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FILOSOFIA Renan Costa Valle Scarano A filosofia analítica Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Listar os elementos filosóficos analíticos. Analisar questões por meio da filosofia. Definir validade e verdade para a filosofia. Introdução Neste capítulo, você vai estudar a filosofia analítica. Você vai conhecer o contexto filosófico em que surge tal movimento, os elementos da filosofia analítica e os seus principais filósofos. A filosofia analítica é um movimento filosófico surgido no século XX no contexto anglo-saxão. Tal vertente utiliza a análise como principal ferramenta para estudos filosóficos. Nesse sentido, a filosofia analítica aborda os significados e os conceitos; portanto, a linguagem aparece como o foco central dessa vertente. Elementos da filosofia analítica D’Agostini (2003) caracteriza como árdua a tarefa de falar sobre a fi losofi a a partir do século XX. A autora aponta três pontos para fundamentar a sua afi rmação: em primeiro lugar, existem muitas fi losofi as; em segundo lugar, tem-se falado muito em fi losofi a aplicada, ou seja, fi losofi a política, fi losofi a da ciência, fi losofi a da lógica, fi losofi a da religião, etc.; e, em terceiro lugar, há a suspeita de que aquilo que se entende por fi losofi a seja um resíduo inútil da cultura ocidental, um tipo de discurso excêntrico. Assim, como pontua D’Agostini (2003), o campo filosófico contemporâneo é um vasto espaço em que coexistem diversos saberes. Há, no cenário filosófico, sobretudo a partir dos anos 1960, uma pluralidade de filosofias e perspectivas teóricas. Nesse período, são publicadas algumas obras que evidenciam essa pluralidade no campo filosófico: Verdade e método (1960), de H. G. Gadamer; A estrutura das revoluções científicas (1962), de T. Kuhn; Palavra e objeto (1960), de W. Quine; Estruturas sintáticas (1957), de N. Chomsky; Como fazer coisas com as palavras (1960), de J. L. Austin; A caminho para a linguagem (1959), de M. Heidegger; História e crítica da opinião pública (1962), de J. Habermas; A ideia de ciência social e as suas relações com a filosofia (1958), de P. Winch. Essa pluralidade de filosofias reflete as muitas tendências de se pensar o presente. Entre elas, pode-se destacar: a filosofia analítica, a hermenêutica, a teoria crítica, o pós-estruturalismo e a epistemologia pós-positivista em suas várias expressões. O ponto em comum entre essas abordagens é o primado da esfera prática sobre a teórica. Nessa perspectiva, a filosofia analítica é herdeira do neopositivismo, do pragmatismo e da tradição analítica inglesa. Portanto, ela aparece como um modo próprio de conceber a filosofia, uma práxis filosófica que busca uma filosofia científica fundamentada na lógica, nos resultados das ciên- cias naturais e exatas (D’AGOSTINI, 2003). Nesse sentido, a filosofia analítica possui três características: ela vê a filosofia como uma análise, possui a lógica e a análise como conceitos pressupostos na linguagem e está ligada à tradição empirista anglo-saxônica (sobretudo àquela formada em Oxford e Cambridge). Para Costa (1992), a filosofia analítica ou filosofia analítica da linguagem é uma denominação genérica de certa maneira de se fazer filosofia. A filosofia analítica, assim como a filosofia tradicional, também se pergunta sobre o conhecimento, a verdade, a existência, a liberdade e o bem. Trata-se de uma interrogação acerca das coisas, dos conceitos, das ideias. Nessa perspectiva, é possível considerar Platão e seu interesse por buscar a hierarquia das ideias entre si; para ele, a ideia de bem encontrava-se no ápice. Já Aristóteles questionava as diferentes maneiras como o “ser” pode ser dito. Por sua vez, Descartes buscava saber que entidade seria aquela de cuja existência o indivíduo não pode duvidar; para ele, a certeza da existência de tal entidade forneceria um fundamento seguro para o edifício do conhecimento. Por fim, Kant questionava-se como o próprio conhecimento era possível (COSTA, 1992). Contudo, a filosofia analítica possui um modo próprio de tratar desses problemas filosóficos: A filosofia analítica possui um novo paradigma de clareza e de rigor me- todológico, capaz de evitar certos erros por vezes cometidos pela filosofia tradicional. Este paradigma [...] se evidencia no modo de questionamento que coloca a linguagem no centro das atenções (COSTA, 1992, p. 14). Desde a sua origem, na Grécia Antiga, a filosofia fez perguntas cujo ponto de partida eram questões substantivas fundamentais. O campo de possíveis A filosofia analítica2 questões filosóficas era centrado e organizado (TUGENDHAT, 1992). No campo da filosofia analítica, argumenta Tugendhat (1992), a questão subs- tantiva não é considerada um ponto central para o filosofar. O autor sugere que a filosofia analítica da linguagem refere-se a um modo específico de se fazer filosofia, “[...] que inclui a crença de que todos os problemas de filosofia podem ser resolvidos, ou devam ser resolvidos, por meio de uma análise da linguagem” (TUGENDHAT, 1992, p. 16). Portanto, para a filosofia analítica, a questão central não é “o que é”. Para ela, é necessário deter-se no significado ou na forma como são usadas as palavras. Os conceitos, nessa perspectiva, precisam ser clarificados, elu- cidados e analisados; para isso, existem certas técnicas. Dessa maneira, em vez de perguntar-se o que é conhecimento, a filosofia analítica