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Filosofia: Conhecimento e Linguagem Organizadores Marcelo Carvalho Gabriele Cornelli Especialização em Ensino de Filosofia para o Ensino Médio PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR DIRETORIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA ESPECIALIzAÇÃO EM ENSINO DE FILOSOFIA PARA O ENSINO MÉDIO Coordenação Marcelo Carvalho e Gabriele Cornelli Coordenação de Produção Lucieneida Dováo Praun FilosoFia: ConheCimento e linguagem Organizadores Marcelo Carvalho e Gabriele Cornelli Revisão Técnica Ivo da Silva Júnior e Bento Prado Neto Filosofia: Conhecimento e Linguagem Volume 4 Organizadores Marcelo Carvalho Gabriele Cornelli Av. Senador Metello, 3773 | Jardim Cuiabá CEP 78030-005 | Cuiabá/MT Telefax: 65 3624 8711 | editora@centraldetexto.com.br www.centraldetexto.com.br Filosofia : conhecimento e linguagem, volume 4 / organizadores Marcelo Carvalho, Gabriele Cornelli. -- Cuiabá, MT : Central de Texto, 2013. Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-85-8060-017-9 1. Filosofia - Estudo e ensino I. Carvalho, Marcelo. II. Cornelli, Gabriele. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Índices para catálogo sistemático: 1. Conhecimento e linguagem : Filosofia 108.7 13-07024 CDD-108.7 Produção Editorial Editora Maria Teresa Carrión Carracedo Produção Gráfica Ricardo Miguel Carrión Carracedo dEsiGn Gráfico Helton Bastos diaGramação Maike Vanni Apresentação A identidade da filosofia contemporânea, pós-kantiana, está em grande me-dida ligada, de um lado, à reflexão sobre o conhecimento e a ciência, de outro à reflexão sobre a linguagem e sobre a lógica, temas que muitas vezes se sobrepõem e se tornam indistintos. Nesse contexto, a reflexão sobre a lin- guagem é marcada de maneira singular pelo surgimento da nova lógica, que trouxe consigo a revisão (e, eventualmente, a reafirmação) de concepções centrais da filosofia que se restavam quase inquestionadas desde Aristóteles. Frege, Russell e Wittgenstein (em particular o Tractatus) são os autores cen- trais nesse debate sobre a filosofia da lógica e da linguagem que se elabora em meio a essas transformações. Nela encontramos a reflexão sobre a lógica e a linguagem associadas de maneira direta à ontologia, à teoria do conhecimen- to, à ética, à filosofia da ciência. A ciência moderna ocupa lugar central na filosofia já desde seu surgimen- to, ainda que a formação de um domínio específico chamado de “filosofia da ciência” seja tardia e esteja associada aos desdobramentos da teoria do conhecimento elaborada como herança kantiana. Este debate ganha posição central na filosofia do século 20, com o positivismo lógico, Popper e Kuhn, para citar apenas aquilo que é mais conhecido. A reflexão sobre a ciência tem como contrapartida a investigação da relação entre o contexto social da pro- dução do conhecimento, os valores da ciência e os valores desta sociedade em que ele se constitui. A abordagem desses temas se estrutura aqui em duas partes. A Parte I, Lógica, ontologia e linguagem, se inicia com a entrevista que Luiz Henri- que Lopes dos Santos concedeu a Marcelo Carvalho. Nela, se trata das rela- ções entre filosofia da lógica, filosofia da linguagem e ontologia. A entrevista aponta tanto a ruptura quanto a continuidade entre a reflexão filosófica sobre a lógica que encontramos em Aristóteles e aquela que encontraremos a partir da obra de Frege. O debate acompanha a trajetória de Wittgenstein, e mostra como a construção da nova lógica implica na retomada de um debate mile- nar sobre as relações entre pensamento e mundo, entre lógica e ontologia, e como o chamado “segundo Wittgenstein” vai subverter os quadros dessa questão. Em “Lógica e gramática em Aristóteles” Marcelo Carvalho se propõe a apresentar as questões centrais do projeto de construção da lógica desenvol- vido por Aristóteles a partir de duas de suas obras fundamentais: Da Inter- pretação e Princípios Analíticos. O texto parte da apresentação da concepção de linguagem apresentada por Platão no Sofista e pretende explicitar como Aristóteles, partindo da análise platônica, estrutura sua concepção de propo- sição complexa e articulada e mesmo os conceitos de necessidade e impli- cação. Bento Prado Neto, por sua vez, estabelece, em “Linguagem, significado e experiência”, uma articulação entre tradição empirista, tradição analítica e a chamada “nova lógica”. O autor se propõe a investigar o debate sobre a lin- guagem na tradição empirista da filosofia moderna, na qual localiza, de um lado, a assimilação da lógica à psicologia, e, de outro, a retomada da análise lógica da experiência com os instrumentos oferecidos pela lógica matemá- tica. O texto de Silvia Faustino, “O Debate Contemporâneo Sobre a Lingua- gem”, parte da apresentação do percurso do desenvolvimento das teses de Frege sobre a simbolização da realidade pela linguagem. A partir daí, apre- senta a nova perspectiva de Wittgenstein no campo da lógica e da filosofia da linguagem, que estabelece a “concepção da linguagem como representação do mundo” apontado para “a separação entre fatos e valores”. Segue-se uma apresentação da “revisão crítica” de Wittgenstein à sua obra inaugural, feita nas Investigações Filosóficas. E, por fim, são consideradas a perspectiva me- todológica de Dilthey sobre as chamadas ciências humanas; a aplicação filo- sófica do método compreensivo e concepção sobre a linguagem em Gada- mer; e uma breve revisão da crítica desenvolvida por Habermas à Gadamer. Se a lógica não serve para avaliar os argumentos filosóficos, para que en- tão estudá-la? Por que estudar algo que mais se parece com matemática do que com filosofia? Estas questões são formuladas por André Porto em “O que é lógica?”, que se propõe a confrontar essas questões e a esboçar pos- sibilidades de resposta. Para tal, o texto se apoia na perspectiva teórica de dois filósofos, Frege e Wittgenstein, trazendo para o centro da reflexão os conceitos de pensamento, linguagem e verdade. A Parte II, Teoria do conhecimento, se inicia com a entrevista de Hugh Lacey a Marcelo Carvalho e Maria Ester Rabello. Nela se discutem as rela- ções entre filosofia, ciência e valor. Partindo da revolução científica que se deu no início da modernidade, são delineados seus traços principais: a rela- ção entre ciência e controle da natureza, o papel dos experimentos nessa nova ciência e a matematização da natureza que ela pressupõe. São consideradas também as relações entre ciência e tecnologia e as dificuldades inerentes à noção de progresso científico. Tais dificuldades são de duas ordens, que cabe distinguir cuidadosamente: de um lado, a que diz respeito a valores cogniti- vos; de outro, a que diz respeito a valores éticos e sociais. Essas duas ordens se confundem frequentemente no próprio discurso dos cientistas e essa con- fusão acaba desempenhando um papel determinante nos rumos da pesquisa científica. De onde a importância da tomada de posição por parte de asso- ciações científicas como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Pablo Mariconda, em “O modelo de interação entre a ciência e os va- lores”, aborda as consequências das relações entre ciência e valores para a busca da objetividade do conhecimento. O autor discorre sobre a atividade científica como uma atividade social complexa, buscando refutar a noção de que a ciência está livre de valores e demonstrando que afirmar esta noção significa distinguir os valores cognitivos (adequação empírica, consistência e coerência, simplicidade, etc.) dos valores sociais, morais, religiosos, etc. O texto de Plínio Smith, em “Liberdade científica, experimentação e va- lores cognitivos”, reflete sobre o processo de formação do conhecimento hu- mano em dois níveis: o comum e o científico. Na análise do autor, a ciência e a atividade do cientista decorrem da liberdade em formulare corrigir teorias que explicam o mundo sensível. Na direção das faculdades que dão origem ao conhecimento comum, o autor relaciona este processo com as informa- ções que obtivemos historicamente sobre a variedade, os tipos de corpos materiais existentes no mundo sensível. O texto observa a ação causal que se estabelece na relação entre a sequência de estímulos neurais, dos sentidos humanos, com a formação da sua visão de mundo. “História da Física e a Reflexão Filosófica”, de O. Freire Jr., parte da afir- mação de que conhecer a história da Física nos permite ingressar no estudo inicial da filosofia, tendo em vista que as transformações operadas nas visões de mundo são decorrentes de processos como, por exemplo, a revolução copernicana. Neste percurso sistemático, o autor nos oferece os principais elementos para analisar, de modo articulado, sem perder de vista, a relação entre as “revoluções” no campo da física, seja clássica ou moderna, com a epistemologia. Por fim, Maurício de Carvalho Ramos, em “Uma abordagem filosófica de problemas da biologia em seu contexto histórico”, destaca os elementos que conformam o debate acerca da busca pelo conhecimento objetivo do mundo. Para expor a sua reflexão o autor utiliza-se de um percurso histórico e teórico, e as controvérsias que este debate suscita sobre as questões filosó- ficas e científicas que ainda se afirmam na atualidade. A presente Coleção, assim como o Curso da qual ela é parte integrante, não teriam sido possíveis sem a incansável articulação da produção realizada por Luci Praun, à qual vai o sincero e irrestrito agradecimento dos organi- zadores. A concepção da Coleção contou com o cuidadoso trabalho de Ivo da Silva Junior. Bento Prado de Almeida Ferraz Neto contribuiu também com sua experiência editorial para a concepção e formatação das entrevistas. Aos dois vai também nossa mais sentida gratidão. Uma obra deste fôlego seria de fato impossível sem a participação de uma extensa equipe de colaboradores. Nossos agradecimentos vão, portanto, a Paulo Duro, Maria Ester Rabello, Luciano Coutinho, Mariana Leme Bel- chior, Fernando Lopes de Aquino e a Léia Alves de Souza. Um especial agradecimento vai ainda a Plínio Junqueira Smith, que par- ticipou da concepção da Parte II deste volume. Marcelo Carvalho Gabriele Cornelli Brasília, janeiro de 2011 Sumário I — LóGICA, ONTOLOGIA E LINGUAGEM Lógica e linguagem Entrevista com Luís Henrique Marcelo Carvalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 Lógica e gramática em Aristóteles Marcelo Carvalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 Linguagem, significação e experiência Bento Prado Neto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 O debate contemporâneo sobre a linguagem Sílvia Faustino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67 O que é lógica? André Porto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 II — TEORIA DO CONHECIMENTO Ciência e valor Entrevista com Hugh Lacey Marcelo Carvalho e Maria Ester Rabello . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 O modelo da interação entre a ciência e os valores Pablo Rubén Mariconda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115 Liberdade científica, experimentação e valores cognitivos Plínio Junqueira Smith . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133 A história da física e a reflexão filosófica Olival Freire Jr . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149 Uma abordagem filosófica de problemas da biologia em seu contexto histórico: mecanicismo e vitalismo Maurício de Carvalho Ramos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161 I LógICA, ontoLogIA e LInguAgem o autor marcelo Carvalho Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, possui Mestrado e Graduação em Filosofia pela mesma Universidade. Atualmente é professor da Universidade Federal de São Paulo e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia desta universidade. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia da Linguagem e da Lógica, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia da linguagem, filosofia da lógica, filosofia antiga, ética. Lógica e linguagem entrevista com luiz henrique lopes dos santos1 \Marcelo Carvalho LUIz HENRIqUE LOPES DOS SANTOS CONCEDEU ESTA ENTREvIS-TA A MARCELO CARvALHO NO COLéGIO PEDRO II, NO RIO DE JA- NEIRO. NELA, LUIz HENRIqUE LOPES DOS SANTOS ABORDA AS RE- LAçõES ENTRE FILOSOFIA DA LóGICA, FILOSOFIA DA LINGUAGEM E ONTOLOGIA. Lembrando seu próprio itinerário, ele inicialmente nos oferece uma descrição da constituição dessa área de pesquisa no Brasil, para, em seguida, enfocar a importância filosófica da recriação da lógica como lógica matemática no século XIX. Ele nos aponta tanto a ruptura quanto a continuidade entre a reflexão filosófica sobre a lógica que en- contramos em Aristóteles e aquela que encontraremos a partir da obra de Frege . Para além da ruptura (evidente nos distintos formalismos), essa continuidade encontra ex- pressão num mesmo projeto. Desentranha, de sob as vestes superficiais da linguagem, a forma lógica profunda do nosso discurso e fundamenta filosoficamente essa caracterização da forma lógica, que, tomada isoladamente, pode parecer “estritamente técnica” ou como uma simples “contribuição científica”. Já acompanhando a trajetória de Wittgenstein, Luiz Henrique mostra como essa nova lógica implica a retomada de um debate milenar sobre as relações entre pensamento e mundo, entre lógica e ontologia e como o chamado “segundo Wittgenstein” vai subverter os quadros dessa questão. 1 A concepção e realização da entrevista contou com a participação de Bento Prado Neto, também responsável pela edição e revisão do texto. 20 Vol. IV • Filosofia: Conhecimento e Linguagem marcelo (m) vamos conversar com o professor Luiz Henrique Lopes dos Santos, professor do departamento de filosofia da Universidade de São Paulo e coordenador da área de humanidades da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a Fapesp. Luiz, sua formação se deu principalmente no contexto da década de 1970, um período de consolidação da investigação e do debate sobre lógica no Bra- sil. você passa pela USP e pela Unicamp, não é? você poderia começar apre- sentando um pouquinho esse contexto do debate daquele período? luiz henrique (l) Bom, de alguma maneira, a grande influência no final da década de 1960, no departamento de filosofia, era a filosofia francesa. O departamento foi constituído, como toda a faculdade de filosofia da USP, a partir de uma missão francesa que deixou um legado importante. Nós sabe- mos que a tradição analítica, a vertente analítica do pensamento filosófico, custou a entrar na França. No final da década de 1960, o que havia na França de pensamento filosófico dominante era, por um lado, a vertente fenomeno- lógica, Merleau-Ponty, Sartre, etc., e, por outro, um peso importante na his- tória da filosofia: os filósofos clássicos da filosofia antiga e moderna. A tradi- ção analítica era representada por alguns poucos. Ora, aconteceu que alguns desses poucos, como Gilles-Gaston Granger e Jules vuillemin, estiveram no Brasil e fizeram alguns seguidores, entre os quais José Arthur Giannotti, que no final dos anos de 1960 publica a segunda tradução mundial do Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein. No começo da década de 1970, Oswal- do Porchat volta de um pós-doutoradoem Berkeley. E volta imbuído dos interesses característicos da tradição analítica, articulada em torno da lógica e da filosofia da linguagem. é a partir daí que se desencadeia um processo que, passando pela constituição do Centro de Lógica e Epistemologia em Cam- pinas, vai resultar num módulo bastante importante de filosofia analítica e lógica e filosofia da linguagem no Brasil. (m) você também participou, junto com o Porchat, da criação do Centro de Lógica e Epistemologia da Unicamp, que desempenhou um papel impor- tante naquele contexto, não é? (l) Foi muito importante, porque até 1975, até meados da década de 1970, você tinha, no Brasil, ilhas. você tinha ilhas importantes, uma em Porto Ale- Lógica e linguagem 21 gre, uma em Minas, uma em São Paulo, uma no Rio de Janeiro, mas com- pletamente desarticuladas. O Centro de Lógica, em virtude da sua missão − a missão que foi conferida ao Centro de Lógica na Unicamp, de interdis- ciplinaridade, de trabalho colaborativo −, obteve recursos da Unicamp para promover um intercâmbio importante e colóquios nacionais, internacionais, o que propiciou a constituição de uma comunidade da filosofia brasileira. Eu digo que o Centro de Lógica desencadeou a organização de uma comu- nidade sistemática da filosofia brasileira. E, como era um Centro de Lógica e Epistemologia, isso estimulou que a lógica e a filosofia da linguagem se constituíssem como temas importantes dessa nova comunidade organizada. (m) E esse é o centro irradiador que vai de alguma maneira determinar os desdobramentos desses debates sobre lógica e linguagem nas décadas de 1980, 90… (l) Exatamente. A partir daí, você tem a formação de alunos, enfim, você tem realmente um grupo importante, não é? quando eu comecei a fazer filosofia da lógica, que é o viés que eu tenho na filosofia da linguagem, eu praticamente não tinha interlocutores. Havia pouca gente que fazia doutora- do nessa área. Em dez anos, a situação muda substancialmente. (m) você falou da tradução do Tractatus pelo Giannotti, mas o seu trabalho de pesquisa, que depois se tornou o seu doutorado, é sobre Frege. Neste contexto todo, por que a opção pela obra do Frege? quer dizer, como esse seu projeto se situa especificamente naquele contexto de debates? (l) quando o Porchat voltou de Berkeley, ele deu um curso de lógica nos padrões de lá, numa faculdade onde nunca se tinha dado um curso de lógica por um lógico. quem dava lógica − lógica básica − era o Giannotti, que não era lógico. Sabia lógica para dar um curso inicial, mas não era lógico. O Porchat chegou, deu um curso fortíssimo e eu gostei muito. Procurei Porchat e lhe disse que, até então, estava hesitante sobre para que linha da filosofia eu iria na pós-graduação, mas que eu tinha finalmente resolvido fazer filosofia da lógica. E o meu viés na filosofia da linguagem era filosofia da lógica. Aí o Porchat disse: então por que você não estuda quem inventou isso, a filosofia da lógica moderna, contemporânea, por que você não estu- 22 Vol. IV • Filosofia: Conhecimento e Linguagem da Frege? Eu nunca tinha lido Frege; tinha lido uns artigos básicos, como “Sentido e referência”, mas nunca tinha lido sistematicamente. Fui ler e me apaixonei. Disse ao Porchat: quero fazer meu doutorado sobre Frege porque quero entender como é que se dá a passagem da lógica aristotélica, que du- rou dois mil e quinhentos anos (na qual, segundo Kant, não tinha mais o que se fazer, não tinha o que aumentar, já estava tudo feito), como é que num certo momento se passa dessa lógica para a lógica contemporânea. é uma coisa curiosa, porque a lógica nasce parece que instantaneamente, quer dizer, nasce com o Aristóteles, sem um processo lento e contínuo de maturação, e a lógica é revolucionada por Frege no final do século XIX, também quase instantaneamente, sem um processo longo de maturação. Eu me perguntava o que aconteceu naquele momento para essa reviravolta tão importante que é a constituição da lógica matemática. (m) você tocou num tema importante, que merece ser explorado com cui- dado, porque você cita os dois mil e quinhentos anos da tradição da lógica aristotélica e a revisão dessa lógica; a construção de uma nova lógica a partir do Frege é um marco na história da filosofia à medida que aquilo que parecia um núcleo mais sólido, mais intocável do debate filosófico, de repente sofre uma reviravolta extrema, não é? Eu queria pedir para você tentar caracterizar em linhas gerais essa