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ESPIRITUALIDADE ou TEOLOGIA ESPIRITUAL Pe. João Pereira Gomes, C. Ss. R. Edição Pdf. de Fl. Castro 2005 INTRODUÇÃO A Teologia Espiritual ou Espiritualidade é uma ci- ência teológica muito rica, antiga no judaísmo e no cristianismo. Iniciando esta síntese, procuramos dar primeiro uma idéia geral, uma breve metodologia teo- lógica, a indicação das escolas espirituais, a biblio- grafia clássica. Procuraremos mostrar a tradição e a evolução da espiritualidade nestes vinte séculos. Fizemos uma opção prática: primeiro é tratada a espiritualidade antiga; numa segunda parte é tratada a espiritualidade atual, ao menos nos seus elemen- tos, pois é prematuro ainda tentar uma síntese da Teologia Espiritual moderna. IDÉIA GERAL A Espiritualidade é um dos ramos da Teologia, como a Dogmática, a Exegese, a Moral, a Liturgia e a Pastoral. Chama-se também Teologia Espiritual, As- cética e Mística, Teologia da Perfeição Cristã, Perfei- ção, Contemplação. Têm-se tentado várias definições descritivas da Espiritualidade, todas decalcadas na definição da Te- ologia em geral, tendo como objeto a perfeição cristã. O problema é definir o que é perfeição. Alguns exem- plos de definições: Garrigou-Lagrange OP: A Teologia Ascética e Mística é a aplicação da Teologia Moral à direção das almas, para uma união cada vez mais íntima com Deus. Supõe tudo o que a doutrina sagrada ensina sobre a natureza e as propriedades das virtudes e 3 dos dons do Espírito Santo, e estuda as leis e as condições de seu progresso em vista da perfeição. De Guibert SJ: A Teologia Espiritual é ciência que, dos princípios revelados, deduz em que consiste a perfeição da vida espiritual, e de que maneira o cristão pode tender a ela e consegui-la. Tanquerey: Define simplesmente a Teologia Es- piritual como ciência que tem como fim próprio con- duzir as almas à perfeição cristã. Schrijvers C.Ss.R: A Teologia Espiritual é ciência da vida espiritual, que tem por objeto orientar toda a atividade do cristão em vista da perfeição sobrenatu- ral. Notam-se logo dois problemas nessas definições. Primeiro, certa separação entre as partes da Teologi- a, principalmente entre Moral e Espiritualidade. Se- gundo, que significam: santidade, santo, perfeição, vida cristã? Todo o cristão é ou deve ser santo? To- dos são chamados à perfeição, inclusive à mística? Quanto à vocação à santidade, o Vaticano II afirma que sim; quanto à mística, algumas escolas teológi- cas sustentam que não. Consola-nos, contudo, saber que esta ciência santa é acessível tanto ao teólogo, ao místico, como à lavadeira, de que falava S. Boaventura. Mas, avi- sam alguns Mestres, tal ciência, enquanto especulati- va, implica não só muita vida em Deus, mas conhe- cimento de outros ramos da Teologia, da Hagiografia, da História, da Bíblia, da Psicologia e o exercício das virtudes. Pergunta-se também: Chega-se à santidade 4 só com a ascese, sem a mística? Ou, por outra, todos os santos foram místicos? BREVE METODOLOGIA A metodologia espiritual pode usar dois cami- nhos: primeiro o dedutivo, que parte de princípios re- velados ou teológicos; segundo, o indutivo, acentua- do muito pela espiritualidade moderna, que parte da experiência ou indução. Dando um exemplo bíblico, o primeiro prefere Jo 1: “No princípio era o Verbo. . . ”. É usado pelas escolas mais contemplativas. O se- gundo caminho começa com Gn 1: “No princípio Deus criou o céu e a terra. . . e Deus criou o homem”. Um é descendente; o outro, ascendente. Alguns manuais tentam misturar os dois méto- dos, como fazemos aqui. Há, ainda os que se conten- tam com reunir e coordenar regras de perfeição, co- mo fizeram os Padres do Deserto, Cassiano e S. Jo- ão Crisóstomo. Outros grandes santos deixaram a- penas Regras para sua Ordem ou Congregação, ou monografias espirituais, como S. Bento, Sto. Inácio, Sto. Afonso. Alguns, como os da escola jesuíta e redentorista acentuam a ascese; os mais contemplativos, como os carmelitas, enclausurados, unem a ascese à mística. Os modernos começam com a experiência, ao gosto do século 20. É costume também falar de espiritualidades, no plural, visando escolas, tempo etc. Diz-se, por exem- plo, espiritualidade primitiva, patrística, beneditina, mendicante, carmelita, inaciana, religiosa, sacerdotal, 5 leiga, do século 16, do trabalho, etc. Isto é usual no século 20, devido à menor unidade teórica. Há bons tratados acessíveis ao nosso público, embora poucos, como veremos na bibliografia. Mas há grande número de monografias, principalmente nas numerosas revistas religiosas. São úteis os di- cionários bíblicos, teológicos, espirituais, hoje à dis- posição de todos. Procure neles os conceitos aqui emitidos. Todos os movimentos modernos têm uma espiritualidade própria, que desenvolvem em cursos e retiros. Evidentemente deve-se acompanhar este tratado com a consulta à Bíblia, pois uma exigência do Vati- cano II é a linha mais bíblica da teologia (DV, n. 24) Além das siglas próprias das Bíblias, as mais u- sadas são as do Concílio Vaticano II : GS: Gaudium et Spes, Constituição sobre o Mundo. LG: Lumen Gentium, Constituição sobre a Igreja. DV: Dei Verbum, Constituição sobre a Revelação Divina. PC: Perfectae Caritatis, Decreto sobre os Religiosos. A. A.: Apostolicam Actuositatem, Decreto sobre o Aposto- lado Leigo. CIC: Catecismo da Igreja Católica, pós-Vaticano II. As siglas da Bíblia são usadas conforme a con- venção mais geral. Para maior informação teológica, aconselho re- correr a obras práticas como o Dicionário de Teologia (Ed. Loyola), Teologia para o Cristão de Hoje, Voca- bulário Teológico (Ed. Paulus), e o chamado Cate- cismo Holandês. É muito útil consultar um manual de História da Igreja, para entender o contexto das Esco- 6 las Espirituais. Para entender, por exemplo, a espiri- tualidade depois do século 16, é preciso conhecer o contexto dos Concílios Tridentino, Vaticano I e II. A História da Era Moderna faz entender as respostas que a Igreja deu ao mundo. 7 HISTÓRIA DA ESPIRITUALIDADE PRIMEIROS SÉCULOS É evidente que a primeira escola espiritual é a de Jesus, de Maria, dos apóstolos, discípulos, evangelis- tas, mártires, virgens, pregadores, carismáticos refe- ridos no Novo Testamento e na História da Igreja. Todos eles seguiram de perto as pegadas do Mestre, cumprindo sua palavra: “Sede perfeitos como o Pai celeste é perfeito” (Mt. 5, 48). Mas é bom lembrar que já S. Paulo advertia que, em Corinto, nem todos eram tão perfeitos (1Cor 5-6; 2Cor 10-11). É a realidade da Igreja, que reaparecerá nestes vinte séculos. A IGREJA PRIMITIVA Na Igreja primitiva surgem santos e escritores, que não só exercitam mas apontam as exigências do evangelho no mundo greco-romano. São os mártires, as virgens, os fundadores de igrejas. Devido às per- seguições, que logo começam, há dispersão para ou- tras cidades, e até para os desertos. As igrejas mais organizadas, como de Roma, Antioquia e Alexandria, já vão registrando não só as Atas dos Mártires, mas os escritos espirituais, principalmente cartas, trata- dos, sermões. É bom assinalar um fenômeno que mais tarde vai dar origem ao monaquismo e à vida religiosa: as vir- gens e os anacoretas (S. Antão, S. Pacômio), mais tarde monges que “fogem do mundo” e se dedicam à dura ascese, muitas vezes por necessidade. É preci- 8 so lembrar os cristãos que eram condenados ao tra- balho forçado nas minas. Há o caso curioso dos estili- tas que viviam sobre colunas. O monaquismo (procu- ra da vida solitária) espalha-se no Oriente e depois passa ao Ocidente, com Cassiano. Muitos teólogos foram inicialmente primeiro, como Cirilo, Teodoro, Nicetas, Afraat, João Crisóstomo e outros. Dos autores seguintes, chamados de Santos Pa- dres, coloco apenas a obra que julgo mais represen- tativa e interessante. PATROLOGIA GREGA S. CLEMENTE ROMANO (s. I-II) escrevea Carta aos Coríntios. HERMAS (s. II): Pastor de Hermas. S. INÁCIO de Antioquia (+110): Cartas. S. POLICARPO (+146): Cartas. S. CLEMENTE de Alexandria (195) : O Pedagogo. S. ATANÁSIO (+373): Vida de S. An- tão. S. CIRILO (+386): Catequese. S. BASÍLIO (+379): Sobre o Espírito Santo. S. GREGÓRIO de Nicéia e GREGÓRIO de Nazianzo. S. JOÃO CRI- SÓSTOMO (+407): Homilias; Sobre o Sacerdócio. DIONÍSIO AREOPAGITA (500): A Mística Teologia. S. JOÃO CLÍMACO (+649): Escada do Paraíso. DIÁ- DOCO (s. V): Perfeição Espiritual. S. MÁXIMO (+662): Livro Ascético. S. JOÃO DAMASCENO (+749): Paralelos Sacros. -Ressalto aqui o Pseudo-Dionísio Areopagita, que foi seguido, comentado por Máximo Confessor e João Crisóstomo, e teve influência em toda Idade Média com sua doutrina sobre a mística e os anjos. 9 PATROLOGIA LATINA S. CIPRIANO (+258): escreve Sobre as virgens; O Pai-nosso; Os lapsos. S. AMBRÓSIO (+397): So- bre os ministros; Sobre as virgens; Sobre as viúvas. S. JERÔNIMO (+420): Cartas; Tradução da Bíblia. STO. AGOSTINHO (+430): Confissões. CASSIANO (+433): Os Cenobitas; Conferências. S. LEÃO (+461): Sermões. S. GREGÓRIO (604): Livros Morais; Co- mentário de Jó. S. ISIDORO de Sevilha (+636): Re- gra dos Monges. S. BENTO (480-543) deixou sua célebre “Regra” para seus monges. Com razão é chamado “Pai dos Monges”, “Patriarca do Ocidente”. Enfrentou “com a cruz e o arado”, os bárbaros, com o lema: “Ora e trabalha”. “Nobre que se fez camponês, fundou a nova Europa”. IDADE MÉDIA Séculos 8º-9º : S. BEDA, Venerável (+735): Ho- milias. S. TEODORO Estudita (+826): Catequese. JOÃO Aurelianense (+843): Manual para leigos. Ab- don SMARAGDO (+843): Vida de S. Bento. S. PE- DRO DAMIÃO (+1072): Cartas e Sermões. SIMEÃO, o Teólogo: Sermões. Escola Beneditina: Sistematiza elementos da es- piritualidade dos séculos anteriores: Sto. ANSELMO: (+1109): Meditações, Orações. S. BERNARDO (+1153), da abadia de Cister: Sermões e vários escri- tos espirituais. Pregador da Segunda Cruzada. Sta. HILDEGARDA (+1179), Sta. GERTRUDES, Sta. MA- TILDE, Sta. BRÍGIDA: Revelações. JOÃO DE CAS- TEL, LUÍS BARBO (+1443). 