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TÓPICOS ESPECIAIS (SERVIÇO SOCIAL) Professor Dr. Silvio Ruiz Paradiso GRADUAÇÃO Unicesumar C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Distância; PARADISO, Silvio Ruiz. Tópicos Especiais (Serviço Social). Silvio Ruiz Paradiso. Maringá-Pr.: UniCesumar, 2017. 256 p. “Graduação - EaD”. 1. Topicos. 2. Especiais EaD. I. Título. ISBN 978-85-459-0750-3 CDD - 22 ed. 378 CIP - NBR 12899 - AACR/2 Reitor Wilson de Matos Silva Vice-Reitor Wilson de Matos Silva Filho Pró-Reitor de Administração Wilson de Matos Silva Filho Pró-Reitor de EAD Willian Victor Kendrick de Matos Silva Presidente da Mantenedora Cláudio Ferdinandi NEAD - Núcleo de Educação a Distância Direção Operacional de Ensino Kátia Coelho Direção de Planejamento de Ensino Fabrício Lazilha Direção de Operações Chrystiano Mincoff Direção de Mercado Hilton Pereira Direção de Polos Próprios James Prestes Direção de Desenvolvimento Dayane Almeida Direção de Relacionamento Alessandra Baron Head de Produção de Conteúdos Rodolfo Encinas de Encarnação Pinelli Gerência de Produção de Conteúdos Gabriel Araújo Supervisão do Núcleo de Produção de Materiais Nádila de Almeida Toledo Supervisão de Projetos Especiais Daniel F. Hey Coordenador de Conteúdo Maria Cristina Araújo de Brito Cunha Designer Educacional Agnaldo Ventura Iconografia Isabela Soares Silva Projeto Gráfico Jaime de Marchi Junior José Jhonny Coelho Arte Capa Arthur Cantareli Silva Editoração José Jhonny Coelho Qualidade Textual Alisson Pepato Ilustração Bruno PardinhoFicha catalográfica elaborada pelo bibliotecário João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828 Impresso por: Viver e trabalhar em uma sociedade global é um grande desafio para todos os cidadãos. A busca por tecnologia, informação, conhecimento de qualidade, novas habilidades para liderança e so- lução de problemas com eficiência tornou-se uma questão de sobrevivência no mundo do trabalho. Cada um de nós tem uma grande responsabilida- de: as escolhas que fizermos por nós e pelos nos- sos farão grande diferença no futuro. Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar assume o compromisso de democratizar o conhe- cimento por meio de alta tecnologia e contribuir para o futuro dos brasileiros. No cumprimento de sua missão – “promover a educação de qualidade nas diferentes áreas do conhecimento, formando profissionais cidadãos que contribuam para o desenvolvimento de uma sociedade justa e solidária” –, o Centro Universi- tário Cesumar busca a integração do ensino-pes- quisa-extensão com as demandas institucionais e sociais; a realização de uma prática acadêmica que contribua para o desenvolvimento da consci- ência social e política e, por fim, a democratização do conhecimento acadêmico com a articulação e a integração com a sociedade. Diante disso, o Centro Universitário Cesumar al- meja ser reconhecido como uma instituição uni- versitária de referência regional e nacional pela qualidade e compromisso do corpo docente; aquisição de competências institucionais para o desenvolvimento de linhas de pesquisa; con- solidação da extensão universitária; qualidade da oferta dos ensinos presencial e a distância; bem-estar e satisfação da comunidade interna; qualidade da gestão acadêmica e administrati- va; compromisso social de inclusão; processos de cooperação e parceria com o mundo do trabalho, como também pelo compromisso e relaciona- mento permanente com os egressos, incentivan- do a educação continuada. Diretoria Operacional de Ensino Diretoria de Planejamento de Ensino Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está iniciando um processo de transformação, pois quando investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou profissional, nos transformamos e, consequentemente, transformamos também a sociedade na qual estamos inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu- nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de alcançar um nível de desenvolvimento compatível com os desafios que surgem no mundo contemporâneo. O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens se educam juntos, na transformação do mundo”. Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con- tribuindo no processo educacional, complementando sua formação profissional, desenvolvendo competên- cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal objetivo “provocar uma aproximação entre você e o conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento da autonomia em busca dos conhecimentos necessá- rios para a sua formação pessoal e profissional. Portanto, nossa distância nesse processo de cresci- mento e construção do conhecimento deve ser apenas geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita. Ou seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns e enquetes, assista às aulas ao vivo e participe das discussões. Além dis- so, lembre-se que existe uma equipe de professores e tutores que se encontra disponível para sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de aprendiza- gem, possibilitando-lhe trilhar com tranquilidade e segurança sua trajetória acadêmica. A U TO R Professor Dr. Silvio Ruiz Paradiso Pós-Doutorado em Literaturas Africanas em Língua Portuguesa (USP). Doutor em Letras com ênfase em Estudos Literários e Estudos Culturais, pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), e sócio da AFROLIC - Associação Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos. Professor da Graduação e Pós- graduação do Centro Universitário de Maringá (UNICESUMAR). Tem curso de Extensão em Filosofia pela University of Edinburgh, curso de Extensão em Pós-colonialismo (UEM) e História e Cultura afro-brasileira e Africana (UEL). Na pesquisa, aborda temas como: Literatura pós-colonial, Religiosidade e Diversidade na escola (Cultural, sexual, étnica). É líder do grupo de pesquisa sobre Pós-colonialismo, Literatura e Estudos Culturais. Coordenador da pós- graduação em “História, Cultura afro-brasileira e indígena”, da EAD Unicesumar. Tem ampla experiência em colegiado acadêmico, Núcleo docente estruturante, coordenação de projetos, Ensino a distância (material e aula) e orientações de Iniciação Científica, TCC e trabalhos de conclusão de Especialização. Para informações mais detalhadas sobre sua atuação profissional, pesquisas e publicações, acesse seu currículo, disponível no endereço a seguir: <http://lattes.cnpq.br/0319529066801482>. SEJA BEM-VINDO(A)! Caro(a) aluno(a), esta é a disciplina de Tópicos Especiais, do curso de Ser- viço Social. Esse material foi organizado e elaborado a fim de promover o estudo sobre vários temas importantes de nossa sociedade. A sociedade contemporânea vive uma mudança de estruturas institucio- nais, morais e de ideias, cuja rapidez obriga-nos a pensar e repensar tal sociedade, ainda mais por ela ser o corpus de pesquisa e trabalho para esse material. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001), trouxe em seu livro “Modernidade líquida”, uma reflexão sobre a modernidade e a falta de solidez em tudo, gerando ao homem temores que vão desde o agravamento da violência, intolerância, solidão, falta de ética, exclusões entre outros problemas sociais. Logo, o profissional do Serviço Social tem o dever de refletir sobre esses temas, além de compreender seu papel nessa nova e mutante sociedade. Nós, sem exceção, vivemos dentro de uma caixinha. Dentro dela, as mais variadas relações e fenômenos sociais acontecem. O fato é que o estudante universitário, em especial o de Serviço Social, precisa sair dela, para assim poder vê-la por fora e entender como ela é feita e organizada. Enquanto estamos dentro dela, pouca coisa conseguimos fazer.Minha função, bem como a do meu material, é pegá-lo pelas mãos e, juntos, sairmos desta caixinha e observá-la profundamente. Iamamoto (1999) nos lembra que o contexto da contemporaneidade é um desafio a mais para os assistentes sociais, que devem se qualificar para explicar tais mudanças, além de acompanhar, vivenciar e se atualizar frente à nova realidade social. A prática de intervenção no atual momento só é possível se o profissional do Serviço Social ter clareza sobre o mundo em que vive. Para tanto, este material foi desenvolvido para discutir variados temas so- ciais, agregados em 5 eixos abordados nas unidades: Violência, Sexualidade, Questões Raciais, Ética e Tecnologia e Política que são, sem dúvida, temas recorrentes dentro e fora da academia. Ademais, o aluno de Serviço Social precisa compreender tais temas dentro do contexto de atuação, tornando-se assim um profissional mais bem preparado e, principalmente, mais humano. Na Unidade 1 abordaremos os fenômenos da violência e seus mais variados vieses. Na unidade 2, estudaremos sobre questões raciais e como o racismo atinge nossa sociedade. Neste contexto, compreenderemos o porquê das políticas públicas de cunho racial, e conheceremos algumas políticas para os povos afro-brasileiros, indígenas e ciganos. Já na Unidade 3, o foco será em compreender a temática da sexualidade dentro de nossa sociedade. Estudare- mos conceitos sobre gênero e sexualidade, homofobia, adoção homoparental e a dificuldade social das pessoas trans para o direito ao nome social. APRESENTAÇÃO TÓPICOS ESPECIAIS (SERVIÇO SOCIAL) Por fim, na Unidade 4, a ética, a tecnologia e o meio-ambiente serão de- batidos. Iniciaremos esta unidade diferenciando ética de moral, e perce- beremos que crenças particulares podem influenciar negativamente no trabalho do Serviço Social. Depois, estudaremos sobre a tecnologia e meio ambiente, e como a ausência da ética nesses campos pode interferir as relações sociais. Enquanto que na Unidade 5, nosso principal foco será a política, bem como todas suas relações acerca da cidadania, globalização, democracia e globalização. Dessa forma, espero que vocês aproveitem ao máximo nossas discussões, bem como o conteúdo desta disciplina, e que ela possa prepará-los mais ainda nos desafios da profissão. APRESENTAÇÃO SUMÁRIO 09 UNIDADE I AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE 15 Introdução 16 Violência: O Que É? 24 Violência e Poder 26 Tipos de Violência 28 Violência Contra a Mulher 36 Violência contra Crianças e Adolescentes 42 Violência Escolar e Bullying 48 Intolerância Religiosa 57 Considerações Finais 65 Referências 68 Gabarito UNIDADE II SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS 71 Introdução 72 Raça e Racismo 78 Racismo e Ações Afirmativas 80 Políticas Públicas para Afrodescendentes SUMÁRIO 10 87 Lei 10639 / 11645 - Obrigatoriedade do Ensino de Cultura e História Afrobrasileira e Indígena 92 Políticas Públicas para Indígenas e outros Grupos 109 A Questão dos Imigrantes 115 Considerações Finais 123 Referências 126 Gabarito UNIDADE III QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE 129 Introdução 130 Gênero e Ideologia no Tempo Presente 137 Violência de Gênero, Sexual e Políticas Públicas 146 Comunidade LGBT, Homofobia, Transfobia 153 Adoção Homoparental 157 Sobre a Adoção Homoparental no Cenário Brasileiro 162 Considerações Finais 168 Referências 172 Gabarito SUMÁRIO 11 UNIDADE IV ÉTICA, TECNOLOGIA E MEIO AMBIENTE 175 Introdução 176 Ética e Moral 180 Ética, Moral E O Perfil Do Assistente Social 186 Ética, Tecnologia e Sociedade 189 Redes Sociais 194 Cyberbullying 197 Ética, Meio-Ambiente E Sociedade 200 Considerações Finais 207 Referências 209 Gabarito UNIDADE V CIDADANIA, GLOBALIZAÇÃO, DEMOCRACIA E POLÍTICA INTERNACIONAL 213 Introdução 214 Democracia e Cidadania sob o viés das Políticas Públicas 221 Sobre as Políticas Sociais 224 As Políticas Sociais Brasileiras Pós 1988 SUMÁRIO 12 232 Participação Popular e Controle Social: Princípios Fundamentais para a Efetivação da Cidadania e da Democracia 235 Globalização, Política Internacional e os seus rebatimentos nas Relações Humanas 247 Considerações Finais 251 Referências 255 Gabarito 256 Conclusão U N ID A D E I Professor Dr. Silvio Ruiz Paradiso AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Objetivos de Aprendizagem ■ Compreender o contexto e conceito do termo Violência em nossa sociedade. ■ Relacionar a violência com o conceito de poder hegemônico. ■ Diferenciar os tipos de violência, em especial o físico do simbólico. ■ Estudar e refletir sobre as variadas manifestações da violência na sociedade, como contra a mulher, contra a criança e adolescente, violência dentro da escola e no contexto religioso. Plano de Estudo A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: ■ Violência: O que é ■ Violência e Poder ■ Tipos de Violência ■ Violência contra a Mulher ■ Violência contra Crianças e Adolescentes ■ Violência Escolar e Bullying ■ Intolerância Religiosa INTRODUÇÃO Nesta primeira unidade de nosso material, discutiremos sobre “violência”. O termo tem sua raiz etimológica no latim violentia, derivada do termo vis, que significa força. Compreenderemos que a violência no campo social não deve ser compreendida apenas pela ideia de força no sentido físico, mas sim, de maneira simbólica, com a ideia de poder. Veremos que as relações de poder, desde o início da civilização, criam e justificam mecanismos de violência, para separar grupos e privilegiar uns contra outros. Abordando sobre violência e poder, veremos que o machismo, o racismo, a xenofobia e até mesmo o bullying são manifestações de violência que visam fomen- tar a superioridade de determinados grupos sobre outros, como o homem sobre a mulher, o branco sobre o negro, o povo europeu sobre os não europeus, etc. Assim, entenderemos que a violência acaba sendo um processo não apenas físico e resumido em chutes, tapas e lesões, mas também simbólico, como o iso- lamento, a intolerância e a humilhação, que causam prejuízos à saúde moral e psicológica das vítimas. Neste ponto, passaremos a conhecer os vários tipos de violência, que vão desde a psicológica até a tortura e morte. Em seguida, discutiremos sobre quatros específicas manifestações da vio- lência na sociedade: a Violência contra a Mulher, e como o machismo e as ideias preconceituosas em relação ao gênero contribuem para isso; Violência contra Criança e Adolescente, que muitas vezes são, simultaneamente, agressores atra- vés da delinquência e vítimas, no contexto da violência intrafamiliar; Violência Escolar e Bullying , reconhecendo que a escola também é um campo de disse- minação da violência, em seus vários sentidos, e a Intolerância Religiosa, uma violência específica dentro do campo religioso que atinge principalmente ateus e adeptos das religiões afro-brasileiras. Introdução Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 15 AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E16 VIOLÊNCIA: O QUE É? Dentre os fenômenos da contemporaneidade, a violência é, sem dúvida, a que mais está em evidência. O termo violência advém do latim violentia, derivada do termo vis, ou seja, força. Logo, de forma genérica, violência seria um comporta- mento que intimida moralmente um outro ser de forma intencional, invadindo sua integridade física e psicológica. No sentido lexicográfico, violência é um substantivo feminino que tem aproximadamente sete conceitos, como “1. Estado daquilo que é violento; 2.Ato violento; 3.Ato de violentar; 4.Veemência;5.Irascibilidade; 6. Abuso da força; 7. Tirania; opressão.” (DICIONARIO AURELIO, [2017],on-line)1. Além de ter na jurisprudência o conceito de “Constrangimento exercido sobre alguma pessoa para obrigá-la a fazer um ato qualquer; coação” (VIOLÊNCIA, 2016). É muito difícil conceituar violência, principalmente por ser ela, por vezes, uma resultante das intenções sociais; por vezes ainda, um componente cultural naturalizado. Os estudiosos, que nos últimos tempos tem-se debruçado sobre o Violência: O Que É? Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 17 tema, ouvido e descultuando toda a produção filosófica, mitológica e antropo- lógica da humanidade, lhe conferem um caráter de permanência em todas as sociedades e também de ambiguidade, ora sendo considerada como fenômeno positivo, ora como negativo, o que retira da sua definição qualquer sentido posi- tivista, e lhe confere o status de fenômeno complexo (MINAYO, 1999). Enquanto fenômeno biopsicossocial, a violência ocorre nas relações inter- grupais e interpessoais da vida cotidiana. Desse modo, é indispensável a compreensão do contexto sócio histórico no qual ela ocorre. A violência é um fenômeno que nos acompanha desde os primórdios, ini- cialmente com o intuito de sobrevivência, frente a um ambiente hostil. Pensemos no homem neandertal e o seu modo de sobrevivência por meio da caça e de luta contra outros homens e animais selvagens. A prática da violência pelo ser humano é bem diferente da prática violenta dos outros animais (ODALIA, 1985), e isso acontece, primeiro, pela nossa capacidade de sermos violentos com o uso de instrumentos facilitadores, seja para a autodefesa e competição, por exem- plo. A principal diferença é que o ser-humano usa da violência com sadismo e consciência (PINO, 2007). Em ambos os mundos (humano e animal), a violência tem como base as rea- ções biológicas da agressividade, sendo que o potencial biológico dessas reações existe tanto nos animais, pelo instinto, quanto em nós, a ponto de arranharmos e mordermos alguém quando irados. O sangue, nesse momento, é expelido com vigor em direção aos locais onde é mais necessário — o cérebro, para o raciocínio rápido, e os músculos, que devem trabalhar a plena capacidade. Não falta energia para o combate, pois o fígado passa a sintetizar mais açúcar. Também se aceleram os processos de coagulação, reduzindo as conseqüências de possíveis perdas de sangue. Essas são as reações de qualquer mamífero, incluindo o homem, quando está em uma situação de luta. Instintivamente, o corpo se prepara para o ataque, diante de qualquer ame- aça, real ou imaginária (PINO, 2007). O fato é que nós humanos, enquanto sujeitos sociais, contextualizamos a violência fora de uma realidade instintiva. O meio modula a agressividade, ensi- nando-nos a usar a violência dentro de vários contextos. Se a violência era de caráter animalesco no mundo primitivo, baseado no “instinto” de sobrevivência, AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E18 no mundo Clássico greco-romano, já não era mais. Formas de organizações sociais já eram bem definidas, regulando responsabilidades sociais e individu- ais, bem como regras de convivência. Contudo, as divisões de classe ou estrato social acabaram por “justificar” violências sociais. Oliveira et al. (2014) nos lembra que, entre os gregos, as pessoas eram dividi- das em classes de acordo com sua origem. Os legítimos espartanos, por exemplo, deveriam se dedicar à carreira militar, treinando e aperfeiçoando a força física, enquanto os demais deveriam trabalhar em ofícios variados. Já os atenienses legí- timos deveriam se dedicar ao intelecto e política, e os demais ao trabalho físico, inclusive sendo escravizados. No mundo romano, a mesma coisa acontecia, e a organização social por grupos legitimava a violência social, ou seja, as leis eram instrumentos assegu- radores dos privilégios de pequenos grupos, sob a maioria marginalizada - mas, a relação disso com a violência veremos adiante. Com o passar dos tempos, essa regulação social sobreviveu à queda dos impérios greco-romano, passando a continuar no mundo feudal da Idade Média. A relação de vassalagem era baseada em contratos de fidelidade, o que legi- timava punições ao vassalo, caso ele não cumprisse alguma norma. Na Idade Média, a violência era utilizada para diversos fins: pedagógico, punitivo e inti- midativo. Muitas vezes, a violência se transformava em espetáculos públicos, em que homens e mulheres eram enforcados, guilhotinados e torturados cruel- mente. A Igreja e o Estado faziam o papel de juiz, mantendo engessado o sistema vigente (MUCHEMBLED, 2012). Se por um lado se dava a instrumentalização da Igreja, por outro ela se tornava a força político-ideológica mais importante do império, depois do Estado. Essa relação particular entre Igreja e Estado, caracterizada por um regime de união e de religião de Estado, seria sua característica mais especí- fica. Dessa forma, “o Estado assegurava à Igreja a presença privilegiada na sociedade e, de- pendendo das situações históricas, o monopólio sobre a produção dos bens simbólicos, constituindo-a, além disso, em aparelho de hegemonia do sistema. Já a Igreja assegurava ao Estado e aos grupos/classes dominantes a legitimação de sua hegemonia e dominação” (BINGEMER,2001, p. 14). Violência: O Que É? Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 19 Aliás, a Igreja, já no século XII, através do Tribunal do Santo Ofício, tornou-se uma instituição eclesiástica de carácter “judicial”, que tinha por principal obje- tivo “inquirir heresias” - período que passou a ser conhecido como Inquisição. A Inquisição usava-se de uma “institucionalização” da violência, tendo-na jus- tificada por um bem maior. Sobre isso, Bingemer (2001, p. 145) entende como “violência legalizada, onde o uso da força era justificável quando fosse utilizado para beneficiar a sociedade cristã e sob sua direção”. Ademais, o mesmo se apli- cava à períodos de guerra como as Cruzadas, por exemplo. O Santo Ofício, em conjunto com o Estado, possuía métodos próprios para controle das heresias, baseando-se em acato da denúncia, interrogatório, pri- são preventiva, novo interrogatório, tortura e sentença. Morais (2016) revela que as penas inquisitoriais variavam desde penitências espirituais, degredo, prisão perpétua, trabalhos forçados até a fogueira. Vejamos um exemplo dessa “violência legalizada” do século XVII, no Rio de Janeiro, contra uma mulher chamada Izabel Mendes, denunciada por heresia judaica e feitiçaria (MORAIS, 2016, p. 23). Na tortura da polé, a vítima era levantada até determinada altura com as mãos amarradas para trás e um peso colocado nos pés. Em seguida, soltavam a corda, porém evitando que o torturado tocasse o chão. O solavanco poderia ser repetido, e algumas vezes ele provocava o deslocamento dos membros. O açoite público também era utilizado [...]. O réu era condenado à tortura, quando os inquisidores consideravam que ele não fazia uma confissão completa e sincera de suas culpas e nem denunciava a todos os seguidores da lei de Moisés que ele conhecia. [...]. Não somente o Santo Ofício utilizava a tortura, era comum a todas as justiças da época, como método para apurar a verdade. Para não atrapalhar o tormento, retiravam-se as roupas das mulheres, deixando-as nuas da cintura para cima, isso constituía uma tortura adicional, e os inquisidores sabiam disso (MORAIS, 2016, p. 23). A tortura, como uma das formas da violência, ficou conhecida na Idade Média pelos seus instrumentos engenhosos, como os das figuras abaixo: AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E20 Figura 1 - Cadeira usada para interrogatórios na Idade Média. Figura 2 - Instrumento de tortura medieval. Figura 3 - Instrumento de execução por sufocamento. Figura 4 - Instrumento de tortura. Figura 5 - Jaula e a dama de ferro. 1 2 3 4 5 Violência: O Que É? Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 21 Figura 6 - Polé Fonte: História de Alagoas (2015, on-line)2. É preciso salientar que as práticas medievais de violência social, empregadas pela Igreja, não eram vistas como “violência”, mas sim como instrumentos de ordem social, política e, principalmente, religiosa. A morte por fogueira, por exemplo, tinha um intuito muito claro: purificação. Ademais, a violência no espaço reli- gioso não é e nunca foi exclusiva do cristianismo católico. Se em Lucas (19:26-27), no Novo Testamento, vemos amostras de violência social, na Torá temos inú- meros casos, como em Deuteronômio (7:1-2), quando uma “chacina” contra outros povos pode ser legalizada, além de outros casos no Alcorão (Sura 9:5), como o fomento à emboscada, sequestro e morte de adeptos de outras religi- ões, por exemplo. Os ritos religiosos sempre tiveram relações próximas com práticas violentas por um motivo simples: no contexto da prática, ela não é violência como compre- endemos. Se tomarmos o conceito de violência só pelo seu sentido etimológico, como vimos no início desta unidade, entenderemos esse processo apenas como o uso de força física, pujança ou energia para agredir alguém, e a violência é AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E22 mais que isso. Ela está no campo do saber filosófico e social, quando a enten- demos como uma ruptura nas normas morais de uma sociedade (FERREIRA, 1986). É nesse sentido, caro(a) aluno(a), que quero discutir o tema, pois o con- ceito de violência muda de sociedade para sociedade, quando ele é observado apenas no âmbito da “força”, por exemplo, ou os rituais iniciáticos/religiosos de grupos étnicos ao redor do mundo. A violência, neste sentido (ritual), é relativa. Se mostrarmos imagens de um trote universitário ou os preparativos que uma noiva ou debutante se submete para o casamento e/ou festa de 15 anos para os povos Fuleni, Algoquianos, Satere- Mawe, Sambia ou Vanuatu, certamente eles dirão que tais práticas são violentas. Desse modo, neste material, compreenderemos a violência em uma pers- pectiva sócio-filosófica, em que essa “força” imposta por ela não é apenas física (por meio de um chicote, formigas, cipós, pedras, ou salto-altos, espartilhos e aparelhos ortodônticos). Essa força também pode ser invisível, como bem aponta Em Os Ritos de Passagem (2011), o antropólogo francês, Arnold Van Gennep, cita casos em que rituais de transição podem ser extremamente violentos, a partir do nosso olhar ocidental. Gennep (2011), cita os índios algonquianos, que separam a criança em processo de emancipação, dá-lhe de beber e os enjaula. Há também o rito dos vanuatu, do Oceano Pacífico, cujo garotos de idade entre sete e oito anos, devem subir uma torre de 30 metros de altura com cipós amarrados nos tornozelos e se jogar, em um mergulho; ou rito dos rapazes da tribo Fulani, na África, cujo rito de passagem muito dolo- roso para se tornar adultos: lutam a golpes de chicotadas. Tem-se ainda os aborígenes australianos Mardudjara, que tiram o prepúcio dos jovens sem anestesia, os índios Satere-Mawe, da amazônia, que nos ritos de passagem, enchem uma luva com formiga-bala (cuja mordida é 20 vezes mais dolorida que a picada da vespa), ou tribo Sambia/Matausa, da Papua Nova Guiné, em que o jovem antes de se casar tem o nariz perfurado por uma haste que entra pela boca, para sangrar, e assim expurgar a vida antiga. Fonte: Gennep (2011). Violência: O Que É? Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 23 o sociólogo Pierre Bourdieu (2012, p. 239): “o que denomino de violência sim- bólica ou dominação simbólica, ou seja, formas de coerção que se baseiam em acordos não conscientes entre as estruturas objetivas e as estruturas mentais”. Toda essa contextualização e exemplificação do termo violência nos mostra que ela sempre estivera presente nas sociedades, mas somente a partir do momento em que os grupos humanos se dividiram em “classes”, o uso da força passou a ser além de física, também simbólica, usada como ferramenta de dominação. De acordo com Repórter Unesp, ‘’É fato que “as desigualdades são responsáveis por essa forma de comportamento humano e sua manutenção gerou conflitos que conduziram ao aprimoramento das técnicas de eliminação e subordinação do outro” (REPORTER UNESP, [2017], on-line)3. Dessa forma, você, aluno(a) do Serviço Social, precisa observar a violência por este viés: o do poder, muitas vezes invisível na sociedade, mas constante- mente manipulado por forças hegemônicas. Bourdieu, célebre sociólogo francês, aborda em seu livro O poder simbólico (2004), que os grupos dominantes garan- tem, dominam e controlam o poder ideológico pela ‘cultura’, perpetuando as diferenças. Devemos entender grupo dominante como os que se inserem dentro do seguinte contexto: branco, masculino, heterossexual e rico, perfil dominante no Brasil. Predominantemente, o instrumento usado para isso são as práticas sociais e culturais de um grupo sobre o outro, ou seja, o grupo dominante tem “poder” sobre o conhecimento científico, literário e artístico, diferentemente dos grupos dominados. Assim, os dominantes usam de uma violência simbólica, chamada aqui de imposição cultural, definindo assim o que é “ter cultura” e, com isso, abrindo por- tas do sucesso para alguns e fechando-as para outros. Ademais, Bourdieu ainda pontua que a violência simbólica ocorre de modo claro no processo educacional, já que é na escola que se elenca os ̃ saberes” que se deve conhecer, obedecendo-os e não os questionando. Dessa forma, o currículo escolar e o conhecimento dito ‘científico’, o que conhecemos como boa arte e boa literatura foram pré-determi- nados, forçando a sociedade a se dividir entre os que as têm e os que não as têm. Os que as têm usam da violência invisível para manter o status quo (Status quo é uma expressão latina, que significa “no mesmo estado que antes” ou “o estado atual das coisas”). Cabe ao grupo dominado, maior parcela da sociedade, AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E24 reivindicar a sua própria cultura, seu próprio conceito de cientificidade, arte e literatura, revertendo a imposição cultural e, consequentemente, a violência sim- bólica que sofrera durante séculos. O fato é que essa relação de poder entre os grupos produz na sociedade uma cultura da violência, em que agredir o outro se naturaliza e se justifica pelos meandros do poder. VIOLÊNCIA E PODER Sobre a relação entre violência e poder, Souza (2010, p.17) elenca dois pensadores para nos debruçarmos sobre o assunto: Hannah Arendt e Michel Foucault. Sobre Arendt, filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX, o autor cita que, para a filósofa “O que define e separa violência de poder é a dimensão política, que é ausente em violência e presente no poder”. Lembrem-se do que discutimos anteriormente: violência, por si só, nem pode ser considerada como tal, dependendo do contexto, mas o poder, utilizado como violência, é arqui- tetado para não só ferir, como também manter um status quo, de desigualdade e diferença - por isso tem raízes políticas/ideológicas. Souza (2010, p.17) continua: poder é uma ação humana orquestrada, baseadano princípio de repre- sentação e delegação políticas e se consubstancia no poder político do Estado soberano. O poder não pode ser confundido com a potência. A potência é, digamos, a força de um homem e de uma coletividade [...] é uma energia que pode ser utilizada [...]. Nesse sentido, Arendt está nos dizendo que, de tanto usar a “força” ou a “potên- cia”, geramos poder. Um marido, por exemplo, pode bater na esposa motivado pelo discurso social de superioridade masculina e, em um determinado momento, não precisará mais usar da “força”, e sim do poder sobre a mulher. Contudo, tanto o ato físico do uso da “potência” física (a agressão em si) quanto depois, usando apenas do “poder” (naturalização da superioridade dele em relação a ela), são atos de extrema violência. Violência e Poder Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 25 Nesse contexto temos a autoridade, que é a força política, em que se tem o “reconhecimento do poder por parte daqueles que têm a obrigação da obedi- ência” (SOUZA, 2010, p. 17), podendo ser passada de uma pessoa a outra, ou instituição a outra (Igreja, Estado, Escola, etc.). Nesse sentido, podemos entender que potência e força diferem-se do poder, na medida em que estão intimamente articuladas à autoridade, que as usa para fins úteis e controlados. Assim, “a vio- lência, nesse sentido, [...] nada mais séria do que a instrumentalização da força” (SOUZA, 2010, p. 17). Todavia, um ponto importante não pode ser negligenciado: a violência tam- bém é ameaça à autoridade e ao poder, quando usada pelos oprimidos. Por essa razão a violência é, ao mesmo tempo, um instrumento do poder hegemônico, assim como um instrumento de rebelião das margens (FANON, 2010). Já em relação às contribuições de Foucault, um respeitado filósofo francês, historiador das ideias, teórico social e crítico literário, o autor Souza (2010), apresenta a rela- ção entre poder e violência na ótica deste pensador: Para ele, as relações sociais são caracterizadas como relações de poder, pois toda relação social é permeada por estratégias de dominação e de controle, por tentativas de interferir sobre a ação de outras pessoas, ou mesmo sobre seus pensamentos. O poder não per- tence à política, no sentido da política estatal. O poder pertence ao mundo cotidiano, às relações entre os indivíduos. Há relações de poder entre um pai e um filho, professor e aluno, entre um homem e uma mulher. As relações de poder são, de certa forma, esquecidas pela nossa sociedade, visto que nós tendemos a acreditar nas ideias e nos saberes produzi- dos a partir dessas relações. Assim, não vemos poder na relação entre pai e filho, por exemplo, porque acreditamos que a relação é dada pela Natureza ou pela vontade de Deus. Desse modo, essa relação é mistificada e considerada sagrada. Além disso, não vemos relações de poder entre homem e mulher porque acreditamos que as diferenças sexuais são naturais, e que o homem foi provido de um maior quantum de força comparado à mulher, o que dá a ele certas vantagens e direitos (SOUZA, 2010). Está claro que falar de violência é falar do que a motiva, em especial, as rela- ções de poder. Essa violência, gerada pelo poder, se manifesta na sociedade de várias formas, e é basicamente dividida em física e simbólica. AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E26 TIPOS DE VIOLÊNCIA Dentre a violência física e simbólica, esta segunda é muito mais complexa e está enraizada nas relações de poder. Essa violência é exercida sem a coação física, mas seu resultado causa danos sérios do ponto de vista psicológico e moral. Ela é invisível pois é quase inconsciente, e tem seu fundamento na contínua fabricação de crenças e ideias sociais, que induzem as pessoas a se posicionar seguindo critérios do dis- curso de grupos dominantes. Bordieu (1996, p. 16), revela que “a violência simbólica é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita daqueles que a sofrem e também, frequentemente, daqueles que a exercem na medida em que uns e outros são inconsciente de a exercer ou a sofrer”. Está aí a outra ideia de força, baseada no discurso dominante, seja do homem, da pessoa branca, da elite intelectual e finan- ceira, da Igreja, etc. O sociólogo francês se utiliza do termo grego doxa (opinião), para designar que esse discurso dominante é visto e encarado como uma prática social tradicional e natural, perpetuando a violência em todos os seus sentidos. A violência, invisível ou simbólica, anda de mãos dadas com a violência física. Uma acaba sendo fruto da outra. A dominação masculina, por exemplo, que dentro de nossa sociedade patriarcal sempre foi vista como algo natural, visto que, para os detentores do discurso dominante (curiosamente, homens), as mulheres são “naturalmente” fracas, devendo, portanto, se submeter ao homem. A sociedade acaba recebendo tal ideia como verdade absoluta, naturalizan- do-a, e quando alguma mulher tenta fugir ou reagir a esse pensamento, o homem a agride fisicamente, usando como justificativa o seu pertencimento ao grupo dominador. Isso se reproduz em outras instâncias, como brancos agredindo negros, por se considerarem etnicamente superiores (vide movimentos como a Ku Klux Klan), grupos de pessoas heterossexuais perseguindo homossexuais e agredindo-os, acreditando numa pseudo superioridade da heteronormatividade - neonazistas - por exemplo. Exemplos assim também acontecem no campo reli- gioso, intelectual, econômico, entre outros. A violência tem inúmeras manifestações na sociedade, e acontece quando uma pessoa ou um grupo usa da força, física ou não (no caso, o poder), a fim de agredir, ameaçar ou submeter outras pessoas a danos psicológicos, emocio- nais, físicos e até mortais. Tipos de Violência Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 27 A UNICEF (2016) elencou algumas formas de violência na contempora- neidade, que são: ■ Violência Física: ação que causa danos ou risco à integridade física de uma pessoa, por meio da agressão física, e que pode deixar marcas visíveis. ■ Tortura: ato de agressão física, psicológica ou ambas, que é praticada intencionalmente, com a finalidade de obter informação, vantagem ou apenas por sadismo e/ou castigo. ■ Violência Psicológica: é a manifestação da violência que gira em torno da relação de poder com abuso de autoridade sobre o outro. Por meio da intimidação, manipulação, ameaça (direta ou indireta), isolamento, tor- tura (não física), intimidação e demais condutas. Esta violência implica em marcas e prejuízos à saúde moral e psicológica da vítima. É impor- tante lembrar que a violência psicológica é simbólica (BORDIEU, 1989). ■ Violência institucional: também chamada de Violência Discriminatória, é um tipo de violência motivada por desigualdades (de gênero, sexual, étnico-raciais, religiosa, estética, econômicas, etc.). Acontece por meio de distinção, prejuízos desiguais e segregação, em que os direitos e liberda- des são anulados ou dificultados apenas pela diferença. ■ Violência intrafamiliar: é a qualquer tipo de violência que acontece no seio familiar, dentro de casa ou unidade doméstica e geralmente é prati- cada por um membro da família que viva com a vítima. ■ Violência moral: tipo de violência que objetiva difamar, injuriar ou agre- dir a moral, honra e reputação de outrem. ■ Violência patrimonial: é uma ação violenta contra objetos, bens e valo- res, cujo ato pode ser desde dano ou perda, até destruição, subtração ou retenção deles. ■ Violência sexual: na violência sexual, há a imposição de contato sexual, no âmbito físico ou verbal. O ato sexual pode acontecer por meio de intimida- ção, chantagem, suborno, ameaça, manipulação,e principalmente, pelo uso da força. Nesta tipologia, a maioria das vítimas ainda são crianças e mulheres. Aliás, utilizar pessoas para fins sexuais ou para fins financeiros, também se caracteriza como violência sexual. O Ministério da Saúde e o IPEA (Fundação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) concluíram que 89% das vítimas de violência sexual são mulheres, e que os estupros são cometidos por par- ceiros ou parentes/conhecidos da vítima (CERQUEIRA; COELHO, 2014). AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E28 Percebe-se que a violência é um fenômeno além da agressão física, podendo tam- bém ser simbólica, e que ambas andam de mãos dadas. Dentre todas as estruturas de poder, ou seja, conjunto de ideias sedimentadas que dão força simbólica a determinado grupo, gerando violência, o mais primitivo delas é do patriarcado, isto é, relação de poder assimétrica entre homens e mulheres, em que o homem – o patriarca, daí o nome patriarcado – detém o poder. Essas relações de poder baseadas no gênero são antiquíssimas e profundas, observadas em quase todas as sociedades. Em uma sociedade machista e patriarcal, como é a sociedade brasi- leira, temos dois fenômenos muito próximos: o gosto pela violência e a violência contra a mulher. Entender uma sociedade dominada por valores masculinos é entender o gosto dessa mesma sociedade pela violência. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER Leiam as duas frases que se seguem: “Maria, fica quietinha! Pegue a boneca e vá brincar de casinha!”. “João, pegue o estilingue, e vá correr na rua! Vá brincar de bola”. Essas frases, comuns na infância, representam o imaginário da sociedade patriar- cal. Tradicionalmente, ao homem sempre definiu-se imagens violentas: O lutador de luta livre, o toureiro, o matador de dragões, os guerreiros, caçadores, corredo- res automobilísticos, jogadores de futebol, etc., ações usualmente relacionados com agilidade, choque corporal, coragem e força. Já a mulher, sempre foi vista em papéis passivos e subservientes, ou a espera do homem, ou em espera para o homem. Vemos isso claramente no imaginário dos contos de fadas, em que a princesa está sempre necessitada de ajuda, adormecida, presa, inerte, está a espera da ação do jovem e viril príncipe encantado (BETTLHEIM, 2002). Deve-se salientar que este perfil – princesa passiva e príncipe ativo – dos contos de fadas é perpetuado no imaginário infanto-juvenil, pois a cada leitura e © sh ut te rs to ck © sh ut te rs to ck Violência Contra a Mulher Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 29 contação destas histórias, o doxa vai se “naturalizando”. Sobre isso, Leite e Maio (2013, p. 7) discutem a respeito desses padrões de gênero: [...] Culturalmente houve a construção de padrões de comportamento de meninas e meninos, esses papéis específicos em função de cada gê- nero, consequentemente, são reproduzidos nas brincadeiras, pois, mui- tos são os discursos que permeiam no âmbito escolar, revelando que as meninas devem brincar de bonecas, casinha, utensílios domésticos e outros brinquedos em espaços mais fechados e tranquilos. Em con- troversa, os meninos devem brincar de carrinho, bola, armas e outros elementos lúdicos, em espaços mais livres. Essa relação entre violência e masculinidade é intrínseca. Antes, porém, deve- mos saber que há uma multiplicidade de masculinidades. Ser homem difere de sociedade para sociedade, grupo para grupo. Porém, algumas “categorias” de masculinidade acabam sendo dominantes e hegemônicas, se utilizando dessa dominação para legitimar o patriar- cado. É dessa masculinidade, que tem a violência como marca, que estamos abordando. O próprio termo força, visto no início de nosso livro, propõe essa rela- ção. A violência é o uso da força, e o homem, por sua vez, é o produtor dessa força, através de sua virilidade, por meio de competições ou por simples exibicionismo. E como cons- trução social, “é esse homem, imbuído de disposições de converter facilmente sua agressividade em agressão, que faz jus a ideia de que não se nasce homem; torna-se. O processo de sua forma- ção é atravessado pela incorporação da violência” (SILVA, 2014, p. 2805). A violência pode ser uma forma de proteção contra a ameaça do AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E30 desamparo, decorrente da perda de traços e marcas identitárias da masculini- dade. Por isso, em várias sociedades, a violência é estimulada entre homens para que estes se afirmem homens. Souza (2005, p. 60-61), cita o olhar de Cacheto (2004), quando chama a atenção para a relação entre masculinidade e violência no âmbito da competição. Vários estudos etnográficos em diversas sociedades são recorrentes quanto a uma espécie de característica intrínseca da identidade masculina: algo a ser conquistado por meio de competições ou provas. Para Cecchetto (2004), o incen- tivo que os meninos recebem para afirmarem sua virilidade por meio de provas dramáticas, em quase todas as sociedades humanas, torna a aquisição da mas- culinidade um processo violento. O psicoterapeuta carioca Sócrates Nolasco, no livro ‘’De Tarzan a Homer Simpson – banalização e violência masculina em sociedades contemporâneas ocidentais’’ (2001), afirma que a violência pode não ter classe social ou etnia, mas tem gênero: é masculina! Afinal, Nolasco (2001) faz um apanhado quanti- tativo sobre o tema, por meio do IBGE, ISER (Instituto de Estudos da Religião) e da própria ONU, percebendo que, apesar da ideia de masculinidade ter se plu- ralizado, as maiores vítimas de acidente de trânsito, morte por bebidas e drogas, armas de fogo, suicídio, e 90% do contingente carcerário, são homens. O autor acaba constatando uma cruel realidade, que a violência está associada à mascu- linidade e virilidade. Cacheto (2004) chega praticamente a mesma conclusão, quando estuda “os estilos de masculinidade e suas variadas associações com a violência a partir de estudo com jovens do Rio de Janeiro envolvidos com galeras funk, lutadores de jiu-jitsu e freqüentadores de baile charme” (SOUZA, 2005, p. 61). Cecchetto (2004 apud SOUZA, 2005) conclui, porém, que não é possível generalizar, com base no sexo, a presença ou não do etos guerreiro, bem como da adesão dos valores e, principalmente, às práticas da violência. Contudo, é inegável que, nos indicadores do país, com extensão para os dados em nível mundial, é óbvio o crescente envolvimento de rapazes, cada vez mais jovens, em situações de violência (OMS, 2002; BARROS et al., 2001), ou seja, no sentido quantitativo, as pesquisas ainda colocam o homem como o gênero dominante no quesito violência. Violência Contra a Mulher Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 31 Neste contexto, em que o homem culturalmente é produtor da violência, se dissemina a violência contra a mulher, fenômeno tão grave no Brasil, sendo o 5° lugar no mundo no quesito “feminicídio”, segundo dados da ONU. Um termô- metro para os dados é o próprio “Ligue 180”, Central de Atendimento à Mulher, que com 11 anos de funcionamento, atendeu cerca de 5,4 milhões de ligações. Só em 2016, 12,23% das ligações foram relatos de violência contra a mulher, sendo que 51% correspondem a violência física; 31,1% psicológica; 6,51% moral; 1,93% patrimonial; 4,30% sexual; 4,86% cárcere privado; e 0,24% tráfico de pes- soas (PORTAL BRASIL, 2016, on-line)4. Blay (2003) reforça que a magnitude da violência contra a mulher é fre- quente em países onde prevalece a cultura masculina, e a recorrência disso fez com que a ONU, em 1975, realizasse o primeiro Dia Internacional daMulher, mobilizando o mundo a ter um olhar mais profundo sobre o tema. Além do mais, em 1993, com a Reunião de Viena, a Comissão de Direitos Humanos da ONU incluiu medidas para coibir a violência contra mulheres. No Brasil, o tema precisa ainda ser mais discutido, principalmente no âmbito do Serviço Social, uma vez que a violência de gênero é um fenômeno que deve ser enfrentado com estratégias sociais diretas e enfrentamento político. No Sul do Brasil esse diálogo deve ser maior ainda, visto que, de acordo com Lisboa e Pinheiro (2005), ficou ressaltado, após exaustivo levantamento, a inexistência do profissional de Assistência Social nas Delegacias de Proteção à Mulher, em todos os três Estados da região Sul. Ademais, independentemente da região do país, o problema da violência, principalmente contra a mulher, tornou-se um problema público que precisa de intervenção. Apesar do avanço graças a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), o Brasil ainda é um país de extrema violência contra mulheres, estando no 5º lugar do ranking de países nesse tipo de crime (MAPA DA VIOLÊNCIA , 2015). Segundo o “Mapa da Violência” (2015), 33,2% dos homicídios femininos foram praticados por homens, geralmente pelo parceiro ou ex. Os dados do ‘’Mapa da Violência’’ dizem respeito ao ano de 2013 e 2014, e nisso, percebe-se que, de um ano a outro, houve um aumento significativo de 44,74% no número de relatos de violência, 325% de cárcere privado (média de 11,8/dia), 129% de violência sexual (média de 9,53/dia) e 151% de tráfico de pessoas (média de 29/mês). © sh ut te rs to ck AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E32 O índice de violência contra a mulher é ainda mais marcante quando nos referimos às mulhe- res negras, duplamente objetificadas em uma sociedade machista e racista. Em uma década, o homicídio de mulheres negras aumentou em 54% (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2015). O fato é de extrema importância para o Serviço Social, visto que clama um olhar mais atento às polí- ticas públicas em relação à mulher e ao negro. Onde esse tipo de violência mais acon- tece? Dentro da própria casa. O parceiro é o responsável por mais de 80% dos casos repor- tados de violência de gênero (FPA/SESC, 2010, on-line)5. Uma pesquisa, com apoio da SPM-PR (Secretaria Especial de Proteção a Mulher) e Campanha Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha, revelou que, para 70% da popu- lação, a mulher sofre mais violência dentro de casa do que fora dela. Dentre esses 70%, metade acreditam que as mulheres se sentem inseguras dentro da própria casa. LEI MARIA DA PENHA A lei 11.340/2006 recebe popularmente o nome de Lei Maria da Penha, home- nageando Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica cearense, vítima de violência doméstica durante 23 anos de casamento, e que, após a denúncia, ficou inconformada pelo fato do ex-marido pegar apenas 2 anos de cadeia. Em razão disso, Maria da Penha, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional e o Comitê Latino - Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), for- malizaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, órgão que criticou o Brasil por não ter mecanismos suficientes e eficien- tes para coibir a prática de violência doméstica contra a mulher. Figura 7 - A mulher negra sofre no Brasil duas violências concomitantes: a de gênero e a institucional. Violência Contra a Mulher Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 33 Atualmente, a Lei também assegura direitos para transsexuais. Nos cinco primeiros anos da aplicação da Lei, foram realizados mais de 685 mil procedimentos, quase 305 mil audiências, mais de 26 mil prisões em fla- grantes e mais de 4 mil prisões preventivas (ConJur, 2012, on-line)6. Um dado interessante sobre a Lei e sua relação com as mulheres se deu a partir da pesquisa do DataSenado 2015, realizada desde 2009. Revelou-se que 100% das mulheres entrevistadas sabem da existência da Lei Maria da Penha. Contudo, na mesma pesquisa, uma em cada cinco entrevistadas declararam que já sofreram algum tipo de violência, sendo a doméstica a mais citada; e dessas, 26% ainda convi- viam com o agressor. Os motivos que impedem a denúncia precisam ser foco de reflexão de profis- sionais e estudantes do Serviço Social. A pesquisa de Biachini e Cymrot (2011), sistematizada por diversas entrevistas e questionários de diversos institutos, lista 14 possíveis motivos para a passividade da mulher frente à agressão: ■ Medo do agressor. ■ Dependência financeira em relação ao agressor. ■ Dependência afetiva em relação ao agressor. ■ Não conhecer os seus direitos. ■ Não ter onde denunciar. ■ Percepção de que nada acontece com o agressor quando denunciado. ■ Falta de autoestima. ■ Preocupação com a criação dos filhos. ■ Sensação de que é dever da mulher preservar o casamento e a família. ■ Vergonha de se separar e de admitir que é agredida. ■ Acreditar que seria a última vez. ■ Ser aconselhada pela família a não denunciar. ■ Ser aconselhada pelo delegado a não denunciar. ■ Não poder mais retirar a “queixa”. AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E34 Apresentamos abaixo um gráfico, baseado nos dados de 4 institutos sobre os motivos da não denúncia: A U M EN TO D A V IO LÊ N CI A E M C A SA PR ES ER VA Ç Ã O D O C A SA M EN TO E D A F A M ÍL IA D EP EN D E EC O N O M IC A M EN TE D O M A RI D O A CR ED IT AV A Q U E N A D A IR IA A CO N TE CE R CO M O A G RE SS O R V ER G O N H A , A U TO -E ST IM A , M ED O O U TR O S BOPE/ Instituto Patrícia Galvão 2006 28% 24% 18% 18% * IBOPE/AVON 2009 24% 29% 24% 26% Intituto AVON 2011 17% 25% 27% 27% DataSenado 2011 23% 23% 23% 18% 18% Tabela 1 - Motivos da não denúncia de violência doméstica. Fonte: o autor Concomitante com a Lei Maria da Penha, o uso de telefones como o ligue 180, do Centro de Atendimento à Mulher, criado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), em 2005, auxilia a coibir e denunciar a violência de gênero. O serviço realizou 749.024 atendimentos em 2015, variados em prestação de informações (41%), encaminhamento a serviços especializados (9,6%), e encaminhamento a outros serviços como 190 da Polícia Militar, 197 da Polícia Civil e Disque 100. Violência Contra a Mulher Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 35 Todas essas discussões apontam para a seguinte reflexão dada por Lisboa e Pinheiro (2005, p. 204): A temática da violência de gênero, com seus diferentes desdobramen- tos – violência doméstica, violência contra a mulher, violência intra- familiar e outras – tem sido definida como uma relação de poder e de permanente conflito, principalmente no lócus familiar, demandando atendimento, encaminhamentos, orientação, informação, recursos e capacitação por parte de assistentes sociais. A violência contra a mu- lher tornou-se objeto de intervenção profissional do assistente social como um desafio posto no cotidiano sobre o qual ele deverá formular um conjunto de reflexão e de proposições para intervenção. No artigo “A intervenção do Serviço Social junto à questão violência contra a mulher” (2005), os pesquisadores Lisboa e Pinheiro apontam algumas orienta- ções e propostas para esta relação entre o profissional de Serviço Social e esse tipo específico de violência: ■ O profissional de Serviço social deve orientar e informar a mulher agre- dida, apresentando-a que cada tipo de violência acometida contra ela, seja ameaça,calúnia, agressão física, sexual, uma punição específica. Ademais, SOBRE O LIGUE 180 Um dos eixos do Programa ‘’Mulher: Viver sem Violência’’, o disque denúncia/ violência foi criado em 2005 pela SPM - Secretaria de Políticas para as Mulhe- res, tendo seu serviço gratuito e de preservação de anonimato. Desde 2014, o teleatendimento também adquiriu a função de disque-denúncia, e já fo- ram realizados 103.410 registros do tipo. Além de denúncias de violência, o Ligue 180 também serve para solicitação de informações sobre os direitos das mulheres e a legislação vigente, além de reclamações sobre os serviços da rede de atendimento. O atendimento também encaminha as mulheres para outros serviços, caso necessário. Com funcionamento 24 horas e todos os dias da semana, inclusive finais de semana e feriados, o Ligue 180 pode ser acionado de qualquer lugar do Brasil. Desde março de 2014, o Ligue 180 atua como disque-denúncia, com capacidade de envio de denúncias para a Segurança Pública com cópia para o Ministério Público. Fonte: adaptado de Secretaria de Políticas para as Mulheres. AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E36 o assistente social deve estimular a vítima a denunciar o fato, registrando a queixa (B.O) e, em caso de violência física, orientá-la a se submeter ao exame de corpo de delito, junto ao IML, para que junto com o B.O. o exame faça parte da prova criminal contra o agressor. Ainda neste contexto, cabe o profissional assegurar prioridade a essas mulheres nos programas de proteção social, como a Lei Orgânica de Assistência (LOAS), a fim de que a vítima tenha uma renda mínima assegurada para seu sustento e de seus filhos. Este fato é importante pois, como visto anteriormente, grande parte das vítimas de violência doméstica temem denunciar e dar segui- mento ao processo, já que dependem financeiramente dos agressores. ■ Gerar políticas inclusivas de inserção da mulher no mercado de trabalho. ■ Projetos de economia solidária e cooperativas de mulher. ■ Ações dentro de hospitais públicos podem ser desenvolvidas, gerando estratégias que ressaltam a noção de violência contra mulher, um pro- blema de saúde pública também. ■ Promover ações e atividades em escolas, envolvendo Professores, alunos, pais e funcionários, como palestras e debates, pontuando sobre a violên- cia e questões de gênero. Paralelamente, temas como violência e educação sexual devem ser promovidos. Tal atividade pode ser realizada também em rádios, jornais e TVs comunitárias. ■ Reuniões periódicas em ONGs, Igrejas e Associações de bairro devem ser promovidas pelo profissional de Serviço Social, expondo todo o pro- cesso de conscientização, e até mesmo recebendo denúncias de violência doméstica, por exemplo. VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES Na questão acerca da violência, o retrato da criança e do jovem brasileiro não é animador. Os dados mostram que o descaso social com esse grupo fomentam ainda mais a inserção deste no mundo da violência: Violência contra Crianças e Adolescentes Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 37 ■ O Brasil tem aproximadamente 60 milhões de crianças e adolescentes (de 0 a 17 anos). ■ Cerca de um quarto das crianças de 0 a 3 anos, apenas, tem acesso a creches. ■ Só 56% dos adolescentes no ensino médio estão matriculados na série correspondente à sua idade. ■ 1 em cada 5 mães têm menos de 19 anos no Brasil. ■ 44% das crianças entre 0 e 14 anos encontram-se em situação de pobreza; e 17%, em situação de extrema pobreza. ■ Quase 188 mil crianças apresentam peso baixo, e 69 mil apresentam peso muito baixo para sua idade, segundo dados do Ministério da Saúde. Todo esse contexto negativo acaba impondo, aos jovens e crianças, tanto a vio- lência simbólica quanto física. Dados do IBGE (2012) apontam que mais de 3,3 milhões de crianças e adolescentes (entre 5 e 17 anos) estão em situação de tra- balho infantil, e 19% dos homicídios no Brasil são praticados contra crianças e adolescentes, sendo 80% deles com armas de fogo. Esse último dado nos mos- tra que a tríade - violência, juventude e armas de fogo - é uma constante desde a década de 90, cujos números só crescem, principalmente na periferia. Arma de fogo, negligência e abandono, tráfico de pessoas e trabalho infan- til são termos usualmente comuns na realidade de jovens e crianças no Brasil. Os tipos de violência mais comuns na realidade juvenil brasileira, quase que exclusivo dessa faixa etária, são a Negligência e Abandono, Trabalho Infantil e o Tráfico de Pessoas. Ademais, violência estrutural, delinquência e violência intrafamiliar são conceitos importantes na realidade de crianças e jovens de até 17 anos no Brasil (MINAYO, 2001). Minayo (2001) compreende que, no transcorrer da civilização, as variadas violências contra criança e adolescente eram vinculadas ao processo educativo e como instrumento de socialização. Ou seja, a prática violenta contra criança tinha, por meio da arbitrariedade dos pais, relação direta com a rebeldia e desobedi- ência, ou seja, punição. Tal fato se naturalizou, infelizmente, e a violência contra crianças e jovens passou também a ser “justificada” como “corretivo pedagógico”. Esta naturalização mergulhou uma população de aproximadamente 60 milhões AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E38 de crianças e adolescentes de 0 a 17 anos, segundo o IBGE (2010). É uma esta- tística nada animadora, sendo a primeira nos números da violência estrutural. Violência estrutural De acordo com Minado (2001, p. 11), entende-se por violência estrutural, “aquela que incide sobre a condição de vida das crianças e adolescentes, a partir de deci- sões histórico-econômicas e sociais, tornando vulnerável o seu crescimento e desenvolvimento”. Ou seja, a pobreza, o analfabetismo e o trabalho infantil, por exemplo, são manifestações deste tipo de violência, que parecem “naturaliza- das” em nossa sociedade. Criança pedinte A violência estrutural pode ser percebida nas 20 milhões de crianças e adoles- centes brasileiras (34,8%) que, infelizmente, ainda se encontram em situação de pobreza. Isso significa que esses jovens e crianças fazem parte de famílias com Violência contra Crianças e Adolescentes Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 39 renda mensal de até ½ salário mínimo per capita. A falta de condições finan- ceiras acabam levando a outras situações de violência estrutural, como o não acesso à educação. O IBGE (1997, p.47) considera que “[...] a desigualdade no acesso à escola são marcadas pela condição econômica das famílias [...] confirmando a teoria de que a renda familiar é um determinante da frequência escolar”. Com isso, além da pobreza, o analfabetismo é outra face da violência estrutural. Apesar do número de analfabetismo no Brasil ter caído nos últimos anos, ele ainda é realidade para muitos jovens. O percentual de crianças e adolescen- tes analfabetos, entre dez e 14 anos, era de 3,1% em 2007, e passou para 2,8% em 2008. Os números nos ajudam a entender que políticas públicas e a partici- pação conjunta de profissionais como educadores e Assistentes sociais podem fazer mudanças, além de minimizar os estragos da violência estrutural contra jovens. Graças a programas como o PBA (Programa Brasil Alfabetizado), o aten- dimento escolar a crianças de quatro e cinco anos de idade subiu de 70,1%, em 2007, para 72,8%, em 2008. Isso significa um incremento de 2,7 pontos percentu- ais em um período de 12 meses. No ensino fundamental, a taxa de atendimento à faixa de sete a 14 anos passou de 97,6%para 97,9%. A evasão escolar acaba fomentando o trabalho infantil, uma outra face da violência estrutural. Define-se trabalho infantil como todo trabalho realizado por pessoas que não tenham a idade mínima permitida para trabalhar. Aqui no Brasil, o trabalho não é permitido sob qualquer condição para crianças e adoles- centes até 14 anos. Adolescentes entre 14 e 16 podem trabalhar, mas na condição de aprendizes. Dos 16 aos 18 anos, as atividades laborais são permitidas, desde que não aconteçam das 22h às 5h e não sejam insalubres ou perigosas (UNICEF, 2016). A questão do trabalho infantil no Brasil é observado diretamente por ONGs de defesa da criança e pela UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), que junto com o governo estão elaborando políticas compensatórias que incen- tivam as famílias a manter suas crianças na escola. O papel do assistente social nesse processo é essencial, ainda mais no atual contexto, em que o número do trabalho infantil aumentou 4,5% em 2014, em relação ao ano anterior. São 3,3 milhões de crianças e adolescentes de cinco a 17 anos trabalhando no Brasil. Dessa turma toda, meio milhão tem menos de 13 anos (IBGE, 2010). Apesar da AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E40 maioria dessas crianças e jovens (62%) trabalhar no campo com agricultura, a carvoaria e o trabalho doméstico também configuram espaços desta violência. Um grave crime que acompanha o trabalho infantil é o tráfico de pessoas. A UNICEF (2016) o conceitua como qualquer tipo de recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de uma criança ou um adolescente para fins de exploração, incluindo sexual. Somado a Negligência e Abandono (tipologias da violência contra jovens e crianças), esse grupo geralmente acaba se envolvendo com o mundo do crime, principalmente com drogas e prostitui- ção, o que gera a delinquência. Delinquências Delinquência, segundo o Dicionário infopédia da Língua Portuguesa (2017) é o “ato de cometer delitos, desobedecer a lei ou padrões morais”, e é geralmente um termo relacionado ao jovem. A delinquência juvenil, manifestação de violência gerada também pela violência, deve ser compreendida dentro da realidade de desigualdades do país. É relacionada, segundo Minayo (2001, p. 98), “à questão de classe, e como problema dos pobres, crianças de rua ou institucionalizadas”. E é por isso que deve ser analisada junto com a violência estrutural, “inclu- sive porque costuma ser usado, por grupos voltados para a ‘limpeza social’, como álibi para extermínios, execuções e homicídios” (MINAYO, 2001, p. 98). Tal fato é observado nos crimes que acontecem em comunidades de morro, por exem- plo. Segundo o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP), jovens vítimas de homicídios na década de 1990, no Estado do Rio de Janeiro, foram contabilizados como “aviãozinho de traficante” ou assaltantes, mas 60% dos mortos não tinham nenhuma relação com crime, eram apenas crianças e jovens pobres, e quase sempre, negras. Logo, somado à violência estrutural, o preconceito também se junta a somató- ria da produção da delinquência. Sem escola, sem dinheiro e sem condições sociais dignas, o jovem acaba vendo como alternativa nos centros urbanos subempregos, a indústria da droga ou a contravenção. Infelizmente, a adesão de crianças e jovens ao tráfico é “considerado uma alternativa à exclusão que os jovens pobres e de pouca instrução sofrem no mercado de trabalho formal” (MINAYO, 2001, p. 98). Violência contra Crianças e Adolescentes Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 41 Quando se infiltram nas contravenções, as infrações quase sempre são con- tra o patrimônio (32,5%), estão vinculadas a entorpecentes (33,7%), contra a pessoa (12,1%), contravenções pequenas (6,7%), contra os costumes (1,4%) e outros crimes (13,6%). Não é incomum a presença de arma de fogo no universo da violência infanto-juvenil no Brasil. Primeiro pela questão cultural, que já comentamos e segundo, pelo fato da vítima de arma de fogo ser o próprio jovem que a manuseia para os delitos. Se a violência é uma característica, ainda que cultural, do gênero mascu- lino, dentro desse grupo há ainda o jovem de periferia, que está mais envolvido nas relações de violências. Gary Barker (2008), em “Homens na linha de fogo”, aborda a condição de jovens de periferia, em que a construção da masculini- dade é atravessada por referências de classe e raça, mostrando como alguns deles resistem à entrada na criminalidade em contextos nos quais o próprio referen- cial masculino lhes obriga. Os registros do SIM permitem verificar que, entre 1980 e 2014, morreram perto de 1 milhão de pessoas (967.851), vítimas de disparo de algum tipo de arma de fogo. Nesse período, as vítimas passam de 8.710, no ano de 1980, para 44.861, em 2014, o que representa um crescimento de 415,1%. Temos de consi- derar que, nesse intervalo, a população do país cresceu em torno de 65%. Mesmo assim, o saldo líquido do crescimento da mortalidade por armas de fogo, já descontando o aumento populacional, ainda impressiona pela mag- nitude. Essa eclosão de mortes foi alavancada, de forma quase exclusiva, pelos Homicídios por Arma de Fogo (HAF), que cresceram 592,8%, setuplicando, em 2014, o volume de 1980 (BARKER, 2008, p. 14). Infelizmente, é o jovem que lidera esses trágicos números, principalmente os de periferia. Infelizmente, não é apenas nas ruas das periferias que crianças e adolescentes se confrontam com o mundo da violência. É em casa que se manifesta a violên- cia intrafamiliar, exercida contra jovens na esfera privada. Violência intrafamiliar Não é só a mulher a protagonista da violência doméstica. Crianças e adolescen- tes também figuram esta realidade. Assis (apud MINAYO, 2001) concluiu uma AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E42 pesquisa no Rio de Janeiro com 1.328 adolescentes, de escolas públicas e par- ticulares, sobre violência física. Os dados revelam que mais de 75% dos jovens relataram que os irmãos seriam os autores da violência contra eles, enquanto o pai seria o autor da violência para 40% e a mãe, para 45% dos jovens (havia a possibilidade de múltipla escolha no questionário); 40% dos entrevistados pre- senciaram em casa ocorrência de agressão severa, isto é, com uso de armas (fogo e brancas). Estes números, em grande escala, mostram que mais da metade da população infanto-juvenil do país convivem quotidianamente com a violência familiar. Violência estrutural -> violência intrafamiliar - > delinquência - > VIOLÊNCIA ESCOLAR E BULLYING Segundo Pierre Bourdieu (2002), os grupos dominantes garantem o controle ideológico através da “cultura” e, com isso, desenvolvem um sistema que perpe- tua a diferença de classe, distanciando-as. Predominantemente, o instrumento usado para isso são as práticas sociais e culturais de um grupo sobre o outro, ou seja, o grupo dominante tem “poder” sobre o conhecimento científico, literário e artístico, enquanto o grupo dos dominados não. Desse modo, os dominantes usam de uma violência simbólica, chamada aqui de imposição cultural, definindo assim o que é “ter cultura” e, assim, abrem por- tas do sucesso para alguns fechando-as para outros. Ademais, Bourdieu ainda pontua que a violência simbólica ocorre de modo claro no processo educacional, já que é na escola que se elenca os “saberes” que se devem conhecer, obedecen- do-os e não os questionando. Desta forma, o currículo escolar, o conhecimento dito ‘’científico’’ que conhecemos como boa arte e boa literatura foram pré-determinados, forçando a sociedade a se dividir entre os que as têm e os que não as têm. Os que as têm usam daviolência invisível para manter o status quo. Cabe ao grupo dominado, Violência Escolar e Bullying Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 43 maior parcela da sociedade, reivindicar a sua própria cultura, seu próprio conceito de cientificidade, arte e literatura, revertendo a imposição cultural e, consequen- temente, a violência simbólica que sofrera durante séculos. Mas, além da violência desse “currículo escolar”, a escola é um ambiente, infeliz- mente, de extrema violência. Abramovay (2008, p. 2) revela isso quando apresenta que: encontramos é uma escola que exclui os seus alunos, não respeita as diferenças, é elitista, baseada em um modelo de escola que durante muitos anos atendeu a elite brasileira. Além de ser excludente ela, mui- tas vezes, não respeita a criança e o jovem, expulsando-os direta ou indiretamente do seu espaço. Ou seja, a escola passa ser um lócus de produção e reprodução de violências, conforme ela deixa de cumprir o seu principal papel: educar. Quando a escola falha em educar, automaticamente surge a violência esco- lar, em suas variadas e máximas facetas. Colombier (1989), no livro “Violência na escola”, retrata a opinião normalmente exposta pelo corpo docente da escola. Ou seja, trata-se de entender o fenômeno da violência nas escolas como atos de violência contra as instalações da escola, contra os professores e dos alunos uns contra os outros. A violência na escola é isso: é depredar, pichar os muros, van- dalizar, professor agredir professor, aluno agredir aluno, professor agredir aluno e vice-versa, funcionários agredirem alunos e professores, etc. A própria estrutura física da escola já violenta alunos, mestres e funcionários. Um local estruturado como mecanismo disciplinador/panóptico (FOUCAULT, 2001/ 2002) pretende mais coagir do que educar. O assistente social é uma figura necessária nesse espaço, tanto que as dis- cussões da obrigatoriedade de um profissional do Serviço Social em escola são debatidas desde a implementação deste no SENAI, em São Paulo, na década de 70 (IAMAMOTO; CARVALHO, 1982), embora ainda não tenha o mesmo espaço que tem na saúde. A educação é um dos segmentos que o Serviço Social tem conquistado, e seu compromisso baseia-se na sua defesa como direito que todo cidadão pos- sui de acordo com os princípios fundamentais de nossa Constituição Federal, como também na valorização do trabalho socioeducativo aplicado em suas ati- vidades diárias como profissional (CAMPOS, 2012). AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E44 Mas a escola não é apenas violenta pelos seu sistema de vigilância, por sua arquite- tura parecer uma prisão, pelo currículo que venera a história do europeu e exclui a do africano, ou por não incentivar a educação sexual, fomentando a misogi- nia, homofobia e sexismo na sociedade ou por ela não promover a laicidade. A escola é violenta nos cochichos diários, nas conversas de canto, no burburinho da sala dos professores ou nos comentários maldosos de funcionários e edu- cadores. A escola é violenta pois ela produz e reproduz o bullying – a violência típica do universo escolar. BULLYING E CYBERBULLYING Apesar deste subitem abordar também o cyberbullying, já que é uma forma de violência terrível em nossa sociedade e época, iremos discutir melhor o tema na unidade V, quando abordarmos os limites da tecnologia. O que posso adiantar é que o cyberbullying é uma versão do Bullying, e seu conceito é novo na literatura sobre o tema. Segundo Maidel (2009), tal fenômeno envolve o uso de tecnolo- gias digitais por crianças e adolescentes a fim de causar constrangimento moral ou psicológico a outros. O termo bullying possui diversas formas de interpretação, em vários idio- mas diferentes. Etimologicamente, o termo tem origem na língua inglesa em que o termo bullying origina-se da palavra inglesa bully, como adjetivo significa “valentão” e como verbo (to bully), significa “brutalizar”, “tiranizar” e de modo mais amplo, maltratar, tratar abusivamente, afetar pela força ou coerção, usar linguagem ou comportamento amedrontador, intimidar (FANTE, 2005, apud MAIDEL, 2009, p. 114). Vale destacar, que bully vem de bull, touro, ou seja, nova- mente relacionando violência com masculinidade. De acordo com Nogueira (2005 apud, MAIDEL, 2009, p. 114), as variedades Você sabia que atualmente há no Senado o Projeto de Lei n° 060/2007, que dispõe a prestação de serviços de psicologia e assistência social nas escolas públicas de educação básica? Violência Escolar e Bullying Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 45 em francês (harcèlement quotidien), italiano (prepotenza ou também bullismo), japones (ijime), alemão (agressionen unter schülern) e norueguês (mobbing) tem o mesmo significado que em português, “maus-tratos entre pares”. O bullying é defi- nido como toda e qualquer agressão física ou moral que ocorre intencionalmente, sem motivos evidentes e de forma repetitiva, adotada por um ou mais estudantes, causando injúria, dor, angústia e sofrimento. Tais atitudes são relacionadas às dife- renças de idade, tamanho, desenvolvimento físico ou emocional, ou simplesmente por incentivo de outros estudantes (ALMEIDA et al 2008, apud MAIDEL, 2009). O bullying começou a ser estudado na Suécia no ano de 1970, porém no Brasil o estudo iniciou apenas em 1990, dando abertura para a discussão somente em meados de 2005, quando o bullying passou a ser pesquisado e explicitado em artigos científicos. Para as autoras Middelton-Moz e Zawadski (2007, p. 13 e 14), o bullying não é, simplesmente, [...] um comentário cortante ocasional feito por uma pessoa impor- tante para quem o ouve, à mesa do café da manhã, um dia ruim com o chefe ou crianças brigando no pátio. Bullying é cruelmente delibera- damente voltada aos outros, com intenção de ganhar poder ao infligir sofrimento psicológico e/ou físico. Levando em consideração as características do bullying, pode-se afirmar que ele ocorre no cotidiano, de diversas maneiras e por diversos motivos, ou seja, qual- quer tipo de desrespeito pode ser considerado bullying. Essa prática geralmente ocorre em ambientes comunitários/públicos em que as vítimas estão inseridas – em especial – a escola. Albino e Terêncio (2012) definem bullying como [...] todas as atitudes agressivas, intencionais e repetitivas adotadas por uma pessoa ou um grupo contra outro(s), causando dor, angústia e so- frimento. Tal forma de violência ocorre em uma relação desigual de poder, caracterizando uma situação de desvantagem para a vítima, a qual não consegue se defender com eficácia” (ALBINO ; TERÊNCIO, 2012, p. 1). Os autores Antunes e Zuin (2008) entendem, igualmente, que o bullying está dire- tamente relacionado ao preconceito, por compreenderem que retrata os fatores sociais e seus possíveis agressores. Logo, no ambiente escolar e às vezes fora dele, o bullying estará intimamente ligado à violência institucional. AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E46 O bullying geralmente ocorre no contexto escolar, nos períodos em que há menos supervisão de adultos e/ou nos momentos que deveriam ser para diverti- mento e brincadeiras, mas que se tornam momentos de tensão, medo e angústia para alguns. Manifesta-se de duas formas diferentes, a direta e a indireta, isto é, física ou simbólica. A forma direta ocorre com contatos físicos e/ou verbais, como insultos, chutes, injúrias, apelidos de mau gosto, roubo de pertences, entre outros. Já a forma indireta, ocorre quando os espectadores não percebem que aquela pes- soa está sofrendo bullying,pois o agressor aos poucos conseguirá que a vítima seja excluída do grupo, expondo informações ofensivas/rudes sobre a vítima (FANTE, 2005, p. 50). Essa questão do bullying ser um fenômeno recorrente de colégios e escolas é muito importante para o assistente social, visto que grande parte da ausência de alunos na escola, ou seja, a evasão escolar, é motivada pelo bullying. O bullying interfere no processo de aprendizagem e no desenvolvimen- to cognitivo, sensorial e emocional. Favorece um clima escolar de medo e insegurança, tanto para aqueles que são alvos como para os que as- sistem calados às mais variadas formas de ataques. O baixo nível de aproveitamento, a dificuldade de integração social, o desenvolvimento ou agravamento das síndromes de aprendizagem, os altos índices de reprovação e evasão escolar têm o bullying como uma de suas causas (FANTE, 2008, p. 10). Entre os agressores, observa-se um predomínio do sexo masculino, enquanto que, no papel de vítima, não há diferenças entre gêneros. A dificuldade em identificar o bullying entre as meninas pode estar relacionada ao uso de formas mais sutis (NETO, 2005). A Revista Nova Escola (2009), registra que a vítima do bullying têm características muito parecidas, como a timidez, padrões de belezas diferentes das demais, ter melhor desempenho na escola, entre outros. Essas vítimas sofrem consequências graves como angústia, ataques de ansiedade, dificuldade de se rela- cionar com as pessoas e medo da escola. Esses jovens geralmente transformam-se em adultos inseguros, podendo até mesmo chegar ao extremo, com o suicídio. Ainda de acordo com a Nova Escola (2009), em grande parte das vezes, o agressor atinge o colega com repetidas humilhações ou depreciações porque quer ser mais popular, se sentir poderoso e obter uma boa imagem para si mesmo. Violência Escolar e Bullying Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 47 É uma pessoa que não aprendeu a transformar sua raiva em diálogo, e o sofri- mento do outro não é motivo para ele deixar de agir. Pelo contrário, o agressor se sente satisfeito com a reação do agredido, supondo ou antecipando quão dolo- rosa será aquela crueldade vivida pela vítima. Figura 8 - O bullying é uma das faces da cultura da violência. Shariff (2011, p. 54) traz que “os efeitos do bullying podem ser profundos e para a vida toda”, podem iniciar na fase escolar quando a vítima se encontra na ado- lescência, acarretando no desgaste em todas as fases posteriores. Por fim, a autora considera que o bullying e o ciberbullying precisam ser trabalhados pela família e escola, uma vez que são problemas que sucedem na vida escolar e pessoal dos alunos. No entanto, quando se trata da violência com crianças e adolescentes, a escola se torna um local pouco pesquisado. O fato dos estudantes estarem em conduta agressiva constante, segundo Neto (2005), compreende que o comportamento violento, que causa tanta pre- ocupação e temor, resulta da interação entre o desenvolvimento individual e os contextos sociais como a família, a escola e a comunidade, contextos estes que devem sempre ter a participação de um assistente social. AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E48 Infelizmente, o modelo do mundo exterior é reproduzido nas escolas, fazendo com que essas instituições deixem de ser ambientes seguros, modulados pela dis- ciplina, amizade e cooperação, e se transformem em espaços onde há violência, sofrimento e medo (NETO, 2005). Em suma, é preciso mais do que uma educa- ção de qualidade. É necessário o diálogo entre profissionais do Serviço Social, Professores, Alunos, Pais, Funcionários e demais profissionais como Psicólogos, uma vez que são problemas que atingem o desenvolvimento infantil de maneira intensa e suas consequências promovem cada vez mais “cultura da violência” ao invés da “cultura da paz”. INTOLERÂNCIA RELIGIOSA A violência no Brasil ganhou contorno religioso desde a década de 1980, com o avanço das igrejas neopentecostais e seu choque direto com o catolicismo e as religiões afro-brasileiras. O que antes era marcado como “cultura de paz”, a reli- gião no Brasil se envolvia cada vez mais em notícias de intolerância e preconceito. De acordo com o Senado Federal (STECK, 2013), a intolerância religiosa é um conjunto de ideologias e atitudes ofensivas às crenças e práticas religiosas ou a quem não segue uma religião. É um crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humana. O agressor costuma usar palavras agressivas ao se referir ao grupo religioso atacado, além de mostrar agressividade aos elementos, deu- ses e hábitos da religião. Há casos em que o agressor desmoraliza símbolos religiosos, destruindo imagens, roupas e objetos ritualísticos. Em situações extremas, a intolerância reli- giosa pode incluir violência física e se tornar uma perseguição. Essa intolerância é um tipo de violência simbólica extremamente grave, pois lida com questões muito sensíveis como a fé pessoal. Apesar de evangélicos serem constantemente estereotipados em novelas e comerciais no Brasil, muçulmanos sofrerem com analogias aos terroristas ou judeus serem rotulados como sovinas e gananciosos, Intolerância Religiosa Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 49 os números oficiais da intolerância religiosa no Brasil aponta que são os ateus e adeptos de religiões afro-brasileiras os que mais sofrem desse tipo de violência. Desta forma, iremos nos focar nesses dois segmentos. Primeiramente, se faz necessário compreender o conceito de religião afro- -brasileira e de ateísmo. Entende-se como religiões afro-brasileiras, crenças religiosas brasileiras, que tem como base fundamentos e cultos tradicionais afri- canos. As principais religiões afro-brasileiras são o Candomblé e a Umbanda. Contudo, sabe-se que há uma diversidade destas religiões, que variam de acordo com a região do país. Xambá, Xangô, Batuque, Tambor de Mina, por exemplo, também são religiões de matriz africana. Figura 9 - Um adepto de religião afro-brasileira. O ateísmo, por sua vez, é a ausência da crença em um Deus ou deuses. O termo vem do grego atheos, que significa “sem Deus”. O ateu não acredita em Deus, tampouco em qualquer outra figura sobrenatural, sejam anjos, demônios ou espíritos. Os primeiros autodeclarados ateus só se configuraram na sociedade a partir do século XVIII (ARMSTRONG, 1999). AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E50 Por vivermos em um país declaradamente teísta (que crê em Deus) e cris- tão católico (64,4%), os ateus (4,02%) e adeptos de religiões de matriz africana (0,3%) são minorias, tanto do ponto de vista numérico (IBGE, 2012), quanto em relação ao pensamento hegemônico. Dessa forma, as relações de poder e, con- sequentemente, a violência, acaba atingindo ambos os grupos. VIOLÊNCIA CONTRA RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA Os números sobre a intolerância contra religiões afro-brasileiras no Brasil são alarmantes, e fundamentam-se na porcentagem de denúncias ao disque 100, tele- fone da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). “Fiéis de religião de matriz africana (candomblé e Umbanda) são os alvos mais comuns dos relatos de intolerância recebidos pelo serviço, um terço dos episó- dios em que há esse detalhamento” (SANT’ANNA, 2015, on-line)7. Os casos registrados de intolerância religiosa contra as crenças de matriz africana somam 71% do total, segundo o Centro de Promoção da Liberdade Religiosa & Direitos Humanos (Ceplir), do Estado do Rio de Janeiro. Entre dois anos foram 948 queixas de adeptos do Candomblé, Umbandae demais religi- ões afro-brasileiras (BBC BRASIL, 2016, on-line)8. Pesquisadores da PUC-Rio desenvolveram um projeto chamado “Presença do axé - Mapeando terreiros no Rio de Janeiro”. O grupo contabilizou as agressões aos membros dos cultos afro-brasileiros, e das 840 casas listadas no mapeamento, 430 foram alvo de discriminação, sendo que mais da metade (57%) dos casos ocorreram em local público, sendo a rua (67%) o principal local. No Rio de Janeiro, por exemplo, até mesmo nas comunidades de morros, em que as religiões afro-brasileiras tinham espaço conquistado, vê-se uma per- seguição aos cultos negros. Com a manchete “Crime e preconceito: mães e filhos de santo são expulsos de favela por traficantes evangélicos” (SOARES, 2013, on-line)9, o jornal EXTRA/O Globo denunciava a prática no Morro do Amor, no complexo de Lins, onde o simples fato de roupas brancas nos varais era denun- ciado aos traficantes frequentadores de igrejas evangélicas, que não admitiam tais cultos nos morros. Intolerância Religiosa Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 51 Já há registros, na Associação de Proteção dos Amigos e Adeptos do Culto Afro Brasileiro e Espírita, de pelo menos 40 pais e mães de santo expulsos de favelas da Zona Norte do Rio pelo tráfico. Em alguns locais, como no Lins e na Serrinha, em Madureira, além do fechamento dos terreiros também foi deter- minada a proibição do uso de colares afro e roupas brancas (SOARES, 2013, on-line)9. Mas quem deveria defender umbandistas e candomblecistas da hostilidade nos morros também podem ser perseguidores. Um caso de 2010, denunciado pelo Ministério Público Militar (MPM), colocou a intolerância religiosa em foco dentro do exército brasileiro, no Rio. No interior da reserva de armamento do 1º Depósito de Suprimento do Exército em Triagem, Zona Norte do Rio, o terceiro-sargento José Ricardo Mitidieri apontou uma arma na cabeça do soldado Dhiego Cardoso Fernandes dos Santos, adepto do candomblé, com o objetivo de “testar” a convicção religiosa do seu subordinado. O fato ocorreu porque, em conversa com outros soldados, Dhiego dizia ter o “corpo fechado”, isto é, protegido de qualquer mal, uma “frase feita” comum entre os adeptos das religiões afro-brasileiras. Contudo, o sargento Mitidieri se dirigiu ao seu subordinado, carregou uma pistola e apontou na cabeça do soldado, dizendo “Vamos fazer como nos filmes. Você tem o corpo fechado mesmo?” O soldado Dhiego respondeu que sim e, irritado, o sargento Mitidieri contou até três, mas não atirou, dizendo “Não é para você brincar com coisa séria. Você tem que aceitar Jesus!’’ (GOMES, 2011, on-line)10. O Superior Tribunal Militar (STM) condenou o sargento Mitidieri, que é também pastor da igreja evangélica Comunidade Cristã Ministério da Salvação, a dois meses de prisão por ter constrangido e perseguido o soldado Dhiego por sua fé. Mas, se com tanta hostilidade os grupos religiosos afro-brasileiros começam a marchar por justiça, o sistema judiciário brasileiro também não ajuda muito. Em junho de 2014, uma polêmica decisão do juiz Eugênio Rosa de Araújo, titu- lar da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro veio a tona: O juiz negou o pedido de retirada de vídeos do YouTube gravados durante cultos evangélicos, cujas men- sagens apregoavam intolerância contra as religiões afro-brasileiras. AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E52 Na sentença, o juiz dizia que candomblé e umbanda não eram religiões. Entretanto, depois de forte apelo popular nas redes sociais, acabou voltando atrás. O perigo de um discurso como esse é muito maior do que se pode com- preender. Desconsiderar as religiões de matriz africanas como religiões abre o pressuposto de que “sem religião, não existe crime de intolerância religiosa”, per- mitindo legalmente a perseguição a esses cultos. O pedido de retirada dos vídeos foi motivado por representantes e adeptos das religiões afro-brasileiras, contra os vídeos difamatórios da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), denominação religiosa conhecida pelo conflito direto com o candomblé e a Umbanda. Desde a publicação de ‘’Orixás Caboclos e Guias, Deuses ou Demônios?’’ (1997), o conflito entre a IURD e as religiões afro-bra- sileiras só se intensificou. Em 2004, a IURD foi condenada a pagar mais de um milhão de reais à família da mãe de santo Gildásia dos Santos, que morreu em 2000, depois de profunda depressão por ter fotos suas vinculadas à reportagem da folha univer- sal, intitulada “Macumbeiros e charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes” (FRANCISCO, 2004). Infelizmente, a perseguição, o preconceito, a hostilidade e a violência contra as religiões de matriz africanas são disseminadas através de outras crenças, prin- cipalmente as que dominam a mídia com seus horários na TV, jornais, revistas e programas de rádio. Com isso, a violência religiosa no Brasil contra o Candomblé e a Umbanda tornou-se um guerrilha “santa” urbana (JESUS, 2003, p. 188), em que a violência até então simbólica passa a ser física. A intolerância não respeita ninguém – nem crianças, nem idosos. Lembre-se do caso de Kailane Campos de 11 anos, que em 2015, junto da avó que é mãe de santo, foi agredida e insultada por dois homens ao sair de um candom- blé. Os homens levantaram a Bíblia e começaram a proferir termos como: ‘’diabo’’, ‘‘vai para o inferno’’, ‘‘Jesus está voltando’’ e, por fim, um deles jogou uma pedra na cabeça da garota. Enquanto isso, em Camaçari, na Bahia, uma mãe de santo de 90 anos de idade, conhecida como Mãe Dede de Iansã enfar- tou, após seguidores de uma igreja terem passado uma madrugada inteira em vigília proferindo ofensas em direção à casa de santo (VI O MUNDO, 2015, on-line)11. Intolerância Religiosa Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 53 Figura 10 - Kailane, acabou sendo um símbolo na luta contra a intolerância religiosa. Fonte: O Espiritualismo Ocidental (2015, on-line)12. VIOLÊNCIA CONTRA ATEUS Aparentemente, a violência religiosa contra ateus no Brasil é muito mais simbó- lica, dificilmente chegando em agressões físicas. Porém, como já discutido em nosso material, violência é violência, em qualquer uma de suas faces. Em 2013 na cidade de Miraí, em Minas Gerais, o caso do estudante Ciel Vieira, de 17 anos, fez novamente os olhares da sociedade convergirem em relação ao preconceito contra ateus. A professora de Ciel, Lila Jane de Paula, que ministra a disciplina de Geografia, tinha como hábito algo peculiar antes das aulas: rezar o pai-nosso. Ciel, ateu, não quis participar da oração e ouviu da professora que “jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida” (LOPES, 2013). Era clara a visão da professora em relação aos ateus. O confronto aumentou quando, em outra aula, o aluno Ciel confrontou a professora dizendo que ela, ao rezar o Pai Nosso em sala, estaria desrespeitando a laicidade. A Professora disse que não havia lei que a impedisse. Na outra aula, os outros alunos, com a aquiescência da professora, oraram e subs- tituíram a frase “livrai-nos do mal” por “livrar-nos do Ciel”. O fato estava formado! AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E54 O estudante começou a ser perseguido e sofrer bullying. O caso chegou à Secretaria de Estado da Educação, e associações como a ATEA (Associação Brasileira dos Ateus e Agnósticos), Assistentes sociais, familiares e parentes do estudante auxiliaram no desenrolar da história. A professora parou de rezar na sala de aula, mas Ciel conti- nua sendo estigmatizado como “aquele que não será nada na vida”. De acordocom o último censo (IBGE, 2012), cerca de 4% da população bra- sileira é ateia e sofre no ambiente escolar, no trabalho e no dia a dia a violência social. A revista VEJA, com a reportagem “Como a fé resiste à descrença”, escrita por André Petry (2007), mostrou que preconceito contra ateus é um dos mais for- tes e massivos da sociedade brasileira. A revista apresentou uma pesquisa realizada pela CNT/ Sensus, revelando que o brasileiro não votaria em um presidente ateu. GRUPO VOTARIAM DEPENDE DA PESSOA NÃO VOTARIAM NÃO RESPONDERAM Negro 84% 14% 1% 1% Mulher 57% 29% 12% 2% Homossexual 32% 32% 34% 2% Ateu 13% 25% 59% 3% Tabela 2 - Preconceito religioso e eleições Fonte: PETRY (2007, on-line)13. Na figura 8, podemos ver que o brasileiro votaria em um presidente negro (84%), votaria em um mulher presidente (57%), em um presidente homossexual (32%), mas apenas 13% votaria em um presidente ateu. A pesquisa elencou grupos con- siderados “minorias” como negro, homossexuais e mulheres, e pelo resultado, tais grupos são mais rejeitados que os “sem religião”, no caso, ateus. Isso mostra que o imaginário em relação ao ateu no Brasil é de alguém “sem caráter, sem ética, sem moral” (PETRY, 2007, on-line)13. Além da pesquisa CNT/Sensus de 2007, em 2010 fora realizada um pesquisa pelo SESC e pelo Núcleo de Opinião Pública por iniciativa da Fundação Perseu Abramo. Novamente, os números indicam a rejeição aos ateus. Os entrevistados deveriam responder se votariam ou não em um candidato ateu. O resultado foi dividido por gênero e apresentou o seguinte dado: Entre as mulheres, 66% não votariam em um candidato ateu; e entre os homens, 61% não daria seu voto a uma pessoa que não acredita em Deus. Intolerância Religiosa Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 55 GÊNERO PODERIA VOTAR DIFICILMENTE VOTARIA NUNCA VOTARIA NÃO RESPONDEU Homens 25% 13% 61% 1% Mulheres 20% 11% 66% 3% Tabela 3: Gênero, eleições e ateísmo Fonte: PETRY (2007, on-line)13. Um caso que ganhou notoriedade nacional foi o do apresentador do programa Brasil Urgente, José Luiz Datena, da rede Bandeirantes que, ao comentar uma reportagem policial, em julho de 2010, associou o ateísmo à criminalidade, decla- rando que pessoas que não creem em Deus são responsáveis pela degeneração da sociedade (CARTA CAPITAL, 2015, on-line)14. Em 2013, o MPF entrou com uma ação contra Datena e a Band, que perderam e tiveram que fazer uma retra- tação pública. A situação de intolerância religiosa no Brasil cresceu tanto que, em 27 de dezembro de 2007, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 11.635, que cria o “Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa”, no dia 21 de janeiro. E qual é o papel do assistente social em relação a isso? No caso de discri- minação religiosa, a vítima deve ser conduzida a uma Delegacia de Polícia e registrar ocorrência. Também é necessário ligar para o Disque 100, Central de Denúncias da Secretaria de Direitos Humanos. Tanto a partir do telefonema quanto da ocorrência, o delegado deve instaurar inquérito e, a partir do judici- ário, iniciar o processo penal. No caso da vítima sofrer violência física, deve ser conduzida para o exame de corpo de delito. Se a violência acontecer dentro do templo religioso ou na própria residência da vítima, deve-se manter o local para as devidas investiga- ções de autoridades competentes. Se a violência religiosa tiver natureza racial, principalmente contra adeptos de religiões de matriz africana, deve-se ir a uma Delegacia especializada, caso haja em sua região. Em São Paulo, por exemplo, existe a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, especializada em crimes religiosos e de cunho étnico-racial. O Código de Ética do Assistente Social, no TÍTULO III DAS RELAÇÕES PROFISSIONAIS revela: AS VÁRIAS FACES DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E56 CAPÍTULO I Das Relações com os/as Usuários/as Art. 5º São deveres do/a assistente social nas suas relações com os/as usuários/as: b- garantir a plena informação e discussão sobre as pos- sibilidades e consequências das situações apresentadas, respeitando democraticamente as decisões dos/as usuários/as, mesmo que sejam contrárias aos valores e às crenças individuais dos/as profissionais, res- guardados os princípios deste Código (1993, p. 29. Grifo nosso). É preciso salientar que o Assistente Social é um mediador para minimizar esses conflitos em ambiente sociais, escolas, comunidades-terreiro, etc., e não fomen- tar ainda mais violência. Afinal você, futuro(a) profissional, que tem ou não sua religião, precisa ter ciência que ela não deve influenciar negativamente o pro- cesso laboral. Considerações Finais Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 57 CONSIDERAÇÕES FINAIS A violência foi tema desta unidade. Nela, aprendemos que, de forma genérica, violência seria um comportamento que intimidaria moralmente um outro ser de forma intencional, invadindo a integridade física e psicológica de outrem. Ela sempre esteve em contextos de divisões de classe, “justificando” violências sociais. Vimos que a violência em relações de poder é muitas vezes invisível na socie- dade, mas constantemente manipulada por forças hegemônicas, a fim de manter o status quo. Estudamos, desse modo, que as relações de dominação do homem contra a mulher, do hétero contra o homo, do branco contra o negro, do rico contra o pobre, do adulto contra a criança permeiam a violência, para que um grupo sempre domine o outro. É importante relembrar que essas violências podem ser físicas ou simbólicas, e que há uma variada tipologia da violência, como: tortura psicológica, insti- tucional, intrafamiliar, moral, patrimonial, sexual, etc. Dentre elas, vimos que a violência contra a mulher é grave e constante em nosso país, o que fomentou o nascimento da Lei Maria da Penha, que pune o homem agressor, não apenas vinculando o ato como crime de “agressão”, mas também de “gênero”. Em seguida, vimos que a violência atinge a criança e adolescente, e também os próprios agressores, por meio da prática da delinquência, como vítimas atra- vés da violência intrafamiliar. A escola também acaba sendo cenário da violência. Aprendemos que o bullying é definido como toda e qualquer agressão física ou moral que ocorre intencionalmente e sem motivos evidentes, de forma repetitiva, adotada por um ou mais estudantes, causando injúria, dor, angústia e sofrimento. E por fim, chegamos a Intolerância Religiosa, um tipo de violência que ocorre no contexto religioso. Aprendemos que os ateus e os adeptos das religiões afro- -brasileiras são os que mais sofrem com essa intolerância, prejudicando-os em suas aquisições de direitos sociais. 58 1. A violência é um fenômeno comum entre todas as sociedade humanas. Assinale a alternativa que apresenta um elemento importante no contexto da vio- lência, que fomenta a desigualdade social. a. Marcas físicas. b. Relações de poder. c. Marcas psicológicas. d. Impunidade. e. Violência simbólica. 2. A violência pode ser manifestada de formas diversas. Leias as assertivas e assi- nale a alternativa correta. I. Alguém ofendendo uma pessoa negra com termos como “macaco”. II. Humilhar uma pessoa, enfatizando suas fraquezas. III. Vilipendiar imagens sagradas em público, ofendendo uma religião específica. IV. Chutar e beliscar alguém. Estão corretas as alternativas que expressam violência: a. Apenas I e II estão corretas. b. Apenas II e III estão corretas. c. Apenas I está correta. d. Apenas II, III e IV estão corretas. e. Todas as alternativas estão corretas. 3. Sobre a Lei Maria da Penha, cujo nome é homenagem a cearense, Maria da Pe- nha Maia Fernandes,que lutou para que seu agressor viesse a ser condenado. Leia as opções, assinalando-as como Verdadeiro (V) ou Falso (F). ( ) Lei Maria da Penha é a lei nominada como 11.340/2006. ( ) A Lei Maria da Penha vale apenas para mulheres biologicamente nascidas como mulheres. ( ) A Lei Maria da Penha é uma lei específica para violência contra as mulheres. 59 Assinale a alternativa correta: a. V; V; F. b. F; F; V. c. V; F; V. d. F; F; F. e. V; V; V. 4. Em relação ao Bullying, observe as assertivas abaixo: I. Bullying é uma situação que se caracteriza por agressões intencionais, verbais ou físicas. II. Bullying é feito de maneira repetitiva, por um ou mais alunos contra um ou mais colegas. III. Cyberbullying e Bullying são os mesmos fenômenos, a diferença é que o pri- meiro acontece entre jovens e o segundo com crianças. Estão corretas as alternativas: a. Apenas I e II b. Apenas II e III. c. Apenas I. d. Apenas II. e. Todas as alternativas estão corretas. 5. Você acredita que o Racismo é um dos motivos diretos ou indiretos da violência contra as religiões afro-brasileiras? O que pensar da aceitação de deuses gregos no currículo escolar, mas a negação e demonização dos deuses negros africa- nos? Seria a questão racial uma motivadora? MATERIAL COMPLEMENTAR Violência Slavoj Žižek Editora: Boitempo (2014) Sinopse: num cenário de manifestações de rua cada vez mais sangrentas, chega às livrarias brasileiras o aguardado Violência, de Slavoj Žižek. Nesse brilhante ensaio de crítica da ideologia, as sociedades em que vivemos são viradas de cabeça para baixo, em uma análise que articula conhecimentos dos múltiplos campos da história, da psicanálise, da filosofia, da sociologia e das artes, dissecando a violência inerente à globalização, ao capitalismo, ao fundamentalismo e à própria linguagem. A premissa ousada do esloveno é de que a violência que enxergamos – a que surge imediatamente como agente identificável – é ela própria produto de uma violência oculta, profundamente arraigada nas bases de nosso sistema político e econômico. Em seis breves e provocativos artigos, Žižek lança novas bases para a reflexão acerca do fenômeno moderno da violência e se afirma como um dos mais eruditos, incendiários (e baderneiros) pensadores radicais de nosso tempo. Sobrevivi ... posso contar Maria da Penhak Editora: Saraiva (2012) Sinopse: o livro de Maria da Penha ‘Sobrevivi... posso contar’, relata a vida da autora que sofreu uma cruel, dolorosa e covarde violência. Maria da Penha oferece sua história generosamente a toda sociedade, como uma forma de contribuir com transformações urgentes, pelos direitos das mulheres a uma vida sem violência. História que muito tempo depois a tornou protagonista de um caso de litígio internacional emblemático para o acesso à Justiça e para a luta contra a impunidade em relação à violência doméstica e familiar contra as mulheres no Brasil. Ícone dessa causa, sua vida está hoje também simbolicamente subscrita e marcada sob a lei nº 11.340 ou lei Maria da Penha. Penha compartilha de forma ímpar sua história de vida – tão particular e ao mesmo tempo tão comum à de tantas mulheres que levam no corpo e na alma as marcas visíveis e invisíveis Ongs da violência. O livro conta com o apoio do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), além do texto do jurista Paulo Bonavides. Este livro proporciona muito mais do que a história de violência contra uma mulher. Revela um fenômeno social, político, cultural e ideológico que afeta de forma grave e desproporcional muitas mulheres. Material Complementar MATERIAL COMPLEMENTAR Intolerância Religiosa e Direitos Humanos Antonio Baptista Gonçalves Editora: Juruá (2016) Sinopse: liberdade Religiosa é, sem sombra de dúvida, uma das principais agendas do Século 21 e também um dos mais tormentosos temas sobre os quais se debruçam os pensadores atuais. De leitura direta e absorvente, permite a compreensão das questões derivadas na justaposição entre o Estado Laico e os Direitos Humanos, pontuando que a Liberdade Religiosa é um bem tão precioso como os demais direitos fundamentais inscritos no art. 5º da nossa Carta Mãe (o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade). O direito à Liberdade Religiosa deve ser mantido pelo esforço de todos, já que por vezes entra em rota de colisão com outras expressões do Direito. Em algumas matizes religiosas, por exemplo, a preservação do “Sábado” é um fundamento que se choca com algumas obrigações da vida civil, mas o preceito teológico não comporta temperamento, não se adapta, não há “jeitinho” para o rito religioso. É neste viés, e por estas vias, que se concentra esta especialíssima obra, temperando as rotas com o fito de evitar as colisões em situações, muitas vezes conflituosas, entre o tráfego da vida pelas questões religiosas, seus direitos (e deveres) e toda a gama dos direitos civis. Preciosa: Uma História de Esperança Lee Daniels (2009) Aqui a violência sexual e física não são as únicas exploradas. Há também a moral e psicológica que uma adolescente sofre nas mãos da mãe, e da sociedade e que a faz não saber o significado de amor e autoestima. Precious (Gabourey Sidibe) tem 16 anos e dois filhos, frutos de estupros. Ela é humilhada e apanha da mãe. Na rua ela é ridicularizada e às vezes tudo o que mais quer é morrer, para não ter de sofrer mais. O filme é um retrato cruel de uma história ficcional, mas que pode muito bem ser um espelho de uma realidade que acontece em tantos lugares. MATERIAL COMPLEMENTAR Ministério Público do Estado de São Paulo O site do Ministério Público do Estado de São Paulo apresenta em seu portal várias cartilhas com conteúdos didáticos sobre bullying, violência doméstica, violência contra mulher e sobre tolerância. As cartilhas podem ser impressas. Acesse <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/ portal/Cartilhas>. Acesso em: 18 abr. 2017. Por que os contos de fadas são tão violentos? O pesquisador Gustavo Bernardo, na coluna da Revista Eletrônica da UERJ, apresenta o texto “ Por que os contos de fadas são tão violentos?”. O texto aponta as faces da violência nessas histórias populares, que tem poucas fadas e muita crueldade e machismo. O texto está disponível em: <http://www.revista.vestibular.uerj.br/coluna/coluna.php?seq_coluna=46>. Acesso em: 18 abr. 2017. Nunca Mais (Enough) (2002) O filme conta a história de amor da garçonete Slim (Jennifer Lopez) com um empresário. O casamento dos sonhos se torna um pesadelo quando a descoberta de uma traição desencadeia uma sucessiva tortura de violência doméstica. Ao tentar deixá-lo, a moça percebe que o Estado não está ao seu favor, e que o poder e a influência de seu marido a farão refém de um ciclo abusivo. É um thriller de suspense que não foi sucesso de críticas, mas carrega uma mensagem importante sobre a violência doméstica. 63 Nesta dissertação de Paula Trottman, intitu- lada “O Trabalho Infantil, a Assistência Social e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil”, a autora discute sobre o trabalho infantil, desde causas, consequências, ocor- rência e incidência espacial e geográfica, bem como sua classificação. Elaborou-se um histórico da assistência social no Bra- sil, delimitando fatos e eventos históricos. Nele, efetuou-se uma discussão acerca da avaliação de programas sociais, com base em uma metodologia proposta no traba- lho, foi feita uma análise do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil do governo federal brasileiro. O texto é dividido em sete partes: O traba- lho infantil no mundo; O trabalho infantil no Brasil; Classificações do trabalho infantil; Causas e consequências do trabalho infan- til; Assistência social no Brasil; Avaliação de programas sociais; Programa de Erradica- ção do Trabalho Infantil – PETI, além dos resultados. A seguir um trecho da Introdução: “[....]As crianças foram consideradas, durante muito tempo, propriedade dos pais. Em 1893, a Convenção Francesa pro- cura defender os interesses das crianças, tornando os pais responsáveis por seus cuidados. A Declaração Internacional dos Direitos da Criança (1959) reafirma e define as responsabilidades dos adultos em relação às crianças. Durante o século XX, observam-se que as preocupações dire- cionadas às crianças e aos cuidados a elas dirigidos tornam-se regras, normas sociais amparadas por instrumentos de controle em relação ao seu cumprimento. Tam- bém no mesmo período, a adolescência ganha destaque, conceituada como um período de transição que, por preceder a vida adulta, implica que os indivíduos se preparam para uma nova fase através de reconstruções feitas sobre seu passado e elaboração de projetos para o futuro. Assim, pode-se afirmar que as etapas de amadurecimento que compõem a vida são consideradas instituições sociais com desenvolvimento linear seqüenciado, nas quais há a busca do indivíduo por maior competência e maturidade. [....] Ao mesmo tempo em que os jovens são concebidos como os agentes responsáveis pela mudança, são vistos também como causadores de problemas sociais, como violência, enorme capacidade de repro- dutiva, ameaça de explosão demográfica, instabilidade no mercado de trabalho, entre outros. Sob tal ótica, não são vistos pela sociedade, e, em geral, pelo poder público, como sujeitos portadores de direitos, assim, não se apresentam como público-alvo de programas sociais estri- tamente desenhados em seu benefício. É importante compreender que as dificul- dades criadas para tal grupo etário são, muitas vezes, originadas pela própria socie- dade, no interior da comunidade em que estão inseridos. Os autores observam, tam- bém, que nas classes sociais mais carentes, a população jovem tende a ser inserida no mercado de trabalho precocemente, sen- do-lhes impostas atividades que não está apta a realizar, como ocorre no caso das crianças. Esse evento, além de antecipar características da vida adulta, como a res- ponsabilidade, o auxílio na renda familiar e a constituição de família, gera característi- cas negativas ao desenvolvimento social e profissional dos jovens no futuro, que, por trabalharem, têm redução ou privação de horas de estudo. 64 [...] Assim, é necessário considerar a neces- sidade de compreensão do universo das crianças e dos jovens, principalmente dos indivíduos mais carentes, procurando desenvolver políticas capazes de intervir na realidade social que os cerca. Muitas ações empreendidas pelo governo e outras instituições direcionadas aos jovens são orientadas pelo claro objetivo de comba- ter a extrema pobreza que ainda existe em nosso país. Verifica-se, contrariamente aos pressupostos assumidos pela sociedade, que o trabalho infantil não tem relação exclusiva e única com a pobreza. Em paí- ses desenvolvidos e entre famílias que gozam de estabilidade financeira também se observa a ocorrência de trabalho infan- til, especialmente em atividades que são entendidas como uma forma de colabo- ração familiar, algo que deve contribuir ao espírito de coesão familiar e ao senso de responsabilidade do jovem. O desenho de políticas sociais com objetivo de enfrenta- mento ou combate ao trabalho infantil deve ser considerar atividades que comprovada- mente comprometam o desenvolvimento e a educação das crianças e adolescentes. É necessário um diagnóstico que contem- ple as condições e a situação em que se desenvolvem tais tipos de trabalho, desta- cando as condições nas quais é prejudicial às crianças e jovens, sobretudo em termos de freqüência e aproveitamento escolar. [...]” O trabalho na íntegra se encontra no link: http://www.each.usp.br/flamori/images/ TCC_Paula_2008.pdf Fonte: Trottman (2008, on-line)15. REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, M. Escolas e violências. 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U N ID A D E II Professor Dr. Silvio Ruiz Paradiso SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO- RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Objetivos de Aprendizagem ■ Compreender o que é racismo. ■ Diferenciar os termos raça e etnia, no âmbito das discussões étnico-raciais. ■ Relacionar o racismo e a necessidade das ações afirmativas. ■ Conhecer algumas políticas públicas para afrodescendentes, como a cota e a lei de número 10639/11645. ■ Entender algumas políticas públicas para povos indígenas. ■ Ampliar o conhecimento sobre algumas políticas públicas para os povos ciganos. ■ Assimilar a questão da imigração no Brasil. ■ Refletir sobre as relações sociais entre imigrantes e a sociedade brasileira. Plano de Estudo A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: ■ Raça e Racismo ■ Racismo e ações afirmativas ■ Políticas Públicas para afrodescendentes ■ LEI 10639 / 11645 - Obrigatoriedade do Ensino de Cultura e História afrobrasileira e indígena ■ Políticas públicas para indígenas e outros grupos ■ A Questão dos imigrantes INTRODUÇÃO Na unidade II, estudaremos questões que abarcam as relações étnico-raciais, sociedade e políticas públicas, algo de extrema importância em um país miscige- nado como o Brasil, que convive diariamente com o racismo, ainda que velado. Na primeira parte da nossa unidade, discutiremos o conceito de raça e sua relação com o termo etnia, sendo que o primeiro está intimamente ligado ape- nas às questões biológicas, como a cor da pele, e o segundo, mais amplo, está ligado também à uma identidade sociocultural. Compreender os termos nos leva a entender o Racismo e, sobre esse assunto, refletiremos sobre o conceito da palavra e sua manifestação ao longo da história, problematizando pseudoteorias raciais, que visavam justificar a opressão de grupos étnicos só pela cor da pele. Veremos que essa justificativa do racismo trouxe para a população negra e indígena brasileira uma grande defasagem de direitos, que se perpetuou no doxa (Você se lembra desse termo? Doxa é o sistema ou conjunto de juízos que uma sociedade elabora em um determinado momento histórico, naturalizando uma ideia, que nem sempre é verdadeira.) racial, criando um abismo econômico, educacional, jurídico, cultural e social entre brancos e outros povos. Em seguida, iremos constatar que o racismo e suas consequências fomentaram discussões, além da necessidade de implementação de política para equidade étnico-racial, as ações afirmativas. Assim, na segunda parte da unidade, conheceremos as principais Políticas Públicas para afrodescendentes, em especial o sistema de cotas para ingresso às universidades, e também a Lei 11.645 (10.639), que obriga o ensino de História e Cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. Continuando, iremos conhecer algumas políticas públicas para indígenas e para os povos ciganos. Na última parte, nosso foco será acerca da questão dos imigrantes. Iremos abordar os motivos, as necessidade e a realidade desses indivíduos que lutam para se adaptar em nossa sociedade, garantindo direitos mínimos, ainda que envoltos ao preconceito e hostilidade. Bom estudo. Introdução Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 71 SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E72 RAÇA E RACISMO O bom profissional do Serviço Social deve, além de conduta, ética e boa forma- ção, ter conhecimento básico acerca do uso de alguns termos, bem como de seus significados. Raça, racismo e etnia são exemplos de termos cujo conceito deve ser compreendido por aqueles que trabalham com a sociedade, além de suas importâncias nas relações sociais no Brasil. Raça é um termo que deveria ser abolido de nosso vocabulário, ao se tra- tar especificamente de grupos culturalmente estabelecidos, pois o uso de “raça” ficou estagnado apenas no contexto biológico. O conceito de raça perpassa, fundamentalmente, dois significados bá- sicos: o biológico e o sociológico. O primeiro define critérios sobre as raças com fundamento em pesquisas da Biologia, em especial da gené- tica. O segundo define critérios baseando-se na Sociologia, no estudo do comportamento humano em sociedade e na forma de um grupo conviver e definir outro (LIMA, 2010, p. 9). Lexicograficamente,o termo “raça” é “divisão tradicional de indivíduos cujos caracteres físicos biológicos são constantes e hereditários” (PRIBERAM, 2017, on-line)1. Até mesmo dentro das Ciências, o conceito de raça tem conota- ção apenas biológica, além da Biologia negar a existência de raças humanas (GUIMARÃES, 2005), justamente porque os grupos humanos não podem ser definidos apenas pelo seu fenótipo, isto é, comunidades devem ser com- preendidas por suas diferenças morais e de cultura, fruto de construções socioculturais. Um exemplo interessante seria o dos judeus, que não podem ser defi- nidos por terem cabelos crespos e grossos e terem narizes avantajados. Ser judeu é celebrar o barmitzvah, usar kipah, falar hebraico independentemente do local que se vive, saber o que é channukah ou falafel. Logo não há “raça de judeu”. O mesmo com o negro, que não pode ser definido pelas nuances da pigmentação da pele. Ser negro está para além disso, pois se assim fosse, negros e albinos estariam fora dessa conjectura. Ser negro é ter uma rela- ção direta ou indireta com a África, sua história e cultura. A pele negra é um dos atributos étnicos que define o grupo “negro”. É o mais importante? Sim, mas não o único. Raça e Racismo Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 73 Logo não há raça negra, nem raça indígena, nem raça branca, mas houve tempos em que o conceito existia, e era “cientificamente” justificado. A força do uso de “raça”, no contexto de definição dos povos humanos, nasce das “teorias raciais”. Desde o século XVIII, pesquisadores tentavam compreender as diferenças huma- nas por meio da biologia (desconsiderando a esfera social). Um dois primeiros foi o botânico sueco Carlos Lineu (1707-1778), que classificou o ser humano em 4 grupos, a partir das variedades geográficas: os europeus, asiáticos, americanos e africanos. Depois, o alemão Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840) expandiu a classificação de Lineu, dividindo o ser humano em raça caucasiana para os euro- peus (brancos); raça americana; raça mongol, para os povos do extremo oriente; raça etiopiana, para os africanos; e raça malasiana, para os povos do sul da Ásia e da Oceania (SCHWARCZ, 1993). Essas divisões formam problemáticas? sim, quando se começou a acreditar que as “raças” influenciavam o comportamento. A partir de pseudociências do século XVIII e XIX, como a frenologia, antropo- metria, craniologia, etnologia e a eugenia, o mundo foi dividido em raças superiores e inferiores. Joseph Arthur, Conde de Gobineau (1816-1882), conhecido apenas Figura 1 - Um judeu Fonte: Shutterstock. Figura 2 - Guerreiro maasai Fonte: Shutterstock. SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E74 como Gobineau, desenvolveu uma teoria em seu livro “Ensaio sobre a desigual- dade das raças humanas” (1855), que dizia que a raça branca era superior às demais. Com isso, uma série de ideologias raciais começaram a ganhar força no mundo: na colonização, os europeus justificavam as invasões tendo como premissa que os colo- nizados nativos eram inferiores; a escravidão teve aval destas teorias e, além disso, o nazismo se utilizou da ideia e, junto com a eugenia, acreditava em exterminar algumas “raças”, com finalidade de fortalecer a “raça” ariana (caucasianos alemães). Com isso, as pessoas começaram a ser hierarquizadas e julgadas apenas pelos seus biótipos (SCHWARCZ, 1993). Infelizmente, essas pseudoteorias científicas aportaram no Brasil no fim do século XIX, fomentando a escravidão e o racismo: No Brasil, as teorias racistas com fulcro biológico e genético surgiram um pouco antes de 1888, buscando identificar os africanos e seus des- cendentes como pertencentes a raças socialmente inferiores, tendo, en- tre seus objetivos, possuir uma justificativa para continuar a subjugá-los quando abolida a escravidão. No final do século XIX e início do século XX, as teorias racistas estavam em voga no Brasil. As ideias racistas com um fundamento supostamente científico difundiram-se no país. Esses valores sobre a superioridade da raça branca foram introduzidos no imaginário dos próprios descendentes de escravo das mais variadas formas, influenciados por teorias racistas. Tais ideias difundiram-se e perpetuaram-se na sociedade brasileira, permanecendo no imaginário de indivíduos brancos e negros (LIMA, 2010, p. 96). O termo raça, desse modo, tornou-se um conceito biologicamente superado e usado para classificar as pessoas pelo fenótipo, como o Censo/IBGE. Atualmente, o uso do termo “etnia” vem ganhando espaço nas Universidades e entre pesqui- sadores das Ciências Sociais e Humanas, visto que ‘etnia’ abrangeria não só as questões biológicas, mas também as sociológicas. Etnia, no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (2017, on-line)2 significa “agrupamento de famílias cuja unidade assenta numa estrutura familiar, econô- mica e social comum e numa cultura comum”, ou seja, a pertença ao grupo não é determinada apenas pela genética. Já Erikesen (1993, p. 12, grifo meu) revela que: Etnicidade é um aspecto das relações sociais entre agentes que se con- sideram culturalmente distintos dos membros de outros grupos com os quais eles mantêm um mínimo de interação cultural regular. Etni- cidade pode, pois, ser também definida como uma identidade social, caracterizada por parentesco metafórico ou fictício. Raça e Racismo Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 75 E aí temos um ponto importante da discussão, em que Eriksen (1993) observa que a identidade étnica pode ser caracterizada por um parentesco metafórico ou fictício, o que retorna àquela ideia anterior, por exemplo, sobre o negro brasileiro e sua relação cultural com a África. Porém, Cashmore (2000, p. 196) nos traz um conceito diferente e importante sobre vivências: “um grupo étnico não é um mero agrupamento de pessoas ou de um setor da população, mas uma agregação de pes- soas unidas ou aproximadamente relacionadas por experiências compartilhadas”. No caso das minorias étnicas (ciganos, indígenas e negros), uma das expe- riências compartilhadas por eles, fazendo-os se observarem como grupo, é o racismo. Para definirmos racismo, utilizo-me do conceito de Appiah (1997, p. 33): Traça distinções morais entre os membros de diferentes raças porque se acredita que a essencial racial implica em certas qualidades moralmente relevantes. Os racistas [...] baseiam a sua discriminação entre os povos na crença de que os membros de raças diferentes se distinguem em certos aspectos que autorizam um tratamento diferencial – tais aspectos são tidos (pelo menos em muitas culturas contemporâneas) como incontroversos e legítimos como base para o tratamento diferencial dispensados às pessoas. Primeiramente você, caro(a) aluno(a), deve-se perguntar o porquê do uso do termo “raça” na definição. Para nos ajudar, trago as palavras de Lima (2010, p. 96): E mesmo sendo uma identificação com base na aparência que não pos- sui respaldo científico, a determinação da raça dos indivíduos assume grande relevância, considerando-se que essa identificação importa na distribuição de oportunidades e no exercício de direitos. Na sociedade brasileira, para além da simples identificação de traços fisionômicos, tem-se a correlação destes com características morais, intelectuais e psicológicas, positivas e negativas, a cada grupo delimitado como uma raça. Ocorre ainda a super valoração das contribuições históricas, reli- giosas e culturais de uns e desvalorização ou mesmo anulação da con- tribuição de outros. Apesar do conceito de raça estar fora de nossa realidade, seu uso no ponto de vista ideológico é válido. O própriotermo “racismo” usa-se da raiz “raça” para sua definição. O termo racismo define o campo ideológico, em que o conceito de raça tem vigência (GUIMARÃES, 2005). E por quê? O primeiro elemento usado para o racismo é o fenótipo. O negro sofre racismo primeiramente pela cor da sua pele, os indígenas, os ciganos, por exemplo, pelas feições próprias, trazendo o senso de diferença. SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E76 Depois da diferença e hierarquização de fenótipo feita, as questões cultu- rais de minorias étnicas também são hostilizadas, mas em segunda instância. Um exemplo em relação ao negro, é que o racismo fomenta não só a hostili- dade em relação a pele, mas cria também a noção de que a beleza negra é feia, que o cabelo afro é “ruim”, que as roupas afro são exóticas e religiões de tradi- ção negra são diabólicas. Logo, termos como racismo e racial, referem-se ao pressuposto determi- nista biológico, em que as pessoas são tratadas diferentes por suas diferenças fenotípicas. Assim, quando discutimos racismo, o termo raça é usado em alguns contextos, justamente pela sua carga de generalização biológica. Lima (2010) diz que essa identificação importa na distribuição de oportunidades e no exer- cício de direitos, ou seja, a raça no Brasil determina a distribuição de direito e oportunidade. Vemos isso diariamente nos dados estatísticos (MARTINS, 2014, on-line)3; (IBGE, 2002); (DOMINGUES, 2015, on-line)4. Raça e Racismo Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 77 O número de negros na região Norte, acima dos 16 anos e que possuam trabalho informais é de 49,6%, número extremamente alto, além de que este grupo apre- senta um rendimento mensal inferior ao branco exercendo as mesmas funções. Dados de 2013 mostram que os negros que terminaram a faculdade ganhavam em média 28% menos do que os brancos em mesma situação. Em relação aos ofícios, os advogados negros ganham 27% menos que advo- gados brancos; engenheiros, 20%; médicos, 13%. Médicas negras ganhavam cerca de R$ 2 mil a menos que os outros colegas. Além disso, quando exercem fun- ções de direção, “patrões” negros ganham 25% menos. Os negros estão ausentes da política, pois dos 513 deputados federais, 80% são brancos. No Superior Tribunal de Justiça, 25 dos 29 ministros são brancos. Apenas um se considera negro. Todos os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal são brancos. