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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos - Armindo Jorge de Carvalho Bião

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Etnocenologia e a cena baiana:
textos reunidos
ARMINDO BIÃO
Etnocenologia e a cena baiana:
textos reunidos
P&A Gráfica e Editora
Salvador - Bahia
2009
Copyright 2009, Armindo Jorge de Carvalho Bião
Projeto gráfico
Editoração eletrônica
Antonio Raimundo Martins Cardoso
Capas e foto
João Paulo Perez Cappello
Revisão
Heloisa Prata e Prazeres
Normalização bibliográfica
Flávia Catarino Conceição Ferreira
FICHA CATALOGRÁFICA
B473t Bião, Armindo Jorge de Carvalho
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos / Armindo
Jorge de Carvalho Bião, PrefácioMichel Maffesoli. – Salvador:
P&A Gráfica e Editora, 2009.
389 p.
ISBN: 978-85-86268-71-7
1. Teatro popular - Bahia. 2. Etnocenologia. I. Maffesoli, Michel.
II. Título.
CDD 792.0222
P & A Gráfica e Editora
Endereço: Av. Iemanjá, 365 – Jardim Armação
CEP 41710-755 – Salvador – Bahia
Tel.: (71) 3371-1665
pagrafica@uol.com.br
Para meus alunos,
que colaboraram com a maior parte dos textos aqui reunidos,
sempre me motivaram a escrever e,
mais recentemente,
me sugeriram publicá-los.
Para meus professores,
Maritinha, que me preparou e me fez entrar num bom ginásio aos 10
anos,
Alvarez, que me ensinou geometria no espaço e xadrez,
Orlando, que me fez optar pela manuscrita em letras de imprensa,
Rui Simões (in memoriam), que praticamente salvou minha vida
universitária,
Carlos Costa e Francisco Pereira,
que me deram gosto pela Sociologia do Conhecimento e pela Lógica,
Jean Duvignaud (in memoriam), que me tem tanto inspirado,
e Michel Maffesoli, que se transformou em amigo.
E para meus amigos,
Álvaro César Barbosa Guimarães, Alvinho (in memoriam),
que me fez escrever de e sobre um tudo,
Vivaldo da Costa Lima,
que me tem ensinado tanta coisa e me levou até Michel Maffesoli,
Jean-Marie Pradier, que me deu tantas oportunidades
e Edivaldo Boaventura,
por seu estímulo entusiasmado e cativante
na ponta mais fina do cordel de minha vida.
Agradeço a minha mãe
Dulce Aleluia de Carvalho Bião,
pelo apoio incondicional,
a João Paulo Perez Cappello,
pelas capas, fotos e ajuda com os originais
e a Marcos Lopes,
pelo apoio.
SUMÁRIO
Nota do autor sobre a presente edição ........................................................ 11
Prefácio: A Profundeza das Aparências ...................................................... 19
Préface: La profondeur des apparences ....................................................... 25
Da Etnocenologia
Um léxico para a etnocenologia: proposta preliminar (2007) ........................ 33
Um trajeto: muitos projetos (2007) .................................................................. 45
Ah que culpa enorme, imensa, grande (2005) ................................................. 71
As Fronteiras e os Territórios das Linguagens Artísticas (2004) ................... 77
Aspectos epistemológicos e metodológicos da etnocenologia: por uma
cenologia geral (2000) ........................................................................................... 89
Etnocenologia: uma introdução (1998) ............................................................ 95
Um mesmo estado de graça: o teatro e o Candomblé da Bahia (1998) ....... 105
Questions posées à la théorie: une approche bahianaise de (1996) .............. 117
Estética Performática e Cotidiano (1995) .......................................................... 123
Etnocenologia e as artes contemporâneas do corpo (1995) .......................... 141
Da teatralidade
A metáfora teatral e a arte de viver em sociedade (1991) ................................ 153
Teatralidade e espetacularidade (1990) ............................................................... 161
Le jouir du jouer (1990) ....................................................................................... 169
L’interface théâtrale (1990) ................................................................................... 175
Théâtralité et spectacularité: les pratiques homosexuelles masculines
dans le Candomblé (1988) .................................................................................. 187
Da cena baiana
Uma Encruzilhada Chamada Bahia: o que está em jogo, qual é o
problema e algumas práticas relativas ao patrimônio cultural imaterial
na Bahia, Brasil (2004) .......................................................................................... 197
Xisto Bahia (2003) ................................................................................................ 209
O papel do teatro baiano contemporâneo no drama e na comédia da
contínua reconstrução da baianidade (2001) .................................................... 231
Matrizes estéticas: o espetáculo da baianidade (2000) ..................................... 251
O Teatro na Universidade (1999) ....................................................................... 273
Uma vida sombria ao sol de Salvador (1998) .................................................. 277
O obsceno em cena, ou o tchan na boquinha da garrafa (1998) ................... 279
Teatro e negritude na Bahia (1995) .................................................................... 287
Euforia e Ufanismo: Quantidade e Qualidade num mercado em
crescimento (1993) ................................................................................................ 293
Aspectos do comportamento corporal em performances de poesia oral
(1989) ...................................................................................................................... 301
Variantes do romanceiro tradicional na Bahia (1988) ...................................... 311
Miscelânea do mesmo
Homenagem a Jean Duvignaud (2008) ............................................................ 325
Prefácio para livro sobre folias do divino (2008) ............................................. 331
Apresentação de livro sobre a dança de Iemanjá (2008) ................................. 335
Prefácio de livro sobre o carnaval de Natal, no Rio de Grande do
Norte (2007) .......................................................................................................... 339
Apresentação do Relatório da Fundação Cultural do Estado da Bahia
2003/ 2006 (2006) ................................................................................................ 343
Teatro Castro Alves: história e memória (2005) .............................................. 355
Prefácio de livro sobre o projeto Bahia Singular e Plural (2005) ...................... 357
Pátria é nossa língua (2004) ................................................................................. 361
Etnocenologia na serra (2003) ............................................................................ 363
Conflito é exacerbação (2003) ............................................................................. 371
O estético dá a ligação comunitária (2001) ........................................................ 373
Homenagem ao talento (2002) .......................................................................... 377
Multiculturalismo: multiculturalidade (2000) .................................................. 381
Orelha de livro sobre a imprensa alternativa na Bahia nos anos 1970
(1996) ...................................................................................................................... 383
Uma viagem pela teoria em Paris (1988) ........................................................... 385
11
Armindo Bião
Nota do autor sobre a presente edição
A “presente edição” à qual se refere este título é a de dois livros,
nos quais esta mesma “Nota” aparece: Etnocenologia e a cena baiana
e Teatro de cordel e formação para a cena, ambos com a característica
idêntica, de reunirem textos de um só autor, quase todos já publicados
anteriormente em outros livros e periódicos.
Em Etnocenologia e a cena baiana, estão reunidos 40 textos, já
publicados entre 1988 e 2008 no Brasil e na França (dois dos quais ainda
no prelono momento da presente edição), nas linhas de pesquisa que
passei a desenvolver em função de meu doutoramento. Além do campo
de pesquisa privilegiado que tem sido a Bahia (inclusive seu teatro), foco
de mais de um quarto dos ensaios, artigos e outros textos aí reunidos,
esse livro traz um conjunto de abordagens de caráter epistemológico e
metodológico, no horizonte teórico da sociologia relativista e
compreensiva do atual e do cotidiano e da etnociência das artes do
espetáculo, a etnocenologia.
Em Teatro de cordel e formação para a cena, estão reunidos
52 textos, produzidos entre 1982 e 2008 nos Estados Unidos da América
do Norte, no Brasil e na França (cinco dos quais ainda inéditos no
momento da presente edição), relativos à interpretação teatral, a minha
prática de ator, encenador e professor de artes do espetáculo e às pesquisas
que venho desenvolvendo no âmbito da oralidade e da teatralidade da
literatura de cordel. A palavra bião, que identifica minha família paterna e
que aparece em textos do teatro de cordel lisboeta do século XVIII, é aí
motivo de reflexão pessoal, profissional, antropológica e etnocenológica.
Razões históricas da edição dos dois livros
Ao longo de 30 anos de atuação como docente universitário, na
área das artes do espetáculo, tenho me deparado com o grande problema
do texto didático: sua escassez e dificuldade de acesso. Na Bahia, em
12
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
particular, esse problema só me parece ser menor que o de nossas
bibliotecas públicas, cuja grandeza só me foi revelada, em toda sua
dramática extensão, quando estudei, no início dos anos 1980, nas
Universidades de Pittsburgh e Minnesotta, nos Estados Unidos da América
do Norte. De fato, ali, a abundância de textos disponíveis – e a eficiente
existência de bibliotecas, de grande acervo com acesso fácil e ágil, abertas
ao público de modo quase ininterrupto, com pessoal bem qualificado –
surpreenderam-me.
Talvez, e não por mera coincidência, fosse ali e quando eu
começaria a estudar, de fato, metodologia da pesquisa, passaria a valorizar
a produção de textos didáticos e a boa manutenção de bibliotecas públicas
e, além disso, começaria, também, a produzir textos para uso em salas de
aulas de cursos de teatro. Daí, resultaram meus artigos “O ator nu: notas
sobre seu corpo e treinamento nos anos 80” e “Dramaturgia brasileira
em aulas de interpretação”, publicados, respectivamente, em 1982 e 1984,
na Revista Art, da então Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade
Federal da Bahia, nossa UFBA.
