p.15 : l’auteur cite le Ballet Comique de la Reine (1581), comme une rupture avec
la pratique des « Entrées princières » ou des « Intermèdes » à l’italienne, qui allait aboutir
à l’institution du théâtre français et à la classification de divers genres théâtraux.
3
À ce propos, voir OBRY, Olga. La marraine bretonne de Catherine du Brésil, in La Bretagne
– Le Portugal – Le Brésil – Échanges et rapports, tome I, s. éd., 1973, p. 98. Il est
intéressant de remarquer qu’Olga Obry s’est aussi intéressé au théâtre brésilien. A ce
propos, voir son article sur les influences de Louis Jouvet et de Jean Giraudoux dans le
théâtre brésilien à partir des années quarante Le Brésil au Creuset. Le théâtre dans le
monde, 3 (XI), 1962, p. 255-260.
4
Cf. AUGRAS, Monique, Le roi Saint Louis danse au Maragnon. Cahiers du Brésil
contemporain, 5, 1988, p. 79.
5
Cf. CARELLI, Mário, Brésil, épopée métisse, Découvertes: Gallimard, 1987, p. 25
; aussi à ce propos, voir Frank Lestringnant, Le huguenot et la sauvage: l’Amérique
et la controverse coloniale, en France, au temps des Guerres de Religion (1555-1589),
Aux Amateurs de Livres, 1989, notamment les chapitres II, Jean de Léry, historien du
Brésil français, et VIII, La réformation dans les canons ou l’invention du Bon Sauvage.
177
Armindo Bião
La deuxième période : le rastaquouère et la cocotte
Les premières informations documentées sur la production de pièces
françaises au Brésil datent de la seconde moitié du XVIII
e
 siècle. Il s’agit
de textes de Molière et de Voltaire
6
. Cela marque les débuts de l’influence
théâtrale française qui allait dépasser celles du Portugal, de l’Espagne et
de l’Italie, jusqu’alors dominantes au Brésil.
Les compagnies françaises commencent à parcourir le pays aux alentours
de 1800. En moins d’un siècle, vers la fin du XIX
e
, la présence française
dans le théâtre brésilien est absolument prépondérante. C’est l’époque
non seulement des compagnies, mais aussi des pièces adaptées, des
thématiques et des professeurs d’art dramatique français. C’est le moment
aussi où il est de bon ton pour un comédien brésilien de prendre un
nom d’artiste aux consonances françaises. Les théâtres de l’époque
reprennent ce même usage. Ils s’appellent Cassino Franco-Brésilien,
Vaudeville, Variétés, Alcazar Lyrique et Moulin Rouge, par exemple
7
.
Pour illustrer cette prédominance de l’influence française dans le théâtre,
ainsi que dans la culture brésilienne en général, il suffit de citer le nom
d’Artur Azevedo. Malgré ses tentatives de faire un théâtre plus littéraire, il
fut vivement critiqué pour le choix qu’il avait fait d’un théâtre léger,
6
Cf. J. SOUZA, Galante, O teatro no Brasil, Tecnoprint, 1968, p. 141.
7
À ce propos, voir MAURO, Frédéric. La vie quotidienne au Brésil au temps de Pedro
Segundo 1831-1889, Hachette, 1980, p. 59 et s. Pour des références précises concernant
des compagnies françaises au Brésil, voir PAIXÃO, Múcio da. O teatro no Brasil. Brasília:
Ed., 1936; RUY, Afonso, História do Teatro na Bahia. Universidade da Bahia, 1959;
ARAÚJO, Nelson de. História do Teatro, FCEB, 1978; HESSEL, Lothar. RAEDERS,
G. O teatro no Brasil sob D. Pedro II, Ed. da Universidade, 1986, p. 224 et seq.;
CACCIAGLIA, Mario. Pequena História do Teatro no Brasil, EDUSP, 1986.
À propos de l’influence française à Bahia, Thales de Azevedo donne une série d’exemples
relatifs à la vie quotidienne, ainsi qu’aux visites de Sarah Bernhardt et des Coquelin
(l’aîné et le cadet) ; il parle également des danses qui sont devenues populaires, une fois
sorties des salons impériaux : les quadrilhas, dont l’origine française est attestée par
Wanderley de Pinho : Cf. AZEVEDO, T. A francesia baiana de antanho, in Publicação
do Centro de Estudos Baianos, 110, 1985, p. 61-83.
178
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
«pastiche» du théâtre français grand public. Mais il reste le personnage le
plus marquant du théâtre brésilien de son époque. Il connut un assez
grand succès pour ses adaptations d’opérettes françaises, comme par
exemple celle du Surcouf d’Henri Chivot et Alfred Duru, musique de
Robert Planquelle. Jean-Yves Mérian, dans «Surcouf, corsaire d’opérette
au Brésil»
8
, parle des triomphes d’Offenbach et des succès d’Artur
Azevedo à peu près à la même époque. Curieusement, c’est dans la ville
natale du corsaire Surcouf, Saint-Malo, que le premier sauvage brésilien
(Catherine du Brésil) a été baptisé.
L’importance de l’opérette, ce genre théâtral d’origine française
prédominant sur les scènes brésiliennes vers la fin du XIX
e
 siècle, a
également marqué «la vie parisienne»,surtout «durant les brillantes anées
de l’Empire». Jean Duvignaud parle, à ce propos, des comédiennes qui
sont devenues des modèles d’une certaine forme de joie de vivre et de
jeu, [et qui], surtout à l’occasion de l’Exposition de 1867 fréquentée par
toutes les têtes couronnées d’Europe, conduisent la mode alors naissante,
imposent le goût, façonnent la manière d’être
9
.
L’auteur de la Sociologie du comédien affirme que, pendant ces «années
folles [...] la société devint un théâtre où tout le monde jouait La vie
parisienne». C’est bien sur cette scène qu’apparaissent le rastaquouère et
la cocotte comédienne.
Lors des montages de La vie Parisienne, de Ludovic Halévy et Henri
Meilhac, musique de Jacques Offenbach, une des chansons les plus
applaudies est l’air du Brésilien «Je suis Brésilien, J’ai de l’or...». Le 10
novembre 1866, quelques jours après la première de La vie parisienne
(le 31 octobre), Ludovic Halévy relata dans ses Carnets de notes l’accueil
chaleureux du public à la nouvelle pièce. Il fait notamment référence au
duo du Brésilien et de la gantière qu’il fallait bisser à chaque représentation
8
MERIAN, Jean-Yves. Surcouf, corsaire d’opérette au Brésil, in La Bretagne: Le Portugal
– Le Brésil - Échanges et rapports, s. éd., p. 421-429.
9
DUVIGNAUD, Jean, L’acteur : sociologie du comédien, Gallimard, 1965, p.161.
179
Armindo Bião
sur la scène du Théâtre du Palais Royal
10
. L’acteur Brasseur, qui a créé le
rôle du Brésilien dans ce spectacle, l’avait déjà joué auparavant dans une
autre «comédie en un acte mêlée de chant» des mêmes auteurs. En fait, le
personnage joué par M. Brasseur dans Le Brésilien (première le 9 mai
1863 au Théâtre du Palais-Royal) était celui d’un comédien. Mais l’intrigue
de la pièce voulait qu’il se déguise en «Brésilien». Pauline Carton, auteur
de la préface et des notes de l’édition datée de 1955 de cinq pièces de
Meilhac et Halévy, qui contient Le Brésilien, a écrit à propos de la pièce
et du personnage : «... Le Brésilien, farce de haute fantaisie, où apparaît
pour la première fois le type du rastaquouère à favoris couleur cirage, au
teint ocré, avec baragouin de cacatoès et bagues à tous les doigts»
11
.
On dispose d’une photo de l’époque du comédien Brasseur en Brésilien
et de commentaires sur sa capacité d’imiter des accents étrangers.
L’humour provoqué par le personnage de l’étranger qui a du mal à
s’exprimer dans la langue du pays et qui confond dangereusement (s’agissant
de convenance et de politesse) des mots aux signifiés différents mais aux
sonorités proches n’était certainement pas une nouveauté en 1863. On
trouve des exemples chez Shakespeare et Molière, et même Aristote y
10
Je remercie M. Jean-Pierre Halévy, descendant d’un des auteurs de La vie parisienne
et du Brésilien, qui a évoqué l’intérêt de sa famille pour le Brésil depuis le XIX
e
. Il
m’a fait connaître l’édition Calmann-Lévy, de 1955, intitulée Théâtre, avec cinq
pièces de Meilhac et Halévy, parmi lesquelles Le Brésilien. M. Halévy m’a aussi
permis de photocopier la brochure Ronde du Brésilien, contenant les paroles et la
partition de la seule chanson de la comédie Le Brésilien, et dont la couverture est
une photo où apparaît le comédien Brasseur représentant ce personnage. La première
édition du Brésilien date de 1861, chez Michel Lévy Frères.
- Le terme « rastaquouère » n’apparaît pas dans cette pièce (de 1863), mais est utilisé
dans la préface pour décrire le « Brésilien » (p. XIII). Le Petit Robert indique :
(1880-1886 ; Esp. d’Amérique rastracuero, « traîne-cuir », désignant des parvenus).
Fam. Étranger aux allures voyantes, affichant une richesse suspecte. Le terme apparaît,
dans ce sens, dans Un fil à la patte de Feydeau, de 1894, pour définir le personnage
du Général. Le dictionnaire brésilien Aurélio donne la même signification, indiquant
l’origine « française » du mot.
11
Cf. CARTON, Pauline, « Préface », In: HALÉVY, L.; MEILHAC, H. Théâtre,
Calmann-Lévy, 1955, p. 13.
180
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
fait référence dans sa Poétique, lorsqu’il parle de l’utilisation de mots
«barbares».
Par ailleurs, on connaît le texte d’une pièce d’Henry Muger, jouée elle
aussi au Théâtre du Palais-Royal, mais en 1860, Le serment d’Horace,
où apparaît également un personnage de Brésilien. La pièce est présentée
comme une «comédie en un acte en prose (vaudeville)». Et le personnage
de Dubreuil apparaît comme un «ex-capitaine au long cours, mulâtre»
12
.
Ayant fait fortune comme négrier, il réunit un nombre de caractéristiques
qui le rapprochent à la fois des personnages du Nord-Américain et du
rastaquouère hispanophone latino-américain, présents dans le théâtre
français de la seconde moitié du XIX
e
 siècle, quand Paris est devenue le
symbole même de la ville cosmopolite et moderne.
En effet, ce Brésilien-là apparaît comme riche (très épris et très jaloux
d’une petite actrice), violent et brutal – il «casse le mobilier, des postiches
et statuettes, quitte à les remplacer... jure comme un diable»-, «pétri de
naïveté», enfin comme un «fantoche bruyant et bondissant».
13
 Son créateur,
Henry Muger, fréquentait le salon de Mme. de Tourbet à Paris dans les
années 1860, tout comme d’autres auteurs de théâtre et créateurs de
personnages similaires comme Ludovic Halévy et Victorien Sardou
14
. Fruit
de leur imagination (même si Muger avait été le premier), ces personnages
correspondaient peut-être à des caricatures de personnages réels
15
.
12
Cf. MURGER, Henry, Le serment d’Horace, Michel Lévy Frères, 1861.
13
A ce propos, voir JEUNE, Simon, De F. T. Graindorge à A. O. Barnabooth: les types
des Américains dans le Roman et le Théâtre français (1861-1917), Didier, 1963, p. 162.
14
Cf. HALÉVY, Daniel «Introduction», in Ludovic Halévy, Carnets (1862-1869),
Calmann Lévy, 1935, p. 9-10; ainsi que les notes de L. Halévy, in Carnets, passim.
15
Peau mate, gants « sang de bœuf», «cravates étoilées de diamants», parlant un Français
très approximatif, le rastaquouère réapparaît encore en 1894 avec le même costume et
les mêmes caractéristiques, mais alors identifié à une autre nationalité ibéro-américaine
(certainement hispanophone, mais non définie d’ailleurs), dans Un fil à la patte, de
Georges Feydeau. Il semblerait que le personnage soit toujours très populaire, étant