10 Escola de s. Vítor: Herdeira da espiritualidade de Sto. Agostinho e de Dionísio Areopagita, com ten- dências platônicas e alegóricas: HUGO DE S. VÍTOR: (+1141): Hierarquias de Dionísio, Regra de Sto. A- gostinho. Escreveu sobre os temas: mundo, caridade, oração, amor dos esposos, meditação. Escola Cartuxa: Começa no séc. XII, com dois priores de nome Guido. Depois há vários escritores, como DIONÍSIO, o Cartuxo (+1471), LANSPÉRGIO (+1539). Essa escola insiste na vida solitária e con- templativa. Escola Dominicana: Conhecida pela boa base doutrinal, oração litúrgica e contemplação. É a Ordem dos Pregadores de S. DOMINGOS (+1221), que aco- lheu S. ALBERTO (+1280): Comentário a Dionísio Areopagita, Marial. Sto. TOMÁS DE AQUINO (+1274): Summa Theologica, Comentários à Bíblia, Dionísio Areopagita etc. MESTRE ECKART: (+1327), JOÃO TAULER (+1361) e HENRIQUE SUSO (+1366). Sta. CATARINA DE SENA (+1380): Diálogo. S. VICENTE FERRER (+1419): Tratado da Vida Espi- ritual. Sto. ANTONINO (1459): Regra da Vida Cristã. JERÔNIMO Savonarola (+1498): Tratado da Humil- dade. DOMENICO CAVALCA: Espelho da Cruz. TORQUEMADA: Meditações, Questões Espirituais. BEATA OSANA (+1505): Livro de sua Vida. Escola Franciscana: Doutrina do amor, da pobre- za, da abnegação. Ordem Mendicante. S. FRANCIS- CO (+1226): Opúsculos. Sto. ANTÔNIO (+1231): Sermões. S. BOAVENTURA (+1274): Itinerário da Mente a Deus. Com suas obras teve muita influência 11 na mística posterior. Beato RAIMUNDO LULLO (+1315): Livro do Amigo. S. BERNARDINO (+1444): Sermões; propaga a devoção ao Nome de Jesus. B. ÂNGELA DE FOLIGNO (+1309): Livro das Visões. Sta. CATARINA DE BOLONHA (+1463): Revelações, As sete armas espirituais. Escola Independente: Acolhe escritores místicos: RUYSTROECK (+1381): Espelho de salvação e ou- tras obras. GERARDO GROOT: (+1384), TOMÁS DE KEMPIS: (+1379): Imitação de Cristo: o livro espiritual mais lido no mundo. S. LOURENÇO Justiniano (+1455), reformador: Os graus de perfeição e muitas outras obras. W. HILTON (+1396), chefe da escola inglesa: Escada da Perfeição. JOÃO GERSON (+1429): Livro da vida espiritual e outras excelentes obras. Sta. CATARINA DE GÊNOVA (+1510): Diálo- go do Amor Divino. IDADE MODERNA Às escolas antigas ajuntam-se novas, que atuali- zam a espiritualidade e codificam a mística. Adotam o apostolado ante as novas heresias e novas terras descobertas. Acolhem uma plêiade de escritores de renome e muitos santos. Escola Beneditina: LUÍS BLÓSIO (+1566): Institu- ição da vida espiritual. GARCIA DE CISNEROS (+1510): Exercícios da vida espiritual, livro que inspi- rou Sto. Inácio. ARMANDO RANCÉ (+1700): funda- dor dos trapistas: Santidade e deveres da vida mo- nástica. CARDEAL BONA (+1674): O discernimento dos espíritos. DOMINGOS SCHRAM (+1720): Institu- ições da teologia mística. D. GUERANGER (+1875): 12 reformador da Ordem e da Liturgia: Ano Litúrgico. D. COLUMBA MARMION (+1923): abade de Mared- sous, grande autor místico: Jesus Cristo, vida da al- ma. D. CHAUTARD (+1936): Alma de todo apostola- do. D. ANSELMO STOLZ (+1942): Teologia da Místi- ca. D. GERMANO MORIN (1931): O ideal monástico. Escola Dominicana: Ganhou prestígio com a volta a Sto. Tomás. Sta. CATARINA de Ricci (+1590): Car- tas. MELQUIOR CANO (+1560): Vitória de si mesmo. LUÍS DE GRANADA (+1588): Guia dos pecadores e outras obras com numerosas edições. BARTOLO- MEU DOS MARTIRES (+1590), de Braga: Compên- dio da doutrina espiritual. JOÃO DE STO. TOMÁS (+1664), o melhor comentarista de Sto. Tomás de Aquino, principalmente sobre os dons do Espírito Santo. CONTENSON (+1674): Teologia da mente e do coração. H. LACORDAIRE (+1861): Vida de S. Domingos. A. GARDEIL: (+1931): A estrutura da al- ma. J. ARINTERO (+1928): restaurou os estudos místicos: Evolução mística; Questões místicas. H. PETITOT (+1934): Introdução à santidade; Sta. Tere- sinha. GARRIGOU LAGRANGE: grande autor espiri- tual moderno: As três idades da vida interior; Perfei- ção cristã e outras muitas obras. M. PHILIPON: Dou- trina espiritual de Isabel da Trindade (1937). Escola Franciscana: Deu muitos missionários pa- ra as Américas, Oriente, e também muitos escritores e santos. ALONSO de Madri (+1521): Arte de servir a Deus. S. PEDRO DE ALCÂNTARA (+1562): Tratado da oração. Fr. de OSUNA (+1540): Abecedário espiri- tual, que usou Sta. Teresa. JOÃO DE LOS ANGELES (+1609), dos maiores místicos franceses francisca- 13 nos: Triunfos do amor de Deus. MARIA DE AGREDA (+1665): Mística cidade de Deus. S. VERÔNICA JU- LIANI (+1727): Diário. CARDEAL VIVES: Compêndio de teologia ascético-místico. DENDERWINDEKE: Compêndio de teologia ascética (1921). Escola Agostiniana: Inspirada em Sto. Agostinho. Sto. TOMÁS DE VILA NOVA: (+1555): Sermões. B. ALONSO de Orozco (1591), místico: Vergel de ora- ção. TOMÉ DE JESUS (+1582): Trabalhos de Jesus, obra célebre. TOMÁS RODRIGUEZ e GRACIANO MARTINEZ: comentam Sta. Teresa. CÉSAR VACA: Guia das almas. A vida religiosa em Sto. Agostinho. Escola Carmelita: Espiritualidade do “tudo de Deus, nada da criatura”. Sta. TERESA (+1582): o grande nome desta escola. Muitas obras: Caminho da Perfeição, etc. S. JOÃO DA CRUZ, autor de exce- lentes obras místicas: Subida do Monte Carmelo, Chama do Amor, Cântico Espiritual. Vários outros au- tores: João de Jesus Maria, José de Jesus, Maria da Encarnação, Ana de S. Bartolomeu, Margarida Acari- e, Tomás de Jesus, Nicolau de Jesus, Filipe da Ss. Trindade, Antônio do Espírito Santo, Honorato de Sta. Maria, José do Espírito Santo. Excelente a coleção de Teologia de SALAMANCA. Duas grandes santas: Sta. TERESINHA e ISABEL DA TRINDADE. Escola Salesiana: inspirada em S. FRANCISCO DE SALES (+1622), autor de obras de grande influ- ência: Introdução da Vida Devota, Tratado do Amor de Deus. Sta. JOANA DE CHANTAL (+1641),funda- dora da Visitação. Sta. MARGARIDA MARIA ALA- COQUE (+1690), confidente do Coração de Jesus: 14 Autobiografia. S. JOÃO BOSCO (1888): Opúsculos. J. TISSOT (+1894): A vida interior simplificada. H. CHAUMONT (+1896): Direções espirituais. F. VIN- CENT: S. Francisco de Sales. Escola Francesa: Apresenta uma espiritualidade muito rica, centrada no Verbo encarnado e na incor- poração a Cristo. CARDEAL BERULLE (+1629), fun- dador do Oratório: Discursos das grandezas de Je- sus. C. CONDREN (+1641): A idéia do sacerdócio. F. BOURGOING: Verdade de Jesus Cristo. S. VICENTE DE PAULO (+1660), fundador dos Lazaristas e das Filhas da Caridade. J. OLIER (+1657), fundador da Companhia de S. Sulpício, grande mestre espiritual francês: Catecismo da vida interior. L. BAIL (+1669): Teologia afetiva de Sto. Tomás. S. JOÃO EUDES (+1680), devoto dos Sagrados Corações: Vida e rei- nado de Jesus. S. LUÍS G. DE MONTFORT (+1716): Tratado da verdadeira devoção à V. Maria. S. JOÃO B. DE LA SALLE (+17l9), das Escolas Cristãs. Escre- veu: Explicação do método de oração. P. LIBER- MANN: escritos sobre oração e vida interior. MONS. GAY: Vida e virtudes cristãs. J. RIBET: Mística divina. C. SAUVÉ: Elevações dogmáticas. A. TANQUEREY: Compêndio de Ascética-Mística, do qual aqui usare- mos muito. Escola Inaciana: Originada dos Exercícios Espiri- tuais, é uma escola de disciplina religiosa, prática, missionária, ascética e metódica. Sto. INÁCIO (+1556): Além dos “Exercícios”, deixou Diário, Consti- tuições, Cartas. S. FRANCISCO XAVIER (+1552): belíssimas cartas. S. FRANCISCO DE BORJA (+1572): Meditações, Diário. ALONSO RODRIGUEZ 15 (+1616): Exercícios da Perfeição. Sto. AFONSO RO- DRIGUEZ: de altíssima contemplação: Opúsculos místicos. F. SUAREZ (+16l7): Virtude e estado religi- oso. ALVARES DE PAZ (l620): A vida espiritual. S. ROBERTO BELARMINO (+1621): Ascensão da men- te a Deus. LUÍS DE LA PUENTE (+1624): Medita- ções, Guia Espiritual. L. LALLEMANT: Doutrina espi- ritual. E. NIEREMBERG : Apreço da divina graça. Jo- ão SURIN : Fundamentos da vida espiritual. B. CLÁUDIO DE LA COLOMBIERE (+1682): Diário dos retiros. P. SEGNERI (1694): Concórdia. . . (contra Molinos). J. B. SCARAMELLI (+1752): Diretórios. A. POULAIN (+1918): Graças da oração. R. MAU- MIGNY: considera a mística como algo extraordiná- rio, anormal. L. GRANDMAISON: Escritos espirituais. J. MARECHAL: Estudos sobre a psicologia mística. J. DE GUIBERT (+1942): Teologia Espiritual Ascética e Mística. Autores Independentes: principalmente do clero diocesano. S. JOÃO D´ÁVILA (+1569): Audi filia. Sta. Teresa admirava-o muito. S. ANTÔNIO ZACARIAS (+1539), fundador dos barnabitas: Cartas. S. FILIPE NÉRI (1595): fundador do Oratório: Cartas. L. ESCU- POLI (+1610): Combate Espiritual. B. JOÃO DA CONCEIÇÃO: reformador dos Trinitários: Obras. S. MIGUEL DOS SANTOS: Breve tratado. MARIA DA ENCARNAÇÃO, ursulina: Cartas. B. BOSSUET (+1704): Elevações; Meditações; Sermões. F. FENE- LON : (+1715): Explicação das Máximas dos Santos. P. LAMBERTINI, futuro Bento XIV: Beatificação e ca- nonização. S. PAULO DA CRUZ (1775), fundador dos passionistas: Cartas. Antônio ROSMINI (+1855): 16 Máximas de perfeição. S. JOSÉ CAFASSO (+1860): Meditações; Instruções. F. G. FABER: Tudo por Je- sus. S. JULIÃO EYMARD: O Ss. Sacramento. Sto. ANTÔNIO CLARET, fundador dos claretianos: Esca- da de Jacó; Avisos; Regras do Espírito. A. CHEVRI- ER: O padre segundo o evangelho. F. DUPANLOUP: Diário Íntimo. Cardeal NEUMANN: Sermões; Apolo- gia; Meditações. Cardeal MANNING: O sacerdócio eterno. J. SCHEEBEN: As maravilhas da graça. Car- deal GIBBONS: O embaixador de Cristo. M. d´HULST: Retiros sacerdotais. Sta. GEMA GALGANI, leiga: Cartas e êxtases. C. de FOUCAULD: Escritos espirituais. Cardeal MERCIER: A meus seminaristas. E. LESEUR (+1914): Vida espiritual; Diário; Cartas. A. SAUDREAU, bom autor: Os graus da vida espiritual. M. GRABMANN: Mística Católica. J. MARITAIN: Graus do saber; Vida de oração.1 Escola Ligoriana: Sto. AFONSO M. DE LIGÓRIO (+1787), fundador dos redentoristas, moralista, mes- tre espiritual de numerosas obras sobre N. Senhora, o Santíssimo Sacramento, a oração, o amor de Deus, a Paixão2. J. SARNELLI (+1744): O mundo santifica- do. MARIA CELESTE CROSTAROSA, mística, fun- dadora das Irmãs Redentoristas: Autobiografia. A. DESURMONT (+1898): A caridade sacerdotal e ou- tras obras. J. SCHRIJVERS (+1945): Os princípios da vida espiritual. SAINT OMER: Escola da Perfeição 1 Ver A. TANQUEREY, Compêndio de Teologia Ascética e Mística, Porto, 1932, Ed. Apostolado, p. XIII-XLVIII. ROYO MARIN, Teologia de la Perfectión Cristiana, Madrid, 1962, BAC. p. 1 – 24. 