A plena compreensão da pesquisa, em suas dimensões de pureza
e aplicabilidade, só me seria revelada um pouco mais tarde, no final dos
anos 1980, durante a realização de meu doutorado, nas velhas instalações
da Sorbonne, que eu escolhera por conta de sua proximidade física (em
Paris) de locais onde se praticavam técnicas teatrais de máscara, que eu
conhecera nos EUA, durante o mestrado, junto à companhia teatral franco-
norteamericana Théâtre de la jeune lune. Pois foi ali, apesar de alguma
dificuldade de acesso ao precioso acervo bibliográfico existente, que
aprendi o real e elevado valor da reflexão filosófica, da crítica e do livre
debate de ideias.
Minha atração pelo teatro, bem arcaica, quase infantil – segundo
amigos adeptos do espiritismo, de minha família, proveniente de outra
reencarnação – como se observa no parágrafo anterior, parece ser o
eixo norteador do acaso e da necessidade de minha vida acadêmica e de
minha produção bibliográfica, como se poderá confirmar no próximo
parágrafo. No entanto, a possibilidade de efetiva articulação de teoria e
prática, teatro e filosofia, artes do espetáculo e ciências do homem, só se
13
Armindo Bião
tornaria realidade para mim a partir de 1995, quando participei do evento
no qual se propôs a etnocenologia, também em Paris. Aí e então, teve
início um terceiro momento de minha produção textual, cujo formato
mais realizado só começaria a aparecer bem recentemente, em artigos
como “Um trajeto, muitos projetos” e “Um léxico para a etnocenologia”,
ambos de 2008.
Voltando ao momento chave de meu doutoramento, foi também
na Sorbonne, no final dos anos 1980, que passei a produzir textos numa
perspectiva mais teórica, como os ensaios “Le jouir du jouer” (1988) e
“Teatralidade e espetacularidade” (1990), religando-me a minha iniciação
universitária no campo da filosofia, curso, aliás, que eu escolhera, em
1967, mais uma vez, graças a minha atração primordial pelo teatro, menos
pelo conteúdo programático do curso e mais pela existência de um atuante
grupo de teatro na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA,
conforme relato no texto “O teatro mora na filosofia”, escrito para as
celebrações dos 50 anos da mais antiga universidade baiana, em 1996.
Na verdade, essa religação filosofia-teatro-pensamento francês estende-
se a minha participação adolescente em dois grupos: um de “teatro de
orientação espírita” e outro de estudos sobre “a filosofia de bases científicas
e consequencias religiosas”, que seria o espiritismo ortodoxo positivista
francês, segundo a tradição oral e escrita local.
Retornando, de modo mais pontual, à presente edição simultânea
de dois livros, reunindo textos (quase todos já publicados), em minha
avaliação, mesmo com o grande avanço tecnológico e telemático, dos
últimos anos, que amplia as possibilidades de acesso a textos didáticos e
a acervos bibliográficos, o que vivemos na área das artes do espetáculo,
na Bahia sobretudo, em termos de bibliotecas públicas (universitárias ou
não), é, ainda, uma situação dramática.
Para mim é muito claro que, atuando, prioritariamente, numa
metrópole regional brasileira de médio porte, como Salvador, de um
lado, nossas dificuldades locais de publicação de livros e de periódicos
são enormes. De outro lado, mesmo havendo, aqui, uma efetiva inserção
no avanço tecnológico e telemático ao qual aludi no parágrafo anterior,
graças à ampliação do acesso às telemáticas, na verdade, nosso acesso à
14
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
informação, que é o centro de minha atenção na presente “Nota”,
permanece problemático. Porque, além de nosso parco hábito de leitura
e de escrita, do pequeno conhecimento das metodologias da pesquisa e
das múltiplas formas escritas das línguas, em geral, talvez, até como
fato correlato, nossa produção bibliográfica pertinente seja muito escassa
e, o que é muito mais grave, continue a haver uma pequeníssima
circulação dos raros textos didáticos e dos resultados de pesquisa
efetivamente publicados, na área das artes do espetáculo.
Mesmo tendo publicado textos de minha autoria fora e dentro
do Brasil, inclusive fora da Bahia, o número pequeno de exemplares
das edições dos periódicos de nossa área de artes e sua precária circulação
internacional (e também até nacional) leva-me a um fato já muito
conhecido também em outras áreas do conhecimento em nosso país.
A questão é que, talvez, esse fato seja ainda mais grave em nossa área:
dos fenômenos efêmeros do espetáculo. Trata-se do crescimento do
uso de reproduções em fotocópias, nem sempre de boa qualidade e
eventualmente com danosas distorções das referências dos originais
copiados, de textos didáticos e de resultados de pesquisa.
Aliás, o hábito de professores deixarem, no serviço de reprodução
de textos de sua unidade acadêmica, cópias dos textos indicados para
os alunos, para serem, por sua vez, também, fotocopiadas, tem se
tornado prática cada vez mais frequente e, até, motivo de pesquisa
acadêmica.
Assim, selecionei quase uma centena de textos, publicados desde
1982, entre artigos, ensaios, palestras transcritas, entrevistas, editoriais,
prefácios, apresentações de livros e similares, por considerá-los de
alguma utilidade para as disciplinas que leciono e para as atividades de
pesquisa e extensão que desenvolvo. Como o volume do material ficou
muito grande para um só livro, fui levado a organizá-loem dois livros,
e não em dois volumes de um mesmo livro, porque, o esforço teórico,
prático e pragmático, de seleção e preparação dos originais assim me
sugeriu.
É o resultado desse esforço, que só me enriqueceu, e que, graças
ao CNPq, à ajuda profissional de, entre outros, Heloísa Prata e Prazeres,
e ao apoio técnico de João Paulo Perez Cappello, agora vem a público.
15
Armindo Bião
Razões imediatas da edição dos dois livros
Esta edição teve origem aproximadamente em março de 2008,
quando comecei a desenvolver o projeto de pesquisa Mulheres por um
fio: inferno, purgatório e paraíso no Atlântico Negro, com o qual
recebi nova bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, agora de
Nível 1A, por três anos.
Acompanhada de um grant mensal em recursos financeiros, que
podem ser investidos em publicações, a concessão dessa bolsa me
possibilitava reunir, com objetivo de promover sua edição, tudo (ou quase
tudo) o que já havia publicado. O que me permitiria, além de promover
doações a bibliotecas especializadas, vender o produto editado aos
interessados praticamente pelo preço dos custos não cobertos pelo grant
(serviços de pessoa física, de revisão, normalização e preparação dos
originais), já que esse cobriria os custos de impressão.
E, para mim, ficava cada vez mais clara a necessidade de um suporte
desse tipo para minhas atividades acadêmicas, de pesquisa, ensino e
extensão. De modo mais pragmático – confesso – eu também queria
facilitar minha vida de professor e a de meus alunos, sobretudo a de
meus orientandos, dando-lhes mais fácil acesso a parte da bibliografia
que eu já lhes indicara e que poderia usar em futuros cursos.
No processo de reunião e seleção dos textos que já publicara,
reuni também poemas diversos (publicados e inéditos) de minha autoria,
o que resultou num terceiro livro, Bloco mágico e lua e outros poemas,
já lançado no final de 2008.
Razões metodológicas
Os textos foram organizados, de acordo com sua temática central,
nos dois livros e, dentro de cada um deles, em blocos temáticos (para os
artigos, ensaios e similares) e num bloco final, denominado “Miscelânea”,
contendo as entrevistas, editoriais e afins. Com a implantação da nova
ortografia da língua portuguesa a partir de 2009, fiz um grande esforço
de adaptação dos textos originais, publicados exclusivamente ou também
em português, às novas regras hoje em vigor, o que, sem dúvida, se altera
16
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
o texto de referência já publicado, tirando-lhe algo do sabor de outra
época, também lhe dá uma atualidade desejável. Do mesmo modo, os
títulos foram revistos, para darem conta ao leitor, do modo mais preciso
possível, de seu conteúdo e, eventualmente, de seu contexto, como nos
casos de “Prefácio a...”, por exemplo. Quanto aos textos escritos e
publicados em francês e em inglês, ainda sem tradução para o português,
optei por republicá-los nas línguas em que estão disponíveis.
Quanto aos raros textos escritos e publicados em francês e em
inglês, ainda sem tradução para o português, optei por publicá-los nas
línguas em que estão disponíveis. Já os prefácios, de Michel Maffesoli,
para Etnocenologia e a cena baiana, e de Jean-Marie Pradier, para
Teatro de Cordel e formação para a cena, aparecem em suas versões
originais em francês e numa tradução para o português, por conta dos
principais leitores alvo: sobretudo lusófonos, mas também francófonos.
Com facilidade, o leitor poderá perceber que ideias recorrentes e,
até, trechos inteiros, reproduzem-se de um texto para outro. O que me
levou a optar por sua organização, dentro da cada bloco de textos, por
ordem cronológica, na esperança de que se possa acompanhar o processo
de transformação dessas ideias e formulações do discurso. Por isso a
ordem de apresentação dos textos em cada um desses blocos é
cronológica, do mais recente para o mais antigo, o que pode ser visualizado
nos Sumários, onde após o título de cada um deles informa-se o ano de
sua mais recente publicação, entre parênteses. O resultado dos dois livros,
assim, acaba por remeter ao universo da arte e da cultura barrocas, que
definiram a identidade de nosso país e, mais particularmente, de nossa
Bahia, de nossa Salvador e minha própria.