donné la réception chaleureuse qu’il reçoit du public du Théâtre du Palais Royal, lors
des présentations d’Un fil à la patte, depuis le début de la saison 1990, comme j’ai eu
l’occasion de constater.
181
Armindo Bião
Dans l’imaginaire français de l’époque, le Brésil devait être un empire
tropical, exotique et riche, dont les élites (comme les élites de n’importe
quel autre pays «occidental» à l’époque d’ailleurs) avaient choisi Paris
comme principale destination de voyage à l’étranger. Si un métis,
visiblement «pas très intelligent», pouvait s’enrichir comme le «Brésilien»
de La vie parisienne, quel avenir attendrait un européen blanc et cultivé,
disposé à s’installer sous les tropiques?
Mais pour revenir à notre rastaquouère, il apparaît souvent dans les
intrigues des pièces de vaudeville et d’opérette comme un admirateur
amoureux d’une comédienne à qui il offre des riches cadeaux, sans
nécessairement réaliser ce à quoi il aspire. Mais, comme l’a remarqué
Duvignaud à propos de la société-théâtre du temps d’Offenbach, l’air
du temps confondait le théâtre avec la vie sociale elle-même. En 1864,
Joseph Arnaud, qui dirigeait depuis 1857 le Théâtre Alcazar Lyrique de
Rio, amène de Paris un groupe de «belles comédiennes», qui allaient faire
fureur à la cour impériale.
Le nom le plus célèbre est certainement celui d’Aimée, pour qui des
intellectuels réputés, comme Machado de Assis, ont écrit de belles pages.
La légende veut qu’elle soit rentrée en France en 1868, enrichie par les
précieux cadeaux qui lui ont été offerts par d’innombrables admirateurs,
amoureux de ses performances sur scène.On raconte que lorsque son
bateau quitta le port de Rio, quelques «honnêtes» familles auraient célébré
l’événement avec des feux d’artifice, puisque le «petit démon blond»
(comme l’avait appelé Machado), s’en était allé
16
 ! Le fait est que le
personnage de la belle comédienne française est resté dans l’imaginaire
brésilien, associé à la joie de vivre et à la «légèreté» des mœurs. Un portrait
qui ne s’éloigne pas trop, d’ailleurs, de celui laissé par les opérettes françaises
elles-mêmes.
16
À propos de la comédienne Aimée, voir CACCIAGLIA, op. cit., p. 84 et HESSEL;
RAEDERS, op. cit., p. 151 et s.
182
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Pour ce qui est encore de ce que j’ai défini comme la deuxième période
de l’interface «théâtre» France-Brésil, celle de la primauté absolue de
l’influence française sur le théâtre et la culture brésiliens, un exemple
frappant de cette influence est celui du drame en cinq actes et en vers,
écrit en Français en 1876-1877 par l’intellectuel brésilien Joaquim Nabuco,
publié à Paris en 1910. L’action se passe à Paris, à Versailles et à Strasbourg,
entre 1870 et 1872. Le drame est intitulé L’option, et son intrigue se
développe autour des rapports familiaux et amoureux entre des
personnages d’origine allemande et française et, ce qui justifie le titre, des
personnages plus particulièrement d’origine alsacienne
17
.
Outre la nationalité de l’auteur, il s’agit d’un ouvrage «typiquement» français
autant par la forme que par la thématique et l’approche. Nabuco (un
homme des élites du Pernambouc, ambassadeur et homme politique),
comme d’autres intellectuels brésiliens depuis la Révolution Française,
partageait aussi certaines valeurs philosophiques des Lumières. Bien que
monarchiste et conservateur, il a été, par exemple, l’un des principaux
leaders anti-esclavagistes du Brésil.
La troisième période
Les critiques considèrent que le théâtre brésilien a connu deux moments
fondateurs. Le premier est représenté par Martins Pena et ses comédies
de mœurs lors de la première vague nationaliste après l’Indépendance en
1822. Le second est représenté par le montage, en 1943, de la pièce Vestido
de Noiva (Robe de Mariée) de Nelson Rodrigues, «l’auteur fondateur
du théâtre brésilien moderne», d’après le critique brésilien Sábato Magaldi.
Dans un texte introductif à la version française de L’Ange noir, autre
pièce de Nelson Rodrigues, Magaldi rappelle l’«influence très bénéfique»
17
NABUCO, Joaquim. L’option, Hachette, 1910.
18
MAGALDI, Sábato. La race sous une perspective mythique. Trad. M. Fiani, note
introductive à Nelson Rodrigues, L’Ange noir. Trad. Jacques Thiériot, Ed. des
quatre-vents, 1988, p. 5-9. Je remercie Jacques Thiériot pour les précisions qu’il m’a
apportées concemant ses traductions de pièces brésiliennes.
183
Armindo Bião
de Louis Jouvet sur le théâtre brésilien
18
. Jouvet avait, en fait, «choisi le
Brésil comme siège de son aventure théâtrale, pendant deux anées de la
Seconde Guerre mondiale». Et son séjour a précédé de peu la rénovation
du répertoire, des techniques de mise en scène et du jeu d’acteur au Brésil
19
.
Le traducteur de L’Ange noir, le français Jacques Thiériot (aussi traducteur
de nombreux autres ouvrages brésiliens), vivant au Brésil entre 1968 à
1978, est également responsable de l’adaptation théâtrale de Macunaíma,
de Mário de Andrade, utilisée pour le célèbre montage d’Antunes Filho.
Ce montage a fait le tour du monde, passant naturellement par Paris, où
la pièce a été jouée pour l’inauguration du théâtre de la Maison des Cultures
du Monde. En 1987, suite au même succès de Macunaíma, une autre
mise en scène d’Antunes Filho, A hora e a vez de Augusto Matraga
(L’Heure de Augusto Matraga), de João Guimarães Rosa, a fait une
tournée en France. Elle a été présentée en langue brésilienne au Théâtre
des Amandiers-Nanterre aux mois de mars et avril.
Pour continuer à évoquer la présence du théâtre brésilien en France il faut
faire appel aux informations réunies par Osvaldo Obregon pour sa thèse
La diffusion du théâtre latino-américain en France depuis 1958.
En effet, la partie de son travail consacrée au Brésil n’est pas négligeable,
même si, hormis les participations aux festivals du Théâtre des Nations
et de Nancy, la présence théâtrale brésilienne en France reste très limitée.
Il s’agit le plus souvent de quelques spectacles à succès, de quelques
publications en version française de pièces brésiliennes, et de la diffusion,
au Nouveau Répertoire Dramatique de la Radio France Culture, de pièces
de Plínio Marcos, Carlos Queiroz Telles et Oduvaldo Vianna Filho,
traduites également par Jacques Thiériot
20
.
19
Dans une biographie de Jouvet, celle de Jean-Marie Loubier, on peut lire une déclaration
du maire de Rio invitant Jouvet à rester plus longtemps : «... vous servirez la France
ici... plus utiliement qu’à Paris», in LOUBIER, J.-M. Louis Jouvet: biographie,
Ramsay, 1986, p. 264.
20
OBREGON, Osvaldo. La diffusion du théâtre latino-américain en France
depuis 1958, thèse d’État, Paris III, Sorbonne Nouvelle, 1987, voir surtout les pages
73, 75, 77, 90, 91, 94, 99, 177, 180, 184, 199, 200, 212, 263, 325, 329, 533, 587,
630, 631. Je remercie également Osvaldo Obregon pour ses suggestions de recherche.
184
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Parmi les pièces brésiliennes jouées en France, on peut citer : Le Jeu de la
Miséricordieuse ou Le Testament du chien, d’Ariano Suassuna, adaptée
par Michel Simon-Brésil, jouée en 1969, 1972, 1979 et 1982 ; Liberté,
Liberté de Flavio Rangel et Millor Fernandes, adaptée par Guy Suares,
jouée en 1968 ; le monologue interprété en France par Annie Girardot en
1975 Madame Marguerite, de Roberto Athayde, adaptée par Jean-Loup
Dabadie, mise en scène de Jorge Lavelli ; ainsi qu’une autre adaptation de
le même pièce, celle-ci de Jacques Thiériot, sous le titre Chère Maîtresse,
pour la production de la Comédie de Lorraine, en 1981.
Aux festivals de Nancy, une partie importante de la production de l’avant-
garde brésilienne de l’époque a été montrée. Mais avant d’y arriver, il faut
rappeler que Cacilda Becker a remporté un grand succès au Théâtre des
Nations, en 1960, avec Poil de Carotte de Jules Renard ; et que Gimba,
de Gianfrancesco Guarnieri, mise en scène de Flavio Rangel, a été
considéré par André Camp, l’éditeur de la revue Avant Scène, comme
«l’ópera de quat’sous brésilien»
21
. Mais c’est à Nancy que le meilleur du
théâtre brésilien est présenté, pendant la dictature militaire. On pourrait
citer, notamment, les spectacles de la troupe Oficina et Arena, les pièces de
César Vieira, ainsi que celles de Queiroz Telles (dont Muro de arrimo,
présentée en français sous le titre José), ou encore Tempo de Espera,
mise en scène de Aldo Leite, d’une troupe du Maranhão et de São Paulo,
ainsi que les expériences de João Augusto, développés à Bahia, à partir
de la littérature de colportage (de cordel)
22
.
L’événement brésilien le plus important reste, néanmoins, Morte e Vida
Severina, texte du poète João Cabral de Melo Neto, musique de Chico
Buarque de Holanda. Le montage du TUCA (Théâtre Universitaire de
l’Université Catholique de São Paulo) fait un «tabac» à Nancy en 1966,
tout comme Macunaíma, dans le même festival en 1979. Odette Aslan
et Marylse Meyer ont consacré un numéro de la publication Les voies
de la création contemporaine à Morte e Vida Severina. Il faut dire
21
Apud OBREGON, op.cit., p. 99.
22
Cf. OBREGON, op.cit. p.75.
185
Armindo Bião
que dans cette publication «ne figurent que les mises en scène qui ont
réellement apporté quelque chose au théâtre contemporain dans les
dernières décades en France»
23
. Et le Français Pierre Kemeneur n’a pas
manqué de souligner à l’occasion, qu’il rendait hommage à «Léon
Chancerel, fondateur de la Compagnie Théophiliens de la Sorbonne [...]
parti en tournée au Brésil, où il [a] produit un impact inoubliable chez un
des animateursdu TUCA, qui n’était alors qu’un enfant»
24
.
Hormis les brèves références à Louis Jouvet, à Jacques Thiériot et à
Léon Chancerel, je me suis limité aux échanges plutôt dans le sens Brésil-
France, en ce qui concerne la troisième période de notre interface «théâtre»
France-Brésil. En sens inverse, on pourrait rappeler, à partir d’un texte
de Fernando Peixoto, un des hommes du théâtre brésilien publié en
France
25
, que la troupe Oficina, à ses débuts, avait fait du «théâtre à domicile»
avec entre autres des textes de Jean Tardieu
26
. Ou encore que Jean
Giraudoux a influencé le dramaturge brésilien Guilherme Figueiredo
27
.
Néanmoins, je voudrais aborder un fait totalement nouveau dans ce
processus d’échanges théâtraux France-Brésil. Il s’agit de la présence de
l’homme de théâtre et théoricien brésilien Augusto Boal en France dans
les années 1970. Obregon signale ainsi son importance :
Le cas Boal présente un grand intérêt et cela pour plusieurs
raisons. La plus importante est qu’il est l’auteur d’un des
premiers apports latino-américains au niveau de la théorie
théâtrale. Durant des siècles, l’Amérique Latine a consommé,
sur le plan de l’art et de la littérature, des théories élaborées
en Europe. Le «théâtre de l’opprimé» représente un cas rare
23
Cf. OBREGON, op.cit. p.184.
24
Apud Obregon, op.cit., p. 180.
25
Cf. PEIXOTO, Fernando, Teatro Oficina de São Paulo (Brésil), in Théâtre & Université,