2 Obras de Sto. Afonso em português: Veja Catálogo da Ed. Santuá- rio,em http://www.redemptor.com.br/site/index.php?id_secao=26 http://www.redemptor.com.br/site/index.php?id_secao=26 17 Cristã. No Brasil, tiveram muita influência os livros de meditação de T. CRISTINI, L. STIX, BRONCHAIN. JOÃO BETTING, GERALDO PIRES e ISAC LORE- NA: vários livros espirituais de divulgação. 18 I. PARTE ASCESE E MÍSTICA 1. D E U S Sendo que o tema de Deus e da Santíssima Trindade é evidentemente tratado em toda a Teologia, em es- pecial na Teologia Bíblica e Dogmática, trataremos aqui apenas de alguns aspectos que interessam mais à Teologia Espiritual. Será conveniente, no entanto reler os tratados “De Deus Uno e Trino” acessíveis, por exemplo, no bom Catecismo da Igreja Católica, fruto do Concílio Vaticano II, e em bons manuais. A espiritualidade supõe certo nível de conhecimento dogmático, bíblico, conhecimento que os místicos têm, mesmo sem muita instrução. É bom notar que cada santo, místico tem preferência por um aspecto de Deus. A Santíssima Trindade, o Espírito Santo reapare- cerão no tratado da mística. Aqui veremos brevemen- te o aspecto da criação e inabitação, e outros atribu- tos divinos, ligados principalmente à oração. O CRIADOR A chamada teologia da criação, a exemplo do próprio Jesus, parte da criação do mundo e do ho- mem e procura ressaltar este aspecto: “Deus viu que tudo era bom”. Jesus retomou esta idéia: “No princí- pio não era assim”, disse do casamento. É o mistério 19 do cosmos que até hoje assombra os homens, os sá- bios, e principalmente os crentes em Deus. A con- templação das criaturas de Deus sempre tem alimen- tado a religiosidade e a contemplação, como se pode ver em S. Francisco e S. João da Cruz (Sl 8; Rm 1,20s). O tema da criação é noção básica para a fé de Is- rael e nossa. É base do culto: os Salmos não cessam de louvar a Deus, pelas maravilhas da criação. S. Paulo diz que tudo foi criado por Cristo e em Cristo, e que a obra redentora é uma nova criação. A liturgia cristã, principalmente a missa, volta sempre a este tema: “Bendito sejais, Senhor, Deus do Universo. . .” A volta ao paraíso será sempre o ideal, como vemos no Apocalipse. Filosofia e Teologia escolásticas perguntavam-se: o mundo terá fim ou é infinito? É eterno? Onde termi- na o universo? Einstein era de opinião que o universo era curvo, o que resolveria o problema. Os astrôno- mos explicam a eternidade com a “explosão inicial” repetida indefinidamente. Aliás, o número também seria infinito? O que haverá lá onde termina o Univer- so?3 Vejamos algumas afirmações e teses básicas da Bíblia e da Teologia. − Deus fez o homem como rei da criação (Gn 1,26). Jesus Cristo é o vértice da criação e, com Ele, 3 Veja “Leituras”, mais abaixo. 20 o homem criado é recriado: “Domine ... sobre todos os animais” (Gn 1,26). − O cristão reconhece a bondade de todo este mundo criado. Um vínculo profundo une o Criador e as criaturas. O homem deve reconhecer que Deus é o Criador e Senhor: “Creio em Deus Pai, criador do céu e da terra”. Ele enviou seu Filho único ao mundo, para recriá-lo, resgatá-lo. O Apocalipse mostraos no- vos céus e a nova terra: “Vi um novo céu e uma nova terra” (Ap 21,1). − Ante homens materialistas e ateus, devemos proclamar a fé no criador, a exemplo do salmista: “Prostremo-nos ante o Deus que nos criou!” (Sl 94). E exclamar com Sto. Agostinho: “A beleza mesma do universo é como um grande livro!” De S. Francisco escreveu Celano: “Em qualquer objeto admirava o Autor”. − A glória de Deus reverte para a glória do ho- mem, que ele fez à sua imagem. “Vós o fizestes pou- co menor que os anjos. De honra e glória o coroas- tes”. “É incurável o otimismo cristão”, observou al- guém. Podemos responder que é melhor tal otimismo que o pessimismo ante os males “incuráveis” dos homens e do mundo. A PROVIDÊNCIA A palavra providência corresponde no hebraico à palavra cuidado (Jó 10,12). O conceito aparece claro nos acontecimentos bíblicos: Deus manifesta-se na história, marcha à frente de seu povo, olha dos altos céus. É causa de tudo, mesmo do mal (Am 3,6). Jó é 21 o protagonista do drama da Providência: que fez e faz tudo terminar bem. Deus não criou o mundo para deixá-lo como bola chutada no meio do campo, comparou alguém. “De tudo o que Deus criou, com sua Providência ele cuida e tudo conserva” (Denzinger, 3003). “Caso contrário, ensina o Catecismo Romano, as coisas recairiam no nada”. “É a tua Providência, ó Pai, que dirige o leme” (Sb 14,3). O mal no mundo é a objeção antiga: Jó discutiu isso com Deus. Não pretendemos aqui dar as respos- tas usuais. Em espiritualidade, apontam-se os exem- plos admiráveis de Jesus e dos santos. S. Francisco que abençoava o fogo que o cauterizava. Como a- quela pessoa em doença terminal: “Como Deus é bom!” Os tratados, tanto de ascese, como de mística, são férteis neste tema. Veremos oportunamente a devoção da cruz, que é a resposta final ao eterno problema do sofrimento: “Afastai de mim este cálice, contudo não se faça a minha vontade”. Mc 14,36. A confiança na Providência, em santos como S. Caetano, aparece ligada à pobreza que os santos praticaram em grau heróico, como S. Benedito Coto- lengo. É difícil encontrar santos que não tenham feito, da criação e da providência divina, tema de sua ora- ção. Como S. Francisco com seu célebre Cântico do Sol. A GLÓRIA Sto. Inácio era devoto da glória de Deus, e colo- cou-a como dístico de seu escudo: “Para a maior gló- 22 ria de Deus”. Um tema muito bíblico. A glória enche o tabernáculo, o templo, e brilha na criação (Sl 19). Je- sus possuía esta glória e a passou a seus discípulos: “Que eles estejam comigo, para que contemplem a minha glória, glória que me destes. . . antes da cria- ção do mundo” (Jo 17,5.22.24). Ele a manifestou no Monte Tabor, nos milagres, na ressurreição. A Litur- gia endossou essa devoção: “Glória a Deus nas altu- ras!” Cada espiritualidade escolhe, entre os atributos divinos, aquele que mais a inspira. Evidentemente todas têm base na grande devoção de Jesus: o Pai. S. João destaca isso de modo incisivo. A “Oração Sacerdotal” e, mais ainda, a sublime oração do Pai Nosso são pontos altos desta devoção total. LEITURAS Sto. Agostinho: “O pôr-do-sol dourava a vastidão das águas. Perguntei: Ó grande oceano, és tu meu Deus? E o bramido das ondas responde: - Não sou; suba mais alto. E as estrelas surgiram a brilhar no firmamento Perguntei: Sois vós o meu Deus? - Não, suba mais alto. E vós, bem-aventurados do céu? Fascinado pergunto: Sois vós o meu Deus? - Não, vai mais alto. Enfim, chegando ao trono da majestade, da luz, da felicidade: SOU EU, disse.” S. Francisco, Cântico do Sol : “Louvado sejas, meu Senhor, com todas a tuas criaturas, especial- mente o senhor irmão sol, que clareia o dia. Louvado 23 sejas, meu Senhor, pela irmã lua e pelas estrelas que no céu formaste, preciosas e belas. Louvado sejas pelo irmão vento, pelo ar e nuvens. ” Ângela De Foligno: “Vi uma coisa verdadeira, cheia de majestade, imensa. Não sei dizer palavra, mas, com certeza devia ser o Ser Supremo. Via a Ele mesmo, a plenitude, o esplendor, como está no céu. De tanta beleza não sei dizer palavra. Era a suma Beleza que contém o sumo Bem.” P. W. Faber: “Em Deus há profundezas de perfei- ção para as quais os homens não têm palavras. E há em Deus alturas de beleza e glória que ultrapassam todo este universo. Perante esta plenitude a criatura perde a fala”. Isabel de Lisieux: “Sem nada ver com os olhos, nem do corpo, nem da alma, eu sentia Deus presen- te. Sentia seu olhar sobre mim, cheio de suavidade e bondade. Sentia-me mergulhada em Deus.” P. J. Betting: “O universo estelar é uma vastidão sem fim. Indo pelo espaço à velocidade da luz che- gamos à lua num segundo. Ultrapassamos o último planeta em 5 horas. Chegamos à estrela mais próxi- ma em 4 anos. Nossa galáxia acolhe 100 bilhões de estrelas e mede 80 mil anos-luz. Voamos 2 milhões de anos-luz até a galáxia mais próxima. Nosso grupo contém 17 galáxias. O agrupamento de Hércules con- tém l0.000 galáxias. Ao todo se calculam 10 bilhões de galáxias, contendo cada uma bilhões de estrelas. 24 Ante tudo isso comenta o P. Brémond: “Sublime bal- buciar!”4 Jutzi Schulter de Toes (+1292) antecedeu Copér- nico e Galileu por 200 anos. Esta mística viu do alto a terra ”pequena como a palma da mão”, ante o céu estrelado. E cada estrela era grande como a terra. Beata Alpais (+1211), antes dela, viu a terra sus- pensa no ar, “redonda como um ovo, rodeada de á- gua, sendo o sol muito maior”. Ambas precederam o astronauta Gagárin por mais de 600 anos, comenta o P. J. Betting, na obra supra, p. 36. Tais revelações são discutidas na mística. 4 J. BETING: Teologia das Realidades Celestes, pg. 21. 