O fato de divulgar, para acesso e download gratuito, o conteúdo
de ambos os livros, através de www.gipe-cit.blogspot.com e de
www.teatro.ufba.br/gipe, pode comprovar minha intenção de superar
as dificuldades de acesso a textos didáticos e de resultados de pesquisa,
que classifiquei como dramáticas na área das artes do espetáculo e na
Bahia, em particular. É claro que a edição de apenas quinhentos exemplares
de cada um dos livros (para doação a bibliotecas e venda em raras livrarias,
através de um esforço muito pessoal e artesanal ou por meio daqueles
sítios virtuais acima indicados), por uma pequena editora local,
17
Armindo Bião
soteropolitana, não contribuiria de modo decisivo para o enfrentamento
daqueles problemas. Mas, também, fica claro que só a organização do
material que eu quis publicar no formato de livro me permitiu chegar até
sua divulgação pela rede mundial de computadores.
Finalmente, faz-se necessária uma referência à utilização de palavras
não dicionarizadas. A palavra “espetacularidade”, por exemplo, é definida
em vários dos textos nos quais aparece, em particular em “Um léxico
para a etnocenologia”, como a categoria dos fenômenos sociais
extraordinários. Outras palavras, provindas do vocabulário proposto por
Michel Maffesoli e de franca inspiração da filosofia alemã romântica,
contudo, merecem aqui uma, ainda que também breve, definição.
Assim, “sensorialidade” é a categoria da percepção sensorial que
se distingue de “sensibilidade”, cuja conotação de qualidade, emoção,
faculdade perceptiva e reativa e fragilidade é muito forte e distinta do
que se pretende compreender com essa nova palavra. Sensorialidade é,
mais especificamente, a condição humana de conhecer através dos sentidos.
Do mesmo modo, “afetual” é a condição humana, distinta do sensorial,
do racional e do emocional, que se refere ao conjunto de empatias,
simpatias e antipatias que aproximam e distanciam as pessoas. E
“reencantar” e “reencantamento” referem-se a uma nova forma de se
ver o mundo na cultura ocidental, fortemente marcada pelo
desencantamento da modernidade. Depois de um mundo desencantado,
estaríamos vivendo um novo momento, o do “reencantamento”, da
aceitação do mistério.
Por fim, no âmbito da história do teatro, a palavra “revistógrafo”,
que se refere ao especialista em teatro de revista, uma modalidade teatral
hoje em desuso, que gerou a palavra dicionarizada “revisteiro”, para designar
o autor de peças desse tipo, que aparece em alguns textos sobre esse tipo
de comédia musical, muito popular do final do século XIX a meados do
século XX, pode ser bem compreendida ao se conhecer o perfil de Xisto
Bahia (1841-1894), ator, músico, autor, encenador, produtor. Xisto Bahia
também pode ser considerado um revistógrafo, palavra cujo sufixo remete
mais à teoria e à grafia. Ora, teoria (e escrita) e teatro (e vida breve, na
prática) são faces da mesma moeda, até por sua origem etimológica. A
presente edição é um tributo a Xisto Bahia, ao teatro e à teoria!
19
Armindo Bião
Prefácio:
A Profundeza das Aparências
“Mas aquilo que na aparência é
claramente compreensível é penetrado e
regido pela obscuridade”
(M.Heidegger. Moira)
Lendo e, em alguns casos, relendo as belíssimas páginas sobre as
quais Armindo B. nos propõe meditar, tenho na memória nossos
inúmeros e profícuos encontros, no Rio Vermelho, pela primeira vez,
numa iniciativa do respeitado amigo Vivaldo da Costa Lima, e mais
tarde, é claro, em Paris. Tudo isso tendo como desfecho sua tese de
doutorado (em 1990, como o tempo passa, e nós também!), da qual me
lembro bem das contundentes análises.
O cerne dessas análises era a importância readquirida pelo corpo
na socialidade. Eis,também, uma das minhas idéias obsessivas: a pós-
modernidade será elaborada no “vazio das aparências”. E toda a obra
de A.B. (teórica e prática) é uma ilustração do lúdico, do festivo e do
emocional em jogo em todas as nossas sociedades. Mas, nesses assuntos,
a Bahia não é vanguardista?
Tudo isso é exteriorizado ainda que de maneira premonitória pelo
que Nietzsche denominava de ”a inocência do devir”. Aceitação do amor
fati. Dar consentimento a esta terra, a este mundo. Este, contrariamente à
doutrina judaico-cristã, não encontra sua origem numa criação ex nihilo,
mas está presente tal como um “dado” com o qual devemos, de qualquer
modo, concordar. Somos cidadãos deste mundo! Que é nossa cidade.
Certamente, tudo isso não está conscientizado, nem mesmo
verbalizado como tal. Mas amplamente vivenciado no retorno às
tradições, religiosas ou espirituais, no exercício das solidariedades
quotidianas, na revivescência das forças primitivas. O que conduz à (re)
valorização dos instintos, éticas, etnias.
20
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Esta nova sensibilidade, poderíamos dizer este novo paradigma,
é induzida por um poderoso imanentismo. Isto pode tomar formas
mais sofisticadas ou mais triviais. O hedonismo, os prazeres do corpo, o
jogo das aparências, o presenteísmo surgem como pontuação do que
não é um ativismo voluntarista, mas, sim, a expressão de uma verdadeira
contemplação do mundo.
Ou, dizendo-se em outras palavras, a aceitação de um mundo
que não é céu sobre terra, que também não é inferno sobre terra, mas é
terra sobre terra. Com tudo aquilo que contém de trágico (“amor fati”),
mas também de prazeroso. Deixar fazer, deixar viver, deixar ser. Eis,
portanto, o que poderiam ser as palavras-chaves dessas tribos inocentes,
instintuais, um tanto animalescas e, certamente, muito vivas.
A modernidade terminal, no seu sentido estrito, “desnervou” o
corpo social. O higienismo, a segurança, a racionalização da existência,
todos os tipos de interdição, tudo isso havia retirado do corpo individual
ou do corpo coletivo a capacidade de emitir as reações necessárias à sua
sobrevivência. Parece que assistimos, com a pós-modernidade, à
revalorização da vida instintual.
Instinto, primitivismo, é restituir o seu lugar ao sensível. É considerar
que o apanágio da natureza humana não se resume ao cognitivo, ao
racional, mas, sim, a um ”complexio oppositorum” que se poderia
traduzir por um conjunto, uma urdidura de coisas opostas. É tudo isso
que convém saber para ver a emergência de um novo elo social na
efervescência contemporânea. Algumas de suas manifestações podem
nos atormentar ou nos ofuscar. Mas nem por isso deixam de exteriorizar,
às vezes de maneira desajeitada, a afirmação que na antípoda do pecado
original, do lado oposto da corrupção estrutural, existe uma bondade
intrínseca no ser humano. E que o escrínio no qual ele se situa, a terra, é
também desejável.
Porém, tal imanentismo culmina com uma relativização do político.
Ou melhor, naquilo que este, estando de algum modo transfigurado, inverte-
se em doméstico, torna-se ecologia. Domus, oikos, termos que designam a
casa comum, que convém ser protegida das desordens às quais a
modernidade nos havia habituado. As maquinações deste homem,
“mestre e possuidor do universo” de acordo com a expressão de
21
Armindo Bião
Descartes, deram origem à devastação tal como se conhece. As tribos,
mais prudentes e também mais precavidas, dedicam-se menos a
“maquinar” as outras e a natureza, e é isso o que faz a inegável
especificidade delas. Realidades que nos forçam a constatar que a
heterogeneidade está de volta. O que Max Weber denominava de politeísmo
dos valores. Por conseguinte, a reafirmação da diferença, os localismos
diversos, as especificidades linguísticas e culturais, as reivindicações étnicas,
sexuais, religiosas, os múltiplos agrupamentos em torno de uma origem
comum, real ou mitificada. Tudo é bom para celebrar esse estar junto, que
se fundamenta menos na razão universal do que na emoção compartilhada,
no sentimento de pertencimento. Esta é a nova forma do elo social e,
talvez, não hesitemos ao dizer, da modalidade contemporânea da
cidadania. Isto é o que Armindo Bião revela muito bem.
Eis o que caracteriza aquilo que denominei de o “tempo das
tribos”. Sejam estas sexuais, musicais, religiosas, esportivas, culturais, e
mesmo políticas, elas ocupam o espaço público. Negar esta constatação
é pueril e irresponsável. Não é saudável estigmatizá-las. Seríamos mais
inspirados, fiéis a uma imemorial sabedoria popular, ao acompanhar tal
mutação. E isso, para evitar que esta sabedoria popular se torne perversa
e, em seguida, totalmente incontrolável. Afinal, por que não considerar
que a res publica, a coisa pública se organiza a partir do ajuste, a posteriori,
dessas tribos eletivas? Por que não admitir que o consenso social,
semelhante à sua etimologia (cum sensualis) pode se apoiar no
compartilhamento de sentimentos diversos?
Posto que existem, por que não aceitar as diferenças comunitárias,
contribuir para o seu ajuntamento e com elas aprender a compor? O jogo
da diferença, em vez de empobrecer, enriquece. Afinal, tal composição
pode participar de uma melodia social cujo ritmo talvez seja um pouco
mais desencontrado, mas não menos dinâmico. O ajuste dos samples da
música Techno traduz, também, uma forma de cultura.
No rastro do romantismo, e depois do surrealismo, os
situacionistas, nos anos sessenta do século passado, partiram em busca
dessa mítica passagem do noroeste que se abre para horizontes infinitos.
E para fazer isso, utilizaram uma psicogeografia, ou deriva, que lhes
permitiu descobrir que, além da simples funcionalidade da cidade, há
22
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
um labirinto do vivido muito mais profundo e que sustenta, invisivelmente,
os fundamentos reais de toda existência.