14, Numéro Spécial Programme VI
e
 Festival Mondial de Nancy, 19-28.04.1968, p.
21-36 ; Des signes de vie au milieu des flammes s. nom trad., in Travail Théâtral, 12,
1973, p. 134-143 ; L’histoire au secours du théâtre brésilien, trad. Jacques Thiériot, in
Travail Théâtral, 32/33, 1979, p. 48-57.
26
Cf. PEIXOTO, op.cit., 1968.
27
Cf. OBRY, op.cit., 1962.
186
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
de corpus théorique qui traverse l’Atlantique dans le sens
contraire
28
.
Boal a créé en 1978, à Paris, le CEDITADE, Centre d’Etudes et de
Diffusion des Techniques Actives d’Expression. Ce centre a fait plusieurs
tournées mondiales, y compris au Brésil, en 1980
29
. Actuellement, plusieurs
de ses membres fondateurs sont partis et mènent leurs propres
expériences. Richard Monod, par exemple, a travaillé dans le domaine
du théâtre et de l’éducation en Europe, en Afrique du Nord et au Canada,
tout en gardant le contact avec des chercheurs brésiliens qui travaillaient
sur des thèmes similaires. Bernard Grosjean et Laurette Cordrie organisent
des stages en France et en Belgique pour la formation des gens de théâtre
et des éducateurs.
Si la plupart des exemples d’échanges théâtraux France-Brésil que je viens
de donner, concernent le flux de ces échanges dans le sens Brésil-France,
il ne faut pas oublier que le théâtre français continué à être diffusé au
Brésil, comme l’attestent par exemple les tournées de la Comédie Française,
comme celle du spectacle Elvire / Jouvet, avec en vedette l’actrice
portugaise Maria de Medeiros.
La revue Avant Scène a consacré un de ses numéros à la publication du
texte Le pays des éléphants en Portugais (version de Ferreira Gullar) et
en version française originale de Louis-Charles Sirjacq. Cette pièce, après
avoir été produite à São Paulo en mai 1989, a été montée à Avignon
pendant le festival de la même année. Elle raconte la tentative
d’indépendance du Brésil, dont le leader était le héros Tiradentes. L’acteur
Antonio Fagundes, vedette du spectacle et responsable côté brésilien de
cette co-production franco-brésilienne
30
, a également monté au Brésil
Les fragments d’un discours amoureux de Roland Barthes, avec grand
succès. Le fameux titre de Barthes ne pourrait-il pas résumer l’interface
théâtrale France-Brésil?
28
OBREGON, op.cit., p.329.
29
Voir à ce propos OBREGON, op.cit., p. 325.
30
QUIROT, Odile, Des Brésiliens fous de théâtre, in Le Monde, 30.04. - 02.05.1989, p.
12 et Avant Scène, 852/853, juin/juillet 1989.
187
Armindo Bião
Théâtralité et spectacularité:
les pratiques homosexuelles masculines dans le Candomblé
*
L’ existence courante de pratiques homosexuelles dans les cultes afro-
brésiliens, en particulier ceux de Rio de Janeiro et du nord-est du pays,
fait partie de l’imaginaire populaire au Brésil. Cet imaginaire associe, par
ailleurs, ces cultes à l’image d’hommes efféminés et à un type de
comportement social exagéré et théâtral. Je propose ici d’aborder les
pratiques homosexuelles masculines dans le Candomblé, culte afro-
brésilien de Salvador de Bahia.
Quelques définitions préalables
La spectacularisation en cours dans le monde contemporain est un
phénomène évident
1
. La politique, en particulier
2
, s’approprie de plus en
plus de techniques théâtrales. Aux États-Unis, le Président ajoute au
maquillage et à d’autres recours de comédien, des thèmes et des
propositions de discours cinématographiques. Le Pape, la plus connue
des vedettes médiatiques internationales, orchestre savamment sa présence
scénique et son expression vocale. Rappelons qu’il a joué dans une troupe
de théâtre en Pologne pendant la dernière guerre. En Inde, bon nombre
d’hommes politiques commencent leur carrière après être passés par le
cinéma. En décembre 1987, la mort de l’un d’entre eux, particulièrement
aimé du public, a provoqué des suicides parmi ses fans. En France,
Coluche et Yves Montand ont été considérés comme d’éventuels candidats
à la présidence de la République.
* Publié à l’origine dans Sociétés, Paris, Masson, v.17, p.23 – 25, 1988.
1
Voir : MORIN, Edgar L’esprit du temps, Grasset Frasquelle. Paris. In : MAFFESOLI,
Michel. La conquête du présent. Paris: PUF, 1979, p. 153-169; LE BRETON,
David. Corps et sociétés. Méridiens, Paris : 1985, p. 143-144..
2
BALANDIER, George. Les rapports entre pouvoir politique et théâtre ont bien été
démontrés. In:. LE POUVOIR sur scènes, Balland, Paris, 1980.
188
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
D’autre part, cette tendance comprend une prise de conscience croissante
du double jeu, voire même du multiple jeu de la théâtralité quotidienne.
Des expressions telles que – arrête ton cirque! –, – assez de cinéma! –, ou
– il fait du théâtre tout le temps–, sont bien révélatrices à cet égard. En
fait, ce phénomène n’est pas nouveau; l’évolution du mot – hypocrite –
est significative. Néanmoins, on assiste actuellement à une prolifération
de notions théâtrales dans des discours scientifiques
3
 et des conversations
mondaines.
Malgré les insuffisances évidentes de la métaphore théâtrale, déjà pointées
par Erwing Goffman
4
, cette approche est souvent utilisée par les
sociologues du quotidien. En ce sens je propose les notions de théâtralité
et spectacularité, en les définissant en tant que formes, selon la suggestion
méthodologique de Michel Maffesoli
5
.
La théâtralité correspondrait au moment des répétitions théâtrales, et la
spectacularité au moment même du spectacle. Dans la première, les acteurs
sociaux joueraient simultanément les rôles d’acteur et de spectateur. Dans
la seconde, ils les joueraient exclusivement. Ces rôles, dans la théâtralité,
seraient moins apparents que les personnages (parents, enfants, amis,
amants, époux, collègues, partenaires, etc.); tandis que dans la spectacularité
ils seraient plus apparents que les personnages. Dans le cas de la théâtralité,
les personnages seraient davantage caractérisés en tant que personnes.
Dans l’hypothèse de la spectacularité, ils seraient plutôt stylisés en tant
que types.
3
Voir LE BRETON; GOFFMAN, Erwing. Les travaux de Balandier, Maffesoli; La
mise en scène de la vie quotidienne ; DUVIGNAUD, Jean. La présentation de soi,
Minuit, Paris, 1973 ; Spectacle et société, Denoël, Paris, 1973 ; SCHWARTZENBERG,
Roger-Gérard. L’état spectacle, Flammarion, Paris, 1977; MOLES, Abraham.
Labyrinthes du vécu, l’espace : matière d’actions, Méridiens, Paris, 1982; MATTA,
Roberto da., Carnavals, bandits et héros, Seuil, Paris, 1983 ; HOCQUENGHEM,Guy ; SCHERER, René, L’âme atomique, Albin Michel, Paris, 1986 ; NAMER,
Gérard. Mémoire et sociét., Méridiens Klincksieck, Paris, 1987.
4
GOFFMAN, op. cit., p. 9.
5
MAFFESOLI, Michel. La connaissance ordinaire.. Méridiens, Paris, 1985. p. 19-24.
189
Armindo Bião
Dans la théâtralité, les techniques corporelles seraient plus quotidiennes,
plus économiques, plus utilitaires et moins expressives
6
. Dans la
spectacularité, elles seraient plus extra-quotidiennes, moins économiques,
moins utilitaires et plus expressives. L’apprentissage et l’entraînement
corporels seraient pour la théâtralité plus informels, spontanés et moins
choisis; tandis que ce serait plutôt l’inverse pour la spectacularité. La
conscience du «jeu théâtral» serait aléatoire et moins apparente dans la
première, et plus constante et apparente dans la seconde. Au niveau de la
production et de la consommation quotidiennes, la théâtralité se distinguerait
de la spectacularité, en ce que la production serait moins réduite, et la
consommation de moindre importance. Finalement, la théâtralité aurait
une ampleur mineure, puisqu’il s’agirait de phénomènes sociaux ordinaires,
de tous les jours. Par contre, la spectacularité aurait une ampleur majeure
puisqu’il s’agirait de phénomènes sociaux extra-ordinaires, ponctuels.
Un cas d’application: le Candomblé
L’on peut prendre le Candomblé comme exemple, cette religion populaire
de Bahia et matrice des cultes afro-brésiliens. Ses fêtes publiques ont été
déjà considérées comme des «formes de théâtralisation spontanée»
7
 et
même du «théâtre populaire»
8
. Ces rituels relèvent plutôt du domaine de
la spectacularité, en accord avec les arguments que je viens de présenter.
D’autre part, dans la vie quotidienne des communautés de Candomblé,
la théâtralité est toujours présente, soit par un double système de parenté
(celui de la famille de sang et celui de la «famille-de-saint»
9
), soit par
6
BARBA, d’Eugenio ; SARAVESE, Nicola. Les notions de techniques corporelles
quotidiennes et extra-quotidiennes et la référence à l’expressivité sont empruntées à
l’ouvrage, In : Anatomie de l’Acteur : un dictionnaire d’anthropologie théâtrale.
Bouffonneries Contrastes : Cazilhac, 1985.
7
DUVIGNAUD, Jean., Les ombres collectives : Sociologie du théâtre. Paris : PUF,
1973. p. 13.
8
SIMON, Michel. Théâtres nationaux : Le Brésil in Histoire des spectacles, sous la
direction de Guy Dumur. Paris : Pléiade, [19-?]. p. 1303-1304.
9
Dans le Candomblé on peut avoir des relations « familiales » avec les divinités (les
« orisha »), ou avec d’autres initiés du culte ; voir à cet égard : LIMA, Vivaldo da
Costa. A Família-de-Santo nos Candomblés Jeje-Nagôs da Bahia: um estudo
de relações intragrupais. Salvador, Bahia : UFBA, 1977.
190
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
l’existence de rituels secrets, soit par l’appartenance des fidèles à diverses
divinités
10
.
Pour préciser, nous prendons un exemple, les pratiques homosexuelles
masculines dans le Candomblé. Dans les années 50, un fait isolé, néanmoins
important, a eu lieu: un très respecté père-de-saint (ministre du culte)
d’un candomblé traditionnel de Bahia, devint une vedette nationale. La
raison était qu’il défilait en travesti au carnaval de Rio de Janeiro. Il ajoutait
à la spectacularité du Candomblé celle, paradigmatique, du Carnaval.
Selon des scientifiques sociaux qui se veulent rigoureux, le rapport travesti/
pratiques homosexuelles n’est pas évident, surtout concernant le carnaval
brésilien. Néanmoins, dans l’imaginaire populaire au Brésil, ce rapport
est plus qu’évident, lorsque le travesti devient connu en tant que tel.
Un autre phénomène médiatique plus récent concerne un personnage
d’émissions humoristiques de la télévision brésilienne, qui connut un grand
succès pendant des années: «Painho» (petit père), un père-de-saint bahianais
qui déclarait ouvertement ses préférences sexuelles pour les beaux garçons.
La presse a essayé d’identifier la source d’inspiration du comédien Chico
Anísio, et elle en a trouvé plusieurs à Bahia, parmi les pères-de-saint réels.
Painho correspond au stéréotype de l’homosexuel efféminé, affecté et
exagéré, la typique – «bicha» brésilienne, qui pourrait être identifiée au
stéréotype de la «folle» française. En mélant réalité et spectacle télévisuel,
ces deux phénomènes nous ramènent à la théâtralité. En effet, le jeu de
rôles si divers, comme celui de la «folle» méprisée, du père-de-saint