contraposição; quer dizer, o que há de novo nessa lógica fregiana, o que ela traz para o debate e como é que ela vai se relacionar com a lógica aristotélica? (l) Então, vai ser exatamente o tema da minha tese, não é? Minha tese de doutorado eu a apresentei em 1981, sobre Frege. Tinha como um dos seus objetivos entender o que aconteceu nessa mudança. O que mudou de fato? Para resumir o que eu penso, desde o início, a lógica se vale de um postulado metodológico. A lógica precisa identificar as formas lógicas das proposições. Por quê? Porque ela estuda as propriedades e relações que as proposições possuem em virtude apenas da sua forma lógica. O que Aristóteles nos diz, já no Tratado da interpretação? Cuidado, o que parece ser a forma gramatical de uma proposição nem sempre é a sua forma lógica. A tarefa fundamental da lógica é identificar, por detrás das formas gramaticais das proposições, as suas verdadeiras formas lógicas. Dada essa identificação, a formulação das leis lógicas é quase uma trivialidade. O que é substancial, o que caracteriza Lógica e linguagem 23 substancialmente uma teoria lógica é a maneira como ela descreve as formas lógicas das proposições, independentemente do que parece ser essa forma lógica se eu me ativer à aparência das suas formas gramaticais. Como é que eu caracterizei na minha tese a passagem da lógica tradicional para a lógica matemática tal como constituída por Frege? Uma mudança de paradigma, de modelo, para a descrição das formas lógicas das proposições. Na lógica aristotélica, o modelo-paradigma é a relação sujeito-predicado tal como apa- rece na linguagem ordinária. Para Frege, essa fórmula passa a ser a forma da quantificação por meio de variáveis, tal como aparece na linguagem que os matemáticos, no curso do século XIX, constituíram para formular as suas teorias matemáticas, certo? Então essa mudança de paradigma gera um novo conceito lógico. é o conceito de função proposicional, uma nova teoria da quantificação − isto é, uma nova teoria das proposições universais, particula- res e existenciais. A partir daí se constitui o que nós chamamos hoje de lógica matemática. Como tentativa de constituir uma semântica para as linguagens da lógica matemática, Frege então introduz os seus principais conceitos de filosofia da lógica e filosofia da linguagem. Então, esse seria o percurso. (m) Então, nessa leitura que você apresenta, no núcleo está o debate sobre a forma da proposição… (l) Sobre a forma lógica: qual a forma lógica das proposições que descre- vem ou pretendem descrever o mundo? (m) De alguma maneira, a filosofia que vai de Aristóteles até o século XIX partilha do pressuposto que a estrutura básica é a estrutura sujeito-predi- cado. Toda lógica aristotélica era dada como uma descrição dessa estrutura básica da linguagem e de toda argumentação. Acho que o importante aí é caracterizar o modo pelo qual a revisão dessa estrutura lógica da proposição proposta por Frege vai afetar o conjunto do discurso filosófico, da investiga- ção filosófica; quer dizer: qual o impacto dessa revisão fregiana para lógica, de um lado, e, de outro, para aquilo que se constrói a partir dela no discurso filosófico? (l) Bom, para lógica é inquestionável. Para lógica é evidente que, até Frege, você tem a lógica Aristotélica. Mas veja como é curioso: você tem a ideia de 24 Vol. IV • Filosofia: Conhecimento e Linguagem uma teoria do silogismo, mas, até o final do século XIX, você nunca testa essa ideia aplicando essateoria do silogismo para dar conta, por exemplo, das teo- rias geométricas, que são teorias axiomáticas e que se dão por demonstrações lógicas, não é? O que acontece com a lógica matemática é que ela fornece instrumentos para você dar conta de teorias que se constituem logicamente, como as teorias matemáticas e as físicas. Então, você tem uma fecundidade explicativa da lógica matemática que a lógica tradicional de fato não tinha. Do ponto de vista filosófico, eu sou mais relativista. Eu não diria que a lógica matemática potencializou a relação da lógica com a filosofia. Mudou, não é? você tem as teorias filosóficas que se constituem claramente à luz da lógica tradicional − você não pode estudar Leibniz sem o pano de fundo da lógica aristotélica. O mesmo vale para Kant, Hegel, toda a filosofia alemã. quando você tem uma nova lógica, você tem novos conceitos da filosofia da lógica, novos conceitos da filosofia da linguagem, o que a meu ver leva a um novo debate ontológico. Então acredito que o Tractatus Logico-Philosophicus do Wit- tgenstein retoma um debate milenar, que é o debate sobre a relação entre a forma do pensamento e a forma do mundo. A questão da possibilidade de o pensamento se apropriar do mundo, dado que o pensamento tem a forma que tem e o mundo tem a forma que ele tem: esse é um debate milenar, que vem dos Sofistas, de Platão, Aristóteles, etc. Ele é totalmente reestruturado no Tractatus a partir dos novos instrumentos lógico-conceituais que a lógica matemática oferece. Então, você tem uma mudança. (m) Agora, no contexto da filosofia fregiana, por exemplo, você tem, a par- tir da construção dessa nova lógica, toda uma revisão de conceitos centrais para a filosofia, como a própria redefinição do que é conceito, o conceito de sentido, a concepção de verdade fregiana. A questão é: esses elementos são centrais nessa revisão da lógica, nessa construção de uma lógica matemática por parte do Frege ou são elementos específicos da lógica fregiana? Como você vê isso? (l) Não, eu acho que é preciso distinguir claramente essas duas coisas. Existe uma contribuição do Frege, que eu diria, talvez com algumas aspas, uma “contribuição científica”, que é a constituição das linguagens que nós chamamos hoje de linguagem do cálculo de predicados. Superficialmente, Lógica e linguagem 25 a linguagem fregiana é bizarra, mas, do ponto de vista gramatical, estrutu- ral, ela é a linguagem que nós chamamos hoje de linguagem do cálculo de predicados. Isso você vai encontrar em toda a lógica matemática posterior a Frege. E você tem, em primeiro lugar, um esforço do Frege no sentido de elucidar o que para ele é a base conceitual do cálculo de predicados e da lin- guagem do cálculo de predicados. São os conceitos de sentido, de referência, objeto, função, um conjunto de conceitos que ele utiliza, por assim dizer, para racionalizar aquele cálculo que ele inventa. A partir desses conceitos, você constitui o quê? Uma semântica para essa linguagem. A semântica que Frege constitui para essa linguagem é diferente da que Russell vai constituir para mesma linguagem, da que quine vai constituir para mesma linguagem: você passa do plano que eu chamaria, entre aspas, de “científico” para o plano filosófico, no qual você tem alternativas. (m) E o debate sobre filosofia da lógica que se abre a partir daí é basica- mente o debate sobre essa construção de uma semântica ou sobre a interpre- tação desses conceitos fundamentais? (l) Exatamente. Agora eu tenho muita resistência à ideia de ruptura em história da filosofia, não é? Eu acho que você tem sempre mudanças e assi- milações de tradições. Então, se você pega o debate Frege, Russell, Wittgens- tein, se você pega o debate depois da década de 1920, Carnap, quine, você tem a assimilação, a reformulação de questões milenares, questões tradicio- nais num novo enfoque, que é dado por um novo instrumental conceitual que o Frege dá à lógica. Mas são questões: volta a questão dos universais, que é uma questão medieval, a questão da economia ontológica, que é uma questão medieval. O mesmo vale para as disputas. A disputa Frege-Russell- -Wittgenstein, você pode reportá-la a uma disputa antiga, que é sobre como é possível uma proposição ser falsa. Como é que uma proposição, que se define como uma representação do mundo, pode ser falsa, isto é, não repre- sentar o mundo? Então, você tem uma série de questões que são retomadas, mas retomadas sob uma nova ótica. qual ótica? Sob um novo prisma, vamos dizer. Novos óculos. você vê a questão, você aborda a questão a partir de um aparato diferente, mas é a mesma questão. você vai dizer: é a mesma? é e não é. 26 Vol. IV • Filosofia: Conhecimento e Linguagem (m) Luiz, você caracteriza o Tractatus como uma obra que está situada na confluência de duas grandes tradições filosóficas: de um lado, uma tradição lógica que remontaria a Parmênides; de outro, uma tradição crítica, que tem como grande referência o Kant. De que maneira isso aparece nessa obra? (l) veja bem. O que eu chamo dessa tradição lógica? De uma maneira bastante simples, é a ideia de que posso derivar conclusões sobre a estrutura essencial da realidade a partir de uma reflexão sobre a estrutura essencial do pensamento, reflexão que seria por definição uma reflexão lógica. O que é a tradição crítica? A tradição crítica, de que Kant é o maior representante, é marcada pela ideia de que é tarefa da filosofia medir o grau de validade das suas próprias pretensões de conhecimentos. quais são as pretensões da filosofia? Caracterizar a estrutura essencial da realidade, dos fundamentos absolutos do mundo, da ação humana − tudo aquilo que tem a ver com o essencial, com o absoluto e assim por diante. qual é o projeto do Tractatus? O projeto do Tractatus é um projeto crítico: medir o grau de legitimidade das pretensões de conhecimento da filosofia a partir de uma reflexão sobre a estrutura essencial do pensamento e da linguagem. Isto é, qual é a questão do Tractatus? Dado que o pensamento e a linguagem têm tal e tal estrutura ló- gica, essencial, o que é possível conhecer? E dado o que é possível conhecer, é possível para a filosofia conhecer o que ela pretende conhecer? Esse seria o projeto do Tractatus . é assim que eu situo o Tractatus na história da filosofia. (m) O que o coloca numa posição bastante singular no debate que ele constrói com toda essa