Pode-se extrapolar tal questionamento poético-existencial, e os
arcanos da cidade podem ser úteis para compreender uma estrutura
tácita que, em alguns momentos, assegura a perduração da vida em
sociedade. Tácito: que não se exprime verbalmente, que são subentendidos.
Implícito: que vai se aninhar nos recônditos do mistério e do inconsciente
coletivo. Nosso saudoso amigo Jean Baudrillard, na sua época, ficou
atento a esta “sombra das maiorias silenciosas”, a este “ponto vulnerável”
do social. Quanto a mim, de várias maneiras, analisei a centralidade
subterrânea, a socialidade alternativa e outras metáforas que assinalam a
retirada do povo do seu Monte Aventino.
Mas permaneçamos nesta ambivalência, nesta bipolaridade entre
o que se retira e o que se mostra. Muito mais recuado do que em evidência.
Lembremo-nos aqui do comentário feito por Lacan sobre o conto de
Edgar Poe, “A Carta Roubada”. Justamente pelo fato de a carta estar ali,
na cornija da lareira, o policial que a procura, não a vê. E como um eco,
escutemos o conselho de Gaston Bachelard : “só há ciência do oculto”.
Esclarecendo-se que esse oculto nos salta aos olhos. E por menos
que se leve a sério a teatralidade dos fenômenos, este theatrum mundi de
antiga memória, nele se saberá vislumbrar os novos modos de vida em
gestação. Além de nossas certezas e convicções: políticas, filosóficas,
religiosas, científicas, é conveniente concordar simplesmente,
humanamente, com aquilo que se deixa ver. Buscar o essencial no
inaparente das aparências. As da vida quotidiana. As dos pequenos
prazeres e as de pouca importância, que constituem o terreno fértil no
qual se desenvolve o ser-junto. Isso não é cultura ? “Os aspectos que nos
são mais importantes estão ocultos por causa da sua banalidade e
simplicidade” (Wittgenstein). O jogo das aparências, Armindo Bião o
segue a risca. “Etnocenologia” o testemunha com força e vigor. Nesse
sentido, trata-se de um livro que dá o que pensar.
Talvez seja a partir de tal princípio de incerteza que seremos capazes
de fazer um bom prognóstico.Isto é, ter a intuição dos fenômenos, esta
visão do interior que faz tanta falta à paranoia tão frequente nas elites.
Desde então, o olhar penetrante nos permitirá ver a semente fatídica das
23
Armindo Bião
coisas. Outra maneira de dizer e de viver o ser-junto. Outra maneira de
valorizar o que me une ao outro num lugar-comum: a cidade. Como
um fio vermelho, a Bahia de Todos-os-Santos se reencontra ao longo
destas páginas. E sentimos aquilo que A.Bião (Brasileiro de Salvador da
Bahia) deve a este “dado”, a este território. Ele mostra muito bem como
a empatia por um lugar e por um povo é única. Porque é verdade que o
lugar faz o elo.
Michel Maffesoli
Professor da Sorbonne
Membro do Instituto Universitário da França
Tradução de Marcia Bértolo Caffé
25
Armindo Bião
Préface:
La profondeur des apparences
« Mais ce qui en apparence est pure clarté
est pénétré et régi par l’obscurité »
(M.Heidegger. Moira)
En lisant, relisant pour certaines, les belles pages que propose
Armindo B à notre méditation, j’ai à l’esprit nos différentes et fécondes
rencontres, Rio Vermelho, la 1
er
 fois, à l’initiative de l’ami respecté Vivaldo
de Costa Lima, puis, bien sûr à Paris. Le tout aboutissant à sa thèse de
doctorat (1990, comme le temps passe, et nous avec !), dont je me souviens
bien les analyses aigues.
Le cœur battant de ces analyses était l’importance que reprenait ,
dans la socialité, le corps. Voilà, aussi, une des mes idées obsédantes : la
postmodernité s’élaborera dans le « creux des apparences ». Et toute
l’œuvre d’A.B ( théorique et pratique) est une illustration du ludique, du
festif et de l’émotionnel en jeu dans toutes nos sociétés. Mais est-ce que
Bahia n’est pas , en ces domaines, en avance sur son temps ?
Qu’exprime tout cela sinon ce que d’une manière prémonitoire,
Nietzsche nommait « l’innocence du devenir ». Acceptation de l’amor fati.
Consentement à cette terre, à ce monde-ci. Ce dernier, à l’encontre de la
doctrine judéo-chrétienne, ne trouve pas son origine dans une création ex
nihilo, mais il est là, tel un « donné » avec lequel il convient, tant bien que mal,
de s’accorder. On est citoyen de ce monde-ci ! Celui-ci est notre cité.
Certes, tout cela n’est pas conscientisé, ni même verbalisé en tant
que tel. Mais largement vécu dans le retour aux traditions, religieuses ou
spirituelles, dans l’exercice des solidarités au quotidien, dans la reviviscence
des forces primitives. Ce qui conduit à la (re)valorisation des instincts, des
éthiques, des ethnies.
Ce qu’induit cette nouvelle sensibilité, on pourrait dire ce nouveau
paradigme, c’est un puissant immanentisme. Cela peut prendre des formes
26
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
plus sophistiquées ou plus triviales. L’hédonisme, les plaisirs du corps, le
jeu des apparences, le présentéisme sont là comme autant de ponctuation
de ce qui n’est pas un activisme volontariste, mais bien l’expression d’une
réelle contemplation du monde.
Ou, pour le dire en d’autres termes, l’acceptation d’un monde qui
n’est pas le ciel sur la terre, qui n’est pas non plus l’enfer sur terre, mais
bien la terre sur la terre. Avec tout ce que cela comporte de tragique
(« amor fati ») mais de jubilation aussi. Laisser faire, laisser vivre, laisser
être. Voilà bien ce qui pourrait être les maîtres mots de ces tribus
« innocentes », instinctuelles, quelque peu animales et, pour sûr, bien
vivantes.
La modernité finissante a, en son sens strict, « dénervé » le corps
social. L’hygiénisme, la sécurisation, la rationalisation de l’existence, les
interdictions de tous ordres, tout cela avait enlevé au corps individuel ou
au corps collectif la capacité d’émettre les réactions nécessaires à sa survie.
Il semblerait que l’on assiste, avec la postmodernité, à une revalorisation
de la vie instinctuelle.
L’instinct, le primitivisme, c’est rendre leur place au sensible. C’est
considérer que le propre de l’humaine nature ne se résume point au
cognitif, au rationnel, mais bien une « complexio oppositorum » que l’on
pourrait traduire par un assemblage, un tissage de choses opposées. C’est
tout cela qu’il convient de savoir voir l’émergence d’un nouveau lien social
dans l’effervescence contemporaine. Certaines de ses manifestations
peuvent nous chagriner ou nous offusquer. Elles n’en expriment pas
moins, parfois d’une manière maladroite, l’affirmation qu’à l’encontre
du péché originel, qu’à l’opposé de la corruption structurelle, existe une
bonté intrinsèque de l’être humain. Et que l’écrin dans lequel ce dernier
se situe, la terre, est également désirable.
Mais un tel immanentisme aboutit à une relativisation du politique.
Ou plutôt, à ce que celui-ci, étant en quelque sorte transfiguré, s’inverse en
domestique, devient écologie. Domus, oikos, termes désignant la maison
commune qu’il convient de protéger des saccages auxquels la modernité
nous avait habitués. Les machinations de cet homme, « maître et possesseur
27
Armindo Bião
de l’univers » selon l’expression de Descartes, ont abouti à la dévastation
que l’on sait. Les tribus, plus prudentes, plus précautionneuses aussi,
s’emploient à moins « machiner » les autres et la nature, et c’est cela qui
fait leur indéniable spécificité.
Réalités qui nous forcent à constater que l’hétérogénéité est de
retour. Ce que Max Weber nommait le polythéisme des valeurs. Ainsi la
réaffirmation de la différence, les localismes divers, les spécificités
langagières et culturelles, les revendications ethniques, sexuelles, religieuses,
les multiples rassemblements autour d’une commune origine, réelle ou
mythifiée. Tout est bon pour célébrer un être ensemble dont le fondement
est moins la raison universelle que l’émotion partagée, le sentiment
d’appartenance. Voilà qu’elle est la nouvelle forme du lien social et, peut-
être, n’hésitons pas à le dire, la modalité contemporaine de la citoyenneté.
Voilà ce qu’indique bien Armindo Biao.
Voilà ce qui caractérise ce que j’ai appelé le « temps des tribus ».
Que celles-ci soient sexuelles, musicales, religieuses, sportives, culturelles,
voire politiques, elles occupent l’espace public. C’est un constat qu’il est
puéril et irresponsable de dénier. Il est malsain de les stigmatiser. L’on
serait mieux inspiré, fidèle en cela à une immémoriale sagesse populaire,
d’accompagner une telle mutation. Et ce, pour éviter qu’elle ne devienne
perverse, puis totalement immaîtrisable. Après tout, pourquoi ne pas
envisager que la res publica, la chose publique s’organise à partir de
l’ajustement, a posteriori, de ces tribus électives ? Pourquoi ne pas admettre
que le consensus social, au plus près de son étymologie (cum sensualis)
puisse reposer sur le partage de sentiments divers ?
Puisqu’elles sont là, pourquoi ne pas accepter les différences
communautaires, aider à leur ajointement et apprendre à composer avec
elles ? Le jeu de la différence, loin d’appauvrir, enrichit. Après tout une
telle composition peut participer d’une mélodie sociale au rythme peut
être un peu plus heurté, mais non moins dynamique. L’ajustement des
samples de la musique techno traduit, aussi, une forme de culture.