respecté et de la vedette «médiatisée», par un même acteur, est un exemple
paradigmatique de théâtralité.
Des références à l’homosexualité masculine dans le Candomblé figurent
dans de nombreux ouvrages de sciences sociales publiés depuis 1940.
10
 Pour des descriptions du Candomblé, voir les travaux de BASTIDE, Roger ; VERGER,
Pierre, en particulier le livre de Bastide, Le Candomblé de Bahia, rite nagô,
Mouton et Cie La Haye ; et celui de Verger, Orisha : les dieux ioruba en Afrique et
au Nouveau Monde. Métailié : Paris, 1982.
191
Armindo Bião
Les premières sont celles de Ruth Landes, qui affirmait que la plupart
des hommes liés au Candomblé étaient «des homosexuels passifs connus
et des voyous»
11
. En 1942, Artur Ramos l’a réfutée parce que ses
informations ne concernaient «qu’une demi-douzaine de personnes, qu’elle
affirmait être des homosexuels»
12
. Edson Carneiro, en 1954, écrivait que
la majorité des hommes du Candomblé montraient «des tendances
univoques d’efféminement»
13
. Roger Bastide indiquait en 1961 que les
cas de «pédérastie passive» y étaient «très communs», mais
«pathologiques»
14
.En se référant au Shango (variante afro-brésilienne de
Recife), René Ribeiro affirmait en 1969 que «l’homosexualité masculine»
n’y était pas rare
15
. En 1972, Seth et Ruth Leacock, en étudiant le Batuque
(la variante de Belém), concluaient que selon une croyance répandue,
reposant d’ailleurs sur des faits réels, les hommes du Batuque étaient
«efféminés ou, dans la plupart des cas, des homosexuels actifs»
16
.
L’étude la plus complète est présentée en 1974 par Peter Fry
17
. Il y affirme
que certains hommes, parmi ceux qui aiment des pratiques homosexuelles,
sont «attirés par ces cultes car ils sont populairement définis comme des
niches d’homosexuallité». Il argumente que d’une part, l’homosexualité,
ainsi que les cultes de possession, sont définis comme des comportements
11
 LANDES, Ruth, The city of Women. Macmillan : New York, 1947. L’édition
brésilienne est de 1940 (p. 201/202, cité par FRY (17).
12
RAMOS, Artur, A aculturação Negra no Brasil. Biblioteca Pedagógica Brasileira :
Rio de Janeiro, 1942. p.191. Voir Fry (17).
13
CARNEIRO, Edson, Candomblés da Bahia. 2. ed. rev. Rio de Janeiro : Andes, 1954.
p. 154-155. Voir Fry (17).
14
 BASTIDE, op. cit. L’édition brésilienne date de 1961 (p. 309, cité par FRY (17).
15
 RIBEIRO, René, Personality ant the psychosexual adjustement of Afro-Brazilian cult
members. Journal de la Société des Américanistes, Paris, p. 109-120, tome
LVII, 1969.. Voir Fry (17).
16
 SETH ; LEACOCK, Ruth, Spirits of the Deep : a Study of an Afro-Brazilian Cult.
[S.l.] : Doubleday Natural History Press, 1972. p.104. Voyr Fry (17).
17
 PRÉSENTÉE originellement en Anglais en 1974, cette étude paraît en Portugais In :
FRY, Peter, (Para Inglês). Ver: Identidade e política na cultura brasileira. Petrópolis :
Zahar, 1982. p.54-86. (Les références en Portugais des notes 11 à 16 sont des citations
de ce travail).
192
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
déviants par rapport aux valeurs brésiliennes dominantes; et que d’autre
part, en accord avec Mary Douglas et Victor Turner, être considéré comme
«sale et dangereux» ou «déviant», est souvent avantageux pour qui exerce
une profession liée aux pouvoirs magiques. Dans un autre travail
18
, Fry
discute les rapports entre pratiques homosexuelles, sensibilité artistique et
Candomblé. En employant le mot théâtralité pour désignersurtout le goût
du spectaculaire, il présente les commentaires d’un père-de-saint, qui affirme
avoir besoin d’un goût théâtral pour bien jouer son rôle dans le Candomblé,
c’est-à-dire: pour bien organiser les moments de spectacularité.
A partir de l’enquête la plus exhaustive réalisée sur les candomblés de Bahia
19
,
on calcule que 80% des pères-de-saint interviewés ont un comportement
«ouvertement homosexuel». Le responsable de cette recherche, Vivaldo
da Costa Lima, explique que «la tradition orale confirme cette prédominance
d’homosexualité parmi les pères-de-saint. Même lorsque cette condition
n’est pas clairement identifiable, puisque certains sont virils, modérés,
énergiques et ont beaucoup d’enfants avec plusieurs femmes»
20
.
En dépit de l’absence de définitions précises, ou d’un vocabulaire commun,
les données de tous ces auteurs nous confirment l’intense théâtralité
entourant les pratiques homosexuelles masculines dans le Candomblé.
D’une part, le personnage de l’homme efféminé, associé à ces pratiques,
est la présence la plus importante. D’autre part, le personnage du père-
de-saint «viril et père d’enfants», malgré sa présence moins importante,
nous renvoie encore davantage à la théâtralité. La tradition orale affirme
que ce personnage, sans avoir un comportement «ouvertement
homosexuel», aime les pratiques homosexuelles, autant que le personnage
de père-de-saint efféminé. Finalement, la sensibilité artistique et le goût
du spectaculaire, associés dans l’imaginaire aux pratiques homosexuelles
en général, nous renvoient autant à la théâtralité qu’à la spectacularité.
18
 FRY, Peter ; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo : Brasiliense,
1983. (Coleção Primeiros Passos).
19
 Enquête menée par LIMA, Costa (9).
20
 LIMA, Costa, id., p. 171.
193
Armindo Bião
La mise en scène du corps
Le Candomblé est une riche source d’entraînement corporel. Les rituels
d’initiation comprennent, par exemple, la cérémonie du «pana», où les
nouveaux initiés réapprennent les techniques du corps (au sens de Marcel
Mauss) de la vie quotidienne. En mimant les gestes pour faire sa toilette,
s’habiller, bricoler, jardiner, faire l’amour, etc., la personne joue, comme
dans un jeu d’enfants des actions nécessaires et habituelles. Cette cérémonie
a lieu dans une ambiance familiale et enfantine. Après la sacralisation du
corps, il est réinséré dans la vie mondaine en faisant appel à une technique
théâtrale de faire semblant.
D’autre part, la personne initiée reçoit un nouveau nom au moment d’une
cérémonie publique, qui relève du domaine de la spectacularité, et où elle
entre en transe
21
. Temporairement, l’initié devient le propre dieu. Ces
divinités, appelés «orisha», ont des caractéristiques humaines. Et par ailleurs,
certains sont des hommes, des femmes, ou encore, des «androgynes»,
alternativement homme et femme. Si dans le domaine divin, le jeu des
rôles sexuels comprend cette hypothèse, dans le domaine humain, la
théâtralité des rôles sexuels est également admise.
En contrariant la prévision de Bastide, qui indiquait en 1961 que le
Candomblé devrait bientôt subir une forte décadence, en raison du
processus d’industrialisation qui débutait alors à Bahia, le nombre de ses
lieux de culte est passé de 80 à plus de 1500 en 25 ans
22
. Roberto Mota,
en se référant à une variante du Candomblé
23
, affirme que ces religions
sont bonnes à manger, à organiser et à penser. En effet, le partage
d’animaux sacrifiés, les forts liens communautaires établis autour de
21
 Voir LEIRIS, Michel. La possession et ses aspects théâtraux chez les Éthiopiens de
Gondar. Paris : [S.n], 1958.
22
 SODRÉ, Muniz. Culture Noire et Socialité. Societés, n.2, v. 2, n. 7, p.5 , fév. 1986.
23
 MOTA, Roberto. Comida, família, dança e transe (sugestões para o estudo do Xangô).
Revista de Antropologia, Universidade de São Paulo, supplément au v. 25, 1982.
194
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
l’autorité des pères et mères-de-saint (voire même de leur autoritarisme),
et la vision écologique du monde de ces religions, le confirment.
Par ailleurs, l’inexistence des notions de culpabilité permanente et de péché
leur ouvrent des possibilités vers ce que l’on pourrait identifier comme
permissivité. Finalement, et l’on peut y voir une raison plus générale de
leur développement au Brésil, ces religions offrent une préparation et un
entretien adéquats aux besoins de la population d’un pays qui est la huitième
économie occidentale et le deuxième débiteur le plus important du monde
(le premier étant les États-Unis). Les ORISHA, leurs cultes et leurs
variantes, satisfont à la perfection les conditions requises par la théâtralité,
la spectacularité et la post-modernité.
DA CENA BAIANA
197
Armindo Bião
Apresentando inicialmente uma abordagem compreensiva e relativista
da temática do patrimônio cultural imaterial, esta comunicação comenta
problemáticas associadas a esta proposição, para, em seguida, descrever
e refletir sobre duas práticas contemporâneas, de caráter institucional,
relativas ao trato de aspectos do patrimônio cultural imaterial, na Bahia,
Brasil. Trata-se aqui de dois projetos desenvolvidos pelo governo do
estado da Bahia, regularmente – um, há 11 anos, a Caminhada Axé,
desfile anual de folguedos de variadas origens urbanas e rurais, em
Salvador
1
, outro, há seis anos, Bahia Singular e Plural, uma série de
vídeos, programas de televisão e de discos registrando e comentando
folguedos tradicionais de todas as regiões do estado. Em ambos os
casos, os folguedos aí referidos são formas de espetáculo tradicionais.
Finalmente, também abordo o caso do zambiapunga, cuja revitalização ao
longo dos últimos 20 anos foi registrada e divulgada pelos dois projetos
em questão, e que será detalhado, à guisa de exemplo, para a conclusão
da presente comunicação.
O Jogo
Esta é uma contribuição produzida no contexto de atuações simultâneas
na gestão pública da cultura, na docência, na pesquisa, na criação artística
Uma encruzilhada chamada Bahia:
o que está em jogo, qual é o problema e algumas práticas
relativas ao patrimônio cultural imaterial na Bahia, Brasil
*
* Comunicação para o Seminário le patrimoine culturel immatériel: les enjeux,
les problématiques et les pratiques, Universidade de Verão Al Moutanid
Ibn Abbad, XXV. Moussen Festival Cultural Internacional, Assilah,
Marrocos, 7 a 9 de agosto de 2003, publicada em francês em Internationale de
l’imaginaire, nouvelle série, n. 17, Paris, Babel/ MCM, 2004, p. 175-187 e em
português em Revista da Bahia, n. 38, 2004, p. 16-23.
1
Salvador, com quase três milhões de habitantes em sua região metropolitana, é capital
do estado da Bahia, uma das 23 regiões político-administrativas do Brasil, com
população de quase dez milhões de pessoas.
198
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
e na etnocenologia (BIÃO, 2000A; 2000B; 1998; 1996; 1990). Um
contexto de encontro entre tantas vertentes de atuação que corresponde
ao desafio de seguir-se um caminho, passando-se pela encruzilhada, sem
ignorá-la e também sem ignorar as outras opções de caminhos,
percorrendo-os todos, cada um em seu tempo, mas com tal intensidade,
que chegam a parecer, eventualmente, simultâneos, ainda que de modo
imaterial. Reflexão de gestor público, de pesquisador, professor e artista,
este trabalho insere-se na produção cultural identificada com uma possível
perspectiva para a etnocenologia, como encruzilhada de conhecimentos,