25 2. O HOMEM − Depois de considerar Deus, a espiritualidade moderna olha logo o homem, destinatário da revela- ção, objeto da redenção, do amor de Deus. Enfim, é ele o rei da criação, mesmo com todas as limitações e misérias. “Ó feliz culpa, que nos mereceu um tal Salvador”, canta a Liturgia. Evidentemente, conforme a linguagem antiga, homem (homo) significa homem (vir) e mulher. Usa- mos também aqui mais a antropologia tradicional. É esta imprescindível para entender a espiritualidade antiga. A espiritualidade atualizada sente dificuldade com uma antropologia e psicologia eivadas de mate- rialismo, que nega a alma e professa o evolucionis- mo, determinismo. Uma aproximação bíblica também cria dificuldades, pela idéia unitária do semita sobre o homem, contrário ao dualismo grego tradicional. Com efeito, na Bíblia, termos como carne, alma e espírito, embora poucas vezes nomeados, têm um sentido impreciso para nossa cultura greco-latina. Também para entender os santos e autores da bibliografia clássica do início, é preciso conhecer a antropologia e psicologia da Patrística e da Escolásti- ca, usadas na filosofia e teologia. Conceitos como composição, potência, virtude do homem, bem como aspectos negativos e limitações como: tentação, ví- cio, pecado, unidade e divisões do homem, e a pró- pria morte são conceitos estranhos a muitos. Até a ressurreição fica difícil de explicar e, mais ainda o que diz o Credo: “Desceu aos infernos”. Fica difícil também achar um equilíbrio entre otimismo e pessi- 26 mismo, extremos não raros na filosofia e psicologia modernas. O cristão deve estar atento a idéias pouco cristãs, freqüentes nos meios de comunicação e na literatura em geral. Com a falta do espírito, onde fica a espiritualidade? Vejamos primeiro as principais a- firmações ou teses tradicionais. − A alma humana é uma substância espiritual, por si independente da matéria; mas, unida ao corpo, serve-se do corpo e dos seus órgãos. O “eu” da pes- soa é união substancial de alma e corpo – matéria e forma no jargão escolástico. Assim, a alma é forma substancial do corpo, segundo o Concílio de Viena. O homem tem o ser de homem, de animal, de vegetal, de vivente. Porisso a alma dá ao homem um grau essencial de perfeição. E mais, é ele como que uma síntese do universo. Foi dito mesmo: “o homem é o metro do mundo”. Está entre o universo imenso e o vírus. Se pensamos bem, o homem é uma maravilha. Venceu os fatores mais adversos à sua sobrevivên- cia. Venceu com sua força e inteligência. Mesmo considerando o evolucionismo, é para admirar como o homem superou animais muito mais fortes. Mas os biólogos advertem que ele poderá ser vencido pelos insetos, micróbios e vírus. . . Mas a alma não é imediatamente operativa: ne- cessita de faculdades, da inteligência e da vontade, necessárias para a vida humana. Estas emanam da alma sem com ela se confundir. A inteligência tem por objeto o verdadeiro; a vontade, o bem. Na al- ma,inteligência e vontade, o homem assemelha-se 27 muito aos anjos e a Deus. Uma santa conta que, ao ver uma alma, quis adorá-la, maravilhada. − Radicados no corpo estão os cinco sentidos ex- ternos: são eles os primeiros meios ou instrumentos do conhecimento humano. O que eles sentem é obje- tivamente verdadeiro: os apóstolos viram Jesus, não um fantasma. Mas a psicologia moderna alerta-nos para os possíveis erros dos sentidos, e dá exemplos. As ilusões, pessoais ou coletivas, são um capítulo importante da psicologia, da ascese-mística e da teo- logia; é o caso, por exemplo, das visões. − Também há sentidos internos, analisados na psicologia: senso comum, memória, fantasia, estima- tiva. Não é demais alertar para o seu bom uso, tanto dos sentidos internos, como externos. Pode radicar- se aí o mal de diversos gêneros, como veremos opor- tunamente. É bom lembrar ainda que o sentir humano se diferencia do sentir animal, pois o sentir humano é informado pela alma racional. Não esquecer que os antigos falavam de alma animal e de alma vegetal. Como ato humano, o sentir humano, tanto externo como interno, pode ser meritório ou pecaminoso. Basta lembrar o papel da memória e da imaginação na moral e na ascese. − O intelecto humano prende-se ao universal, ao verdadeiro, ao abstrato (que se abstrai do particular), à essência (oposta ao acidente, ao acidental) que, por exemplo, é aquilo pelo qual o homem é homem. − A vontade prende-se ao bem e goza de uma qualidade essencial: é livre. Isso, mesmo sendo uma 28 bela qualidade, traz ao homem enorme responsabili- dade. A teologia moral e a teologia espiritual ocupam- se muito disso. − A união do corpo e da alma é traduzida em ter- mos modernos na psicossomática. Esta teoria é im- portante quando se trata dos distúrbios entre alma e corpo, aos quais qualquer fiel e qualquer diretor de almas deve estar atento. − Há três dimensões na área do conhecimento e da vontade, envolvendo sentidos e sentimentos, en- volvendo os outros, a própria pessoa, o universo e Deus. A primeira idéia do homem veio de Deus: só a Ele compete definir, explicar,interpretar sua obra. “E Deus viu que tudo era bom”. Mas o homem errou. Deus dotou o homem de dons gratuitos, naturais e sobrenaturais, mas graça e pecado estão sempre no seu caminho. O homem, como criatura humana e filho de Deus, tem um destino eterno. Sua alma é imortal. Seu ideal é sempre o Paraíso, síntese suprema do bem, da fe- licidade. O homem naturalmente crê em Deus. Jesus, Deus e homem verdadeiro, é o novo Adão, protótipo do homem. Relembramos que o abandono destas noções tradicionais dificulta muito a compreensão de doutri- nas e fatos da revelação tais como encarnação, a pessoa de Jesus, sua morte, “descida aos infernos”, ressurreição, juízo particular e juízo final, nossa res- 29 surreição etc. A própria unidade do homem mal se explica por funções meramente do cérebro. O que constitui o “eu” da pessoa? − Veremos adiante como a antropologia cristã é fundamental para a cristologia, mariologia e hagiogra- fia.5 LEITURAS Gênesis: “Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vi- da e o homem tornou-se ser vivo. Deus criou o ho- mem à sua imagem, macho e fêmea os criou” (Gn 2,7 e 1, 27). Jó: “Pereça o dia em que nasci. Porque não morri ao deixar o ventre materno? (3,3). (Mas) sei que meu Redentor vive e no último dia verei a Deus, meu Sal- vador” (19,25). Eclesiastes: “Vaidade das vaidades! Que proveito tira o homem de todo o trabalho? (1,2-3). Por mais anos que o homem viva, deve lembrar-se que os a- nos sombrios serão muitos (11,8). Lembra-te do Cri- ador, antes que cheguem os dias de achaque (12,1). Teme a Deus, pois Ele julgará todas as coisas, mes- mo ocultas” (12,13-14). Tauler: “Ó alma, apressa-te a voltar para casa. Esquece tudo que viste cá fora. Vais encontrar Deus 5 R. ZAVALLONI: Le struture umane della vita spirituale, Morcelliana, 1971. 30 lá dentro. Desocupa o lugar: Onde não estás, Deus aí está!” Luíza, filha de Luís XV da França, ao ser repre- endida pela governanta, reclamou : - Não se esqueça que sou filha do Rei de França! A governanta, retru- cou: - E eu sou filha do Rei do Céu!. . . S. Catarina de Gênova viu uma alma na graça santificante e depois disse: “Se não soubesse que há um só Deus, pensaria que era outro Deus !” S. João da Cruz, mostrando a divinização da al- ma: “Deus comunica à alma seu ser, de sorte que ela parece ser Deus mesmo, possuir tudo o que Deus possui. Poder-se-ia dizer que a alma mais parece ser Deus do que alma” (Subida do Monte Carmelo). Isabel da Trindade: “Deus nos criou à sua ima- gem e semelhança. Tal foi o sonho do Criador: poder contemplar-se em sua obra, ver aí brilhar todas as próprias perfeições e beleza, como através de um límpido cristal. Um louvor de glória é uma alma que permanece em Deus.” Conclusão: Observe acima o duro realismo da vi- da, observe a esperança. Também o cristão otimista e espiritual terá sempre que mediar entre o super- homem de Schopenhauer e o homem psico- analizado de Freud, entre o naturalismo de Pelágio e o pessimismo de Lutero.6 6 Boa bibliografia sobre o homem: ALEJANDRO ROLDÁN: Ascética e Psico- logia, Livro Ibero Americano, Rio, 1969. LÉON BONAVENTURE: Psicologia e Vida Mística, Vozes, 1975. 31 3. JESUS CRISTO Foi no final da Idade Média que os autores espiri- tuais e os santos começaram a dar uma orientação mais cristocêntrica à espiritualidade. Começam as conhecidas devoções ao presépio, Paixão, SS. Sa- cramento e, tempos depois, ao Coração de Jesus. Além de indicar tais meios e outras devoções, deve- se destacar o papel fundamental de Jesus na santifi- cação dos fiéis. O princípio é a configuração com Cristo. Seremos santos na medida em que vivemos a vida de Cristo. São aduzidas três razões: Jesus é causa meritória da vida espiritual. É também causa exemplar. Exerce um influxo poderoso no Corpo Mís- tico. Os temas cristológicos que interessam à espiritu- alidade, além de muitos outros que dizem respeito à cristologia, são os sugeridos por J. Maritain: A VIDA DE CRISTO O primeiro passo é conhecer bem, pela leitura freqüente, os evangelhos. Ler atentamente os outros livros do Novo Testamento, principalmente as cartas de S. Paulo, onde se pode descobrir as interpreta- ções teológicas da Igreja Primitiva sobre os fatos principais da vida de Jesus: em Belém, Nazaré, vida pública, Jerusalém, Judéia, Galiléia, Samaria e final de sua vida. Aí veremos seu peregrinar, sua missão. Entre muitas interpretações, Paulo vai falar do “sacramento escondido. Do mistério de Cristo... no qual habita a plenitude da divindade”. Fala da “exce- lência do conhecimento de Cristo Jesus”. Pedro e Jo- 32 ão vão demonstrar sua fé, seu amor. Sua alegre es- perança aparece na sua escatologia e no apocalipse. 