Dans la foulée du romantisme, puis du surréalisme, les
situationnistes, dans les années soixante du siècle dernier sont partis à la
28
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
recherche de ce mythique passage du nord-ouest ouvrant sur des horizons
infinis. Et pour ce faire, ils mettent en œuvre une psycho-géographie, ou
dérive, leur permettant de découvrir qu’au-delà de la simple fonctionnalité
de la ville existe un labyrinthe du vécu, autrement plus profond et assurant,
invisiblement, les fondements réels de toute existence sociale.
On peut extrapoler un tel questionnement poético-existentiel et
les arcanes de la ville peuvent être utiles pour comprendre une structure
tacite qui, à certains moments, assure la perdurance de la vie en société.
Tacite : qui ne s’exprime pas verbalement, quiest tout en sous-entendus.
Implicite : qui va se nicher dans les plis du mystère et de l’inconscient
collectif. Notre regretté ami, Jean Baudrillard, en son temps, avait rendu
attentif à cette « ombre des majorités silencieuses », à ce « ventre mou »
du social. Pour ma part, de diverses manières, j’ai analysé la centralité
souterraine, la socialité au noir et autres métaphores pointant le retrait du
peuple sur son Aventin.
Mais restons sur cette ambivalence, cette bipolarité entre ce qui est
en retrait et ce qui se montre. D’autant plus replié qu’il est en évidence.
Souvenons-nous ici du commentaire que fit Lacan du conte d’Edgar
Poe, « la lettre volée ». C’est parce qu’elle est là, sur le manteau de la
cheminée que le commissaire qui est à sa recherche, ne la voit pas. Et
comme en écho, écoutons le conseil de Gaston Bachelard : « il n’y a de
science que du caché ».
En précisant que ce caché nous crève les yeux. Et pour peu que
l’on prenne au sérieux la théâtralité des phénomènes, ce theatrum mundi
d’antique mémoire, l’on saura y voir les nouveaux modes de vie en
gestation. Au-delà de nos certitudes et convictions : politiques,
philosophiques, religieuses, scientifiques, il convient de s’accorder
simplement, humainement, à ce qui se donne à voir. Chercher l’essentiel
dans l’inapparent des apparences. Celles de la vie quotidienne. Celles
de ces plaisirs menus et de peu d’importance constituant le terreau où
croît l’être-ensemble. N’est-ce pas cela la culture ? « Les aspects les plus
importants pour nous sont cachés à cause de leur banalité et de leur
simplicité » (Wittgenstein). Le jeu des apparences, Armindo Biao le suit à
29
Armindo Bião
la trace. « Ethoscénologie » en témoigne avec force et vigueur. C’est, en
ce sens, un livre qui donne à penser.
Peut-être est-ce à partir d’un tel principe d’incertitude que l’on sera
capable de faire un bon pronostic. C’est-à-dire avoir l’intuition des
phénomènes, cette vision de l’intérieur faisant tant défaut à la paranoïa si
fréquente chez les élites. Dès lors le regard pénétrant nous permettra de
voir le noyau fatidique des choses. Une autre manière de dire et de vivre
l’être-ensemble. Autre manière de valoriser ce qui me lie à l’autre en un
lieu commun : la cité. Tel un fil rouge, Bahia de Todos os Santos se
retrouve tout au long de ces pages. Et l’on sent ce que A.Biao ( Brasileiro
de Salvador de Bahia) doit à ce « donné », à ce territoire. Il montre bien
ainsi que l’empathie à un lieu et un peuple est tout un . Car il est vrai que
le lieu fait lien.
Michel Maffesoli
Professeur à la Sorbonne
Membre de l’Institut Universitaire de France
DA ETNOCENOLOGIA
33
Armindo Bião
Um léxico para a etnocenologia:
 proposta preliminar
*
Desde a proposição da etnocenologia, em 1995, os preconceitos
linguísticos e a necessidade de um vocabulário epistemológico específico
têm sido questões centrais na construção dessa nova disciplina (PRADIER,
1995) ou, talvez, melhor dizendo, dessa nova perspectiva transdisciplinar,
conforme registra o documento final do V Colóquio Internacional de
Etnocenologia, realizado em Salvador, Bahia, Brasil, de 25 a 29 de agosto
de 2007.
O esforço de conhecer-se o diferente e o diverso implica o desafio de
compreender-se o discurso do entorno do novo objeto que se quer
conhecer, bem como o conhecer de seu próprio interior, inclusive seu
léxico e sua língua nativa. A nova forma de referir-se, por exemplo, ao
que se chamava, há alguns anos, na Europa ocidental, de “ópera de
Pequim”, agora denominada de “Jing-Ju”, revela essa busca e a
complexidade do nosso desafio. Pois aqui se trata de uma transcrição
fonética do chinês original para a língua francesa. Como se poderá
transcrever Jing-Ju para o português, por exemplo, admitindo-se que
todos, entre o Brasil e a França, compreendam o Jing-Ju como uma
forma, uma arte espetacular autônoma e não uma ópera, um teatro, ou
uma dança, da China? É fato que o que se chamava anteriormente de
Pequim – em português – e Pékin – em francês – passou-se a chamar
mais recentemente, no Ocidente, de Beijing. O peso crescente da China
no panorama mundial sugere muito novas mudanças, como, por exemplo,
a do antigo Cantão no contemporâneo Cuandong – em inglês, em
português? – ou Guangdong ou ainda Kouang-Tong – em francês?!.
* Publicado em BIÃO, Armindo (Org.). CONGRESSO INTERNACIONAL DE
ETNOCENOLOGIA, 5., 2007, Salvador. Anais... Salvador: Fast design, 2007. p. 43-
49.
34
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
A complexidade desse desafio é tão maior quão se pode facilmente
perceber tratar-se de uma busca sem fim e extremamente pretensiosa:
esta, de tudo se conhecer como cada um que vive e faz cada coisa conhece.
Talvez tão pretensiosa seja essa ideia quanto o próprio desejo humano
de construir um edifício até o céu, o que, segundo a Bíblia, teria resultado
na aparição de multiplicidade de línguas diferentes, no mito episódio da
Torre de Babel, do Antigo Testamento de tradição judaica. E talvez
menos pretensiosa ao pensar-se num só objeto. Mas, como comunicar o
seu conhecimento ao mundo?
Conhecer-se o que não se conhece é reconhecer-se no novo, que se busca
conhecer, algo que já existe no velho e, paulatinamente, irá se
transformando (o velho), ao mesmo tempo em que, inevitavelmente,
também se transforma o que se passa a conhecer (o novo). É nascer-se
de novo, a cada passo, junto com o próprio caminho que se percorre,
transformando-o, continuamente.
Na tentativa – vã? – de contribuir para a construção de um léxico para a
etnocenologia, e a partir do meu próprio trajeto – e do de meus colegas
e alunos mais próximos (BIÃO, 2007) – é que proponho o conjunto de
18 expressões da língua portuguesa, listadas abaixo, com uma descrição
mínima, na esperança de que eventualmente possa vir a ser útil.
No âmbito epistemológico
Assim, inicialmente, no âmbito da epistemologia, consideremos as 12
palavras seguintes, sendo metade delas apresentada a propósito do sujeito
da pesquisa e a outra metade, que comentarei em primeiro lugar, dedicada
ao mundo dos objetos.
Dos objetos
Teatralidade – palavra dicionarizada em língua portuguesa (HOUAISS,
2001, p. 2682; AURÉLIO, 1986, p. 1655), originada do vocábulo grego
que se constituiu para designar a ação e o espaço organizados para o
35
Armindo Bião
olhar, que compreendo como uma categoria reconhecível em todas as
interações humanas. De fato, toda interação humana ocorre porque
seus participantes organizam suas ações e se situam no espaço em função
do olhar do outro. Assim, penso em todas as interações, as mais banais
e cotidianas, nas quais, podemos compreender, todas as pessoas
envolvidas agem, simultaneamente, como atores e espectadores da
interação (aqui utilizo esses vocábulos do mundo do teatro certamente
– e apenas – como metáfora). A consciência reflexiva de que cada um
aí presente age e reage em função do outro pode existir de modo
claro ou difuso ou obscuro, mas nunca de modo explicitamente
compactuado – ou convencionalmente explicitado o tempo todo. Trata-
se de um hábito cultural enraizado –uma espécie de segunda natureza,
individual e coletiva – amplamente praticado pela maioria absoluta
dos indivíduos de cada sociedade, de um modo inerente a cada cultura,
que codifica suas interações ordinárias e transmite seus códigos para se
manter viva e coesa.
Espetacularidade – palavra ainda não incluída nos mais importantes
dicionários da língua portuguesa, editados no Brasil, que registram
“espetaculosidade”, como qualidade ou procedimento de espetáculo –
derivada do vocábulo espetáculo, de origem latina, destinada a designar
o que chama, atrai e prende o olhar (HOUAISS, 2001, p. 1229; AURÉLIO,
1986, p. 704), que compreendo como uma categoria também reconhecível
em algumas das interações humanas. De fato, em algumas interações
humanas – não em todas – percebe-se a organização de ações e do
espaço em função de atrair-se e prender-se a atençãoe o olhar de parte
das pessoas envolvidas. Aí, e então, de modo – em geral – menos banal
e cotidiano, que no caso da teatralidade, podemos perceber uma distinção
entre (mais uma vez, de modo metafórico) atores e espectadores. Aqui e
agora, a consciência reflexiva sobre essa distinção é maior e – geralmente
– mais visível e clara. Trata-se de uma forma habitual, ou eventual, inerente
a cada cultura, que a codifica e transmite, de manter uma espécie de
respiração coletiva mais extraordinária, ainda que para parte das pessoas
36
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
envolvidas possa se tratar de um hábito cotidiano. Assim como a
teatralidade, a “espetacularidade” contribui para a coesão e a manutenção
viva da cultura
1
.