e com a Bahia, e sobretudo Salvador, enquanto encruzilhada de culturas.
No imaginário afro-baiano local, encruzilhada é local de Exu, o orixá
mensageiro do panteon gêge-nagô a quem se deve pedir permissão antes
de iniciar-se uma obrigação ritual, constantemente associada à festa, à
comida, à música, à dança, à representação cênica do transcendental e à
convivialidade. Como é este o caso, Salve Exu, Laroiê!
A ideia de patrimônio é provavelmente mais antigano mundo latino que
a ideia de pátria. Na constituição das línguas neolatinas, durante a Idade
Média, esta ideia expandiu-se em expressões como “patrimônio da
Igreja”, “do povo”, “do santo”. Compreendido de modo mais amplo,
transmitido por algum tipo de consórcio ou matrimônio, o patrimônio
pode ser físico, biológico, genético, compreendido como material, ou
tangível, e também pode ser simbólico, imaginário, imaterial, ou intangível,
mas sempre remetendo aos sentidos de posse e herança, sendo ambos
os sentidos de patrimônio intrinsecamente relacionados.
A ideia de imaterial ou intangível, aplicada ao âmbito da cultura, é recente
na história da humanidade, tem alcance quase universal e corresponde ao
esforço conceitual desenvolvido pela modernidade para distinguir o
patrimônio cultural arquitetônico, monumental, urbanístico, artístico,
paisagístico, de outras formas de patrimônio cultural, que compreende
as artes contemporâneas e tradicionais, os hábitos, as técnicas de corpo,
os folguedos, embora possa haver discussão sobre os limites concretos
entre os dois tipos de patrimônio, sobretudo no que concerne, por
exemplo, às artes plásticas.
199
Armindo Bião
A distinção entre material e imaterial é simultaneamente conceitual,
conjuntural e, frequentemente, estrutural, em termos de gestão pública.
Por exemplo, no sistema estadual de cultura, na estrutura administrativa
pública da Bahia, um órgão cuida do patrimônio material, o Instituto do
Patrimônio Artístico e Cultural e, outro, do imaterial, a Fundação
Cultural do Estado. O sistema se completa com mais dois outros órgãos,
um dedicado aos arquivos e bibliotecas, outro ao sistema de rádio difusão.
O que está em jogo no uso dessas palavras, conceitos e estruturas de gestão
é, por um lado, a intervenção – ou participação organizada teoricamente
sustentada, na dinâmica da cultura. Por outro lado, encontra-se também aí
em jogo o exercício da reflexão e da produção de conhecimento novo.
Nesse contexto, o discurso e a ação representam poder, seja ele autoritário
ou libertário, conservador ou revolucionário, tolerante ou não, criando-se
infinitas possibilidades de combinações de intenções e resultados.
A Problemática
Quando se trata da questão conceitual e pragmática do patrimônio cultural
imaterial, participam também do jogo – enquanto possibilidades –
múltiplas formas de coesão – e de desagregação – social. Em última
instância, quando se aborda essa questão que aqui nos ocupa, trata-se
mesmo é de qualidade de vida, de coexistência da diversidade, em termos
materiais e imateriais.
O que está em jogo pode ser o simbólico e o imaginário, mas pode ser
também a possibilidade de melhoria das condições humanas de renda e
emprego. É o que compreendemos como missão maior da
etnocenologia: basear seus estudos e ações em objetivos humanistas
amplos, que promovam a coesão social e a melhoria da vida humana,
individual e em grupo, associando teoria e prática, ação e reação,
pronunciamento verbal e escuta, num horizonte que compreenda as mais
variadas formas de viver identidades, conviver e produzir sentidos.
O problema maior será sempre o provavelmente universal preconceito
etnocêntrico e seus correlatos de gênero, cor, classe, religião e opções de
200
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
vida. Mas também será problema a relação para com o mais velho e
para com o mais novo, na vivência cotidiana e espetacular da dinâmica
da cultura, em termos de aceitação ou rejeição.
Dada a complexidade da problemática, que não se poderia simplificar
apressadamente, por falta momentânea de espaço e tempo, vale apenas
lembrar que, na Europa ocidental, entre as duas grandes guerras, a
multiplicação de discursos e ações relativas ao patrimônio cultural esteve
associada, por um lado, a movimentos artísticos de vanguarda, por outro,
a movimentos políticos autoritários e conservadores (GUILBERT, 2000).
No Brasil também a legislação e as primeiras ações concretas de
valorização, proteção e promoção do patrimônio cultural aproximaram,
na prática, artistas de vanguarda, atuantes desde os anos 20, do
autoritarismo político dos anos 30, numa complexa rede de interesses e
motivações que gerou resultados, em todos os casos, inesperados. De
modo positivo, assinale-se o aparato legal e institucional que, mesmo
transformado, persiste e se aprimora até hoje (The intangible heritage...,
2002; Legislação..., 1997; Consolidação..., 1994) bem como as ideias de
antropofagia – da arte moderna – e de mestiçagem – do movimento
regionalista, que ainda definem a cultura brasileira
2
. Já a manipulação do
patrimônio cultural para a política autoritária, por um lado, e, por outro,
seu registro e estudo de caráter preservacionista, temerosos da desaparição
anunciada – mas nunca verificada – do patrimônio, em particular o
imaterial, asseveraram-se como incompetentes
3
.
2
Antropofagia, ou canibalismo, no sentido de ingestão de outras culturas e
metabolização de uma nova; e mestiçagem, como marca positiva do povo e da
cultura brasileira, são grandes marcas da arte moderna, cujo representante pode ser
Oswald de Andrade, e do movimento regionalista, que pode ser representado por
Gilberto Freyre.
3
O registro dos folguedos, danças dramáticas e outras expressões tradicionais, promovido
nos anos 30 por inspiração do modernista Mário de Andrade, foi repetido recentemente,
verificando-se a permanência de formas e estruturas consideradas como ameaçadas,
60 anos antes, conforme revelam pesquisas divulgadas recentemente (BORGES, 2002,
BUYS; EVANGELISTA, 2002).
201
Armindo Bião
Após o desenvolvimentismo americano – de norte a sul – dos anos 50,
o vanguardismo artístico no Ocidente dos anos 60 e 70 ecoando no
panorama das ditaduras e do crescimento latino-americano, os anos 80 e
90 conheceram a globalização da ideia de patrimônio oral e imaterial, da
qual o surgimento da etnocenologia, em Paris, em 1995, é um sintoma.
No Brasil, no ano 2000, criou-se o Programa Nacional do Patrimônio
Imaterial, após 13 anos de iniciativas mais ou menos bem-sucedidas no
âmbito da legislação e da atuação sistemática de agentes públicos e
privados. É nesse contexto que se detalham a seguir duas práticas, dois
projetos institucionais da gestão pública da cultura na Bahia, a Caminhada
Axé e o Bahia Singular e Plural, e que se toma como forma de espetáculo
exemplar para a reflexão sobre nossa temática e nossas problemáticas: o
zambiapunga.
As Práticas
O projeto Caminhada Axé foi criado, originalmente, pela Escola de
Dança da Diretoria de Música e Artes Cênicas da Fundação Cultural do
Estado da Bahia - FUNCEB, em 1992, como evento de celebração da
Semana do Folclore. Em 22 de agosto, num curto percurso de cerca de
dois quilômetros, no centro urbano de Salvador, do Passeio Público ao
Campo Grande, atravessando vias públicas, apresentaram-se grupos
artísticos escolares, comunitários, profissionais e tradicionais, culminando
com uma feira de artesanato e de culinária.
A excelente repercussão jornalística do desfile festivo e espetacular,
caracterizado eventualmente como folclórico, levou a principal emissora
de televisão do estado a propor à FUNCEB a reedição do evento no
mês de dezembro do mesmo ano de 1992. Assim, realizou-se de novo
a Caminhada Axé, como Abertura do Verão baiano, em novo percurso,
do bairro de Ondina – onde se concentram alguns dos principais hotéis
da cidade, ao Farol da Barra, ícone da cidade construído dentro de uma
fortaleza colonial, em trajeto de cerca de seis quilômetros, que
caracterizaria o famosíssimo carnaval da cidade.
202
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Desde então, a FUNCEB realiza anualmente a Caminhada Axé, entre
dezembro e fevereiro, durante o verão, tendo a emissora de televisão de
maior audiência no estado como parceira e patrocinadora. A notoriedade
nacional da Caminhada Axé rendeu-lhe premiações, reportagens e ensaios
(GÓES, 2001). Suas característicasbásicas mantêm-se (espetáculo em
forma de cortejo, misturando grupos artísticos de múltiplos tipos –
amadores, profissionais, tradicionais, estudantis etc), mas progressivamente
a feira de artesanato e culinária desapareceu e institucionalizou-se um
palco no final do cortejo, no qual os diversos folguedos se exibem por
alguns minutos.
O número de participantes e a presença cada vez mais significativa de
folguedos e artistas tradicionais no cortejo, que virou sua marca registrada,
cresceu significativamente, estabilizando-se o total de participantes em
2.500 e o de grupos em 50, aproximadamente, nos últimos cinco anos.
A presença percentual dos grupos tradicionais, grosso modo, cresceu de
menos de 10% para mais de 70% do total de grupos participantes. O
público também tem crescido, assim a como a repercussão do projeto.
As maiores questões que se fazem a partir da Caminhada Axé referem-
se à mudança de local e época de apresentação dos grupos tradicionais.
Tratar-se-ia de uma descaracterização? De quais características?
Estabelecidas como? Quando? Por quem? Conhecidas de que modo? A
melhor argumentação de resposta baseia-se na forte matriz barroca dos
cortejos como formas de espetáculo da Bahia, na implícita busca da
alteridade para confirmação da presença festiva da maioria das artes
tradicionais e folguedos baianos e na tendência fortemente antropofágica
da cultura local. A visibilidade da Caminhada Axé agregou prestígio aos
grupos tradicionais, divulgando-os e influenciando a retomada de
folguedos quase desaparecidos, bem como o crescimento e o
fortalecimento dos existentes.
O projeto Bahia Singular e Plural foi criado pelo Instituto de
Radiodifusão Educativa da Bahia, em 1997 e, até maio de 2003, produziu
17 vídeos de meia hora cada, além de seis CDs, com registros e
203
Armindo Bião
comentários sobre folguedos tradicionais do estado da Bahia. Inspirado
na obra do dramaturgo e pesquisador da Escola de Teatro da
Universidade Federal da Bahia, Nelson de Araújo, criador da disciplina
universitária Expressões Dramáticas no Folclore Brasileiro e proponente de
uma etnoteatrologia (ARAÚJO, 1986; 1998; 1996), o projeto Bahia
Singular e Plural, assim como o anterior, mereceu, em nível nacional,
premiações, reportagens e ensaios (BIÃO, 1999)
4
.
Este projeto tem levantado uma multiplicidade de questões. Estar-se-ia
criando um conjunto referências para as artes tradicionais registradas.
Mas isso representaria um perigo? Para que? Para quem? As eventuais