2. CAMINHO, VERDADE E VIDA Esta foi uma das definições que Jesus deu de si mesmo, além das figuras: luz, água, pão. “Ninguém vai ao Pai senão por mim”, afirmou categoricamente. Eis abase de toda espiritualidade. Jesus é a causa meritória, pois mereceu-nos to- das as graças, santificante e atuais, para a nossa salvação e santificação. Jesus é a causa satisfatória, como nos lembram o batismo, penitência e o sacrifício eucarístico. É causa exemplar pois é modelo vivo e perfeito, tanto que S. Paulo vai ordenar: “Sede meus imitado- res como eu sou de Cristo”. Seguindo este princípio Tomás de Kempis vai escrever sua célebre “Imitação de Cristo”. Os autores espirituais, aliás, demoram-se em explicitar as virtudes praticadas por Jesus em grau máximo: pobreza, obediência, paciência, fortale- za, caridade, perdão, pureza, amor aos pobres e aos pecadores, oração, veracidade. Todas elas têm e- xemplos marcantes nos evangelhos. S. Agostinho, em sua grande experiência, escre- veu: “Mas se o amas, segue-o" (i.é Cristo). “Eu o amo, dizes tu, mas por onde o seguirei? - Queres conhecer o caminho? O próprio caminho veio ao teu encontro!” 33 3. CABEÇA DO CORPO MISTICO Jesus, o Rabi, queria ser seguido, não só de per- to por apóstolos e discípulos, mas pelo povo, pela multidão. Basta ler o sermão da montanha, as bem- aventuranças. É, por vezes exigente: na caridade, no perdão, no levar a cruz: “Quem quiser ser meu discí- pulo, tome a sua cruz e siga-me”. “Este é o meu mandamento”... A espiritualidade sempre esteve a- tenta a isso. Os primeiros cristãos eram exigentes nestes preceitos. 4. A VONTADE DO PAI Jesus várias vezes mostrou-se determinado em cumpri-la, tanto que ensinou-nos a rezar: “Seja feita a vossa vontade...” E na Paixão: “Não se faça a minha vontade mas a vossa”. Em muitos santos fica clara esta fé decidida: fazer a vontade de Deus. Viam em todos os acontecimentos da vida um sinal desta von- tade, “beijando a mão que os feria”. 5. A IMITAÇÃO DE CRISTO Desde o início, seguir e imitar Cristo tem sido a tônica de todas as escolas de espiritualidade, a partir do martírio e do deserto. A devoção do presépio, a dedicação à vida apostólica, o amor à cruz, à Euca- ristia. A virgindade, o celibato, a renúncia ao mundo foram as tônicas da vida religiosa inicial. A obediência levava a ver na vontade dos diretores espirituais e dos superiores a vontade de Deus. Os leigos talvez sintam dificuldades em imitar, no mundo, tais exemplos de vida. Mas não faltam, nos últimos séculos, exemplos de santos leigos: Frederico 34 Ozanam, Domingos Sávio, Contardo Ferrini, Gema Galgani, Ana Taigi, os Videntes de Fátima, Elisabeth Leseur, Edel Quin, sem citar os muitos mártires da África, Ásia e até no Brasil. Mas os leigos também são chamados à santidade, como acentua o Vaticano II no Decreto sobre os Leigos, n. 4. Tudo isto mostra que é possível esta “união com o Cristo de sua vida”. CONCLUSÃO: Jesus é o caminho, verdade e vi- da, também no que se refere à perfeição cristã: “Eu sou a videira e vós, os ramos. Quem fica em mim produz muitos frutos”. Jesus é a garantia: “Pai, aque- les que me deste... estejam comigo, para que vejam a minha glória”. Todos os que seguimos de perto o Cordeiro estaremos na multidão dos eleitos. 35 4. O ESPÍRITO SANTO Falar de espiritualidade é falar do Espírito Santo. Nas primeiras páginas da bíblia “um vento impetuoso soprava sobre as águas”. Jesus logo afirma que “o Espírito sopra onde quer”. Esta ação muito subtil e poderosa vai esten- der-se na História, desde a Igreja primitiva até nossos dias, com uma ação privilegiada nas almas místicas. Remeto à dogmática e ao CIC quanto às doutri- nas fundamentais. Um motivo, talvez, da dificuldade do Espírito San- to sejam as imagens muito subtis usadas: a pomba – que lembra o Gênesis − e o vento tempestuoso, o ruído, as línguas de fogo, fenômenos próprios das teofanias. A renovação carismática trouxe de volta o Espírito Santo, com seus carismas, seus dons de o- ração, de línguas, de cura. As Igrejas Orientais têm em grande conta o Espírito Santo. Vejamos alguns pontos importantes, inclusive para a mística. S. Paulo, citando Is 32,15 diz aos Coríntios que todo cristão tem o Pneuma e seus dons (1Cor 12) Cita os efeitos extraordinários dos quais dá exem- plos. Toda a força da comunidade depende dele. Le- va o fiel a clamar: Abbá, Pai! Dá testemunho que Je- sus é Filho de Deus (Gl 4,6; Rm 8,14). Sua ação mo- ve a missão. E ressalta: “O Senhor é o Espírito”. O Senhor opera pela força do Pneuma. A unidade dos membros é operada por Ele. 36 O Espírito Santo, tão importante na teologia ori- ental, ficou em segundo plano na teologia ocidental. O pentecostalismo, tanto evangélico como católico, trouxe de volta não só a atenção ao Espírito Santo, mas também aos seus dons e carismas: dom de ora- ção, de cura, de línguas. Este movimento ensina a oração no Espírito e a ler a Bíblia. SUA FUNÇÃO Além da célebre questão da processão, do Pai pelo Filho ou do Pai e do Filho, discute-se a função do Espírito Santo na economia da salvação. Pergun- ta-se: a ação da Terceira Pessoa da Santíssima Trin- dade, na Igreja e em cada pessoa, é exclusiva dele ou é comum às Três Pessoas, e atribuída ao Espírito Santo? Esta opinião é mais aceita na teologia ociden- tal A doutrina da inabitação do Espírito Santo é pací- fica, pois escreve S. Paulo: “Não sabeis que sois templos de Deus e que o Espírito Santo habita em vós?” (1Cor 3,l6; 6,19). Já a ação santificadora é explicada de duas ma- neiras: o Espírito Santo atualiza a ação salvífica de Cristo na Igreja e em cada cristão, mas Ele o faz por uma ação própria, de causa eficiente, que produz um efeito, ou pelo modo expresso com a imagem da ina- bitação: o Espírito, que se comunica, é dado pelo Pai e pelo Filho. É surpreendente quantas vezes o AT refere-se ao Espírito de Javé. É mais surpreendente ainda a importância dada por Jesus e pelo NT ao Espírito 37 Santo revelando-o como Pessoa. Os textos bíblicos falam mais claramente da divindade do Espírito Santo do que de sua “personalidade”. É uma força ativa pe- la qual o Pai e o Filho realizam o plano salvífico. SUA AÇÃO A teologia da graça e da justificação fala de um dom não criado, que é a inabitação, e de um dom cri- ado, nova realidade e qualidade permanente no ínti- mo do homem, que é a graça santificante. Mateus e Marcos sublinham mais o lado extraor- dinário: o Espírito é força de Deus. Frisam o aspecto neotestamentário: Jesus possui o Espírito. O Senhor ressuscitado dá a força do Espírito, que aparece no dom das línguas, nas profecias, no anúncio. S. Paulo mostra o Espírito com base na vida cristã: determina a sua existência. O termo Pneuma tem sentido heterogêneo: é de Deus, do Cristo, do Senhor, é Espírito Santo. Toda a força da comunidade depende dele. Ele leva o fiel a clamar Abbá, Pai! Dá testemunho que Jesus é Filho de Deus (Gl 4,6; Rm 8,14). Sua ação move a missão. Os frutos do Espírito são normais no cristão (Gl 5,22). João fala do Espírito da verdade (Jo 14,17). Co- mo Jesus, também o Espírito é enviado pelo Pai para ensinar, testemunhar, dar vida (Jo 7,36). O Paráclito, Advogado, Intercessor, é chamado de outro Paráclito (Jo 14,16). Jesus, que era o Intercessor, envia outro Consolador. João ainda alude ao Espírito quando cita os “rios de água viva” que jorram de Cristo. Um teó- logo comenta: “O que Jesus foi para os discípulos, o 38 Espírito é para a Igreja”. Outro acrescenta: “Jesus foi para o céu e deixou Igreja e mundo para o seu divino Espírito operar”. O Espírito é identificado com o Amor: “Deus é amor e o que vive no amor permanece em Deus e Deus nele" (Jo 14,23). Deus habita dentro da alma em graça. Esta é uma verdade que tem ocasionado lindas páginas dos melhores escritores espirituais. Pelos dons da sabedoria, ciência, inteligência faz ele dos místicos verdadeiros sábios, mesmo sem estudo, como aconteceu com S. Geraldo, Sta. Teresinha e muitos outros santos. OS DONS DO ESPÍRITO Este tratado interessa sumamente à mística, quetrata especialmente dos dons. O Espírito Santo é chamado Dom do Deus Altíssimo no hino “Veni, Cre- ator”. Mas ele próprio dá seus sete dons, cumprindo a profecia de Isaías cap 11: “Sairá um rebento do tron- co de Jessé. Repousará sobre ele o Espírito do Se- nhor, espírito de sabedoria e discernimento, espírito de conselho e fortaleza, espírito de conhecimento e temor do Senhor”. Deve-se notar que, embora o texto seja messiâ- nico, a Tradição estende-o aos fiéis em Cristo. Toda a perfeição em Cristo encontra-se nos seus mem- bros, se é algo comunicável. Os dons serão tratados especialmente na mística. AS BEM-AVENTURANÇAS São mais perfeitas que os frutos: são o ponto culminante do Sermão da Montanha. Foram elas cer- 39 tamente que inspiraram a vida religiosa, principal- mente a monacal, pois, para quem se acha fraco nes- te mundo, o melhor é afastar-se dele, fugindo se ne- cessário da ocasião próxima do pecado, como manda a Moral. A só leitura das oito bem-aventuranças insi- nua isso e o grau de perfeição que elas exigem. “Bem-aventurados os pacíficos. . . os puros de cora- ção. . . os que choram. . . os pobres de espírito, os misericordiosos, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os perseguidos” (Mt 5, 3-10). Sto. Tomás faz admirável exposição das bem- aventuranças na sua Summa Theologica, I II, 69, 3- 4. Mostra como correspondem às virtudes teologais e morais. E diz que a oitava bem-aventurança, a dos perseguidos, é a mais perfeita, pois abarca as outras no meio das maiores dificuldades. OS FRUTOS Os frutos distinguem-se dos dons, como os frutos dos ramos. São estudados com relação às virtudes, como veremos logo. Sto. Tomás (II-II, 8, 7) estuda detalhadamente os frutos, relacionando-os com as bem-aventuranças e dons. Assim, a fé e a alegria correspondem ao entendimento e à segunda bem- aventurança, à qual corresponde também o dom da ciência. À terceira bem-aventurança correspondem o dom do temor e os frutos da continência e castidade. E assim Sto. Tomás vai tecendo um nexo muito razo- ável das bem-aventuranças, dons e frutos, mostrando também os vícios opostos. 