Buscar

Introdução - Do Fundo do Coração - Bento XVI e Robert Sarah



Continue navegando


Prévia do material em texto

1/5 
 
Bento XVI 
Robert Sarah 
 
DO FUNDO DO NOSSO CORAÇÃO 
 
 
A todos os sacerdotes. 
 
"Possuir uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, vem usualmente tachado como 
fundamentalismo. Enquanto o relativismo, ou seja, “deixar-se levar para lá e para cá 
por qualquer vento de doutrina”, se mostra como único comportamento digno nos 
tempos modernos. Assim se vai moldando uma ditadura do relativismo que não 
reconhece nada como definitivo e que deixa como medida última apenas o próprio Eu e 
suas vontades." 
Ratzinger, Homilia na “Missa Pro Eligendo Romano Pontefice”, 18/04/2005. 
 
“Qualquer atividade deve ser precedida de uma intensa vida de oração, de 
contemplação, de busca e de auscultação da vontade de Deus”. 
Sarah, A Força do Silêncio. Contra a Ditadura do Barulho, Cantagalli, Siena, 2017, p. 
35. 
 
Nota do Curador 
“Devemos meditar sobre estas reflexões de um homem que se aproxima do fim de sua 
vida. Neste momento crucial, não decide intervir com delicadeza”. 
R. Sarah 
 
Do Fundo do Nosso Coração é um título muito simples e comovente que 
o Papa emérito Bento XVI e o Cardeal R. Sarah escolheram para o livro que publicam 
juntos. 
As palavras de Bento XVI hoje são raras. Em março de 2013, o Papa 
emérito decidiu retirar-se em um monastério nos Jardins do Vaticano. Quis dedicar os 
últimos anos de sua vida à oração, à meditação e ao estudo. O silêncio se tornava assim o 
cofre precioso de uma existência afastada dos ruídos e da violência do mundo. Até agora, 
2/5 
 
muito raramente Bento XVI aceitou manifestar suas idéias sobre temas importantes à vida 
da Igreja. 
O texto aqui apresentado é, então, algo excepcional. Não se trata de um 
artigo ou de anotações recolhidas ao longo do tempo, mas de uma reflexão magistral em 
conjunto com a “lectio” e “disputatio”. A vontade de Bento XVI é claramente manifestada 
na Introdução: “Ante à persistente crise que o sacerdócio atravessa há muitos anos, 
considerei necessário retornar às raízes profundas da questão”. 
Os leitores mais atentos não hesitarão a reconhecer o estilo, a lógica e a 
extraordinária pedagogia do autor da trilogia dedicada a Jesus de Nazaré. O texto é bem 
estruturado, as referências são abundantes e a forma de argumentar finamente esculpida. 
Por qual motivo o Papa emérito decidiu colaborar com o Cardeal Sarah? 
Os dois são muito amigos e mantêm correspondência regular dividindo seus pontos de 
vista, esperanças e preocupações. 
Em outubro de 2019, o Sínodo da Amazônia, uma assembléia de bispos, 
religiosos e missionários dedicados ao futuro desta imensa região apresentou no seio da 
Igreja uma oportunidade de reflexão na qual foi posta em causa o futuro do sacerdócio 
católico. De sua parte, Bento XVI e Cardeal Sarah haviam iniciado a troca de escritos, 
pensamentos e propostas já no fim do verão europeu com o objetivo de conferir maior 
clareza possível às páginas que se seguem. 
Pessoalmente, fui uma testemunha privilegiada deste diálogo. Agradeço 
infinitamente pela honra de ser o curador deste volume. 
O texto de Bento XVI vem nomeado muito sobriamente: O Sacerdócio 
Católico. O Papa emérito delimita de início sua abordagem “às raízes da grave situação 
na qual se encontra hoje o sacerdócio, onde se encontra um defeito metodológico na 
aceitação das Escrituras como Palavra de Deus”. A afirmação é dura, inquietante e quase 
inacreditável. 
Bento XVI não pretendeu enfrentar sozinho uma questão tão delicada. A 
colaboração do Cardeal Sarah foi tão natural quanto importante. O Papa emérito conhece 
a profunda espiritualidade do cardeal, seu espírito de oração e sua sabedoria. Confia nele. 
No prefácio à Força do Silêncio, durante a Semana Santa de 2017, Bento XVI escreveu: 
“o Cardeal Sarah é um mestre que fala a partir do fundo do espírito e permanece em 
silêncio junto ao Senhor, a partir da profunda unidade com Ele, e assim tem realmente 
3/5 
 