mudanças de local e de ocasião de realização do evento, para efeitos de
filmagem e registro fonográfico, estariam contribuindo para sua
descaracterização? De que aspectos? E com quais consequências? Uma
consequência deste projeto amplamente considerada positiva tem sido o
aumento do prestígio dos folguedos divulgados pelo projeto, o que tem
motivado muitos jovens a se interessarem em participar da manutenção
dessas formas de espetáculo tradicionais.
A Conclusão
A palavra folclore, em língua portuguesa como em outras, possui a
ambiguidade de referir-se ao conhecimento popular tradicional e a
manifestações superficiais da cultura. Ambos os sentidos aqui nos
interessam, embora o uso da palavra no contexto dos dois projetos aqui
brevemente descritos seja meramente incidental. O que nos interessa aqui
e agora é registrar a contribuição efetiva para a geração de riquezas no
Brasil dos festivais folclóricos (DURÁN, 2002), dos carnavais, das
micaretas, dos rodeios, dos espetáculos de artes cênicas e cinematográficas
e dos folguedos tradicionais, cujo prestígio tem se renovado
constantemente, ampliando quantitativa e qualitativamente a população
participante e espectadora.
4
O projeto já registrou cerca de 300 manifestações culturais tradicionais em mais de
100 municípios da Bahia.
204
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Para focalizar uma possível conclusão para a presente – e breve – reflexão,
tomemos o exemplo de uma forma tradicional de espetáculo, ou
folguedo, o zambiapunga. Trata-se de um grupo de cerca de 30 homens,
de 17 a 50 anos, majoritariamente da zona rural, mascarados e fantasiados,
que percorre as ruas de uma pequena cidade na véspera do Dia de Finados
(2 de novembro) e na festa do padroeiro (em janeiro), tocando tambores,
cuícas e enxadas percutidas com vara de metal e soprando búzios. É um
folguedo de provável origem africana banto, recorrente em várias
localidades da região ao sul da Bahia de Todos-os-Santos.
Com variantes de denominação como zabiapunga, zaniapombo e zamiapunga,
o folguedo deixara de ocorrer na pequena cidade de Nilo Peçanha durante
os anos 60 a 70, sendo reativado em 1982 por iniciativa de uma pessoa da
própria região interessada em questões pedagógicas. Tendo participado
da Caminha Axé em 1992 – e nos anos subsequentes – e do projeto Bahia
Singular e Plural, posteriormente, o folguedo ganhou enorme notoriedade
5
.
De 17 a 25 de maio último, o zambiapunga de Nilo Peçanha participou
do II Festival Mawazine Ritmos do Mundo, em Rabat, no Marrocos
6
.
A Caminha Axé e o Bahia Singular e Plural são sem dúvida encruzilhadas
pelas quais o zambiapunga tem circulado, em espaços e tempos não
tradicionais. É fácil constatar-se o crescimento da autoestima de seus
participantes. E através de seu percurso pode se perceber algo da cultura
baiana, no que se refere a uma forte vocação comercial, turística e aberta a
5
Este grupo participou de eventos de grande prestígio na Bahia e em outros estados
brasileiros, tendo influenciado espetáculos amadores e profissionais, particularmente
na Bahia, possuindo já um sítio virtual: www.grupozambiapunga.hpg.com.br. Termo
de origem banto, zambiapunga significa “deus supremo”.
6
Chérif Khaznadar, da Maison des Cultures du Monde e da organização deste Festival,
bem como do colóquio para o qual preparei a presente comunicação, informou-me
que, atendendo a sua demanda, Dimitri Ganzelevitch, presidente da Associação Cultural
Viva Salvador, sugeriu-lhe para o evento em pauta o Zambiapunga de Nilo Peçanha,
enviando-lhe, como documento audiovisual para seu conhecimento, o vídeo Caretas
e Zambiapunga, da série Bahia Singular & Plural. Esta informação contribui para
confirmar nossa hipótese.
205
Armindo Bião
novas tecnologias de transportes e comunicação. Salvador foi no século
XVIII a maior cidade europeia fora da Europa e africana fora da África,
encruzilhada entre Norte e Sul, Leste e Oeste do planeta, constituindo-se
em entreposto portuário marítimo barroco da cultura mundial. Talvez aí
resida a vocação baiana para a promiscuidade entre tradição e
contemporaneidade. A melhoria da reflexão teórica e da ação pragmática,
da ciência e da arte, da qualidade de vida, das condições de renda e
emprego e a redução de terríveis desigualdades sociais podem depender
de projetos como os aqui rapidamente comentados, na encruzilhada do
mundo chamada Bahia
7
.
Referências
ARAÚJO, N. de. Pequenos Mundos : O Recôncavo. Salvador: EGBA,
1986. t.1.
ARAÚJO, Nelson de. Pequenos Mundos: Litoral Norte/ Nordeste,
O São Francisco, Chapada Diamantina e Serra Geral da Bahia. Salvador:
EGBA, 1988. t.2.
ARAÚJO, N. de. Pequenos Mundos, Tabuleiros de Valença, O
Folclore da Região Cacaueira e do Extremo Sul, A Bahia Pastoril,
Extremo Oeste. Salvador: EGBA, 1996. t.3.
7
Vale registrar um novo projeto do qual tenho a honra de participar como proponente,
enquanto Diretor Geral da FUNCEB, juntamente com Heloísa Helena Fernandes
Gonçalves Costa, Diretora geral do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da
Bahia – IPAC, assim como a FUNCEB parte integrante da estrutura da Secretaria da
Cultura e Turismo do Estado da Bahia – SCT. Trata-se de um projeto de lei, em rápida
via de tramitação pela Superintendência de Cultura da SCT, o Conselho Estadual de
Cultura, a Governadoria e a Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, no final de
2003, intitulado Mestres dos Saberes e Fazeres, que deverá registrar,em livro específico
de tombo, diplomas concedidos a mestres de saberes e fazeres ameaçados de
sobrevivência (saveiristas e luteristas, por exemplo, entre inúmeros outros), a quem
deverá se assegurar um salário mensal – vitalício e intransmissível – para possibilitar o
compartilhamento de seu conhecimento com outras pessoas, sendo, já em 2004,
diplomados 15 mestres, ampliando-se posteriormente este número.
206
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
BIÃO, A. “Matrizes estéticas: o espetáculo da baianidade”. In: BIÃO, A.;
A. PEREIRA, L.; C. CAJAIBA; R. PITOMBO (Orgs.). Temas em
Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade. São Paulo:
Annablume, 2000, p. 15-30.
BIÃO, A. “Aspectos Epistemológicos e Metodológicos da Etnocenologia:
Por Uma Cenologia Geral”. In: CONGRESSO DA ABRACE, 1., 2000.
Anais... Salvador: ABRACE, 2000. p. 364-367.
BIÃO, A. “Ouro em Pó na TV: Da Bahia Para o Mundo”. Revista da
Bahia, [S.l.], n. 30, p. 100-107, 1999.
BIÃO, A.; C. GREINER, (Orgs.). Etnocenologia, Textos
Selecionados. São Paulo: Annablume, 1998.
BIÃO, A. “Questions posées à la théorie : une approche bahianaise
de l’ethnoscénologie”. “Questions d’ethnoscénologie” Internationale
de l’imaginaire, Paris, n. 5., p. 145-152, 1996.
BIÃO, A. Théâtralité et spectacularité : une aventure tribale
contemporaine à Bahia. Thèse (doctorat), d’université. Paris: Sorbonne
(Paris 5 René Descartes), 1990.
BORGES, R. “Missão folclórica de Mário de Andrade é refeita 60 anos
depois”. Jornal Valor Econômico, [S.l.], 04 de jul. 2002. p. 06.
BUYS, B. D.; EVANGELISTA, R. “ Cultura popular X Globalização :
festas folclóricas resistem à indústria cultural”. Revista Ciência Hoje,
São Paulo, n. 189, 2002, p. 26-32.
CONSOLIDAÇÃO da Legislação Cultural Brasileira. Brasília: MinC,
1994.
DURÁN, C. R. “Dupla riqueza: entre mitos e cifras”.Jornal Valor
Económico, São Paulo, 18 ago. 2002, p. 8-9.
207
Armindo Bião
GÓES, F. “Bens imateriais em desfile: a Caminhada Axé”. Patrimônio
Imaterial - Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 147, p. 63-68,
2001.
GUILBERT, L. Danser avec le III Reich Les danseurs modernes
sous le nazisme. Bruxelles: Editions Complexe, 2000.
THE INTANGIBLE Heritage: the Registry of the Intangible Heritage:
Final Dossier of the activities of the Committee and of the Working
Group on Intangible Heritage. Brasília: MinC, 2002.
LEGISLAÇÃO Cultural Brasileira. Brasília: Ministério da Cultura, 1997.
SONS E AS IMAGENS
CAMINHADA Axé. Salvador: FUNCEB; TV Bahia, 1999. 1 VHS (12
min.), son., color.
FACES and Zambiapunga. Salvador: IRDEB; TVE, 2000. 1 VHS (30
min.), son. color.
209
Armindo Bião
O ensaio de Affonso Ruy sobre Xisto Bahia, aqui publicado na Revista da
Bahia dedicada ao teatro, em 2003, segundo os documentários de que
dispomos, apareceu anteriormente em duas outras publicações, em
versões muito semelhantes, não integralmente contendo, ambas, o mesmo
texto, intertítulos e notas: a primeira, em 1954, por iniciativa da Academia
de Letras da Bahia, com o título Boêmios e Seresteiros do passado, Coleção
Ensaios – Série Miniaturas, Livraria Progresso Editora; a segunda, em
1968, com o título Xisto Bahia – símbolo do teatro baiano (Uma tentativa
biográfica), sem indicação de editora. A versão aqui publicada reproduz o
texto da edição de 1954 e reúne as notas desta e da outra edição.
Publica-se igualmente aqui numa série de fontes bibliográficas e de sítios
virtuais, que poderão ser úteis aos pesquisadores interessados no grande
ator e compositor baiano do século XIX, além de uma seleção de títulos
de suas modinhas e lundus, indicando-se seus parceiros eventuais, nomes
de seus principais personagens, com as respectivas peças e autores, sua
única peça publicada e espaços identificados por seu nome.
O major Francisco de Paula, veterano das campanhas da Independência
e da Cisplatina, desligado do Exército, em que, com denodo, defendeu
a integridade da pátria, recebeu como prêmio ao seu destemor e ao seu
patriotismo, a administração da fortaleza de S. Antônio de Além do
Carmo. Ali se instalou com a família, dividindo o tempo com os serviços
do seu cargo e a paz do lar, cuja pobreza era menos dolorosa na
companhia de sua mulher, D. Teresa de Jesus Maria do Sacramento
Bahia e dos quatro filhos do casal: Soter, Francisco Bento, Horácio e
Xisto Bahia
*
* Publicado originalmente como BIÃO, Armindo et al, Xisto Bahia, em Revista Bahia,
v. 32, n. 37, p. 4-14, 2003.
210
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Eulália. Soter, em breve desposava o ator Antônio da Silva Araújo e
como para preencher o vácuo da filha que deixava o lar, nascia, a 5 de
setembro de 1841, Xisto Bahia.
Nos anais da vida boêmia da Bahia, tem destacado lugar a Freguesia de
Santo Antônio Além do Carmo. Vem de lá grande número dos nossos
melhores cancioneiros, compositores e intérpretes do século passado.
São de lá Chico Sepúlveda, Efren, Pe. Guilherme Sales, D. Augusto
Baltazar da Silveira e uma corte imensa de grandes seresteiros que enchia
de harmonia as noites de luar da cidade adormecida, despertando ou
embalando em sonhos de amor, os corações juvenis de nossas avós ou
trazendo pesadelos e vigílias a muitos Otelo provincianos. Xisto Bahia
nasceu e cresceu em Santo Antônio. Ali se revelou artista teatral, como
amador, no teatrinho da Rua de São José e exímio tocador de violão.
Aos 17 anos cantava as suas primeiras modinhas – inspiração fluente
improvisada uma sequência de harmonias, verdadeiras peças musicais.
 