40 Os doze frutos são: fé, alegria, continência, cas- tidade, caridade, gozo espiritual, paz, bondade, be- nignidade, mansidão, paciência e longanimidade. Os teólogos mostram a diferença entre eles, indicando os correspondentes em grego, ou latim. Nem sempre as línguas atuais dão a acepção exata dos termos originais. O AMOR “Deus é amor”, proclama Primeira Carta de João. E o amor é justamente atribuído ao Espírito Santo. Tudo o que se diz do amor diz-se também do Divino Espírito, inclusive o Hino da Caridade de 1Cor 13: “Aspirai aos dons mais altos. Ainda que eu fale a lín- gua dos homens e dos anjos. . . se não tivesse a ca- ridade eu nada seria. Agora permanecem fé, espe- rança e caridade. A maior delas, porém, é a caridade” Vendo, nos Documentos Autobiográficos, o belo tes- temunho de Sta. Teresinha sobre este tema, vê-se bem como, iluminada pelo Espírito Santo, descobriu o caminho certo e ensinou-o aos doutores, tornando-se ela mesma Doutora. “Eu serei o Amor”, proclamou ela. Terminando, a piedade tradicional faz muito em ensinar-nos a rezar sempre: “Vinde, Espírito Santo, enchei o coração dos vossos fiéis” ou: “A nós descei, Divina Luz, em nossas almas acendei o amor de Je- sus”. Uma simplicidade que muito nos ensina. 41 LEITURAS Os Santos Padres, principalmente orientais, têm constantes e excelentes testemunhos sobre a Santís- sima Trindade e o Espírito Santo presentes em nós. Sto. Inácio de Antioquia chama os cristãos de theóphoroi, ou portadores de Deus. Sta. Luzia: “As palavras não podem faltar àqueles que têm em si o Espírito Santo”. S. Basílio: “O Espírito Santo, por sua presença, torna-nos mais e mais espirituais e con- formes à imagem do Filho Único.” Sto. Ambrósio diz que o recebemos no batismo. Sto. Agostinho: “Não só a graça, mas Deus nos deu o Santo Espírito e seus sete dons. Sto. Epifânio: “O Espírito Santo, que falou nos apóstolos e habita nos santos...”7 Sto. Tomás: “Os dons distinguem-se das virtudes: estas realizam atos de um modo humano; os dons, de modo sobrenatural. Assim, os dons são superiores às virtudes: agem de modo mais alto. Os dons me- dem-se por regra distinta daquela da virtude humana: a divindade, participada pelo homem, para que não opere humanamente, mas por Deus. O dom não é mais perfeito em todas as condições, mas no modo de operar” (III das Sentenças, d. 34, q. 1 e seguintes). Leão XIII: “O justo, que vive da vida da graça e opera pelas virtudes, tem absoluta necessidade dos sete dons. Por eles o espírito do homem fica elevado e apto para obedecer com mais facilidade e presteza às inspirações e impulsos do Espírito Santo. São eles 7 GARRIGOU-LAGRANGE, Les trois âges . . . , cap. IV, pg. 129s. 42 de tal eficácia que conduzem ao mais alto grau de santidade: permanecerão integralmente no céu” (Di- vinum illud Munus, final) Paulo VI: “À cristologia e à eclesiologia do Concí- lio devem suceder um novo estudo e um novo culto do Espírito Santo”. (Audiência de 6-6-1973) Cardeal Suenens: “Creio chegada a hora para nós, latinos, pormos em relevo o lugar e função do Espírito Santo, porque os orientais sempre deram im- portância a esta doutrina. ” (O Espírito Santo, nossa Esperança, pg. 15) 43 5. A IGREJA Este tema, muito rico, geralmente é remetido para a Eclesiologia, parte da Teologia Dogmática. Aqui entendemos por Igreja tanto a Igreja universal, como a particular, local e mesmo as comunidades. Na vida concreta, tanto cristã como espiritual, a idéia de Igreja é a pedra de toque para a vida cristã e espiritual. Assembléia, esposa, mãe, mestra, escola de fé, amor e muita esperança, e fonte de todas as virtudes, tem chamado a atenção do mundo. Talvez bastasse ler a “Lumen Gentium”, a Constituição sobre a Igreja, mas cito um exemplo: J. Maritain, que era conhecido na Igreja, recolheu-se como leigo na hu- milde comunidade dos Irmãozinhos de Jesus. São dele as teses que seguem, sobre a Igreja. 1. Os membros da Igreja, nesta terra, são todos pecadores, mas a Igreja é sem pecado. 2. A Igreja tem personalidade: é uma pessoa. 3. É infalível. 4. É a plenitude do Cristo: o pléroma. 5. É penitente e sofredora. 6. A Igreja está no tempo e na glória. 7. Pedro é a autoridade espiritual e temporal. 8. A Igreja tem uma estrutura. 9. Tem presença visível e invisível. 10. A pessoa da Igreja é indefectível; as pessoas, não. 11. Ela tem uma História. 12. Deve-se distinguir entre Igreja e pessoas da Igreja. 44 Dentro destas teses estão as experiências positi- vas e negativas de cada um e da História. Quer quei- ramos ou não, é dentro dela que temos nossa salva- ção e santificação: “Fora da Igreja não há salvação!” É a nova Arca no dilúvio deste mundo. Talvez alguém se sinta rejeitado, mal amado na Igreja: não se esqueça das rejeições clássicas, a co- meçar com Jesus. Santa Joana d‘Arc foi condenada pelo tribunal eclesiástico e pelo bispo. Galileu foi condenado pelo Santo Ofício. S. Afonso foi excluído da sua Congregação pelo Papa. Que leigo ou clérigo não se sentiu excluído na sua comunidade ? Quem não encontrou pessoas que apontam erros na comunidade como causa do seu afastamento ? A própria eucaristia, que é o ápice da unidade, não é causa de separação ? Comunidade de santos e pecadores! Problemas análogos se de- ram com os Papas do último século. A exemplo dos santos, a única atitude de quem aspira à perfeição é demonstrar respeito e amor pe- los que dirigem a Igreja. S. Paulo pede aos tessaloni- censes “consideração pelos superiores e guias no Senhor... amor especial por causa de seu trabalho” (1 Ts.5,l2s). A obediência é virtude do próprio Cristo. Vimos o exemplo de S. Afonso acima. Sua resposta: “Vontade do Papa, vontade de Deus!” É assim queprocediam os santos. 45 6. MARIA MARIA, EXEMPLO DE PERFEIÇÃO. A Mariologia trata dos aspectos teológicos bási- cos de Maria, como os privilégios da Imaculada Con- ceição e da Maternidade Divina, das virtudes, da in- tercessão, do culto. Aqui trataremos apenas de dois aspectos: Maria, como modelo de perfeição e culto mariano. Isto é, veremos como Maria se reflete em nossa vida e como podemos responder com nossa devoção. Maria, por assim dizer, está entre Jesus e os san- tos, como exemplo de mulher simples de Nazaré, mas mulher cheia de fé em Deus, e de confiança em Jesus, seu filho. A Mariologia, em seus princípios, foi tratada com especial atenção no célebre capítulo VIII da Constituição Lumen Gentium e, assim, inserida no conjunto da Igreja. O culto mariano foi objeto da exor- tação de Paulo VI, Marialis Cultus, de 1974. 8 Em que sentido Maria é exemplo de santidade e perfeição para nós? A pergunta é muito pertinente pois, se olharmos Maria como Mãe de Deus, Imacu- lada, Sempre Virgem, Perfeitíssima, Assunta aos Céus, sua vida e exemplos podem parecer inacessí- veis. A Lumen Gentium tratou indiretamente desta questão quando fala da missão de Maria na econo- 8 É enorme a bibliografia mariana, nem sempre acessível em portu- guês. Indicamos: SANTO AFONSO: Glórias de Maria Santíssima, Ed. Santuário. RANIERO CANTALAMESSA: Maria, um espelho para a Igreja, Ed. Santuário, 1992. CARLOS IGNACIO GONZÁLES: Maria, evangelizada e evangelizadora, Ed. Loyola, 1990. RENÉ LAURENTIN: A questão marial, Ed. Paulistas, Lisboa, 1966. JOSÉ CEGALLA: Maria, exemplo do cristão, Ed. Santuário, 1976. 46 mia da redenção e na Igreja. Daí que certamente ela realizou esta missão com excelentes exemplos de sua vida de fé e virtudes, embora filha humilde do Povo de Israel. Mostra-se isso: − Num sentido muito humano, como mulher sim- ples e pobre, Maria é exemplo de virgem, esposa e mãe e, podemos acrescentar, de viúva, depois da morte de José. − Não é difícil mostrar que foi exemplo de fé e confiança, como na Anunciação, no Calvário, onde mostrou também sua esperança e caridade, como na Igreja nascente. − As virtudes morais brilharam em sua vida: a humildade, que ela demonstrou no “Magnificat”, sua fortaleza. Foi mulher sábia, prudente e justa: “Porque fizeste assim conosco?” Seu amor materno aparece na cena em que procura Jesus, e na cruz. − Como se isso não bastasse, podemos ressaltar aqui gestos, palavras, atitudes suas, no sentido bíbli- co e, especialmente, evangélico. Maria é a cheia de graça, que nos ajuda a encon- trar a graça. Como disse S. Bernardo: “Senhora, a- chaste graça não só para ti, mas para todos nós”. Es- ta graça ela foi logo levar a João Batista e Isabel. Maria, com os anjos em Belém, dá glória a Deus: ali está o Messias, o Salvador, o Príncipe da Paz que Ela veio trazer aos homens “a quem Deus quer bem”. É a oração de louvor sempre em seus lábios. 