tradição filosófica, não? De alguma maneira, a partir dessa perspectiva, apareceria no Tractatus, de um lado, uma tradição lógica, de Parmênides, Platão, Aristóteles, a tradição aristotélica e mais recentemente os dois interlocutores imediatos, o Frege e o Russell, e, de outro lado, o debate com a filosofia kantiana, principalmente. No que se refere à tradição lógica, que é esse diálogo com o Frege e com o Russell, um caso clássico de contraposição de posições? Como se apresenta a posição do Wittgenstein em relação ao Frege, onde está o ponto de discordância? (l) vê bem, no prefácio do Tractatus, o Wittgenstein faz dois agradecimen- tos, não é? Um ao Frege e outro ao Russell. A maneira como faz esses agra- decimentos dá a medida da importância que ele confere a um e ao outro. Lógica e linguagem 27 Ele diz: eu agradeço as obras, eu tenho uma dívida para com as obras gran- diosas de Frege e para com as obras do meu amigo Russell. Então, Frege é o adversário dele e é alguém a quem ele deve muito − por quê? Primeiro, porque Frege, como eu disse, não só constituiu o cálculo de predicados, fez a nova lógica, como refletiu de uma maneira rigorosa, profunda, sobre as bases conceituais dessa nova lógica. E oferece a Wittgenstein, por um lado, instrumentos conceituais necessários para ele mesmo pensar essa nova ló- gica. Por outro, oferece objetos de críticas, mas que foram constituídos a partir de uma reflexão laboriosa, rigorosa e, portanto, não são trivialmente criticáveis. Então, Frege é um grande estímulo para Wittgenstein. Eu diria que o que Wittgensteinfaz, em grandes linhas, de maneira quase caricatural, mas enfim, com algum grão de verdade, que ele pega a versão platônica da lógica matemática que é a versão fregiana e dá a ela uma feição aristotélica, não é? O grande impulso para o pensamento de Wittgenstein sobre a lógica no Tractatus é constituído por teses aristotélicas que, eu acredito, ele não co- nhecia. Mas eram teses que Russell conhecia, que Russell tinha assimilado e que Wittgenstein extrai de Russell. Então, eu acho que tem esse contraponto importante entre Wittgenstein e Frege que é, digamos, um misto de amor e ódio. (m) E o núcleo dessa concepção aristotélica que reaparece no Tractatus é o conceito de bipolaridade? Da complexidade? (l) é o conceito de bipolaridade. é o conceito de que, não apenas, como diria Frege, a proposição pode ser verdadeira ou falsa num sentido fraco, isto é, proposições podem ser verdadeiras, proposições podem ser falsas, mas cada proposição deve poder ser verdadeira ou falsa. Portanto, uma proposi- ção com sentido não pode ser necessária. Tem que ser sempre logicamente contingente. O que parece ser uma proposição necessária, de fato. não é uma proposição com sentido; o que não significa que não tenha relevância repre- sentativa. Mas não é uma representação do mundo. Por quê? Porque, para Frege, a lógica é uma descrição de uma parte do mundo, o que ele chama de “o terceiro mundo”; não um mundo empírico, subjetivo, interno, mas um terceiro mundo das idealidades lógicas. (m) que é o platonismo? 28 Vol. IV • Filosofia: Conhecimento e Linguagem (l) é o que eu digo, é uma versão platônica da lógica. O que Wittgenstein vai dizer é: a lógica não representa nada. As chamadas proposições lógicas são sem sentido. As chamadas proposições lógicas são combinações simbólicas que mostram, mas não dizem nada; mas elas mostram a estrutura formal do pensamento e, portanto, a estrutura formal do mundo, mas sem dizer nada. Sem poderem ser ditas verdadeiras ou falsas. (m) No núcleo da concepção do Tractatus, antes de entrar nessa distinção central e delicada entre dizer e mostrar, está a concepção da proposição como figuração, que de alguma maneira vem trazer essa bipolaridade que caracte- riza essencialmente a proposição e a sua complexidade. De que maneira esse conceito de proposição como figuração da realidade vem resolver os proble- mas envolvidos na filosofia da lógica fregiana ou russelliana que o precede? (l) veja bem, no momento em que Wittgenstein chega a Cambridge, por volta de 1912, 1913, ele encontra Russell imerso na questão da forma lógica da proposição. qual é a questão da forma lógica da proposição? é a questão de saber como é que a proposição representa a sua forma lógica, como é que ela dá a conhecer a sua forma lógica. A teoria da figuração do Witt- genstein é uma resposta extremamente engenhosa a esta questão. Por quê? Wittgenstein diz: a proposição tem partes que vão simbolizar os elementos dos seus sentidos, mas ela deve simbolizar também o modo como esses ele- mentos devem estar combinados para constituir esse sentido, ou seja, a sua forma. Se eu tratar a forma como algo que a proposição também simboliza ao lado dos elementos, estarei tratando a forma como um elemento a mais e vou ter de me perguntar: o que é que combina a forma e os elementos no complexo que é o sentido proposicional? Frege dá uma resposta engenho- sa a esta questão. Frege diz: ora, a proposição identifica a forma, identifica os elementos e essa forma aglutina os elementos no sentido proposicional. quando eu apreendo o sentido proposicional, apreendo um objeto que tem forma e conteúdo, portanto, eu identifico, nesse objeto que eu apreendo, a forma e o conteúdo, e, portanto, não tenho nenhum problema mais sério. O que isso implica? Como existem proposições falsas, isso implica que, assim como proposições verdadeiras expõem fatos existentes, proposições falsas deveriam simbolizar fatos inexistentes, fatos irreais. Portanto, eu teria o do- mínio dos fatos possíveis, que teriam, cada um deles, a sua autonomia e a Lógica e linguagem 29 sua cidadania ontológica, e alguns desses fatos possíveis seriam reais e outros seriam irreais. Russell recusa isso de maneira rigorosa, argumentada. Mas existe uma piada do Russell que reflete bem o porquê de sua recusa. Ele diz: bom, numa situação como essa, na qual o que é real e o que é irreal têm a mesma cidadania, o mesmo direito à cidadania ontológica, preferir descrever a realidade, ou seja, preferir acreditar em proposições verdadeiras (ao invés de descrever o que não é real) ou acreditar em proposições falsas é uma ques- tão de gosto. Assim como há quem goste de rosas vermelhas e quem goste de rosas brancas, há aqueles que preferem o que é real e aqueles que preferem o que é irreal; então, por que eu deveria acreditar no que é verdadeiro ao invés de acreditar no que é falso? (m) O problema que aparece aqui é o que estava lá no contexto clássico do paradoxo do falso. (l) é o problema do contexto clássico: como é que a proposição falsa sim- boliza… (m) Dá para ver Platão e Aristóteles aí. (l) No Sofista de Platão, não é? Platão define o sofista como um chicanei- ro, aquele que faz o falso parecer o verdadeiro. Mas ele, o próprio estrangeiro de Eleia, que é o personagem que conduz o diálogo, levanta uma objeção possível. Ele diz: bom, como é que é possível dizer o falso? quer dizer, se eu digo, eu digo algo. Algo é algo que é, que existe; se eu digo o que quer que seja, eu digo algo que é. E dizer algo que é, é dizer o verdadeiro, não é? Porque dizer o falso seria dizer algo que não é, mas “o que não é” não é nada. Portanto, dizer o falso seria dizer nada e, portanto não seria dizer. Ou digo o verdadeiro ou eu não digo nada. Como é que é possível dizer o falso? Frege dá uma resposta. Ele diz: o falso tem uma consistência ontológica. quando eu digo o falso, eu não estou dizendo o nada, eu estou dizendo algo que não é real. quando Russell recusa essa concepção fregiana, ele volta à solução platônica e aristotélica, que é dizer: a proposição, quando é falsa, define um complexo e diz que esse complexo existe. Então, ela aponta para a realidade e me diz o que eu devo encontrar na realidade para que ela seja verdadeira. Se eu encontro aquilo, a proposição é verdadeira; se eu não encontro, ela é falsa. 30 Vol. IV • Filosofia: Conhecimento e Linguagem Russell transforma o ato de dizer algo, verdadeiro ou falso, num ato inten- cional. Eu tenho a intenção de encontrar a realidade, encontrar na realidade algo que eu descrevo na proposição por meio dos seus elementos e de sua forma. E esse ato intencional é essencialmente bipolar, portanto. Isto é, o que a proposição diz é que algo deve estar na realidade, mas algo que pode não estar na realidade; e o ato de dizer proposicional consiste exatamente nisso. Desse ponto de vista, a solução fregiana para a questão da forma lógica já não está mais disponível. Então, a forma lógica não pode estar presente no que é dito, porque essa é a posição fregiana; mas ela não pode ser um elemento a mais descrito pela proposição. Wittgenstein dá a única solução possível nesse contexto: a forma está presente na proposição enquanto símbolo. A forma do que deve ser real para que a proposição seja verdadeira deve ser a forma que a proposição exibe enquanto ela é um fato simbólico, isto é, o resultado de uma combinação de símbolos. Então, a combinação de símbolos que é a proposição, para que seja significativa, deve ter a mesma forma que a combi- nação de coisas do mundo deve ter para que a proposição seja verdadeira − e essa é a teoria da figuração. (m) Essa concepção de forma introduz, entretanto, aquela distinção deli- cada − e que talvez seja o que torna o Tractatus mais famoso para quem está fora do debate específico sobre lógica − que é a distinção entre dizer e mos- trar, distinção que é central no projeto de delimitação do campo do sentido, do limite da linguagem. Como se articulaisso ali no texto? Como aparece esse conceito de limite (o limite daquilo que pode ser dito, daquilo que pode ser pensado), que é um conceito estranho? E qual a sua relação com o con- ceito de forma lógica? (l) A forma lógica, em algum sentido, não é nada. Ela não é um elemento do mundo. A forma lógica é o modo como elementos do mundo estão com- binados, como devem estar combinados, para que constituam um fato real no mundo, não é isso? Os elementos ou constituem um fato real ou estão desarticulados e não há nada a que a proposição falsa corresponderia. Bom, se eu digo que o que pode ser dito é a existência de um complexo, nem a existência dos elementos do complexo nem a forma podem ser objetos de um dizer. Eles são os pressupostos do que é possível ser dito. Mas, enquanto pressupostos absolutos do que pode ser dito, eles mesmos não podem ser Lógica e linguagem 31 objetos de um dizer proposicional. Eu não posso dizer o que são esses ele- mentos. A existência deles não é dizível. Portanto, é uma existência necessá- ria, ela não é logicamente contingente. E a forma das proposições não pode ser descrita. No entanto, para que eu possa descrever o que quer que seja e para que eu possa entender a descrição do que quer que seja, é preciso que eu conheça esses elementos e conheça essa forma. Esse conhecimento não pode ser um conhecimento proposicional. Para caracterizar esse conhecimento não proposicional, Wittgenstein utiliza o termo “mostrar”. Ele diz: nas pro- posições que dizem o que pode ser dito, os seus pressupostos absolutos se mostram. São os elementos últimos, simples, de todos os fatos e as formas lógicas dos fatos possíveis que se constituem desses elementos. (m) E aí surgiu esse algo estranho que é: há algo que não pode ser dito, que não pode ser pensado, à medida que pensamento é também proposicional, mas que é pressuposto da própria linguagem, da própria figuração. (l) E que se dá ao pensamento, mas não no modo proposicional. Dá-se como os pressupostos comuns ao pensamento e ao mundo. quando Witt- genstein faz isso no Tractatus, ele resolve (sob a condição de que seus pres- supostos sejam válidos) a milenar questão da harmonia formal entre pen- samento e realidade. Ele diz: bom, não faz sentido perguntar se a forma do pensamento é adequada ou não à forma do mundo, porque ela é a mesma forma e, se não fosse, não haveria pensamento e não haveria pensamento do mundo. é condição de possibilidade do pensamento do mundo que o pensamento compartilhe a sua forma com o próprio mundo. Portanto, dado isso, a questão da harmonia formal entre pensamento e mundo se resolve trivialmente. Essa é a ideia do Tractatus . (m) E esse é o contexto também em que aparece uma afirmação específica acerca da ética: a ética se situa para além do limite do sentido, do discurso possível, não é? (l) Também. E aí… …bom, não é uma posição indiscutível, mas é a mi- nha posição sobre o Tractatus: Wittgenstein se insere também numa longa tradição, a do misticismo racional. Isto é, é a ideia de que na busca racional, argumentada, dos pressupostos absolutos do mundo e da ação humana, você 32 Vol. IV • Filosofia: Conhecimento e Linguagem vai encontrar a ideia de que o mundo tem fundamentos absolutos. Estes fundamentos absolutos estão, em algum sentido, fora do mundo, mas não no sentido de estarem num outro mundo, mas de serem o que Wittgens- tein chama o limite do mundo, o suporte, o andaime absoluto do mundo contingente, que define o espaço de manobra da contingência. De alguma maneira, a experiência ética fundamental é a experiência de identificação do sujeito com esse andaime absoluto do mundo − portanto, o que se poderia chamar de místico (e Wittgenstein chama isso de místico no Tractatus, não é?). E em última instância, você tem uma identidade de raiz em que a lógica, a ética, a arte e a religião são as modalidades desse contato com o absoluto, que é desvendado pela reflexão lógico-filosófica sobre os pressupostos, os fundamentos absolutos do mundo. (m) é tradicional a contraposição entre o Tractatus e a obra posterior do Wittgenstein, especialmente as Investigações. Fala-se inclusive em primeiro Wittgenstein e segundo Wittgenstein… (l) E “um e meio”, às vezes. (m) E “um e meio”, a fase de transição, e tem o terceiro, que vem depois. Como você vê essa mudança de posições centrais depois da publicação do Tractatus? (l) Acredito que o debate sobre a continuidade ou ruptura entre as duas filosofias de Wittgenstein é um falso debate, porque continuidade não exclui ruptura. Acho que há entre os dois momentos do pensamento de Wittgens- tein uma continuidade de projeto e uma ruptura no modo de executar aque- le mesmo projeto. qual é o projeto? é o projeto crítico, não é? é o projeto de definir as condições de possibilidade do pensamento filosófico e de me- dir, a partir dessas condições de possibilidades, os graus de legitimidade das pretensões da filosofia tradicional. qual é o diagnóstico do Tractatus, no seu final, a respeito dessa questão? é dizer: a filosofia tradicional é dogmática. Ela não faz a crítica das suas pretensões e, portanto, ela pretende dizer o que não pode ser dito. é preciso não abandonar a questão filosófica. O que é preciso é colocar a questão filosófica no seu registro legítimo, que, no Tractatus, é o registro do mostrar. Wittgenstein vai dizer: o que a filosofia deve fazer? Lógica e linguagem 33 Ela deve fazer a análise lógica das proposições empíricas, porque, ao fazer isso, a filosofia vai chegar aos elementos simples de todos os fatos, às formas lógicas de todos os fatos e, portanto, à estrutura essencial do mundo, que é aquilo que importa conhecer, mas que não pode ser conhecido proposicio- nalmente. Em 1918, Wittgenstein diz, no prefácio ao Tractatus: no essencial, o Tractatus resolve todos os problemas filosóficos. Se ele resolve todos os problemas filosóficos, não há mais nada o que fazer, ele vai ser jardineiro, vai ser professor primário e tal. Em 1929, 1930, ele volta a Cambridge e diz: ago- ra eu vou fazer o que eu disse que a filosofia pode fazer. vou fazer a análise lógica das proposições. quando ele vai fazer isso, percebe que não tem cri- térios para identificar aqueles objetos simples, aquelas formas lógicas, enfim. E ele se lembra de que a indecidibilidade é a marca essencial de uma questão dogmática. Uma questão dogmática é uma questão com relação à qual você realmente não sabe o que fazer para resolvê-la. Ele percebe que talvez a questão da estrutura essencial do mundo em si mesma seja uma questão dogmática. A partir daí, em poucos anos, Wittgenstein abandona isso que é a tese essencialista: a de que o mundo possui uma estrutura essencial e que faz sentido caracterizar (proposicionalmente ou não) essa estrutura essencial do pensamento e do mundo. (m) que está na base do projeto do Tractatus . (l) que está na base do projeto do Tractatus. O abandono desse pressuposto coincide com o abandono do que Wittgenstein chama, nas Investigações Filosó- ficas, no início, na abertura, de uma certa imagem da essência da linguagem, que governa a filosofia da linguagem, o pensamento filosófico sobre a lin- guagem desde o início dos tempos, não é? De fato, eu digo “coincide”, mas não é uma coincidência − por quê? Porque Wittgenstein percebe que essa imagem da essência da linguagem, levada às últimas consequências (como ele fez no Tractatus) leva necessariamente ao dogmatismo, ao essencialismo e a tudo aquilo que ele agora, em 1930, percebe que são as raízes do Tracta- tus. E Wittgenstein diz: então, eu vou, no mesmo projeto crítico, abandonar agora também esse pressuposto dogmático. qual é essa certa imagem da es- sência da linguagem? é uma imagem representativista, referencialista. Isto quer dizer o quê? que o que está na base do funcionamento da linguagem é uma relação de representação entre proposições e mundo. Ainda que, para 34 Vol. IV • Filosofia: Conhecimento e Linguagem ser instituída, essarelação de representação requeira a atividade humana, no entanto, uma vez instituída, tudo o que importa para o filósofo da lógica e da linguagem é examinar como uma configuração de símbolos representa uma configuração de elementos da realidade ou do fato. A atividade de se usar a linguagem teria uma função constitutiva da relação, no sentido de que seria gerativa da relação, mas não seria intrinsecamente constitutiva. Wittgenstein propõe então uma virada, que é dizer: não, nós vamos partir da atividade que é usar a linguagem. Do uso da linguagem. O que for importante para a significatividade dos símbolos deve derivar do modo como nós usamos esses símbolos significativamente. Daí o lema − que não é uma definição, mas um lema metodológico: a significação está no uso. Mais do que é o uso, a signi- ficação está no uso. Isto é, é o uso que constitui intrinsecamente o símbolo como significante. (m) E aí você passa a ter toda uma forma de investigação da linguagem distinta, porque, em vez de se perguntar justamente por essa estrutura ló- gica que estaria oculta na linguagem cotidiana, você passa a investigar o uso cotidiano da linguagem, não é? O que situa as Investigações a uma distância grande do Tractatus . (l) Exatamente, por quê? O que dizia o Tractatus? O Tractatus dizia várias coisas sobre a linguagem. Ele dizia, por exemplo: toda proposição precisa ser resolvida analiticamente em proposições elementares, que são combi- nações de nomes simples, que nomeiam objetos simples, que existem ne- cessariamente. Isto é, ele dizia que a proposição deve ser uma entidade que ela aparentemente não é. Ela está muito distante do que aparentemente é, no nosso uso ordinário da linguagem. E aí, Wittgenstein volta àquele velho lema, àquele velho postulado metodológico de Aristóteles: não confunda a estrutura superficial visível da linguagem com a estrutura profunda, ocul- ta, que é a forma lógica dos sentidos das proposições. Então, você teria na linguagem uma superfície visível e um fundo oculto essencial. E o Tractatus vai dizer: tudo isso que eu estou dizendo que a proposição deve ser, ela su- perficialmente não é. Mas, se você escavar, você vai achar no fundo oculto tudo isso que eu digo que a proposição é. Este é o postulado que o segundo Wittgenstein vai dizer que é o postulado dogmático fundamental do Tracta- tus. qual é o lema das Investigações? Nada está oculto, não é? você dirá: bom, Lógica e linguagem 35 então, por que as pessoas não veem? Não veem porque está perto demais e é muito complexo. você tem um emaranhado de relações entre símbolos, en- tre práticas simbólicas, entre usos diferentes da linguagem. Eles são visíveis, estão aí, mas são tão complexos e numerosos que eu não tenho uma visão panorâmica e perspícua deles. E a filosofia deve então descrever o que está diante dos nossos olhos, mas descrever de uma maneira tal que nos permita ter essa visão panorâmica e perspícua dos nossos usos linguísticos do ponto de vista normativo. E qual é o ponto de vista normativo? é o ponto de vista das regras de significação que vão definir os conteúdos dos conceitos. E a filosofia se estabelece então como uma descrição de conceitos. Não uma des- crição de fatos a que esses conceitos se referem, mas de conceitos, a partir de uma descrição das regras de uso significativo dos termos conceituais. São as “regras”, que Wittgenstein chama, no uso bastante idiossincrático da palavra, regras gramaticais. (m) Mas, quando ele mesmo apresenta essa recusa de uma concepção de lógica como um desocultar daquilo que está por detrás do uso cotidiano da linguagem, essa recusa de uma concepção “sublime” de lógica, ele mesmo para num dado momento e diz: o que acontece com a lógica, então? O que acontece com a lógica nesse contexto das Investigações? (l) veja bem, você não tem mais a essência da proposição. você não tem mais a lógica como descrição da essência da proposição. você tem configu- rações normativas de usos simbólicos significativos, não é? Configurações a que Wittgenstein chama de jogos de linguagem, com gramáticas diferentes. você tem uma configuração que é o jogo da representação do mundo, mas mesmo esse jogo é constituído por subjogos regionais, cada um com sua gra- mática, que não são incomunicáveis, mas que não são espécies de um gênero único que seria a lógica. Então, você pode dizer que tem lógicas. você tem a lógica, por exemplo, do seu discurso sobre o mundo psíquico, sobre os fenô- menos psíquicos; você tem a lógica do seu discurso matemático; a lógica do discurso sobre o mundo físico empírico. Não são sistemas incomunicáveis nem são incomensuráveis, mas são sistemas distintos. Então, você tem uma fragmentação da lógica, o que levou certos intérpretes a dizer: bom, então, eu estou comprometido com o relativismo. Isto é: vale tudo. Wittgenstein é absolutamente contrário a isso, e, no seu último escrito sobre a certeza, 36 Vol. IV • Filosofia: Conhecimento e Linguagem são muito claras as razões pelas quais ele é contrário a isso. Isto é, você pode dizer que as Investigações Filosóficas do segundo Wittgenstein constituem um pensamento perspectivista. Não há nenhuma dúvida. Isto é, tudo que eu digo, digo de uma perspectiva representativa. E a adequação dessa perspecti- va representativa não pode ser questionada do ponto de vista da verdade, não se pode perguntar se corresponde ou não à estrutura do mundo. Porque o que nós chamamos de estrutura do mundo é dado a partir dessa perspectiva. (m) Não tem sentido perguntar pela verdade dessa… (l) Dessa perspectiva. Porque ou essa pergunta é feita da mesma perspec- tiva, e daí a sua resposta vai ser tautológica, ou ela é feita de outra perspectiva e, portanto, ela vai apenas testemunhar da diferença entre as perspectivas. Então você dirá: eu tomo a perspectiva, eu digo coisas, essas coisas vão ser verdadeiras dessa perspectiva, essas mesmas coisas podem ser falsas de outra perspectiva, eu tenho um relativismo. Wittgenstein vai dizer: é obvio que não. Porque, se tudo o que digo eu digo de uma perspectiva, uma mesma coisa só pode ser dita de uma perspectiva. Portanto, não faz sentido dizer que uma mesma coisa é verdadeira de uma perspectiva e falsa de outra, porque de outra perspectiva não é mais a mesma coisa. Isto é, eu tenho um relati- vismo com respeito ao sentido das proposições: uma proposição ganha o seu sentido relativamente a uma perspectiva. No entanto, eu não tenho um relativismo quanto à verdade. Porque, dada a proposição com sentido naque- la perspectiva, se ela é verdadeira ou falsa independe agora da perspectiva. Dado o sentido da proposição, é o mundo que deve dizer se ela é verdadeira ou se ela é falsa. Então, de alguma maneira, você tem uma combinação inte- ressante, no segundo Wittgenstein, que é a combinação de um perspectivis- mo, mas com um não relativismo. Perspectivismo, como eu gosto de dizer, sem relativismo. (m) De qualquer maneira, sua leitura se contrapõe a leituras que reco- nhecem esse certo relativismo dentro das Investigações, talvez em particular porque o texto se constrói polemizando contra uma concepção essencialista, não é? Um conceito central nesse processo é, por exemplo, o conceito de semelhança de família, que regionaliza o sentido, que elimina o conceito de essencialidade. Em particular, você não vai ter mais uma essência da lingua- Lógica e linguagem 37 gem. você vai ter semelhanças entre diferentes coisas que são chamadas de linguagem. De que maneira você escapa de uma leitura relativista quando você abandona essa essencialidade dentro da própria linguagem? (l) Não, veja bem: a ideia de semelhança de família vem no bojo de uma recusa mais fundamental de Wittgenstein, que é a recusa de uma tese fun- damental no Tractatus, a de que o sentido ou bem ele é completamente de- terminado ou ele não é nada. O que remonta a uma tese de Frege. Dado um conceito, ou eu tenho critérios definitivos para dizer se uma coisa cai ou não cai sob ele,ou ele não é um conceito. Não existe conceito com fron- teiras indefinidas. Nas Investigações, por meio (entre outros) do conceito de semelhança de família, Wittgenstein recusa o conceito da determinação do sentido. Ele diz: não, existem conceitos tais que há casos em que os objetos obviamente caem sob eles, há casos em que os objetos obviamente não caem sob eles e existe uma zona cinzenta em que o conceito simplesmente não se aplica. Mas isso não quer dizer que, nos casos em que eles se aplicam ou não se aplicam, eles não sejam úteis para a descrição do mundo. E Wittgenstein vai além. Através da análise do conceito de regra − e no fundo, para Witt- genstein, um conceito é uma regra − ele mostra que, em última instância, todo conceito admite franjas de indeterminação. A ideia de uma fronteira absoluta da extensão dos conceitos seria tributária da ideia de uma justifi- cação absoluta na aplicação das regras, e em particular das regras que são os conceitos; portanto, em última instância, todo conceito é fundamentalmente indeterminado. Ora, ao fazer isso, qual o outro lado da moeda? é você recu- sar a ideia referencialista de que um conceito corresponde a algo em comum nas coisas. Porque, se ele corresponde a algo em comum nas coisas, a tese da determinação do sentido é inevitável, porque ou esse algo está numa coisa, e o conceito se aplica, ou não está na coisa, e o conceito não se aplica. No momento em que você recusa essa ideia referencialista, você tem a ideia da atividade de aplicar o conceito, de um lado, e, de outro, as situações em que você aplica o conceito, está certo? E você já não tem obrigação nenhuma de referencialmente vincular o símbolo conceitual a algo único e comum presente nessa situação. O que acontece a partir daí? A partir daí, aquilo que você diz mediante o termo conceitual passa a ser inevitavelmente relativo às regras que definem essa prática de usar o termo conceitual. Nisso consiste o perspectivismo. Ora, o que Wittgenstein mostra é que o relativismo é, na 38 Vol. IV • Filosofia: Conhecimento e Linguagem verdade, a outra face do dogmatismo. De fato, o que o relativismo pressu- põe? que uma mesma coisa possa ser investigada de diferentes perspectivas. Wittgenstein diz: a mesma coisa não pode ser investigada de diferentes pers- pectivas, mas essa coisa que é diferente não é o mundo, é o sentido da pro- posição. E o mundo vai responder ao sentido da proposição de uma maneira ou de outra, independentemente das nossas perspectivas. Então, eu posso dizer: bom, isso significa que a lua existe porque eu tenho uma perspectiva representativa que me permite dizer que a lua existe? − Não! Eu tenho uma perspectiva representativa sem a qual eu não poderia dizer que a lua existe; mas, já que eu tenho essa perspectiva, posso dizer que a lua existe, e dentro dessa perspectiva posso dizer que ela existiria, mesmo que a perspectiva não existisse. Só que aí eu não poderia dizer − mas ela existiria. Então, esse jogo de relatividade do sentido e relatividade da verdade é que escapa ao relati- vista e faz com que ele seja realmente solidário com respeito ao dogmático na questão que ele coloca − não na resposta, mas na questão. E a questão delimita o conjunto de respostas possíveis. (m) Para concluir: de alguma maneira, a gente viu que esse debate con- temporâneo sobre lógica está em interlocução com temas centrais da filo- sofia, com o contexto clássico grego em particular; mas, como você vê a recepção desse debate na filosofia contemporânea, qual o lugar desse debate na filosofia contemporânea? (l) Eu acho que, hoje em dia, Wittgenstein é um personagem central no debate filosófico. Não era quando eu comecei a fazer filosofia, não é? quan- do comecei a fazer filosofia se conhecia muito pouco, havia uma literatura secundária muito pequena. Isso na década de 1960, quando eu tive o meu primeiro contato com o Wittgenstein, e mesmo no começo da década de 1970, mas hoje em dia é diferente. As questões que Wittgenstein coloca são questões que outros filósofos muito importantes colocam, e até reconhecem pouco a sua dívida para com Wittgenstein, não é? Então, embora sejam filo- sofias completamente diferentes, existem afinidades temáticas e problemá- ticas entre, por exemplo, Wittgenstein, quine, Putnam, Davidson. Então, existe uma constelação de questões filosóficas e, nesta constelação, eu diria que Wittgenstein desempenha um papel central. Lógica e linguagem 39 (m) Obrigado Luiz. (l) Obrigado a você, Marcelo. o autor marcelo Carvalho Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, possui Mestrado e Graduação em Filosofia pela mesma Universidade. Atualmente é professor da Universidade Federal de São Paulo e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia desta universidade. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia da Linguagem e da Lógica, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia da linguagem, filosofia da lógica, filosofia antiga, ética. Lógica e gramática em Aristóteles \Marcelo Carvalho A investigação platônica e aristotélica da linguagem é um dos projetos fi-losóficos mais bem sucedidos que se poderá encontrar, dada sua quase unânime aceitação por mais de dois milênios de filosofia ocidental, situação que só seria abalada pelos trabalhos de Frege, no fim do século XIX. Chega a ser difícil conceber como a linguagem se colocava como problema à filosofia antes da distinção entre nomes e verbos1, do caráter articulado da proposi- ção e da investigação da necessidade a partir das relações de predicação, em particular na silogística. Nos diálogos intermediários de Platão (mais espe- cificamente no Crátilo) ainda encontramos o nome, e não a proposição, como “menor parte do discurso significativo”, um conceito de verdade fortemente “ontológico” (e não limitado à linguagem, como se consolidará a partir de Aristóteles) e a suposição de que a verdade de um discurso se reduz (deve ser explicada a partir da) à verdade dos nomes, colocando como questão sa- ber o que é um nome verdadeiro, questão que será considerada um equívo- co a partir da perspectiva estabelecida no Sofista, pois a verdade será, então, considerada característica da proposição, do discurso enunciativo, e não do nome, meramente convencional (sem que esta convencionalidade afete a possibilidade de que se construa um discurso verdadeiro, como Platão temia no Crátilo). A filosofia, nesse contexto “pré-lógico” (anterior ao Sofista e, principal- mente, à lógica aristotélica2), falava de verdade sem uma caracterização mí- nima do que entendia por isso, ou do âmbito de uso desse conceito, e argu- 1 Atribuída a Protágoras e consolidada na tradição por meio do Sofista de Platão. 2 Não consideraremos aqui o lugar central nessa construção ocupado por Parmênides, Heráclito e a sofística, principalmente Protágoras e Antístenes. mentava e provava sem uma investigação de como se estabeleceria a “neces- sidade” da conclusão ou a “validade” do argumento (e mesmo sem distinguir verdade e validade). O diagnóstico platônico, aceito por Aristóteles, é de que esse conjunto de problemas é o que possibilita as estratégias sofísticas. Trata- -se, então, para eles, de impedir essas estratégias por meio de um esclareci- mento filosófico da linguagem. O árduo trabalho filosófico que se consolida primeiramente no Sofista de Platão e, depois, de modo canônico, no Da Interpretação e nos Primeiros Analíticos de Aristóteles, se estabelece por meio de uma mistura de ontologia e gramática (do grego) que rapidamente passaria a ser concebida como uma descrição da própria natureza do pensamento, da linguagem e do próprio ser, como a geometria euclidiana seria uma explicitação da natureza do espaço. Nesses textos encontramos a construção de um conceito de proposição; a explicação da possibilidade de um discurso falso a partir de uma concep- ção geral da relação da linguagem com o ser3; a compreensão da predicação como relação departicipação; a caracterização da verdade como relação (de correspondência) entre a linguagem e o mundo por ela representado; a apre- sentação da estrutura “S é P” como essência de todo discurso enunciativo; e a subordinação do conceito de necessidade a essa estrutura predicativa – como uma propriedade das relações entre diferentes predicados atribuídos a um elemento comum, que se desdobra na silogística exposta nos Primeiros Analíticos. O resultado desse empreendimento pretende-se a explicitação da essên- cia de todo discurso, uma “gramática universal”, que deveria se fazer pre- sente em qualquer linguagem, à medida que se pretendesse significativa (e que, inversamente, determinou a gramaticalização “à moda grega” de todas as línguas “ocidentais”4). Mais ainda, pretende-se identificar todas as estrutu- ras argumentativas válidas. Essa ontologia e epistemologia estruturadas como gramática filosófica se- riam recebidas pela tradição como gramática (naturalizada, não filosófica: concebida como explicitação da natureza da língua e de toda linguagem) e 3 Ou seja, a recusa da “aderência do logos ao ser” que caracteriza a concepção de Parmênides e que gera as dificuldades consideradas no Crátilo e no Sofista de Platão. 4 De tal forma que estabelecer a gramática de uma língua significa estruturá-la segundo essa tradição, inicialmente grega e depois latina. 42 Vol. IV • Filosofia: Conhecimento e Linguagem instrumento do pensamento, organon, também concebido como explicitação dos meios de argumentação válida, apagadas suas relações com as concep- ções filosóficas que as determinam, a ponto de o questionamento dessa gra- mática e lógica ser recebido como questionamento obscurantista da razão, de todo argumento e da própria filosofia. Nosso objetivo aqui consiste em explicitar a forma como o projeto de construção da lógica, em particular nas obras de Aristóteles, se estrutura como um projeto filosófico singular que se situará no núcleo do que se cos- tuma chamar de filosofia ocidental. Pretende-se, ainda, mostrar a relação entre a análise da estrutura do discurso enunciativo, de caráter fortemente ontológico, com a construção aristotélica de uma teoria da inferência e com sua análise da “necessidade”. Para isso, consideremos o núcleo da gramática filosófica de Aristóteles: de um lado, sua construção do conceito de proposi- ção e das concepções de significação, verdade e pensamento a ele relaciona- dos, como se faz no Da Interpretação. De outro, como, a partir desse modelo de predicação se constrói a silogística e uma concepção sobre a “necessida- de”, cujo núcleo é os Primeiros Analíticos5. gramática e filosofia: o Da Interpretação O tratado Da Interpretação (Peri Hermeneia), de Aristóteles, se inicia com uma breve exposição que transita da multiplicidade das línguas e escritas entre diferentes povos para a unidade e identidade do pensamento a que se referem. 5 Platão, no Sofista, revisa elementos centrais da concepção de linguagem apresentada no Crátilo e estabelece algumas das bases do que será a lógica clássica aristotélica. Em primeiro lugar, reconhece a unidade básica de significação do discurso como sendo a “proposição”, e não o “nome” (como se afirmava no Crátilo): o menor discurso é exemplificado pela expressão “Teeteto voa” e compõe-se de nome e verbo. Ao contrário do nome, a proposição é complexa e essencialmente articulada. Ela não é um símbolo, que remete a um “objeto”, como o nome, mas a associação de um elemento a um gênero ou de um gênero a outro – como ao dizer que Teeteto seria do gênero das coisas que voam. é a esta relação de “participação” que se aplicarão os conceitos de verdade e falsidade: a proposição apresenta uma relação possível entre gêneros ou objetos e, assim, tem sentido. Caso esta relação ocorra de fato, a proposição, além de ter sentido, será verdadeira. Lógica e gramática em Aristóteles 43 Os sons dados na elocução são símbolos das afecções da alma, e os itens escritos são símbolos dos itens na elocução. E assim como os caracteres es- critos não são os mesmos para todos, tampouco as elocuções são as mesmas6. A multiplicidade assim descrita seria, entretanto, apenas superficial, pois para além dela Aristóteles indica que as “afecções da mente”, de que as pa- lavras faladas e escritas são símbolos, seriam as mesmas para toda a humani- dade, assim como seriam os mesmos os objetos de que essas afecções são re- presentações ou imagens. A diferença entre as diversas línguas se limitaria às diferentes convenções por meio das quais as mesmas afecções são referidas. Entretanto, os itens primeiros dos quais essas elocuções são sinais – as afecções da alma – são os mesmos para todos, assim como são as mesmas as coisas, das quais essas afecções são semelhantes7. Ao separar o fixo e o variável, o comum e o diferente na linguagem, e ao afirmar que o pensamento que se apresenta nas diferentes línguas é sempre idêntico, como seria idêntico o mundo que ele representa, Aristóteles situa sua investigação da forma como se estrutura o logos muito além de uma in- vestigação particular sobre como se apresenta a ele a língua grega. Seu obje- tivo é descrever a estrutura para além dessa particularidade, necessariamente presente em qualquer pensamento, a estrutura essencial de todo pensamen- to e discurso. A partir disso, o Da Interpretação afirma, em primeiro lugar, o caráter ne- cessariamente complexo de todo pensamento e, portanto, da linguagem, para que se lhe possa atribuir verdade e falsidade: Assim como, na alma, às vezes se dá um pensamento sem se pretender dizer algo verdadeiro ou falso, às vezes se dá um pensamento ao qual é necessário que suceda um desses dois casos, do mesmo modo ocorre também na elocução, pois o falso e o verdadeiro envolvem composição e separação8. é a exposição dessa estrutura complexa e articulada, por meio da qual se apresenta a “combinação” e a “divisão” que se dirá verdadeira ou falsa, que se apresenta como uma gramática de todo pensamento: as palavras se dividem 6 ARISTóTELES. Da Interpretação, I, 16ª. 7 Idem. 8 Aristóteles, Da Interpretação, I. 44 Vol. IV • Filosofia: Conhecimento e Linguagem em nomes e verbos. Os nomes, cujo significado é atribuído por convenção, não têm partes significativas (são “simples”) e não fazem referência à tempo- ralidade. O verbo, por sua vez, além de ter um significado particular (e ser, então, um nome), refere-se ao tempo e é, também, simples. Por meio dele, “algo é dito ou afirmado de algo”, isto é, algo é “predicado de um sujeito ou encontrado presente nele”. Os verbos indicam uma cópula ou síntese. Essa análise explicita que tanto o nome quanto o verbo, isoladamente, têm significado, mas não possibilitam que se façam afirmações e não podem ser verdadeiros ou falsos. As proposições, a parte das sentenças que expressa um julgamento e que, assim, podem ser ditas verdadeiras ou falsas, são o tema de investigação do tratado de Aristóteles9. Ao contrário dos nomes e verbos, a proposição é apresentada como essencialmente complexa, com- posta de nomes e verbos, por meio dos quais se afirma uma relação que pode ser verdadeira ou falsa. Dessa forma, todo discurso será ou uma proposição simples, que afirma ou nega algo de algo, ou uma composição a partir de proposições simples, de modo que a análise de todo discurso se reduz à aná- lise das proposições simples. Um tipo de proposição é “simples”, comportando todas as que afirmam ou negam uma coisa de outra, enquanto o outro é um tipo de proposição “composta”, ou seja, constituída de proposições simples. E uma proposição simples, mais especificamente, é uma afirmação que possui um significado, afirmando ou negando a presença de alguma outra coisa em um sujeito, no tempo presente, passado ou futuro10. Essa proposição simples consiste em afirmar uma coisa de outra (afirmar de um certo S que ele é P) ou negar uma coisa de outra (“S não é P”). Assim, segundo Aristóteles, todo pensamento e,a partir dele, toda lin- guagem, na medida em que afirme algo e possa ser verdadeiro ou falso, se estrutura segundo a forma sujeito-predicado. A verdade ou falsidade se re- ferem justamente à presença ou não do predicado no sujeito, se referem à combinação ou divisão. Segundo a formulação clássica do livro Iv da Metafí- sica: “dizer que aquilo que é não é, ou que aquilo que não é é, é falso, ao passo que dizer que aquilo que é é, ou que aquilo que não é não é, é verdadeiro, 9 A linguagem, abordada de uma outra perspectiva, é tema também da Poética e da Retórica de Aristóteles. 10 Aristóteles, Da Interpretação, v. Lógica e gramática em Aristóteles 45 de modo que quem pretende afirmar que é ou não é poderá estar dizendo o verdadeiro ou o falso”11. Apresentar como presente no sujeito (uma síntese) algo que nele está presente, apresentar como combinado o que é combinado, é dizer o verda- deiro. A verdade concebida nesses termos diz respeito a uma relação e se apre- senta na linguagem. As próprias coisas não são verdadeiras ou falsas. Ape- nas o pensamento estruturado segundo a forma sujeito-predicado (e a lin- guagem que o apresenta) pode ser verdadeiro ou falso. A universalidade do conceito de verdade pressupõe a universalidade da forma sujeito-predicado a partir da qual Aristóteles constrói sua descrição da gramática grega como gramática de todo pensamento. A essa análise da estrutura complexa e articulada da proposição12, Aristó- teles acrescenta a explicitação das propriedades da negação aplicada à combi- nação e divisão que caracteriza a proposição. A construção do conceito de proposição e sua análise nos termos da es- trutura sujeito-predicado, empreendida nos primeiros capítulos do Da Inter- pretação, se efetua, de maneira bastante breve, com o objetivo de estabelecer os pressupostos da análise dos “pares de proposição” de que trata a partir do capítulo vI. Aristóteles propõe-se investigar como a negação opera sobre essa estrutura proposicional descrita no início do tratado. Assim, a partir da constatação de que a negação se aplica a qualquer proposição que pode ser afirmada, constituindo pares de opostos: “é possível negar tudo aquilo que se afirma, assim como afirmar tudo aquilo que se nega. Por conseguinte, é evidente que, para toda afirmação, há uma negação oposta, e que, para toda negação, há uma afirmação oposta”13. Aristóteles passa a analisar, então, como a negação estabelece uma relação entre a proposição afirmada e suas negações, que serão chamadas de contra- ditória e contrária. Assim, no caso da proposição “todo homem é branco”, quando em sua negação “o sujeito não é universalmente tomado, eu as cha- mo de contraditoriamente opostas” (vii). 11 Metafísica, 7, 1011b26. 12 Cf. SANTOS, L. H. L. A essência da proposição e a essência do mundo. p. 54. 13 Aristóteles, Da Interpretação, vi. 46 Vol. IV • Filosofia: Conhecimento e Linguagem Esse é o caso da proposição “nem todo homem é branco”. No caso das proposições contrárias, “ambas [a afirmação e a negação] [são] universais na forma, tendo um universal por sujeito” (vii). Como no caso das proposições “Todo homem é branco” e “Nenhum homem é branco”, Aristóteles esclarece também que as proposições podem ser universais ou particulares (ou singulares) e que a palavra “todo”, “aplica- da ao sujeito, diz respeito à totalidade da proposição, em sua universalidade absoluta” (vii). Essas contraposições são explicitadas para que se conclua, então, sobre a relação necessária que se estabelece entre elas: as contrárias não podem ser am- bas verdadeiras ao mesmo tempo, mas podem ser ambas falsas. Já, quando se trata das proposições contraditórias, “uma deve ser verdadeira, a outra falsa”. Explicita-se, assim, que a caracterização de toda proposição segundo a estrutura “S é P”, ainda que artificial (considere-se, por exemplo, a propo- sição “Teeteto voa”, que teria que ser reconstruída para adequar-se à forma sujeito-predicado), tem como objetivo possibilitar a caracterização da infe- rência, da afirmação de que dada uma proposição segue-se que outra é ne- cessariamente verdadeira ou falsa, a partir da relação entre os seus predicados. Predicação e silogística: os Primeiros Analíticos Os conceitos de inferência e necessidade são, assim, construídos a partir do modelo de predicação apresentado no início do Da Interpretação. A infe- rência dirá respeito justamente a uma relação entre predicações. O mesmo ocorre na silogística aristotélica, apresentada nos Primeiros Analíticos, onde esse modelo é ampliado e estruturado de maneira surpreendentemente ela- borada e ambiciosa. Nesse texto, Aristóteles se propõe a empreender uma ciência da demons- tração e explicitar a estrutura de toda demonstração14. Sua análise parte justa- mente da estrutura sujeito-predicado. 14 Nos Primeiros Analíticos, Aristóteles explicita a amplitude de seu projeto: “a razão porque devemos tratar dos silogismos antes de tratar da demonstração é que o silogismo é mais universal; Lógica e gramática em Aristóteles 47 Assim, uma premissa silogística será apenas a afirmação ou negação de algum predicado sobre um sujeito, da forma já descrita [Prim. Anal. I, i]. O modelo que se explicita a partir daí é fundado no modelo da predica- ção, na medida em que a inferência só é possível por as proposições apresen- tarem predicados que contêm uns aos outros. Assim, Pois um termo estar inteiramente contido em um outro é o mesmo que o se- gundo ser predicado da totalidade do primeiro. Dizemos que um termo é predi- cado da totalidade de um outro quando não se pode encontrar nenhum caso do sujeito em que o predicado não possa ser afirmado. Da mesma forma dizemos que um termo não é predicado de nenhum caso de um outro [Prim. Anal. I, i]. Nesses termos, o silogismo da primeira figura é descrito nos seguintes termos: quando três termos são relacionados entre si de tal forma que o último está inteiramente contido no intermediário e o intermediário está inteiramente con- tido no primeiro, os extremos devem admitir um silogismo perfeito. Pois se A é predicado de todo B, e B de todo C, A deve necessariamente ser predicado de todo C [Prim. Anal. I, iv]15. Essa relação de pertinência, possibilitada apenas pela atribuição de um predicado ao sujeito, que caracteriza a concepção aristotélica de proposição, resulta, assim pretende Aristóteles, na necessidade da relação de inferência entre premissas e conclusão. Um silogismo é uma forma de discurso em que, quando certos pressupostos são assumidos, algo mais do que o que foi assumido necessariamente se segue do fato de que as suposições são essas. Por “do fato de que as suposições são essas” eu quero dizer que é por causa delas que as conclusões se seguem. E com isso pois a demonstração é um tipo de silogismo, mas nem todo silogismo é uma demonstração” [Prim . Anal . I, iv] . 15 A substituição dos termos por letras, feita por Aristóteles, explicita o formalismo de sua análise, à medida que nenhuma consideração sobre aquilo de que se fala é relevante na análise da inferência. 48 Vol. IV • Filosofia: Conhecimento e Linguagem quero dizer que não há nenhuma necessidade de um outro termo para tornar a conclusão necessária [Prim. Anal. I, i]. Essa relação entre premissas e conclusão se estabelece da seguinte forma. Um silogismo se estrutura por meio de duas premissas que compartilham um termo médio que as relaciona e possibilita a conclusão (da qual está au- sente). Todo homem é mamífero. Todo mamífero é mortal. Logo, todo homem é mortal. Podemos substituir os termos por letras, de modo a explicitar que a re- lação entre as premissas e a conclusão é formal, ou seja, não se relaciona de maneira alguma com aquilo de que se trata em cada proposição. Então temos que: Todo S é M. Todo M é P. Logo, todo S é P. Nesse silogismo, o termo médio é M, que aparece nas duas premissas, relacionando-as, e não aparece na conclusão. Ele estabelece a mediação entre S e P e explicita
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