A Crisálida
 
À falta de recursos, o casal teve que mandar o caçula à escola pública da
freguesia de Santo Antônio, a fim de, com a pouca instrução adquirida,
encontrar colocação no comércio, a que era destinado, como seus irmãos.
O espírito folgazão e a inteligência viva de Xisto, sem procurar contrariar
a resolução paterna quanto a seu futuro, ia enveredando inconscientemente
por outro caminho, não só pela inspiração com que compunha modinhas,
que ele próprio acompanhava, mas ainda pela fascinação pelo teatro, o
que o levou a se inscrever como amador do Grupo Teatral Recreio
Dramático, de que era presidente José Maria da Silva Paranhos, depois
Visconde do Rio Branco, e que, como Nabuco de Araújo, em Olinda,
fora amador teatral. Em breve, Xisto Bahia era figura de evidência no
teatrinho da Rua de São José de Cima, para o qual escrevia e representava
comédias, e quando, em 1858, o Major Francisco de Paula faleceu, o
jovem, procurando uma situação estável que pudesse aliviar as privações
do lar materno, tentou, debalde, um lugar no comércio. Restava-lhe como
recurso à carreira teatral, que o empolgava e da qual seu cunhado, Antônio
211
Armindo Bião
Araújo, era um Mestre. Assim, prevalecendo-se de sua voz de barítono,
bem timbrada e clara, que muitas vezes a cidade ouvira em serenatas,
ingressa como corista, em 1859, na Companhia Lírica Clemente Mugnai,
de que eram figuras principais o tenor Giovani Bichi e a soprano Luigia
Donatti, então trabalhando no Teatro São João, de onde se retira para a
companhia dramática de seu cunhado. Com Araújo – que era pai dos
professores Torquato e Antônio Bahia – visita as principais cidades da
Província, reaparecendo, em 1861, integrando o elenco da companhia
organizada pelo Comendador Constantino do Amaral Tavares, então
diretor do Teatro São João
1
. O amador evoluíra consideravelmente; a
plateia ria da jocosidade de suas criações e o aplaudia freneticamente nos
entremezes quando cantava chulas e lundus, por si mesmo acompanhados
ao violão.
 
A Lição Cearense
Em 1864, contratado pelo empresário Couto Rocha, de cujo corpo
cênico fazia parte o grande ator português Furtado Coelho, Xisto Bahia
deixa a terra natal, demanda do Norte, por onde excursiona durante dez
anos. Talento brilhante, insinuante e prazenteiro, as rodas boêmias e a
popularidade o absorvem, fazendo-o descuidar-se dos papéis que lhe são
distribuídos. A crítica o ataca; a empresa assusta-se porque o jovemcomediante entra em cena, muitas vezes, sem ter lido, sequer, o papel! No
Ceará, em 1866, a estrela de Xisto empana e ele fracassa. O público esqueceu
depressa o insucesso, mas a si próprio o artista não perdoa a vergonha, e,
no Maranhão, sob os conselhos do grande crítico que foi Joaquim Serra e
1
A Companhia de Constantino do Amaral Tavares era composta de atores brasileiros e
portugueses, dela fazendo parte além da atriz baiana Ana Costa, Maria Velluti (ex-
amante de Almeida Garret, de quem tinha um filho), Ludovina, Antônio da Silva e
outros.
Segundo Sílio Boccarena Júnior (O teatro na Bahia – pág. 174), o jornalzinho literário
da época “O Recreio das Senhoras”, que especialmente se ocupava de Teatro e das
Belas Artes, em sua edição de ____ [...] abril de 1861, registrou-se que, na representação
do drama Probidade, pela primeira vez, viu-se no teatro da Bahia, uma atriz ao piano,
acompanhando-se a si própria. Infelizmente não se mencionava o nome daquela atriz.
212
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
direção de Joaquim Augusto, dedica-se ao trabalho, estuda, revelando-se
ator consciencioso e brilhante. Sai do Maranhão triunfante; volta ao Ceará
vitorioso, resgatando com uma apoteose os apupos passados.
 
Quando, dez anos depois, revê a Bahia, em 1873, é artista de reputação
firmada. Ingressa na Companhia de Mágicas de Lopes Cardoso, mais
tarde fundador do Diário de Notícias, e de que faziam parte Gabriela e
Eduardo De-Vecchi, pais do maestro Geraldo De-Vecchi.
2
 Com grande
êxito, é montada a comédia de Xisto Bahia Duas páginas de um livro,
já impressa, desde 1872, no Maranhão, peça de propaganda abolicionista
e tendência francamente republicana.
 
Na Corte
 
Estava Xisto, após aquela peregrinação por todo o norte do Brasil, lutando
e observando, apto para atuar num meio mais eficiente. Findara-se o
noviciado na Bahia, e em 1875, estreia na Corte, no Teatro Ginásio, na
Companhia de Vicente Pinto de Oliveira, de cujo elenco destaca-se Clélia
de Araújo, baiana, e que exercera em Salvador o magistério público.
 
Abrem-se-lhe os galarins da fama; as qualidades de Xisto Bahia davam-
lhe margem a não recusar jamais um papel, sempre desempenhando
com inteligência e personalidade. Nunca, entretanto, foi excedido na
comédia brasileira, fixando por muitos anos, pelo seu trabalho criador,
o teatro nacional. Foi maior que Vasques, maior que Colás.
 
O Compositor
 
Ator consagrado, Xisto continuou a compor e interpretar modinhas e
lundus, sempre se acompanhando ao violão. As modinhas tinham
2
A Companhia Lopes Cardoso fez a sua temporada nos anos de 1873 e 1874, com
extraordinário êxito. Montou no Teatro São João várias mágicas (espetáculos então
em grande voga), sobressaindo o Mágico e o Milagre de N. Srª de Nazaré.
213
Armindo Bião
excepcional destaque na vida social do segundo império. Não só a
modinha. O lundu irreverente ou malicioso era exigido nos teatros;
recatadamente apresentado nos salões.
 
No mundo artístico e boêmio, tornaram-se notáveis nesse gênero, Xisto
Bahia e Laurindo Rabelo, conhecido como “poeta lagartixa”. Laurindo,
escrevendo versos para o compositor João Cunha, formara com este
notável dupla, que encontrou como antagonista o ator baiano que se
notabilizara como compositor das multidões, eletrizando as elites como
o povo, com seus famosos cantares.
 
Era fatal o entrechoque dos dois grandes talentos boêmios; criou-se o
partido. O público sentenciava. E enquanto Laurindo escrevia versos
maliciosos e satíricos, Xisto fazia-os jocosos e irônicos, ilustrados com
vinhetas musicais que chegaram até nós.
 
Foi vencido o poeta carioca, e desse embate surgiu, verdadeiramente
corrosivo para o teatro, o uso e abuso dos gestos e frases dúbias de
novos lundus e cançonetas que descambaram para a licenciosidade.
Entretanto, o lundu teve patronos e criadores de alto coturno e valia.
Para Xisto Bahia, escreveu o Visconde de Porto Alegre várias composições
cantadas nos serões aristocráticos de Botafogo e, como ele, Melo Morais
Filho, grande historiador pátrio, de quem até hoje se ouve com delícia
esse A mulata, página que vingou como A cassa branca da serra, que em
1890, Guimarães Passos, compôs e cantou numa memorável noite de
boemia.
 
Comentando a obra musical de Xisto Bahia o maestro baiano Guilherme
de Melo na sua A música no Brasil, assim se expressa:
 
[...] O que se dava com relação a Laurindo, no Rio, reproduzia-
se na Bahia com Xisto Bahia ator e aprimorado trovador,
que arrebatava auditórios, cantando modinhas próprias ou
alheias, interpretando e cantando, como artista, que era,
engraçadíssimos “lundus”, aos repenicados do violão.
 
214
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Porém o que mais nos deve causar admiração em Xisto Bahia
era a pujança do seu estro musical, sem conhecer uma só nota
de música!
 
Pela análise do “Quis debalde varrer-te da memória”
3
verdadeira epopeia de seu sentimento lírico, vê-se que com
delicadeza ele percorria todas as gradações do sentimento
melódico, ora majestoso nos graves, ora delicado nos agudos,
ora encantador nas modulações, ora sublime nas falas, ora
agitado num movimento patético, ora ainda extasiado numa
firmata!
 
É, também, de admirar a naturalidade com que ele encadeava
as frases e desenvolvia um tema, como se fosse uma artista
consumado, e sem conhecer uma só regra de composição!
 
Não haverá, por certo, no mundo, artista nenhum que se
desdenhe assinar o seu “Quis debalde”, uma vez que no gênero
ele em nada é inferior aos seus similares.
 