Estados de consciência – esta expressão é parte do jargão das ciências
do homem interessadas nos rituais, que provocam a alteração do modo
mais habitual de ter-se consciência do mundo e de si próprio. Daí falar-
se de estados modificados (LAPASSADE, 1987) ou alterados
(BOURGUIGNON, 1973) de consciência, frequentemente associados,
por exemplo, ao transe, ao êxtase e à possessão (BIÃO, 1990, p. 132-
142). As interfaces entre as artes do espetáculo, os rituais e os estados de
consciência têm sido constantemente eleitos como objeto de pesquisa e
constituem-se em um grupo importante de objetos transversais de estudos
para a etnocenologia. O interesse pelos estados “alterados” de consciência
nos rituais de possessão e cultos religiosos é uma constante, por exemplo,
no âmbito da antropologia, que, eventualmente, alude ao teatro, como o
faz, por exemplo, Michel de Leiris (1958). Mais contemporaneamente, a
relação entre artes e formas de espetáculo e estados modificados de
consciência tem sido ressaltada
2
, levando-nos a sugerir que o treinamento
corporal e mental de dançarinos e atores, por exemplo, gera, não apenas
estados modificados de corpo – relembrando as reflexões de Marcel
Mauss (1985) sobre as técnicas de corpo – mas também gera estados
modificados de consciência.
Estados de corpo – expressão que utilizo em associação à anterior para
referir-me por um lado à indissociabilidade, tão cara à etnocenologia,
entre corpo e consciência e por outro para reportar-me às artes do
1
 Propus essas categorias em minha tese de doutorado: BIÃO, Armindo. Théâtralité et
spectacularité: une aventure tribale contemporaine à Bahia. 1990. Tese (Doutorado
em Artes Cênicas) - Université René Descartes. Paris: Paris 5, 1990. Orientador:
Michel Maffesoli, das quais também já tratei em português (1991, p. 104-110; 2000,
p. 364-367).
2
Ver, entre outras contribuições publicadas nessa obra, a de PIMPANEAU, Jacques.
“Les liens entre les cultes médiumniques et le théâtre, entre les chamans et les acteurs”.
In: _____ . Actes des Rencontres Internationales sur la fête et la
communication. Serre: Nice-Animation, 1986.
37
Armindo Bião
espetáculo que se sustentam em boa medida na prática e exercício de
alteração dos estados de corpo habituais do dia a dia. Problemática essa
que levaria, por exemplo, Eugenio Barba (1985), inspirado na noção de
técnicas de corpo de Marcel Mauss, a falar de técnicas “extracotidianas”
de corpo. É bem disso do que se trata. No entanto, do ponto de vista
léxico, considero que a expressão, antropologia teatral, reforça o
etnocentrismo europeu, que privilegia o teatro em detrimento de outras
artes e formas espetaculares, também prefiro as expressões estados de
corpo e estados de consciência para tratar dos objetos da etnocenologia.
Decerto que esses estados, dinamicamente construídos e mantidos apenas
temporariamente, quando nos referimos à vida da arte, são construídos
com base em práticas, comportamentos e técnicas, mas nosso objetivo
aqui e agora é propormos um léxico coerente e o mais simples possível
para o fortalecimento do corpo epistemológico da etnocenologia.
Transculturação – o conceito sugerido por Fernando Ortiz (1973) e
comentado por Rafael Mandressi (1999) aproxima-se decerto de algumas
possíveis leituras de outros conceitos correlatos mais antigos. Mas sua
proposição, cunhando um novo termo, reafirma o fenômeno do contato
cultural como gerador de novas formas de cultura, distintas das que lhes
deram origem, o que remete ao desejo de identificação de suas matrizes
culturais, fenômeno que só vale pesquisar, nunca é demais reafirmar,
considerando-se certa reconstrução constante e dinâmica da tradição.
Matrizes estéticas – Essa expressão é mais uma noção teórica “mole”
que um conceito “rígido” (MAFFESOLI, 1985, p. 51, 52 et seq., 63),
considerando-se que, no âmbito geral da cultura, assim como no campo
mais específico da estética, pode-se sempre buscar compreender um
fenômeno contemporâneo a partir do esforço de identificação de sua
filiação histórica e de seu parentesco atual com outros fenômenos. A
utilização dessa expressão – matrizes estéticas, sempre no plural, possui,
do ponto de vista retórico, uma consciente proposição paradoxal, posto
que a palavra matriz remete à ideia de mãe, que também remete à ideia
de unicidade, quando pensada como uma e única pessoa, do gênero
feminino, que alimenta em seu próprio corpo e assim é explicitamente
geradora de outra, enquanto a palavra matrizes multiplica esse ente, ainda
38
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
que se referindo a um mesmo fenômeno – seu descendente direto. O
que se pretende, ao recorrer-se a essa figura paradoxal de linguagem, é
chamar a atenção para o fato de que na cultura cada fenômeno possui
simultaneamente múltiplas matrizes, fruto que é de diversos processos
de transculturação. A isso, chamei de “família de formas culturais
aparentadas [...], identificadas por suas características sensoriais e artísticas,
portanto estéticas, tanto num sentido amplo, de sensibilidade, quanto
num sentido estrito, de criação e compreensão do belo” (BIÃO, 2000, p.
15). Assim, podemos falar, por exemplo, de matrizes estéticas, a partir
de referências linguísticas, religiosas, geográficas, históricas, geo-históricas,
étnicas, técnicas, temáticas, teóricas, tecnológicas etc..
Dos sujeitos
O conjunto das noções de alteridade, identidade, identificação
(MAFFESOLI, 1988), diversidade, pluralidade e reflexividade
(GARFINKEL, 1967; TURNER, 1979, p. 65; SCHÜTZ, p. 1987, p.
114 et seq.) remete à consciência das semelhanças e diferenças entre
indivíduos, grupos sociais e sociedades, por um lado e, por outro, à
capacidade humana de refletir a realidade e sobre ela, de modo consciente,
experimentando e exprimindo sensibilidade, sensorialidade, opções de
prazer, beleza, desejo e conforto. Nesse conjunto de noções, vale ressaltar
a emergência da noção de “identificação”, como uma construção
temporária, existencialista e dinâmica, contraposta à de “identidade”,
como uma categoria definitiva, essencialista e estática, que se encontraria
em crise na contemporaneidade.
Alteridade – A categoria de reconhecimento pelo sujeito de um objeto
humano (no caso da etnocenologia) distinto de si próprio.
Identidade – A categoria de reconhecimento da especificidade do sujeito
em relação à alteridade.
Identificação – A categoria de momentâneo reconhecimento do sujeito,
em parte ou no todo, na alteridade.
39
Armindo Bião
Diversidade – A categoria que permite ao sujeito reconhecer a
coexistência das diferenças humanas.
Pluralidade – A categoria que, como à anterior, dá ao sujeito condições
de reconhecer a coexistência das – reafirme-se – múltiplas e variadas
diferenças humanas.
Reflexividade – A categoria referente ao sujeito que dá conta de sua
capacidade de pensamento e teorização (reflexão), espelhando as
semelhanças e diferenças reconhecidas em sua relação com os objetos,
suas identidades e identificações.
No âmbito metodológico
O horizonte teórico-metodológico que busca revelar a presente
proposição preliminar de um léxico para a etnocenologia remete à
necessária e imprescindível articulação entre o sujeitoe o objeto,
retomando, por minha própria conta, as ideias de “objetivação do
subjetivo” de Erwin Panofsky (1975, p. 158-170), de “trajeto
antropológico” de Gilbert Durand (1969, p. 38 e s.) e de “trajetividade”
de Augustin Berque (1986, p. 147-153).
Dos trajetos
Objeto – O campo da pesquisa, o fenômeno espetacular de interesse.
Trajeto – As técnicas e princípios que buscam permitir o conhecimento
do objeto por parte do sujeito, bem como a história que reúne o sujeito
e sua opção pelo objeto.
Sujeito – O pesquisador.
Projeto – A proposta construída pelo pesquisador, que explicita o objeto
do estudo pretendido, o trajeto que levou o sujeito a se interessar por ele
e sua perspectiva de aproximação e pesquisa.
40
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Dos projetos
Apetência – A qualidade, simultaneamente essencial e existencial, que
justifica o interesse do sujeito em seu objeto e trajeto de pesquisa, sem a
qual não se pode construir competência.
Competência – O conjunto de capacidades, experiências e práticas,
que pode permitir ao sujeito a plena consecução de seu projeto.
Conclusão
A proposição desse léxico é apenas preliminar, mas fruto de reflexão de
uma boa dúzia de anos de pesquisa. Aqui se considerou o poder abstrato
e mágico da palavra, bem como suas possíveis implicações ideológicas,
ainda que – admitamos – a partir de nossos próprios preconceitos. Este
léxico não levou, por exemplo, em conta, a palavra performance, que
muitos colegas na etnocenologia utilizam. De fato, considero que essa
palavra só contribui para a confusão epistemológica e metodológica na
etnocenologia
3
.