47 Proclamada “bendita entre as mulheres”, “sua al- ma engrandece ao Senhor” que “olhou a humildade de sua serva”, canta, repetindo o cântico da mãe de Samuel, onde aparece a mensagem da libertação, do goel libertador. Aquela que acreditou, mesmo nas ocasiões mais difíceis de sua vida: por isso é proclamada feliz. A devoção mariana traz paz, felicidade a seus devotos. “Conceberás e darás à luz um filho”: quis ela rea- lizar-se apenas como virgem, um ideal único em Isra- el: Deus a fez realizar-se também como esposa e mãe. Nisso tudo é exemplo cabal “entre as mulhe- res”. Seus filhos tornam-se também pais e mães espi- rituais. “Meu filho!”: belo título que Maria dirigiu a Jesus, que lhe indicou logo a “vontade do Pai”. Assim se re- vela a missão de Jesus e de Maria, mais importante que a vida em Nazaré, onde vão mostrar obediência e trabalho. De onde certamente irão “todos os anos” em romaria a Jerusalém, como observantes da Lei. É ali que, durante trinta anos, Maria nos ensina a mis- são de esposa e mãe. “Quem é minha mãe?”, pergunta Jesus. E logo responde: “Aquele que ouve minha palavra e a põe em prática”, o que vale perfeitamente a Maria. Não dissera ela: “Faça-se em mim segundo a tua pala- vra”? “Junto à cruz”: foi o seu sacrifício máximo. A nova Eva não podia estar longe da árvore da cruz e, em vez de dialogar com a serpente, ouvir as filiais pala- 48 vras: “Eis aí tua mãe!” Da árvore da cruz colhe o “bendito fruto” da salvação. Ela, primeiro que os dis- cípulos, “toma a cruz” e segue Jesus na via-sacra. “Mulher”: uma palavra rica em significado bíblico na boca de Jesus. Adão é homem; Maria é mulher, que colhe os frutos da vida e se torna mãe espiritual de todos nós. Mãe da esperança: o evangelho não conta, mas certamente, como toda mãe que perdeu um filho vio- lentamente, vigiou duas noites, esperando a ressur- reição: “ao terceiro dia eu ressuscitarei”. “Perseverante na oração”, com os apóstolos, com a Igreja nascente. Recebe o Espírito Santo, segundo a promessa: “O Espírito Santo descerá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra”. Co- bre-a agora com a luz das línguas de fogo. Cheia de graça, ficará ela cheia do Espírito do Altíssimo. Assunta ao céu. Embora não esteja definido que Maria morreu, ou adormeceu, é certo que foi levada ao céu, como um novo Elias. Como Jesus, ela nos mostra o caminho. CULTO MARIANO Foi muito bem estabelecido pela Exortação “Culto Mariano”. Logo no início, Paulo VI descreve o culto oficial da Igreja, com suas numerosas festas, sinais seguros da antigüidade e legitimidade deste culto. E diz: “A devoção a Maria é elemento da genuína pie- dade cristã”, segundo o princípio: “a lei de orar é a lei de crer”. E repete, em parte, o que dissemos acima: 49 Maria é modelo de Igreja; a Virgem que sabe ouvir, orante, operante, fecunda em vida espiritual. A piedade mariana deve ter três notas; deve ser trinitária, cristológica, eclesial. O culto deve ter cunho bíblico, litúrgico e ecumênico. Eis aí os modelos. Maria é exemplo de mulher: mulher de hoje e e- terna, como virgem, esposa e mãe. Mulher de carida- de, serviço, discipulado perfeito de Cristo. Se é possível escolher entre tantas orações mari- anas, apontam-se, como exemplos, o “Anjo do Se- nhor” e o Rosário. Poderia também apontar a oração tradicional, antiga de dezessete séculos, pelo menos: “Debaixo de vossa proteção”, que prova a fé na inter- cessão de Maria. CONCLUSÃO Todo o exposto acima indica claramente Maria como caminho de salvação e santificação. “A piedade para com a Mãe do Senhor torna-se, pois, para o fiel, ocasião de crescimento na graça divina”. “Esta graça (vinda de Maria) reveste o homem e torna-o conforme à imagem do Filho de Deus”, “auxílio poderoso para a conquista da própria plenitude” (n. 57). É evidente que a mediação de Maria é subalterna à mediação do único intercessor: Maria é caminho para Jesus. Com razão escreveu Santo Afonso: “O devoto de Maria não se perde nunca!” Poderíamos acrescentar: “O fiel devoto sempre se santifica”. 50 7. OS SANTOS QUE É SANTIDADE Eis um tema que lembra Abraão: “Olha para o céu e conta as estrelas se fores capaz!” (Gn 15,5). Fácil para nós, católicos; difícil para um evangélico. Aqui já lembro a delicadeza do tema ante a exigência do ecumenismo. (Vat.II, UR, 5s) Acho que os santos foram aqueles que acultura- ram, em sua vida e em seu tempo o evangelho, e praticaram perfeitamente o que aqui se expõe. Na Bíblia é fácil achar o termo santo ou um correspon- dente. Santo é aquilo que está afastado, separado do impuro ou profano, reservado para o serviço de Deus. Deus é Santíssimo por estar nos altos céus: “Santo, Santo, Santo”. Jesus é santo porque é o Verbo En- carnado. No Monte Tabor mostrou ele sua glória, ao mesmo tempo que conversava com os santos Moisés e Elias. Os três santos apóstolos, separados dos ou- tros, entenderam a glória e a paixão só depois daressurreição. Os cristãos freqüentemente são chamados san- tos porque, pelo batismo, foram consagrados a Cristo (Rm 1,7; 1Cor1,2). O Vaticano II diz que “Cristo, com o Pai e o Espí- rito Santo, é o único santo” e que “todos são chama- dos à santidade”. Os teólogos explicam, distinguindo a santidade ontológica, que é de todos fiéis, e a san- tidade moral, que é a dos Santos, principalmente os reconhecidos pela Igreja. 51 A santidade é uma, mas diferencia-se segundo a vocação e a situação de cada um: há santos de todos os tempos, idades, ofícios, continentes. Os santos reconhecidos, não se sabe por que, costumam flo- rescer mais entre os religiosos e em certos países. Hoje procuram-se muito santos nos países do Tercei- ro Mundo, entre os leigos, casados e operários. Nem todos são apóstolos, profetas, mártires. Podem-se ver três dimensões ou linhas na santi- dade: Linha do seguimento que lembra a espiritualidade dos tempos apostólicos: “o caminho”. Linha da parusia ou escatológica, dos discípulos que esperavam a volta de Cristo: “Estai prepara- dos...”. O que faziam nas vigílias, olhando para o Ori- ente, donde surgiria o Sol da Justiça. Linha eclesial: de Igreja, comunidade, caridade. CULTO DOS SANTOS Uma questão estudada e questionada é a do cul- to aos santos. São clássicos os três modos de cultu- ar: veneração, invocação e imitação. A hagiografia, desde os apóstolos, está repleta de exemplos: “Sede meus imitadores como eu sou de Cristo”. Nem sem- pre o povo humilde segue as normas do culto e, no modo popular de dizer, “adoram os santos”. Mesmo os bons religiosos devem precaver-se contra certa forma de infantilismo e até superstição. O Vaticano II, depois de tratar da vocação univer- sal à santidade (LG, 39s), lembra os princípios: Bí- 52 blia, confissão e vida em Cristo. Penso ser dispensá- vel aqui lembrar que Jesus é o nosso único mediador (1Tm 2,5; Hb 8,6; 9,14s.). Nem se fale na justa medi- da que se deve ter no culto das relíquias e das ima- gens. O culto de imitação também oferece seus percal- ços: é uma das objeções dos que propugnam uma espiritualidade moderna, atualizada. Nem tudo po- demos imitar nos santos: Sto. Antão no deserto, S. Luís, rei de França, os mártires... Seja como for, a Igreja manda buscar nos santos “o exemplo de suas vidas, o consórcio na comunhão e o auxílio na inter- cessão” (LG. 51) O capítulo das devoções é grande na religiosida- de popular, como sabemos. Há críticos que ironizam: a religião católica resolveu a tentação primordial do politeísmo com a corte de Jesus, com Maria, anjos e santos. Uma devoção imemorial é a leitura da vida dos santos. As Atas dos Mártires atestam isso. Sto. Ata- násio escreveu a vida de Sto. Antão. Sto. Agostinho escreveu sua autobiografia, uma análise psicológica do caminho da fé. Dele ficou a célebre frase: “Se es- tes e estas puderam, porque não tu?” Certamente no céu um belo encontro será com aqueles que nos aju- daram na conversão e na fé. A Carta aos Hebreus cita a fé exemplar dos Patriarcas (Hb 11). Junto com o Cordeiro cento e quarenta e quatro mil que traziam na fronte o nome do Cordeiro e seu Pai: “Seguem o Cordeiro para onde quer que vá”: são imaculados (Ap 14,1.4s.). 53 8. HOMEM DIANTE DE DEUS Depois de tratar de princípios tão elevados, vol- tamos ao chão da terra. Veremos agora o homem, ao contrário dos santos, muito frágil, lento no caminho de Jesus. Vimos as qualidades de sua alma; obser- vamos agora seus defeitos, empecilhos, vícios. A Te- ologia Moral tem tratados sobre tudo isso, terminando no tratado sobre o pecado. Supõe-se aqui que, os que aspiram à perfeição, tenham meio caminho an- dado e tenham já meios de vencer com certa facilida- de os obstáculos graves. Como muitos de nós ainda estamos na via purgativa, aqui vão algumas conside- rações. Primeiro é bom lembrar-se que a graça não des- trói a natureza e que, mesmo regenerados pela gra- ça, continuam os instintos primordiais de conserva- ção própria e conservação da espécie, que não po- dem ser completamente anulados. Partimos da afirmação: “Tudo o que há no mun- do: concupiscência da carne, dos olhos e orgulho da vida, não vem do Pai, mas procede do mundo” (1Jo 2,16). E adianto que os três votos religiosos procuram obviar a estes obstáculos. CONCUPISCÊNCIA DA CARNE Trata-se do prazer que não é mau em si mas que, com o mau uso, afasta de Deus e leva ao pecado. Pode ser o prazer sensual da comida ou bebida, uso dos outros sentidos, pode ser o prazer sexual. Não esquecer que os sentidos protegem nossa seguran- ça, por exemplo, o ouvido ou os olhos. 