3
A letra da modinha Quis debalde cuja música, escrita por Xisto Bahia, tornou-se
popular, foi escrita pelo poeta Plínio de Lima, formado pela Academia de Recife e
notável poeta lírico, é a seguinte:
Quis debalde varrer-te da memória
Quis debalde varrer-te da memória
E o teu nome arrancar do coração:
Amo-te sempre [...] Oh! Que martírio infindo!
Tem a força da morte esta paixão [...]
Eu sentia-me atado ao teu prestígio
Por grilhões poderosos e fatais;
Não me vias sequer, te amava ainda[...] {bis
Motejavas de mim, te amava mais[...]
Tu me vias sorrir, os prantos d’alma
Só confia-se a Deus e à solidão[...]
Tu me vias passar calmo e tranquilo,
Tinha a morte a gelar-me o coração.
215
Armindo Bião
Como o “Nel cor piú non me sento” de Paisiello, que Beethoven,
o mais sublime dos mestres, não se desdenhou em fazer diversas
variações;
 
Quantas vezes lutei com o sentimento,
Quantas vezes corei de minha dor!
Quis até te odiar, te amava sempre,
Sempre a esmagar-me o meu amor![...] {bis
 
Sofri muito por ti. As minhas trevas
Nem um raio de amor deste sequer,
Tu sorrias feliz, quando eu chorava,
E eu chorava só por te amar, mulher!
 
Não consigo apagar-te da memória,
Nem teu nome arrancar do coração!
Amo-te sempre![...] Oh! Que martírio indefinido!
Tem a força da morte esta paixão[...] {bis
 
como o “Carnaval de Veneza”, que é o canto mais popular do
mundo inteiro, e que tem servido de tema a centenas de variações
de artistas distintos, como Listz, Paganini e outros; como “Ah!
Che la morte ignora”, do Trovador de Verdi, que quanto
mais cantado, mais lido se torna, assim o “Quis debalde” de
Xisto Bahia, sendo uma composição essencialmente pura e bela
como as supracitadas, há de atravessar o perpassar dos tempos,
conservando sempre o mesmo encanto, e a mesma frescura como
se fosse escrita na atualidade.
 
Que se compare com o “Nel cor piú non me sento”, e veja
quanta diferença. Enquanto ambos são traçados em dois
períodos, um de oito e outro de doze compassos, divididos em
frases de dois tesis, cada uma, o desenho deste é simples, ingênuo,
como que pintando a singeleza de um primeiro amor; ao passo
que o outro é complexo, elevado, lírico, como que delineando a
fraqueza de um amante perante o ser que ele adora, e por
quem é repudiado.
 
216
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Em Paisiello tudo é natural, até as incisasou agrupamentos
fônicos são feitos, quase que unicamente, de notas reais; em
Xisto, ao contrário, tudo é extraordinário, superexcitado; a
todo momento ouvem-se notas afetivas, ora de um “appogio”,
logo uma dissonância de nona de dominante preparada, fazendo
parte integrante do canto; ora uma “síncope”, logo uma alteração
rítmica; ora umas passagens cromáticas, logo umas passagens
de retorno; ora umas modulações cadentes; ora uns movimentos
melódicos permitidos, logo um salto de sétima maior abordável
e fácil, como se não fosse um movimento melódico, sem conhecer
uma só regra de música!
 
Quem é que fazendo uma análise psíquica desta modinha, não
se sente, logo nas primeiras notas, possuído de uns tantos
sentimentos de energia, ao cantar nos graves o “Quis debalde”
e logo sentindo a fraqueza humana, perante a dureza do amor
repudiado, não prossegue abatido, choroso e plangente o “varrer-
te da memória”, sentindo-se sem a coragem precisa para
confessar a sua imensa paixão?
 
Parece que a agonia produzida pela dor de “E teu nome
arrancar do coração” é tão profunda e lancinante, que iniciada
a frase nos agudos, como que partindo do cérebro, vem
gradativamente descendo, até as notas mais graves do acorde,
para se internar no interior do coração, e aí achar um abrigo
ou lenitivo às suas mágoas.
 
Um momento de pausa[...]
 
Ei-lo de novo, como na primeira frase, enérgico, firme, no
“Amo-te sempre”, e, em seguida, abatido, choroso e plangente
no “que martírio infindo”.
 
E como é bela ainda a frase: “Tem a força da morte esta
paixão”! Parece que sob a ação de uma febre ardente, o trovador
217
Armindo Bião
não poderá mais arrancar da sua lira notas que lhe
exprimissem o sentimento de doçura e de afabilidade de quem
se acha possuído de amor; mas, sim, notas em um tom alto,
elevado, épico, de quem já não tem mais cérebro para refletir o
que o coração sente.
 
Sempre uniforme, inspirado em toda modinha, parece que o Dr.
Plínio de Lima, autor da poesia, comunicara a Xisto as chamas
dos seus afetos, razão pela qual ele fora tão bem interpretado.
Sem isto, talvez que Xisto jamais tivesse logrado a sagração de
cantor e compositor brasileiro, pois que ele não era, propriamente,
um artista musical, e sim, um simples “trovador”.
 
Parece que a arte, o estro, o sentimentalismo musical ingênuo
do povo brasileiro, personificaram-se em Xisto, ao fazer a
música do “Quis debalde”.
 
Não foi somente no gênero lírico que o sentimento musical do
povo brasileiro se encarnara em Xisto Bahia; o gênero chistoso,
picante, do lundu, fora, também, uma das notas mais bem
afinadas de sua lira.
 
No “Lundu do Pescador”, poesia de Artur Azevedo, o nosso
mavioso trovador deixa um atestado do seu gênero folgazão, e
de suas aptidões trovadorescas.
 
Em 1878, inaugura-se o Teatro da Paz, na cidade de Belém
4
 com um
elenco de valor composto de João Colás, Joaquim Infante da Câmara,
Joana Januária, Josefina Azevedo: toda a velha guarda. Como nas demais
plateias, a peça Uma Noite de Reis na Bahia, de Artur Azevedo, com
música de Libânio Colás fez grande sucesso, porquanto Xisto, no papel
de Bermudes era inexcedível. Assistindo a essa sua peça, no Maranhão,
confessa Artur Azevedo que não a reconhecera, chegando à conclusão
4
A peça levada na inauguração do Teatro da Paz foi As duas órfãs.
218
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
de que dera a Xisto um esqueleto que o ator completou, reescrevendo
tudo. Confessando-se simples colaborador de Bahia quis-lhe dar a
coautoria da peça, não havendo força que fizesse o ator aceitar a honra
da parceria. De volta, trabalha na Bahia, em 1879, com Pontes de Oliveira.
Era a última vez que a Corte deixaria o grande ator trabalhar no Norte.
Daí por diante, no Rio, integra o conjunto de Furtado Coelho, então na
plenitude de sua carreira, ou encabeça o elenco do empresário Jacinto
Heller, a quem tanto deve o teatro brasileiro.
 
Para Xisto, os louvores são incentivos para o seu espírito. A corte não lhe
regateia elogios. Até o Imperador Pedro II vai aplaudi-lo no espetáculo
comemorativo da Batalha de Riachuelo, em 1880, e a respeito escreve à
Condessa do Barral: “Gostei de um cômico chamado Xisto Bahia –
creio que é baiano – numa espécie de imitação Les Jurons de Cadrac.
Lembra-se do Coquelinet e da Favart?
 
Intitula-se Os perigos do Coronel. Declamou com muito talento a “Descrição
da Batalha de Riachuelo”
5
 
5
O imperador equivocou-se quanto ao nome da peça, escrevendo Les jurons de Cadeset,
em vez de Les jurons de Cadesset de Pierre Berton, onde a personagem principal, o
Capitão Cadil utiliza-se das gírias dos marítimos franceses ao descrever a batalha de
Navarrin, em que tomara parte. No espetáculo assistido por Pedro II, no teatro
Lucinda, e adaptado pela Companhia Furtado Coelho, de que fazia parte Xisto Bahia,
a peça principal A criada grave, de Paul Ferrier, era complementada pela comédia As
pragas do Coronel, que mais não era que a peça de Pierre Berton, traduzida por um ator
português, totalmente desfigurado pelo poeta Luiz Guimarães Jor, ao procurar adaptá-
lo ao linguajar brasileiro – nessa comédia, Xisto Bahia substituiu a descrição da
Batalha de Navarrin pela Batalha do Riachuelo, que tanto o agradara. Na descrição do
trecho da carta do Imperador parece que tanto Alcindo Sodré (no livro Abrindo um
cofre), como Raimundo Ma [...] Jr. (no livro Pedro II e a Condensa de Barral), que
publicara a missa, assinalavam haver falta de sintaxe, na parte final do artigo comentado,
quando se pode atribuir isso a uma leitura, malfeita, de péssima caligrafia do
epistológrafo, engano que já haviam cometido, registrando a preferência do Monarca
ao artista Coquelinet de Favart vez de Coqueline e Favart (Pierre Ignace de Favart),
società de La Comédie Française onde, tudo indica, o Imperador e a Condessa tinham
assistido à representação. A carta de Pedro II, datada de 10 de março de Petrópolis,
começou no Rio de Janeiro no dia 12 e só é terminada no dia 15 do mesmo ano.
219
Armindo Bião
Cansaço e Desilusão
 
Não obstante a popularidade sempre crescente – que a plateia carioca
lhe demonstra e os aplausos, de que não foram menos pródigas, a de
São Paulo e a de Minas – Xisto Bahia sente-se cansado do teatro, desiludido
mesmo, preocupado com o futuro, com a pobreza do seu lar: ele que
tinha os ouropéis da fama.
 
Em 1887, quando é o ídolo das plateias que o aplaudem com entusiasmo
e a crítica é unânime em reconhecer seu valor, já o teatro perdera para ele
todo o encantamento e entusiasmo. É um revoltado, preso ao teatro –
de que não tem forças para deixar. Respondendo a uma carta que lhe
escreveu Tomaz Antônio Espiúca, que deixou o teatro pelo curso
doutoral, mas, que sentindo saudade do palco, consultava-o sobre as
possibilidades do seu retorno, escreveu Xisto:
 
Ao ler a tua carta fiquei absorto. Não pela surpresa da missiva,
mas pelo fato da inesperada resolução. Realmente, tua consulta
coloca-me num apertadíssimo embaraço.
 
Há certas coisas que quando se indaga da opinião pró ou
contra dos amigos, a resolução já está tomada de há muito e
qualquer conselho é banal. Portanto, se eu tivesse de aconselhar
um criançola fútil, sem outra noção de prática social além das
leviandades tributárias aos dezoito anos, não hesitaria na
resposta, incisiva e rude, até em mandá-lo bugiar... se viesse me
perguntar se era bom entrar para o teatro. Mas a ti?
 
Isso torna-se gravemente sério.
Raciocinemos.
 
Sabes o que é, ou por outra, o que está sendo atualmente o
teatro nesse país, compreendido os quatro pontos cardeais? O
teatro, isto é, a arte, é uma traficância, um negócio de balcão,
220
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
uma feira de novidades, em que a imprensa faz de arlequim à
porta da barraca, anunciando e porfiando as sumidades conforme
as gorjetas dos contratadores.
 
Essas novidades, ambicionadas a todo momento, são
estrangeiras?
 
Tu

Mais conteúdos dessa disciplina