Prefiro, também, para designar o artista do espetáculo, ou o participante
ativo da forma – ou arte – espetacular, palavras como aquelas usadas
pelos próprios praticantes dos objetos de nossos estudos, quando se
autodenominam de ator, dançarino, músico, brincante, brincador,
sambador e outros, por exemplo. Prefiro sinceramente isso a usar outras
palavras, como as que já foram sugeridas por outros (performer, actante,
ator-dançarino ou ator-bailarino-intérprete, por exemplo).
E à palavra performance, tão polissêmica (COHEN, 2006, p. 240-243),
prefiro, sempre, usar espetáculo, função, brincadeira, jogo ou festa,
conforme quem vive e faz, denomina aquilo o que faz e vive.
3
Eu próprio, ainda em 1995/ 1996, usei e justifiquei essa palavra (1996, p. 12-20), que
se encontra na denominação de uma outra perspectiva aparentada à etnocenologia,
performance studies, (SCHECHNER, 2002), que com ela não se identifica plenamente,
mas que com ela pode eventualmente se confundir (BIÃO, 2007, p. 24), o que temos
a pretensão de vir a evitar com a proposição deste léxico.
41
Armindo Bião
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45
Armindo Bião
Em apenas doze anos, desde a proposição da etnocenologia
1
,
multiplicam-se às dezenas as possibilidades de trajeto – e de projetos
futuros – para esta jovem perspectiva transdisciplinar, considerando-
se, simplesmente, o variado percurso acadêmico de cada um dos
pesquisadores presentes nos diversos colóquios internacionais, desde
então realizados, tanto no de instalação quanto nos de Cuernavaca
(Morelos, México), Salvador (Bahia, Brasil) e Paris (França). A ideia de
trajeto remete à articulação de um sujeito com seus objetos de interesse
e com outros sujeitos, cujos interesses, ainda que parcialmente comuns,
encontram-se na encruzilhada das ciências e das artes, onde múltiplos
grupos de pesquisa formam-se e transformam-se, ao longo do tempo.
É sobre um desses trajetos, fruto, flor e raiz de minha implicação
pessoal, e profissional, que trata este pequeno ensaio, organizado,
substancialmente, em quatro partes.
Na primeira, intitulada “Caracterização geral do objeto (no Brasil)”, situo
a etnocenologia no contexto histórico-geográfico brasileiro. Na segunda,
Um trajeto:
muitos projetos
*
*
Publicado In: BIÃO, Armindo (Org.). Artes do corpo e do espetáculo: questões de
etnocenologia. Salvador: P & A, 2007. p. 21-42.
1
A Maison des Cultures du Monde e a Universidade de Paris 8 Saint-Denis realizaram,
na UNESCO, em Paris, nos dias 3 e 4 de maio de 1995, o Colloque de Fondation
du Centre International d’Ethnoscénologie In: INTERNATIONALE DE
L’IMAGINAIRE - NOUVELLE SÉRIE, 5, MCM/ Babel, 1995). A esse respeito,
ver, em português:BIÃO, A. “Estética Performática e Cotidiano”. In: ______ .
Performance, Performáticos e Cotidiano. Brasília: UNB, 1996. p. 12-20 In:
ENCONTRO NACIONAL DE PERFORMÁTICOS, PERFORMANCE E
COTIDIANO. Anais... Grupo Transdisciplinar de Estudos sobre a Performance –
Transe, [Brasília, 1995], dos quais também constam excertos do Manifesto da
Etnocenologia (em francês Inn: Théâtre Public, n. 123, p. 46-48, 1995.) e BIÃO,
A. ; GREINER, C., (Orgs.). Etnocenologia: Textos Selecionados. São Paulo:
Annablume, 1998.
46
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
“Concretização específica de objetos (na Bahia)”, informo, brevemente,
e de modo comparativo, como, nesses doze anos, pesquisamos
etnocenologia, na Universidade Federal da Bahia, principal instituição
anfitriã do trajeto aqui tratado. Na terceira parte, “O trajeto teórico (no
mundo)”, busco descrever os conceitos e noções que têm sido
operacionais para nossas pesquisas, concluídas e em andamento, e,
finalmente, na última parte, “Um projeto metodológico (na vida)”,
resumo e sugiro algumas pistas relativas a um possível método para
futuras pesquisas.
Caracterização geral do objeto (no Brasil)
A proposição da etnocenologia aparece no horizonte teórico-
metodológico de nosso tempo, de transição do século XX para o século
XXI. Este Zeitgeist, anunciado pelas convulsões juvenis, artísticas, políticas,
étnicas e de costumes, dos anos 1960
2
, e mesmo anteriormente esboçado
pela nova configuração cultural que se definia internacionalmente, no
pós-guerra das duas décadas imediatamente anteriores, caracteriza-se pela
explosão, em múltiplos níveis, de todo tipo de fronteiras. Foi o que
ocorreu, por exemplo, com o advento, mais ou menos simultâneo – e
mais ou menos violento, de múltiplas proposições interdisciplinares,
multidisciplinares e transdisciplinares, fragmentando os limites entre as
diversas áreas de conhecimento, como, por exemplo, entre as ciências da
natureza e as ciências do espírito, e mesmo entre as ciências e as artes e,
inclusive, mais especificamente, no âmbito destas, entre as artes visuais e
as artes do espetáculo.
É neste mesmo Zeitgeist que se inserem outras perspectivas aparentadas.
Assim, aí também se conformam o interesse pelo espetáculo
3
 dos
estudiosos do campo das ciências humanas – e pela teatralidade na vida
2
Ver, por exemplo: BANES, Sally. Greenwhich Village 1963: avant-garde,
performance e o corpo efervescente. Tradução de M. Gama. São Paulo: Rocco, 1999.
3
Ver, por exemplo, de DEBORD, Guy. La société du spectacle (Buchet-Castel,
1971) e Commentaires sur la société du spectacle (LEBOVICI, 1988).
47
Armindo Bião
cotidiana
4
, as etnociências, a etnometodologia
5
, os estudos da
performance
6
 e a antropologia teatral
7
. Nesse contexto, a etnocenologia
tem contribuído para a ampliação dos horizontes teóricos da pesquisa
científica e artística, de um modo geral, e, de um modo mais específico,
para o trabalho dos pesquisadores dedicados às artes do espetáculo.
Nessas artes, não estão considerados somente o teatro, a dança, o circo,
a ópera, o happening e a performance
8
, mas, sim, também, outras
práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados, dentre
os quais alguns os rituais, os fenômenos sociais extraordinários e, até,
as formas de vida cotidiana, quando pensadas enquanto fenômenos
espetaculares.
No entanto, assim como as demais proposições congêneres, já citadas,
a etnocenologia também tem contribuído para a confusão conceitual
que vem caracterizando o campo das ciências do homem e das artes
contemporâneas, inclusive, de modo ainda mais contundente, as
pesquisas relativas aos objetos logo acima mencionados, tanto em seus
aspectos teóricos quanto práticos e pragmáticos. Essas ambíguas
contribuições possuem, assim, aspectos contraditórios, tanto positivos
(o crescimento das possibilidades e perspectivas para a pesquisa) quanto
negativos (o mal-entendido generalizado), que valem sempre ser levados
em conta.
4
Ver, por exemplo, de GOFFMAN, Erving. The Presentation of Self in Everyday
Life (Doubleday Anchor Books, 1959), de MAFFESOLI, Michel. La conquête du
present (PUF, 1979) e, de GEERTZ, Clifford. Negara: the Theater State in
Ninteenthcentury Bali. [S.l]: Princeton Univ. Press, 1980).
5
Ver, GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnomethodology. [S.l] :Prentice-Hall,
1967).
6
Ver, SCHECHNE, Richardr. Performance Studies, an introduction .
(ROUTLEDGE, 2002).
7
Ver, BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. Anatomie de l’Acteur ( Un
dictionnaire d’anthropologie théâtrale . Tradução de: E. Deschamps-Pria,
(Bouffonneries-Contrastes, 1985).
8
No sentido de prática artística situada na interface das artes cênicas e visuais, aparentada
ao happening, e não no sentido mais amplo que lhe é atribuído pelos estudos da
performance.