muita coisa a dizer a todos nós. Devemos agradecer ao Papa Francisco por ter posto um 
tal mestre do espírito na liderança da Congregação que é responsável pela celebração da 
liturgia na Igreja”. 
Por sua vez, o Cardeal Sarah admira a produção teológica de Bento XVI, 
o poder de suas reflexões, a sua humildade e a sua caridade. 
O escopo dos autores é perfeitamente plasmado nesta afirmação retirada 
da Introdução deste volume: “A proximidade das nossas preocupações e a convergência 
das nossas conclusões nos fizeram decidir expor a todos os fiéis o fruto do nosso trabalho 
e da nossa amizade espiritual, a exemplo de Santo Agostinho”. 
O quadro é simples: dois bispos refletiram; dois bispos quiseram tornar 
público o fruto de suas pesquisas; o texto de Bento XVI é de grande fineza teológica; o 
texto do Cardeal Sarah possui uma indubitável força catequética. Os assuntos se 
entrelaçam, as afirmações se completam, as inteligências são reciprocamente estimuladas. 
Ao seu texto o Cardeal Sarah deu o título de “Amar até o fim. Olhar 
eclesiológico e pastoral sobre o celibato sacerdotal”. Reencontramos nele a coragem, o 
radicalismo e a mística que rendem incandescentes todos os seus livros. 
Bento XVI e o Cardeal Sarah quiseram iniciar e encerrar este livro com 
dois textos escritos a quatro mãos. Na conclusão escrevem: “é urgente e necessário que 
todos, bispos, sacerdotes e leigos não se deixem mais impressionar por maus 
conselheiros, por encenações teatrais, por mentiras diabólicas, por erros da moda 
momentânea que procuram desqualificar o celibato sacerdotal”. 
Evidentemente, o Papa emérito e o Cardeal Sarah não escondem sua 
própria inquietude. Conhecem, todavia, bem demais Santo Agostinho ao qual se referem 
constantemente por saberem que o amor sempre terá a última palavra. 
O moto episcopal do cardeal Ratzinger era “UT COOPERATORES 
SIMUS VERITATIS”, “Devemos, portanto, receber a tais homens, para cooperar com 
eles pela verdade" (3 João, 8). Neste ensaio, com a idade de noventa e dois anos, quis 
colocar-se mais uma vez à disposição da verdade. O lema episcopal do Cardeal Sarah, 
escolhido quando ainda era um jovem arcebispo de Conakry, capital da Guiné, assim reza: 
“SUFFICIT TIBI GRATIA MEA”, “Te basta a minha graça”; e vem da Segunda Carta 
aos Coríntios , na qual o Apóstolo Paulo descreve as suas dúvidas, teme não estar à altura 
de transmitir de forma eficaz os ensinamentos do evangelho. Deus, porém, lhe responde 
4/5 
 
assim: “Basta-te minha graça, porque é na fraqueza que se revela totalmente a minha 
força”. (2Cor 12,9). 
Gostaria de concluir esta breve introdução com duas citações que hoje 
sinto ressoar com força. A primeira vem tirada da homilia de Bento XVI para a Missa de 
Pentecostes de 31/05/2009: “Assim como existe uma poluição atmosférica, que envenena 
o ambiente e os seres vivos, assim existe também a poluição do coração e do espírito, que 
mortifica e envenena a existência espiritual”. A segunda vem de “Il portico del mistero 
della seconda virtù”, de Charles Péguy: “O que me espanta, diz Deus, é a esperança. Não 
consigo compreender. Essa pequenina esperança que tem ares de não ser nada. Essa 
garotinha, a esperança”. 
Procurando no fundo de seus corações, Bento XVI e Cardeal R. Sarah 
quiseram afastar essa poluição e abrir as portas à esperança. 
 
Nicolas Diat, Roma, 06/12/2019. 
 