54 − Já vimos como entramos no contato com o mundo pelo sentidos externos: não se cansam eles de ver, ouvir, tatear. Quanto aos internos, então, a memória, a fantasia e outros aguçam nossa sensibili- dade, emotividade e afetividade, que a melhor ascese não pode ignorar. É velha história: “Cresceu a malda- de dos homens e os projetos do seu coração tendem para o mal” (Gn 6,5). Daí a célebre seqüência: pen- samentos, desejos, ações, aos quais se pode acres- centar as omissões, os sentimentos. − Os livros de ascese, antigos e modernos, estão cheios de conselhos sábios nesta delicada matéria, hoje com a ajuda da psicologia e até da sociologia. Os métodos não são infalíveis, e histórias recentes mostram surpresas entre bons elementos da Igreja ou da comunidade que se extraviaram. A ampla liber- dade hoje protege mal. A força de persuasão do mundo, a mudança do sentido do pecado, a espiritua- lidade muito aberta, os problemas até de fé: tudo leva à defecção. “Quem está de pé veja que não caia”. Todos podemos contar muitos casos a respeito. “Eras tu, meu companheiro, com quem conversava no tem- plo de Deus!” CONCUPISCÊNCIA DOS OLHOS Trata-se da curiosidade doentia e do amor desor- denado dos bens terrenos. Não se refere à sã curio- sidade, à qual é atribuída a origem da filosofia, das ciências. “Os olhos não se cansam de ver, nem o ou- vido não se farta de ouvir” (Ecl 1,8). Tal problema se estende hoje a todos os meios de comunicação: to- dos temos experiência disso. O Decreto Inter Mirifica 55 do Vaticano II, n. 3, manda “pregar com o recurso também dos instrumentos de comunicação social”, o que se subentende sua produção e uso. Sem eles ficaria muito difícil a vida social hoje. Onde achar o meio termo? O tratado da consciência, na Moral, e a ascese vão dar os meios. A conversão contínua de- verá corrigir os muitos desvios, dos quais nem um anacoreta está livre. − O amor desordenado do dinheiro é outro capítu- lo difícil na vida moderna, que gira em torno ao di- nheiro, sem o qual não se vive hoje na civilização ur- bana. O capitalismo domina de tal maneira que é im- possível ignorá-lo. Ficam longe os tempos em que o monge era expulso por ter guardado uma mísera mo- eda. O esforço de desapego, no entanto, sempre se impõe. Ainda vale o mandamento do Senhor: “Dá conta da tua administração!” (Lc 16, 2). E mais: “Tive fome e não me deste de comer!” A fome das riquezas leva à dureza do coração, à usura, à ganância, ao vício capital da avareza, impedindo o repartir os bens. Na Segunda Parte veremos o problema da riqueza e da pobreza social, um problema moderno quase inso- lúvel. A brecha entre ricos o pobres se alarga cada ano mais. SOBERBA DA VIDA Orgulho, o primeiro vício capital. “O orgulho é a depravação mais profunda”, sentencia Bossuet. A magnificência raia no desprezo: pessoas sensatas abominam os soberbos. Jesus insiste na humildade. Mas o inimigo é insidioso, neste mundo que admira o poder e a fama. Esta, é claro, não pode chegar ao 56 extremo de destruir a auto-estima, mas daí autovalo- rizar-se raia na mentira. É o pecado dos anjos maus: “Não servirei”, e de Adão: “Sereis como deuses”. “Deus resiste aos soberbos”, diz Tiago 4,6. Todos os Mestres da espiritualidade tocam neste tema básico na moral e vida espiritual. Antigos Mes- tres estãoatentos na área do orgulho, e têm mesmo palavras candentes. Aliás Jesus foi duro quanto ao orgulho farisaico. Os remédios são: Dar sempre a Deus toda glória. Atribuir-lhe as próprias qualidades: “Que tens que não recebeste?” (1Cor 4,7). A obedi- ência do religioso é antídoto certo. “Se queres cons- truir alto, rebaixa bem os fundamentos”, aconselhava S. Bernardo. OS INIMIGOS EXTERNOS Como se não bastasse a concupiscência radica- da no interior do homem, sobram-lhe inimigos exter- nos: a própria pessoa, o mundo, o demônio. Esta é a tríade clássica da antiga ascese. − Do homem de certa forma já tratamos acima. Mas vale sublinhar o dito de Jesus, citando Miquéias 7,6: “Os inimigos do homem serão seus próprios fa- miliares” (Mt. 10,36). Os inimigos estão dentro de ca- sa, dentro do próprio eu, no fato de ser homem. A história de Adão mostra isso. Aqui volta toda a histó- ria da salvação, desde Adão, a história de todas as fraquezas do homem e da humanidade. “Não chega- mos ao pessimismo de Lutero que afirmava a total corrupção do homem”, escreve A. Tanquerey. O ho- mem pode fazer algum bem, com o concurso natural 57 de Deus, mas é preciso o auxílio preternatural para observar toda a lei e repelir todas as tentações gra- ves. Veremos esta teoria na secção da graça e dos méritos. − O mundo é outra realidade contraditória. Obra maravilhosa de Deus, pode ser uma via para chegar ao seu conhecimento. Mas já Isaías 13,11s. distin- guia o mundo sujeito à corrupção. S. João tem sua posição marcante sobre o mundo e deixa para o ou- tro mundo a solução (Jo 13,1; 1Jo 5,19 e Apocalipse; 1Jo 5,19). O leigo, hoje imerso neste mundo onde se mistu- ram coisas boas e más, como deve proceder? Fugir do mundo no estilo monástico e anacorético? Lem- brar-se que Sto. Antão deixou o deserto para ir con- firmar os irmãos na fé, em Alexandria. João, cAp 17, põe na boca de Jesus a fórmula: Estão no mundo mas não são do mundo. Voltaremos a este tema ao tratar da espiritualidade moderna. A clausura dos antigos mosteiros e conventos ti- nha muito que ver com as duas primeiras tentações. A nova espiritualidade tem reformulado estes aspec- tos. − O demônio passa a ser a personificação das forças do mal. Hoje meio esquecido, volta ele de ou- tras formas, inclusive em religiões e seitas que lhe dão muita atenção. “Rezo ao diabo: ele é poderoso e ajuda muito”, disse alguém num terreiro. A religião dá meios suficientes para anular o demônio: é só saber usá-los. 58 Alguém disse: “O demônio é um leão: na jaula; é só não facilitar com ele”. Combine-se isto com o que diz Pedro: “Eis que o vosso adversário, o diabo, vos rodeia como um leão” (1Pd 5,8). O que mostra bem as manhas e a violência deste inimigo ancestral. Os meios para afugentá-lo não mudaram desde os tem- pos primitivos da Patrística, embora um tanto suavi- zados hoje. Já Sto. Antão o enfrentava diariamente no deserto que é o seu habitat bíblico. Disse alguém que maior manha do demônio é fazer que se esque- çam dele. Lembro que o povo não abandona o medo antigo do espírito das trevas: o exorcismo ainda faz parte do arsenal dos cristãos. A bênção das casas, da água benta ainda lembra isso. Sta. Teresa, com toda sua sabedoria, não se dedignava de recomendar a água benta. O PECADO Eis outro tema que parece mais próprio da Teolo- gia Moral, mas que interessa muito à área da ascéti- ca e mística. Supõe-se que os que entraram na vida ascética e na via purgativa já tenham abominado todo o pecado mortal e pecado venial deliberado; mas nem o progresso espiritual os livra de provações e mesmo tentações, principalmente na noite dos senti- dos e na noite do espírito. A fuga das menores faltas depende de um combate sem tréguas, como alertam os Mestres espirituais. Os entendidos alertam para o perigo do escrúpulo, que exige um diretor espiritual capacitado. 59 LEITURAS Sta. Teresa fala do pecado venial deliberado: “É como se alguém dissesse: Senhor, apesar de esta ação vos desagradar, não deixarei de a fazer. Não ignoro que vós a vedes, sei que vós não a quereis, mas eu prefiro a minha fantasia e a minha inclinação. E seria coisa de nada proceder desta sorte? Quanto a mim, por mais leve que seja a falta em si mesma, acho, pelo contrário, que é grave e muito grave”.9 Sta. Catarina de Gênova: “Se a alma descobrisse outro purgatório mais terrível, nele se precipitaria, im- pelida pela impetuosidade do amor entre Deus e ela, a fim de se livrar rapidamente de tudo o que a separa do Sumo Bem”.10 Pe. Lallemant: “A ruína das almas vem da multi- plicação dos pecados veniais, que causam a diminui- ção das luzes e inspirações divinas, das graças e consolações interiores, do fervor e coragem para re- sistir aos ataques do inimigo. Donde se segue a ce- gueira, a fraqueza, as quedas freqüentes, o hábito, a insensibilidade, porque, contraída a enfermidade, pe- ca-se sem sentimento do próprio pecado”.11 9 Caminho da Perfeição, cap. 41. 10 Purgatório cap. 9. 11 A Doutrina Espiritual, 3º. princípio, cap. II. 60 9. A GRAÇA Depois de ver a realidade do homem diante de Deus, principalmente no aspecto negativo, veremos como enfrentar tantos e tão fortes obstáculos. Embora, nos métodos dedutivos, se coloque a graça entre os primeiros princípios, decorrente que ela é através de Cristo, aqui a graça faz um nexo en- tre o homem frágil e pecador e os meios de recupe- ração. Não se trata aqui de toda a questão da graça, que tem sido discutida através dos séculos, desde Sto. Agostinho; para nós que cremos na graça divina, tocaremos nos temas: obstáculos, pecado, conver- são, sacramentos. Graça é termo que traduz aproximadamente a pa- lavra hebraica hesed ou misericórdia, traduzida no grego pelos Setenta por cháris, em latim gratia: signi- fica vários gestos de Deus ou dos reis demonstrando: olhar, ternura, coração, generosidade, gratuidade. Na área social é favor que alguém faz ou recebe, pas- sando por cima das conveniências até das leis. Na área religiosa é o homem que atrai o olhar bondoso de Deus, o que ele consegue pela oração, sacrifícios, penitência, purificação. Neste sentido pode-se dizer que é um dom so- brenatural, que Deus concede à criatura racional, por Jesus Cristo e segundo o modelo de Cristo, como um presente de amor e para a participação na vida trini- tária de Deus. Vê-se como essência do estado de 61 graça a participação do homem, em estado de graça, no Reino de Deus instaurado em Jesus Cristo.12 Para os tomistas, a graça é chamada princípio formal da vida sobrenatural, participação acidental da natureza de Deus. “Qualidade sobrenatural inerente à nossa alma, que nos dá uma participação física e formal da natureza mesma de Deus." Cita-se o texto clássico de S. Paulo: “Somos filhos de Deus e, sendo filhos, somos também herdeiros: herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo” (Rm 8,16). De fato, é no NT que se revela a graça no senti- do estrito. São muitas as expressões que mostram a graça de Jesus. O termo cháris aparece em Lucas, Atos, João e principalmente em Paulo (110 vezes!). Pedro e Apocalipse usam, mas poucas vezes, este termo. Pode significar benevolência, favor, magnani- midade, riqueza de dons, contato sobrenatural, ilumi- nação, reação do que a recebe. Graça aproxima-se de carisma, dom que o Espírito opera. DIVISÕES DA GRAÇA Há várias, indicando riqueza e os modos da gra- ça: graça criada e incriada (esta é o próprio Deus). Graça interna e externa. Graça elevante e graça me- dicinal. Graça justificante e graça de ofício (“grátis data”). A divisão mais usada e útil é graça habitual (ou santificante) e atual. 12 M. SCHMAUS: Teologia Dogmática, V, pg. 21. 62 Tal diversidade de graças apenas mostra seu mistério, sua riqueza, as relações Deus-povo-homem desde o paraíso terrestre até o paraíso celeste.
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