48
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
Por isso, e particularmente para tentar reduzir os aspectos negativos desse
emaranhado conceitual, acredito necessário e útil, ainda na primeira parte
deste trabalho, dedicada à caracterização geral do objeto “etnocenologia”,
tentar identificar em que se assemelham e em que se distanciam essas
proposições, sugerindo a organização do quadro tabela abaixo:
Quadro 1: Etnocenologia
Campos de saber que se
relacionam com a
etnocenologia
O que os aproxima
As ciências humanas in-
teressadas na teatralidade
cotidiana e na metáfora
do espetáculo
As etnociências
A etnometodologia
O que os distancia
O reconhecimento da
teatrali-dade cotidiana e da
existência de fenômenos es-
petaculares, não necessaria-
mente artísticos
O caráter de pesquisa cientí-
fica que reconhece e valori-
za a diversidade cultural hu-
mana
O reconhecimento e a valo-
rização da necessidade de in-
serção (imersão) do sujeito
no objeto da pesquisa, o que
possibilita uma melhor
compreensão interna desse
objeto, de como os sujeitos
nele envolvidos o pensam e
conformam
O caráter teórico das ciênci-
as do homem, que busca,
sobretudo, explicar e com-
preender as estruturas e
modos da vida social, distan-
ciando-se do caráter teórico-
prático da etnocenologia, que
busca reconhecer e promo-
ver as diferentes formas de
espetáculo
Os campos de investiga-
ção, distintos em cada
etnociência, mesmo na
etnomusicologia e na
etnolinguística, apesar de
essas possuírem inter-
secções com a etnoce-
nologia, ao tratarem do
corpo humano e de sua
apresentação e representa-
ção coletivas
A proposição da etnometo-
dologia, de caráter claramen-
te metodológico para o ex-
clusivo âmbito da sociolo-
gia, distante da perspectiva
claramente estética – e teó-
rico – metodológica – da
etnoce-nologia, que se situa
no campo das diversas ar-
tes e formas de espetáculo
49
Armindo Bião
Campos de saber que se
relacionam com a
etnocenologia
O que os aproxima O que os distancia
A antropologia teatral
Os estudos da
performance
O interesse pela diversida-
de de práticas espetaculares,
a dedicação à prática artística
e à articulação entre teoria e
prática
A articulação entre antropo-
logia, estudos teatrais, teoria
e prática, o interesse pela di-
versidade cultural e, parcial-
mente, a aceitação de uma
perspectiva epistemológica
que permite a conformação
do objeto a partir do olhar
do sujeito
A ênfase da antropologia
teatral na busca de princípi-
os espetaculares universais,
simultaneamente reafirman-
do o étimo teatro como re-
ferência universal, distanci-
ando-se da ênfase da
etnocenologia nas semelhan-
ças e distinções das diversas
artes e formas de espetácu-
lo, com uma amplitude de
referência etimológica (cena,
corpo, espetáculo) simulta-
neamente maior e crítica do
“teatrocentrismo”
Os estudos da performance
vão do âmbito estético ao
fenomenológico e ao dos
aspectos antropológicos, so-
ciais e culturais, enquanto a
etnocenologia situa-se cla-
ramente no campo estéti-
co, do sensorial e dos pa-
drões compartilhados de
beleza
9
Fonte:Autor
A etnocenologia, assim, teria muitos pontos de contato com algumas
proposições do campo das ciências do homem, como a etnometodologia
e as etnociências, em geral, a etnomusicologia e a etnolinguística, em
particular, além da sociologia e da antropologia, interessadas na
teatralidade cotidiana e na metáfora do espetáculo. E, de um modo
ainda mais claro (e, do ponto de vista teórico-prático, talvez também
9
Segundo Renato Cohen, “[...], o estudo da performance desloca-se do campo estético
para o da fenomenologia e dos aspectos culturais, antropológicos e sociais[...]”, na
rubrica “Performance”. In GUINSBURG, J. et al (Org.). Dicionário do teatro
brasileiro: temas, formas e conceitos. Perspectiva, 2006. p. 240-243: ver p. 242.
50
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
10
 Ver, a esse propósito, o próprio manifesto (Nota 1) e, também, BIÃO, A. “Aspectos
Epistemológicos e Metodológicos da Etnocenologia: por uma Cenologia Geral”. In:
CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES
CÊNICAS, 1., 1999. Anais... Salvador: ABRACE, 2000. p. 364-367.
11
 Consultar, a esse respeito, para maiores detalhes, a Tabela de Área do Conhecimento
do CNPq, em: <http://www.cnpq.br/areas/tabconhecimento/index.htm>.
mais confuso), a etnocenologia se aproximaria da antropologia teatral e
dos estudos da performance. No entanto, a etnocenologia, de modo
bem visível distanciada das ciências do homem, distingue-se também da
antropologia teatral, por valorizar os princípios característicos de cada
forma, prática e comportamento espetacular, sem visar à identificação
de um conjunto de princípios universais, e por interessar-se – e abrigar
– criação e crítica, de modo integrado, mas não concomitante. A
etnocenologia, também, se distingue dos estudos da performance, por
sua clara opção pelo campo estético, compreendido simultaneamente
como o âmbito da experiência e da expressão sensoriais e dos ideais
de beleza compartilhados, e, ainda, por sua bastante ampla perspectiva
transdisciplinar, que vai, por exemplo, das ciências da educação e da
vida, como a pedagogia e a biologia, até as chamadas ciências exatas,
como a etnomatemática – enquanto os estudos da performance já se
constituem num campo transdisciplinar – ainda que mais restrito às
ciências sociais, e, menos, numa ampla perspectiva transdisciplinar, tendo
como campo o estético, como a etnocenologia.
Visando a maior clareza possível – neste esforço de esclarecimento
epistemológico, vale reafirmar o desejado caráter provisório
10
 desta nova
transdisciplina, desde seu nascimento, e tentar situar a etnocenologia em
termos de grande área de conhecimento, no quadro institucional brasileiro
contemporâneo. Aqui, em termos estratégicos, socioeconômicos,
geopolíticos e, sobretudo, conceituais, a etnocenologia inscreve-se na área
das “Artes”, e não, por exemplo, na área das “Ciências”. Assim, de acordo
com o que hoje é a classificação de referência da agência brasileira de
fomento à pesquisa, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico, o CNPq, do Ministério da Ciência e Tecnologia
11
, estamos
51
Armindo Bião
no âmbito da grande área denominada “Linguística, Letras e Artes”,
que, obviamente, compreende a área propriamente dita de “Artes”. É
certo que a etnocenologia poderia, também de acordo com essa mesma
classificação, inscrever-se nas grandes áreas das “Ciências Humanas” e
das “Ciências Sociais Aplicadas”, mas a primeira opção fortalece nossa
área das Artes, e, nela, os cursos de graduação e de pós-graduação, os
grupos de pesquisa e a produção artística, contribuindo para legitimarmos
nossa área de conhecimento, merecedora de financiamento e de
reconhecimento institucional, constituindo-se num campo epistemológico-
metodológico autônomo, embora, certamente, não independente e
isolado, mas, sim, integrado e transdisciplinar.
Concretização específica de objetos (na Bahia)
Buscando enfrentar a problemática que é a definição dos objetos da
etnocenologia, originalmente descritos como as “práticas e os
comportamentos humanos espetaculares organizados” (PCHEO)
12
,
posteriormente, eu próprio sugeri organizá-los em três subgrupos:
ar tes do espetáculo, ritos espetaculares e formas cotidianas,
espetacularizadas pelo olhar do pesquisador. Mais recentemente, eu
viria a atribuir a esses três conjuntos, ou subgrupos, a condição de
serem, respectivamente, objetos substantivos, adjetivos e adverbiais,
usando aqui, por minha própria conta, três classes gramaticais:
substantivo, adjetivo e advérbio.
Assim, substantivamente, seriam objetos da etnocenologia, no âmbito
do primeiro conjunto de objetos, o que se compreende, em língua
portuguesa (também em outras línguas, mas provavelmente de modo
mais explícito, sobretudo, naquelas linguisticamente aparentadas ao
português), como as diversas “artes do espetáculo”. Como não poderia
deixar de ser, em nosso quadro cultural – dito ocidental, de matriz greco-
12
 No manifesto já multicitado.
52
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos
romana (num contexto tanto de caráter profissional quanto de caráter
amador), essas artes do espetáculo compreendem o teatro, a dança, a
ópera, o circo, a música cênica, o happening, a performance e o folguedo
popular, este último correspondente ao que Mário de Andrade
denominou, no Brasil, de danças dramáticas
13
. Seriam, esses objetos,
aqueles criados, produzidos e pensados, pelas comunidades nas quais
ocorrem, como atos explicitamente voltados para o gozo público e
coletivo, enquanto atos concretos de realização – reconhecíveis por todos
como “arte”, em seu sentido o mais gratuito e simplificado, tendo como
função precípua o divertimento, o prazer e a fruição estética (na acepção
sensorial e de padrão compartilhado de beleza) – e, em última instância,
o conforto comunitário menos compromissado com outras esferas da
vida social, ainda que podendo compreender práticas profissionais e
amadoras de seus artistas
14
 , remuneradas.
Também seriam objetos de interesse da etnocenologia, o que denominei
de ritos espetaculares, ou, dito de outra forma, aqueles fenômenos apenas
adjetivamente espetaculares. Esses fenômenos, sem possuírem, de modo
13
 Concordando com as considerações críticas de Edison Carneiro, a propósito da opção
de Mário de Andrade, prefiro a designação de folguedo à de danças dramáticas, esta
sendo mais restrita que aquela. Ver, a esse respeito, de Edison Carneiro, sobretudo,
Folguedos tradicionais, 2. ed. (FUNARTE/ INF, 1982), mas também Samba de
umbigada (MEC, 1961).
14
Vale ressaltar que, em português, no âmbito das artes do espetáculo estritamente
profissionais, no qual se encontram artistas que vivem de sua arte, ganhando a vida
com suas atividades nesse mesmo âmbito, o léxico habitualmente utilizado remete a
trabalho, enquanto, no campo das práticas amadorísticas, nas quais seus participantes
(artistas) também podem ser remunerados, mas ganham a vida no exercício de outras
profissões, fora do âmbito das artes do espetáculo, o léxico habitual inclui palavras
como brincar, brincadeira, brinquedo, brincante e brincador. Esta é mais uma razão por
preferirmos a designação de folguedo, para esse subconjunto de objetos substantivos
da etnocenologia. Curiosamente, em outras línguas, o léxico relativo ao lúdico encontra-
se, mesmo no âmbito do exercício profissional, por exemplo, do teatro : em inglês to
play, em francês jouer, em alemão spiellen.
53
Armindo Bião
explícito e cabal, todas as mesmas características acima descritas,
mormente no que tange à gratuidade, ainda assim, envolvem, em sua
realização, também concreta e coletiva, formas sociais de representação,
aparentadas às do teatro e às da ópera, por exemplo, formas de padrões
corporais ritmados, como os compartilhados com a dança e a música
cênica; formas de brincadeira comunitária; assim como certos folguedos,
e formas de ações coletivas, envolvendo o prazer do testemunho

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