 
Por que tens medo? 
Introdução dos Autores 
 
Em uma famosa carta endereçada ao bispo donatista Massimino, Santo 
Agostinho anuncia o propósito de publicar a correspondência trocada entre eles. “Que 
poderei fazer, irmão – pergunta –, se não ler ao povo católico as nossas cartas [...], para 
que possa servir-lhes de instrução?”1. Assim, decidimos seguir o exemplo do Bispo de 
Hipona. 
Nos encontramos nesses últimos meses, enquanto o mundo retumbava os 
rumores provocados por um estranho sínodo da mídia que havia superado o Sínodo real. 
Nos confidenciamos nossas idéias e nossas preocupações. Temos rezado e meditado em 
silêncio. Todosos nossos encontros nos confortaram e pacificaram reciprocamente. 
Desenvolvidas por meio de sentidos diferentes, as nossas reflexões nos portaram, então, 
a trocarmos algumas cartas. A proximidade das nossas preocupações e a convergências 
das nossas conclusões fizeram-nos com que, como Santo Agostinho, tomássemos a 
decisão de pôr à disposição de todos os fiéis o fruto do nosso trabalho e da nossa amizade 
espiritual. 
Nós também, como ele, devemos dizer: “Não posso me calar. Sei o quanto 
me seria pernicioso o silêncio. Não penso, assim, passar o tempo em encargos 
 
1 Sant’agoStIno, Epistola 23,6 
5/5 
 
eclesiásticos satisfazendo a minha vaidade, penso, de outra forma, que quanto às ovelhas 
que me são confiadas darei contas ao príncipe de todos os Pastores”2. 
Enquanto bispos, trazemos conosco a solicitude quanto a todas as Igrejas. 
Com um grande desejo de paz e unidade, oferecemos a todos os nossos irmãos bispos, 
sacerdotes e fiéis leigos de todo o mundo o fruto dos nossos colóquios. 
O fazemos com espírito de amor pela unicidade da Igreja. Se a ideologia 
divide, a Verdade une os corações. Tratar da doutrina da salvação não pode que unir a 
Igreja em torno do Divino Mestre. 
O fazemos com espírito de caridade. Nos parece útil e necessário publicar 
este trabalho em um momento no qual os ânimos precisam ser aplacados. A busca pela 
Verdade não pode se realizar se não com o coração aberto. 
Apresentamos, então, fraternamente estas reflexões ao povo de Deus e, 
naturalmente, com filial obediência ao Papa Francisco. 
Nós pensamos especialmente nos sacerdotes. O nosso coração sacerdotal 
quis confortá-los e encorajá-los. Junto a todos os sacerdotes nos rezamos: Senhor, salvai-
nos! Nós perecemos! O Senhor dorme enquanto a tempestade cai sobre nós. Parece 
abandonar-nos nas ondas da dúvida e do erro. Somos tentados a nos render ao desespero. 
As ondas do relativismo fazem submergir de todos os lados o navio da Igreja. Os 
Apóstolos tiveram medo. A sua fé balançou. Mesmo a Igreja às vezes parece vacilar. No 
centro da tempestade a confiança dos Apóstolos no poder de Jesus parece diminuir. 
Vivemos também nós este mistério. Sentimos, todavia, de encontrarmos uma paz 
profunda, porque sabemos que aquele que pilota o navio é Jesus. Estamos conscientes 
que esse navio que é a Igreja jamais naufragará, que ele e apenas ele poderá nos conduzir 
ao porto da salvação eterna. 
Sabemos que Jesus é aqui, conosco, no navio. A ele queremos renovar 
nossa confiança, nossa fidelidade absoluta, plena e indivisível. A Ele queremos repetir o 
grande “sim” que pronunciamos no dia da nossa ordenação. É esse “sim” total que o nosso 
celibato sacerdotal nos faz viver todos os dias. O nosso celibato é uma proclamação de 
fé. É um testemunho, porque nos faz entrar em uma vida que não tem sentido se não a 
partir de Deus. O nosso celibato é o testemunho, ou seja, o martírio. A palavra grega 
exprime ambas as acepções. Na tempestade, nós sacerdotes, devemos reafirmar que 
estamos prontos a perder a vida por Cristo. Este testemunho oferecemos dia após dia em 
razão do celibato no qual dedicamos a vida. 
Jesus dorme no navio. E se a hesitação vencer, se temos medo de repousar 
n’Ele a nossa confiança, se o celibato nos faz recuar, busquemos escutar a Sua 
advertência: “Por que tens medo, homens de pouca fé?” (Mt 8,26) 
Bento XVI 
Cardeal Sarah 
 
Cidade do Vaticano, setembro de 2019. 
 
2 Ibidem, 23,7.