questiona: o que significa a palavra “conhecimento”? Como ela é usada? (COSTA, 1992). Em suma, a filosofia analítica procura resolver os problemas filosóficos por meio de uma análise da linguagem. Analisar significa decompor em partes, dividir, desmembrar um conceito em outros conceitos ou caracte- rísticas que o constituem (COSTA, 1992). Considere o exemplo do conceito de triângulo: O triângulo é uma figura geométrica fechada, constituída de três linhas retas. O conceito de figura geométrica fechada e o conceito de linha reta são carac- terísticas constitutivas do conceito de triângulo, sendo, em algum sentido, pensados quando pensamos este último (COSTA, 1992, p. 22). O filósofo Wittgenstein (1889–1951), em sua obra Tractactus logico-phi- losophicus (1961), inicia o seu filosofar da seguinte maneira: “O mundo é tudo o que ocorre [acontece]” — definição de mundo; “O que ocorre, o fato, é o subsistir dos estados de coisas” — definição de acontecimento. Nesses termos, Wittgenstein explica alguns conceitos abstratos, como: fato, caso e estado de coisas. Tais conceitos são esclarecidos pelas conexões lógicas que têm entre si (COSTA, 1992). Conforme Oliveira (2001), os interesses de Wittgenstein, tanto em sua primeira fase como na fase que inicia a partir das Investigações, são a linguagem e o pensamento. Nesse sentido, cabe a questão: o que é linguagem? O que é pensar? Qual é a relação entre pensar e falar? Em que sentido um sinal expressa um pensamento? Essas são questões sobre as quais Wittgenstein se debruça. 3A filosofia analítica A linguagem possui uma função a cumprir nas relações intersubjetivas. Para cumprir essa função, questiona Oliveira (2001), que estrutura devem ter o mundo e a linguagem? Entra em cena a função designativa, instrumentalista e comunicativa da linguagem. Para Wittgenstein, “[...] a linguagem figura o mundo sobre o qual ela fala e a respeito do qual nos informa” (OLIVEIRA, 2001, p. 96). Wittgenstein defende que o mundo é a totalidade dos fatos, e não das coisas. Para ele, o sentido de uma frase é resultado da associação das significações de seus elementos. Ou seja, o elemento de uma frase só é elemento, ele não tem sentido fora da frase. A filosofia analítica concentra-se na análise da linguagem, uma análise que esmiúça e decompõe aquilo que se apresenta (D’AGOSTINI, 2003). Questões de filosofia analítica Se você buscar uma origem para o movimento analítico, vai se deparar com o positivismo lógico ou neopositivismo,no centro europeu dos anos 1910 a 1930. Também vai encontrar o trabalho dos primeiros analistas de Cambridge, que são Bertrand Russell (1872–1970) e George Edward Moore (1873–1958). O que dirige o trabalho dos fi lósofos analíticos é a linguagem e o pensamento. Adiciona-se a eles a relação dos fi lósofos com a lógica, com vários campos da linguística e com as ciências cognitivas (D’AGOSTINI, 2003). Entre as análises realizadas na filosofia analítica, destacam-se: análises de orientação lógico-linguística; análises de prevalência psicológico-cognitiva; e análises aplicadas, “[...] que se ocupa[m] tanto de problemas lógicos ou psico- lógicos quanto dos problemas da justiça, da política, da ética” (D’AGOSTINI, 2003, p. 288). O empirismo britânico, a lógica formal, as ciências naturais e a matemática aparecem como as matrizes que impulsionam a filosofia analítica (SCHWARTZ, 2017). Ressaltando o enfoque filosófico sobre a linguagem, Marcondes (1997) pontua que ela ganha destaque na passagem do século XIX para o XX. Considere o seguinte: É significativo, portanto, que a questão sobre a natureza da linguagem, sobre como a linguagem fala do real, sobre o sentido dos signos e proposições lin- guísticas, emerja como um problema central na filosofia e em outras áreas do saber [...] em várias correntes teóricas que, embora apresentem diferentes formas de tratamento dessa questão, compartilham o ponto de partida comum na linguagem (MARCONDES, 1997, p. 285). A filosofia analítica4 Marcondes (1997, p. 285) ainda destaca que uma das teorias que refletem esse enfoque na linguagem é a filosofia analítica: Na Alemanha e posteriormente na Inglaterra, [há] o desenvolvimento da ló- gica matemática, que se inspira em parte em Leibniz, e da filosofia analítica da linguagem, com Gottlob Frege (Conceitografia, 1879), Bertrand Russell (Princípios de matemática, 1903, e Principia mathematica, 1910, com A.N. Whitehead) e Ludwig Wittgenstein (Tractatus logico-philosophicus, 1921). Nos Estados Unidos, Charles Peirce (1839–1914) aborda a semiótica em sua teoria geral dos signos, em que expõe a sua concepção pragmática de ciência. Em seu pensamento, o filósofo defende que as hipóteses verdadeiras são as que originam os melhores resultados (MARCONDES, 1997). Portanto, Peirce aponta para a questão pragmática da filosofia. Há também o positivismo lógico do Círculo de Viena e a sua concepção de fundamentação do conhecimento científico na lógica das teorias científicas, com Rudolph Carnap (A estrutura lógica do mundo, 1928, e A sintaxe lógica da linguagem, 1934) e Moritz Schlick (com o artigo “Significado e verificação”, 1936) (MARCONDES, 1997). De 1926 a 1930, na cidade de Viena, um grupo de professores e cientistas fundou uma sociedade cuja finalidade era o estudo do conhecimento científico e de seus métodos. Entre os principais membros desse grupo estão: Moritz Schlick, P. Franck, Otto Neurath e Rudolf Carnap (BUSSOLA, 2000). Reale e Antiseri (2006a) defendem que a filosofia analítica é um movimento surgido em Oxford e Cambridge. Em Cambridge, os autores apontam três fi- lósofos como os grandes iniciadores, do ponto de vista teórico, do movimento. São eles: Russell, Moore e Wittgenstein. Os principais pontos das filosofias desses pensadores são: de Russell, suas abordagens a respeito da linguagem da ciência e da lógica; de Wittgenstein, o princípio de uso e a teoria dos jogos; de Moore, a base da filosofia analítica de Cambridge (REALE; ANTISERI, 2006a). Gottlob Frege (1848–1925) e Russell despontam como os dois pilares desse movimento filosófico analítico. Russell, entre 1899 e 1900, adota em seu pensa- mento a filosofia do atomismo lógico e a técnica de Peano na lógica matemática. Giussepe Peano (1858–1932) foi um matemático italiano que objetivava expressar toda a matemática em termos de um cálculo lógico. O sistema axiomático de Peano consta de cinco axiomas, “[...] formulados com a ajuda de três primitivos, que são: número, zero, sucessor imediato de” (REALE; ANTISER, 2006b, p. 100). A intenção de Peano era reduzir a aritmética comum a um puro simbolismo formal: 5A filosofia analítica O atomismo lógico pretendia ser uma filosofia emergente da simbiose entre um empirismo radical e uma lógica perspicaz. A lógica oferece as formas- -padrão do raciocínio correto e o empirismo oferece as premissas, que são proposições atômicas ou proposições complexas, construídas a partir das primeiras (REALE; ANTISERI, 2006a, p. 297). De acordo com essa lógica, uma proposição atômica descreve um fato, afirma que determinada coisa possui uma qualidade ou que possui certa relação. O fato atômico é aquele que torna verdadeira ou falsa uma proposição atômica (REALE; ANTISERI, 2006a). Outro dado importante sobre Russell é a publicação de sua obra Os prin- cípios da matemática, de 1910, em que o filósofo pretende mostrar que toda matemática procede da lógica simbólica. Pode-se dizer também que há uma proximidade entre a lógica proposta por Russell e as ideias do matemático Frege. Em ambos, há uma sustentação do realismo platônico para os objetos da matemática; lê-se que os números, as classes e as relações possuem existência independente do sujeito e da experiência (REALE; ANTISERI, 2006a). Russell realiza uma rigorosa análise da linguagem sob a óptica da lógica. Ele preocupou-se com a relação entre a linguagem e os fatos. Reale e Antiseri (2006a) ainda apontam para o fato de que Russell levantou duas acusações contra a filosofia analítica. A primeira é que ela pratica certo culto ao uso da linguagem; por outro lado, a filosofia analítica, em vez de buscar o sentido das coisas e da realidade, preocupa-se de modo estéril com o sentido das palavras. Frege, também considerado um dos pilares da filosofia analítica, contrapõe a sua lógica simbólica ao silogismo de Aristóteles. Nesse sentido, os conceitos de sujeito e predicado são substituídos pelos de argumento e função. Esse empreendimento realizado por Frege busca também reduzir os axiomas da matemática à lógica simbólica (SCHWARTZ, 2017). Para Miguens (2007, p. 84), a preocupação teórica de Frege é com o pensamento e com a verdade, e não com a linguagem ela própria e por si mesma: Para Frege, a linguagem, e muito especialmente a linguagem natural, é ape- nas um “meio” de expressão do pensamento, e um meio que frequentemente obscurece este. Frege admite no entanto que não há outra forma de aceder ao pensamento que não seja a linguagem. Desse ponto de vista, Frege não se diferencia da filosofia tradicional de Platão, Aristóteles, Descartes ou Kant. Contudo, o que traz de novo “[...] é a ideia de concentrar as investigações filosóficas na linguagem e a ideia de usar meios lógicos para fazê-lo. Para além do mais, desenvolve ele próprio um A filosofia analítica6 sistema lógico para apoiar tais investigações” (MIGUENS, 2007, p. 84). Já o filósofo Moore desenvolve uma filosofia centrada na rejeição ao idealismo e na veracidade do senso comum. Moore escreveu, em 1903, Principia Ethica, em que combate a falácia naturalista que diz que o bem é uma qualidade observável nas coisas; para o filósofo, não há como definir o bem (REALE; ANTISERI, 2006a). Outro filósofo que se destaca em Cambridge é Wittgenstein. Em 1921, escreve Tractatus logico-philosophicus, obra que influenciou os neopositivistas do círculo de Viena. Veja algumas ideias centrais do Tractatus: 1. O mundo é tudo o que ocorre. 1.1 O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas. 1.11 O mundo é determinado pelos fatos e por isto consiste em todos os fatos. [...] 3. Pensamento é a figuração lógica dos fatos [...] 3.01 A totalidade dos pensamentos verdadeiros é figuração do mundo. 3.02 O pensamento contém a possibilidade da situação que ele pensa. O que é pensável também é possível (WITTGENSTEIN, 1961, p. 61). De acordo com Reale e Antiseri (2006a), o Tractatus defende que a teoria da realidade corresponde à teoria da linguagem, pois Wittgensteinfaz da linguagem uma representação projetiva da realidade. Para Wittgenstein, as pessoas fazem representações dos fatos; logo, se a representação é um modelo de realidade, o que a representação deve ter em comum com a realidade é a forma de sua representação (REALE; ANTISERI, 2006a). Há uma estrutura lógica nas propo- sições que representam a realidade e, assim, cada elemento que constitui o real corresponde a um elemento no pensamento (REALE; ANTISERI, 2006a). Assim, a linguagem é, dessa óptica, formada por proposições complexas (moleculares), que podem ser divididas entre atômicas ou simples: “O nome significa o objeto. O objeto é seu significado” (REALE; ANTISERI, 2006a, p. 310). Considere a seguinte frase: “Sócrates é ateniense”. Essa é uma proposição atômica, pois descreve o fato (atômico) de Sócrates ser ateniense. Mas a frase “Sócrates é ateniense e mestre de Platão” é uma proposição molecular. Portanto, a proposição atômica é a menor entidade linguística da qual se pode proclamar o verdadeiro ou o falso. É o fato atômico que torna verdadeira ou falsa uma proposição atômica. Já o fato molecular é uma combinação de fatos atômicos que torna verdadeira ou falsa uma proposição molecular (REALE; ANTISERI, 2006a). 7A filosofia analítica Quando Wittgenstein retorna para dar aulas em Cambridge, em meados de 1929, a sua filosofia não é mais centrada nas ideias do Tractatus. O autor escreve uma série de obras que criticam as interpretações que veem a lingua- gem como um conjunto de nomes que denominam ou designam os objetos. Nesse novo período, Wittgenstein trabalha com a ideia de que a linguagem é um conjunto de jogos, os chamados jogos de linguagem. Portanto, há uma significativa alteração do pensamento de Wittgenstein: no Tractatus, o filósofo aborda a forma geral da proposição, enquanto no período das Investigações filosóficas ele trata de jogos de linguagem. Nesse seu segundo momento filosófico, Wittgenstein defende que o signi- ficado de uma palavra é o seu uso. Por sua vez, o uso possui regras, e seguir uma regra equivale a seguir uma ordem. Portanto, ao dar uma ordem ou ao acatá-la, ao jogar uma partida de xadrez, as pessoas constroem usos, hábitos. As regras que as pessoas seguem para se comunicar são públicas (REALE; ANTISERI, 2006a). Wittgenstein traz uma questão para a filosofia analítica da linguagem: o cotidiano. Ele argumenta que a linguagem opera sobre o fundo das necessidades humanas. Daí que o significado de uma palavra seja o seu uso. “Não busqueis o significado, buscai o uso” (REALE; ANTISER, 2006a, p. 314), dizia Wittgenstein, contrariando a própria tradição da filosofia analítica que buscava o significado da linguagem. Outra universidade que se destaca na tradição da filosofia analítica anglo- -saxã é Oxford. Nesse contexto, cabe destacar dois pensadores que criam as bases da filosofia analítica em Oxford: Gilbert Ryle (1900–1976) e John L. Austin (1911–1960). Também é necessário levar em conta Ferdinand de Saussure, linguista e filósofo suíço cuja obra é tida como marco inicial da ciência moderna da linguagem, a linguística. A sua doutrina concentra-se no Curso de linguística geral, publicado em 1916; a obra é resultado dos escritos de alunos que assistiam às aulas de Saussure. Castim (2017, p. 85) comenta o seguinte sobre a contribuição de Saussure para os estudos da linguagem: “[...] o signo linguístico possui um lado mental e um lado social, visto que sempre forma um sistema inserido dentro de uma sociedade”. A primeira concepção sobre signo é que ele expressa uma ideia, um conceito, um significado de algo. Essa concepção está na mente de cada indivíduo de uma sociedade. Logo, a linguagem exterioriza algo interior; ou seja, o sujeito, quando menciona algo por meio da fala, já tem uma ideia (na mente) sobre aquilo que está nomeando. Portanto, há um uso social da lingua- gem, há uma interação, visto que o sujeito que fala é compreendido pelo que ouve, pois ambos possuem a ideia daquilo que está sendo comunicado. Dessa A filosofia analítica8 maneira, pode-se concluir que os signos linguísticos pressupõem sempre os seus usuários e são constituídos por eles e para eles (CASTIM, 2017). A partir dos anos 1940, com Wittgenstein e Austin, tem-se uma nova concepção sobre a linguagem. Nesse viés, a ciência é vista como uma das formas possíveis na relação com o real (CASTIM, 2017). A linguagem é encarada como uma prática social e, portanto, deve ser analisada em seu uso. Nessa perspectiva, há uma virada na forma como a linguagem é captada, da semântica à pragmática. Daí que Wittgenstein desenvolve a sua teoria sobre os jogos de linguagem e Austin propõe os atos de fala: “A linguagem tem, pois, segundo essa concepção, um caráter performativo, pois é por meio dela que realizamos uma série de atos, como prometer, ordenar, pedir, eleger, nomear — todos verbos performativos” (AUSTIN apud CASTIM, 2017, documento on-line). Para os pragmáticos da linguagem, isto é, para aqueles que pensam a linguagem por meio de seu uso, o significado da linguagem não decorre de objetos já com significados implícitos, mas deve decorrer do uso que é feito dela, das possibilidades ou regras que determinam a sua utilização. Nesse sentido, o significado é reconstituído no uso que é feito da linguagem (CASTIM, 2017). Os atos de fala realizam, pois, aquilo que está sendo feito; portanto, são pragmáticos. Com relação à teoria dos atos de fala de Austin, Castim (2017) explica que dizer algo equivale a três atos simultâneos: ato locutório (baseado nos níveis fonético, sintático e referencial); ato ilocutório (aquele que possui força performativa, indica como o dizer é recebido em função da força com que é proferido) e ato perlocutório (equivale aos efeitos causados sobre o outro, como influenciar o outro, persuadi-lo, etc.). Austin também classifica os atos performativos em seis tipos, como você pode ver a seguir. Os atos assertivos “[...] são aqueles que se usam para representar fatos ou situações que o interlocutor pode comprovar” (CASTIM, 2017, documento on-line), por exemplo, “[...] as árvores florescem na primavera”. Os atos diretivos indicam como proceder em determinada situação e são expressos em frases interrogativas ou imperativas, por exemplo, “você sabe ler?” ou “escute essa música”. Os atos compromissivos são os que “[...] revelam um compromisso/ disposição ao enunciador em agir ou proceder em conformidade com o conteúdo proposicional da frase” (CASTIM, 2017, documento on-line). 9A filosofia analítica Esses atos são realizados no prejuízo ou pelo interesse do interlocutor (“amanhã eu lhe adianto o salário”) ou em forma de ameaça (“se você não terminar até amanhã, não lhe pagarei”). Os atos expressivos são os que expressam congratulações, condolências. Os atos declarativos são atos pelos quais é possível modificar um estado de coisas no mundo, por exemplo, as sentenças dos juízes. Os atos interjeitivos “[...] referem-se a palavras ou palavra (frase de situação), realizando típicos atos de fala diretivos ou expressivos” (CASTIM, 2017, documento on-line). Ao lado de Austin, Gilbert Ryle também dominou a cena da filosofia analítica em Oxford. Ryle estudou os positivistas lógicos, entre eles o pri- meiro Wittgenstein. Em sua obra Categorias, de 1937, Ryle sustenta que a tarefa do filósofo é debruçar-se sobre a linguagem para “[...] descobrir, corrigir e prevenir os erros lógicos, ou erros categoriais, que consistem em atribuir um conceito a uma categoria à qual ele efetivamente não pertence, mas que apresenta com ela unicamente afinidades gramaticais” (REALE; ANTISERI, 2006a, p. 325). Ryle, em sua filosofia, distinguiu o uso da linguagem comum do uso comum da linguagem. Em sua obra Conceito de espírito (1949), ele analisou a noção de espírito e mostrou que, “[...] para entender e esclarecer as expressões da linguagem comum em que essa noção aparece, não há necessidade de afirmara realidade substancial da alma nem de admitir que a consciência constitui um acesso privilegiado a essa realidade” (ABBAGNANO, 2007, p. 329). Por meio da análise da linguagem comum, busca-se esclarecer situações recorrentes do cotidiano (portanto, comuns) em que toda pessoa pode se encontrar. A definição de validade e verdade para a filosofia analítica A fi losofi a tem tratado do tema da verdade desde os primeiros pensadores. Assim, a verdade tem entrado na discussão dos fi lósofos tanto no âmbito da metafísica quanto na esfera do conhecimento. Isso ocorre ao menos desde Parmênides, fi lósofo pré-socrático que falava da verdade enquanto aletheia, isto é, verdade desvelada. No poema intitulado Da Natureza, Parmênides narra que um jovem é conduzido à presença de uma deusa que o convida a trilhar um caminho. A divindade fala a Parmênides: A filosofia analítica10 Vem, agora, vou dizer-te — e tu presta atenção às minhas palavras e guarda- -as em ti mesmo — as duas únicas vias de procura que se podem conceber. A primeira, a saber, que o ser é e que é impossível para ele não ser, é a via na qual se deve confiar, pois segue a Verdade. A segunda, a saber, que o ser não é e que o não-ser é necessário, esta via, eu te digo, é um caminho onde não se encontra nada em que se possa confiar (BRUN, 1991, p. 62). Platão, no mito da caverna, no livro 7 de A República, traz à tona o en- tendimento de que os homens vivem sob as sombras e não enxergam a luz da verdade. Os homens que estão no interior da caverna tomam como sua realidade as sombras refletidas nas paredes. Assim, a luz do dia não é contemplada por eles. Enxergar a realidade das coisas, alcançar a ideia delas, é alcançar a verdade. O homem que se liberta dos grilhões e sai da caverna enxerga a luz do sol, a luz da verdade, que mostra como as coisas são. Ou seja, as coisas são desveladas; assim, novamente tem-se a ideia de verdade e desvelamento. No entanto, Platão soma à discussão sobre a verdade o tema da paideia (formação do homem grego) (COSTA, 2010). Nesse sentido, o homem que se liberta das trevas e dos grilhões que o mantinham preso na caverna sai, vê a luz do sol (verdade) e retorna para trazer esse conhecimento para os outros homens que não saíram das trevas e que continuaram a encarar as sombras do real como se fossem a própria realidade. Tomás de Aquino (1225–1274), filósofo medieval, também discorreu sobre a questão da verdade. Para o filósofo cristão, a realidade é uma criação, ou seja, há um criador, um Ser, que o pensamento cristão designa pelo nome de Deus. O tema da verdade é discutido por Tomás em sua grande obra Suma Teológica, na parte intitulada “Questões discutidas sobre a Verdade”. A verdade se encontra presente na coisa ou no intelecto? Essa é a questão que Tomás tenta responder. Nesse sentido, ele não adota nenhuma postura que indique que a verdade está no intelecto ou na coisa. Tomás faz uma espécie de síntese, da seguinte maneira: Chamamos verdade, diz ele [Tomás], aquilo a que tende o intelecto e o conhe- cimento consiste em que o conhecido está naquele que conhece — cognitum in cognoscente, ao oposto do ato de desejar que termina naquilo que o atrai. A consequência: o bem está na coisa que se deseja, enquanto o verdadeiro está no intelecto, na medida em que se conforma com a coisa conhecida (CAMELLO, 2009, documento on-line). Desse modo, a verdade, para Tomás de Aquino, é uma adequação do intelecto à coisa. Já na Modernidade, Descartes também traz a questão da verdade como elemento-chave do pensamento filosófico. Descartes constrói 11A filosofia analítica seus argumentos a partir de uma verdade indubitável, trata-se do “penso, logo existo”. Com isso, o pensador francês fundamenta que a verdade se inicia na mente, e não na natureza das coisas. No livro quarto do Discurso do Método, Descartes afirma que o seu desejo na investigação filosófica é “[...] dedicar-me apenas à pesquisa da verdade” (DESCARTES, 2004, p. 61). A verdade, para ele, é resultante da razão, a razão é evidente: “A razão não sugere que tudo quanto vemos ou imaginamos seja verdadeiro, mas nos sugere realmente que todas as nossas ideias ou noções devem conter algum fundamento de verdade” (DESCARTES, 2004, p. 68). Em Kant (1724–1804), a questão da verdade também “[...] não tem mais seu fundamento nas coisas, com referência às quais um juízo da inteli- gência se estabelece na divisão ou composição, mas é uma pura relação imanente da inteligência” (CAMELLO, 2009, documento on-line). Assim, explica Camello (2009, documento on-line), na Lógica, Kant define “[...] a verdade formal como a concordância do conhecimento consigo mesmo e, na Crítica da Razão Pura, entende a verdade como a concordância do conhecimento com seu objeto, ou, melhor dizendo, o acordo do juízo com as leis imanentes da razão”. A verdade está na coisa ou está no intelecto? Como você viu, alguns filósofos se debruçaram sobre a questão da verdade, seja no âmbito metafísico ou no âmbito do conhecimento. Entretanto, a filosofia analítica não considera essas duas perspectivas como fatores decisivos. O pragmatismo não tem como preocupação a discussão da verdade na esfera teórica ou abstrata, ou seja, não se interessa em responder a questões sobre o que é a verdade. No entanto, tal perspectiva adota como horizonte relevante para toda discussão filosófica a questão da prática. “No pragmatismo, [...] a ênfase recai sobre a experiência que decidirá sobre a funcionalidade de uma teoria e, portanto, sobre sua verdade” (CAMELLO, 2009, documento on-line). Assim, o enfoque está na funcionalidade; não importa conhecer um conceito se ele não tem uma funcionalidade prática. O que importa de um conhecimento é se ele pode ser utilizado como condutor da vida, favorecendo as finalidades práticas. A filosofia analítica12 Reale e Antiseri (2006b) mencionam alguns princípios elencados pelos filó- sofos neopositivistas na esteira da filosofia pragmática, acentuando o aspecto empírico da filosofia. Em relação aos filósofos neopositivistas, vale destacar as suas contribuições à filosofia da ciência, “[...] entendida hoje como disciplina autônoma que visa à explicitação consciente e sistemática do método e das condições de validade das afirmações assumidas pelos cientistas” (REALE; ANTISERI, 2006b, p. 116, grifo nosso). Entre os princípios defendidos pelos neopositivistas, Reale e Antinseri (2006b, p. 116) destacam: O princípio de verificação constitui o critério de distinção entre proposições sensatas e proposições insensatas, de modo que tal princípio se configura como critério de significância que delimita a esfera da linguagem sensata da linguagem sem sentido, que leva à expressão o mundo das nossas emoções e dos nossos medos. O segundo princípio destacado por Reale e Antiseri (2006b, p. 116) afirma, com base no primeiro princípio, que “[...] só têm sentido as proposições pas- síveis de verificação empírica ou factual, ou seja, as afirmações das ciências empíricas”. O terceiro princípio diz que “[...] a matemática e a 1ógica cons- tituem somente conjuntos de tautologias, convencionalmente estipuladas e incapazes de dizer algo sobre o mundo” (REALE; ANTISERI, 2006b, p. 116). O que se segue nas afirmações constitui o quarto princípio, que afirma que a metafisica, a ética e a religião, “[...] não sendo constituídas por conceitos e proposições factualmente verificáveis, são um conjunto de questões aparentes, que se baseiam em pseudoconceitos” (REALE; ANTISERI, 2006b, p. 116). No quinto princípio, os filósofos neopositivistas afirmam que o trabalho que resta ao filósofo sério é sintetizado: na análise da semântica, ou seja, no esta- belecimento da relação entre a linguagem e a realidade à qual a linguagem se refere; na análise da sintaxe, que são as relações dos sinais de uma linguagem entre si; e, por fim, na noção de que o único discurso significante é o discurso científico (REALE; ANTISERI, 2006b). Por fim, osfilósofos neopositivistas concluem que a filosofia não é uma doutrina, mas uma atividade que tem por objetivo clarificar a realidade. Nessa perspectiva, eles lançam ataques à filosofia, sobretudo à metafísica. De acordo com Carnap (apud REALE; ANTISER, 2006b), a filosofia tem trazido con- ceitos que não possuem referentes na experiência, como, na metafisica, os conceitos de “absoluto”, “coisa em si”, “incondicionado”, etc. Por meio deles, se constroem frases que pretendem, sem podê-lo, falar da realidade para as pessoas (REALE; ANTISER, 2006b). 13A filosofia analítica Moritz Schlick (1882–1936), em sua obra Positivismo e realismo, afirma que a “[...] função específica da filosofia é a de pesquisar e esclarecer o sentido das afirmações e das questões” (SCHLICK apud REALE; ANTISERI, 2006b, p. 118). Prossegue o autor: “O sentido de uma proposição consiste unicamente no fato de que a proposição expressa determinado estado de coisas, que é ne- cessário mostrar, portanto, se quisermos indicar o sentido de uma proposição” (SCHLICK apud REALE; ANTISERI, 2006b, p. 118). Assim, quando se quer encontrar o sentido de uma proposição, deve-se transformá-la por meio da introdução de definições sucessivas: [...] até que, por fim, nos encontremos diante de palavras que não possam ser ulteriormente definidas com palavras, isto é, cujo significado só poderá ser demonstrado diretamente. O critério para a veracidade ou falsidade de uma proposição, portanto, consiste no fato de que, sob determinadas condições, alguns acontecimentos se dão ou não (SCHLICK apud REALE; ANTISERI, 2006b, p. 118). A teoria da correspondência é a mais antiga na tradição filosófica. Ela remete a Platão e Aristóteles. Em sua obra Metafísica, Aristóteles afirma que “[...] dizer do que é que não é e do que não é que é, é dizer o falso; dizer do que é que é e do que não é que não é, é dizer o verdadeiro” (ARISTÓTELES apud COSTA, 2011). As teorias coerenciais também tratam da verdade. De acordo com essas teorias, uma proposição é verdadeira quando é coerente com o conjunto de proposições constitutivas de um sistema de crenças. Assim, Costa (2011) expõe dois exemplos de frases. A primeira frase diz “Ontem à noite, estava frio” e a segunda frase diz “Ontem à noite, vi um fantasma”. A primeira frase é verdadeira não pelo fato de que pode ser confirmada enquanto a segunda não, mas pelo fato de que, de acordo com o sistema de crenças, há coerência na primeira frase, enquanto na segunda, não. Uma terceira teoria da verdade é a pragmática, cuja tradição aponta para a filosofia norte-americana. William James (1842–1910), filósofo e psicólogo norte-americano, desenvolveu a sua teoria da verdade baseada no pragmatismo. Para ele, uma proposição é verdadeira se houver vantagem prática em sustentá- -la. Diante da afirmação “Deus existe”, o pragmatismo diz que se trata de uma afirmação verdadeira, pois é vantajoso crer em Deus (COSTA, 2011). No entanto, há muitas proposições teóricas que são reconhecidas como verdadeiras, mas que são inúteis, como a afirmação de que existe uma galáxia 0402+379 que, em seu centro, possui um par binário de buracos negros supermassivos. Nesses casos, a teoria pragmática ressalta que, além de possuir uma van- tagem prática, é preciso que uma proposição tenha uma vantagem teórico- A filosofia analítica14 -cognitiva (COSTA, 2011). Um dos problemas da teoria pragmática é sua consequência relativista, pois se algo pode ser verdadeiro para alguns, de acordo com sua vantagem, para outros não possui vantagem. A teoria pragmática não oferece uma decisão racional para esses conflitos. A quarta teoria abordada por Costa (2011) é a teoria da redundância (deflacionárias). Em O pensamento, Frege expõe a teoria da redundância, em que explica que o predicado nada acrescenta de conteúdo a uma afirmação. Asserções do tipo “R é verdadeiro” podem ser substituídas por “R” e nada se perderá. Por exemplo, em vez de se dizer “Hoje faz sol”, pode-se dizer “Com efeito faz sol”. Costa (2011) sugere duas sentenças: “Afirmo que Colombo descobriu a América” e “Colombo descobriu a América”. Ambas afirmam a mesma proposição, no entanto apenas na primeira a asserção é explicitada de forma verbal. Isso não significa que a verdade será comprometida, ou seja, a atribuição de verdade a uma proposição não é supérflua, mas ela pode ser substituída por uma proposição judicada ou asserida. Judicar uma proposição significa pensar que ela é verdadeira, explica Costa (2011). A filosofia analítica possui uma maneira de fazer filosofia que se detém na linguagem. Nessa perspectiva, o interesse na análise da linguagem se dá em referência ao problema das sentenças que parecem expressar sempre ver- dades ou falsidades. Nesse viés, pensa-se que por meio da análise é possível alcançar o valor de verdade das proposições. Braida (2009) sugere que a noção de verdade analítica tem sido utilizada, desde Leibnitz e Kant, em relação às noções de conhecimento a priori, ou seja, conhecimento não empírico. Nesse sentido, as análises são a forma de se alcançar a verdade de uma proposição. Ainda no pensamento moderno, a concepção de analiticidade é uma relação entre determinadas representações ou conceitos. A definição de Kant pensa a verdade analítica como um juízo cujo conceito-predicado está incluso no conceito-sujeito. Essa relação é possível de dois modos, de acordo com a Crítica da Razão Pura: Ou o predicado B pertence ao sujeito A como algo contido (ocultamente) nesse conceito A, ou B jaz completamente fora do conceito A, embora esteja em conexão com o mesmo. No primeiro caso denomino o juízo analítico, no outro sintético. Juízos analíticos (os afirmativos) são, portanto, aqueles em que a conexão do predicado com o sujeito for pensada por identidades; aqueles, porém, em que essa conexão for pensada sem identidade devem denominar-se juízos sintéticos (KANT apud BRAIDA, 2009, documento on-line). No entanto, defende Braida (2009), a noção clássica de verdade analítica começa a ser modificada pelo matemático e filósofo Bernard Bolzano 15A filosofia analítica (1781–1848), que reconceitua a noção de proposição. Para Bolzano, as proposições analíticas são importantes porque as suas verdades “[...] não dependem das representações ou conceitos nelas articulados, de tal modo que essas representações poderiam ser permutadas, sob a condição de se manter a objetividade da inteira proposição” (BRAIDA, 2009, documento on-line). O que Bolzano afirma é que o conteúdo de uma proposição é indiferente para se determinar a verdade dela. A propriedade essencial de uma proposição, para que seja verdadeira, depende de sua forma. Essa forma deve assegurar o seu valor de verdade, apesar da permuta das repre- sentações articuladas (BRAIDA, 2009). Portanto, a forma responsável pela verdade ou falsidade de uma proposição, sua articulação, é que determina a verdade ou não. A definição fregeana de verdade analítica — verdade fundada nas leis lógicas gerais e em definições — prossegue a transformação operada por Bolzano e também modifica tal noção (BRAIDA, 2009). No desenvolvimento de sua teoria da significação, o matemático, lógico e filósofo Frege trata do sentido de uma frase. Para ele, a teoria da significação está baseada numa distinção entre o significado e a referência (COSTA, 1992). A teoria da significação é apresentada em dois artigos de Frege, ambos de 1892: “Sobre o sentido e denotação” e “Sobre conceito e objeto”. O ponto de partida de Frege é a perspectiva tradicional da analítica, que afirma que nomes próprios significam objetos. Mas, pensa Frege, a substituição de nomes próprios por outros de igual significação pode mudar a significação de uma frase. Assim, ele sustenta que o nome próprio possui duas funções semânticas: denota o objeto e também exprime um sentido. A distinção entre sentido e denotação é o cerne da filosofia de Frege (OLIVEIRA, 2001). Na filosofia de Frege, a linguagem humanaé explicada por meio de três dimensões: ela possui uma dimensão significativa, ou seja, ela é uma expressão linguística, possui sinais linguísticos; possui uma dimensão ob- jetiva, têm um objeto designado; e possui uma dimensão significativa, uma dimensão do sentido (OLIVEIRA, 2001). O valor de verdade de uma frase, para Frege, é a circunstância de que tal frase é verdadeira ou falsa. As afir- mações sobre verdade ou falsidade, em Frege, dizem respeito ao sentido de uma frase ou ao pensamento que ela expressa. “O pensamento é o portador da verdade ou da falsidade”, explica Costa (1992, p. 39). Nesse sentido, o que é verdadeiro não é a coisa em si mesma ou os signos não interpretados. Frege busca no sentido da frase aquilo que o pensamento expressa; nisso está a verdade de uma frase. A filosofia analítica16 “A referência de uma frase é considerada por Frege como sendo a circunstância de ela ser verdadeira ou falsa” (COSTA, 1992, p. 39). Nessa perspectiva, Costa (1992) explica que há duas referências de frases: o verdadeiro e o falso. Assim, todas as frases verdadeiras têm apenas um referente, que é verdadeiro, enquanto todas as frases falsas possuem apenas um referente, que é o falso. Nesse viés, tanto verdade quanto falsidade não podem ter margens para outras interpretações, pois o resultado de uma análise só pode ser verdade ou não. Em Bolzano e em Frege, a noção analítica de verdade é pensada em termos semânticos. Tal noção ainda é relativa a uma linguagem, aponta Braida (2009). O mesmo autor pontua que a circunscrição da noção de analiticidade para a esfera do linguístico é apresentada em Wittgenstein, para quem o que importa são as regras de linguagem. Assim, a proposição analítica apresenta uma estrutura, uma relação. A verdade analítica está relacionada na estrutura, ou seja, numa relação entre representações, sejam elas conceitos ou significações, ou como uma propriedade de uma forma (BRAIDA, 2009). A preocupação da filosofia da linguagem analítica é a cientificidade. Nesse sentido, o fator empírico prevalece nessa forma de fazer filosofia. A filosofia é um campo do saber em que a discussão, os argumentos e o raciocínio são as formas de se criarem os conceitos que servem como instrumentos para a relação do ser humano com o mundo e a realidade. Nesse sentido é que o discurso filosófico pode ser caracterizado como um sistema de termos e proposições que expressam sentido e que são reflexos de determinado pensamento. Assim, um discurso possui sentido quando exprime um pensamento coerente que transparece determinada relação com a realidade. Desse modo, toda sentença é válida quando é verdadeira. Mas, na lógica, o significado de validade é mais restrito, pois o que é analisado não é a sentença, e sim os argumentos. Validade e invalidade somente podem ser aplicadas a argumentos. A validade de um argumento depende de sua forma, e não do conteúdo. Portanto, os conceitos de verdade e falsidade são aplicados a sentenças, en- quanto validade e invalidade são aplicadas a argumentos. A validade no campo da lógica requer que as premissas e a conclusão sejam verdadeiras, ou que as premissas não sejam verdadeiras e a sua conclusão também não o seja. Assim, um argumento em que as premissas são todas verdadeiras e a conclusão é falsa é uma sentença inválida. Em suma, não importa o conteúdo, mas apenas a 17A filosofia analítica forma como um argumento é construído. Ele será válido se as suas premissas e a sua conclusão forem verdadeiras, ou será válido se as suas premissas forem falsas e a sua conclusão também o for. Ou seja, um raciocínio é válido devido à forma, à estrutura, independentemente do conteúdo. ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BRAIDA, C. R. A estrutura linguística e o fundamento das verdades analíticas. Revista Princípios, v. 16, n. 25, jan./jun. 2009. 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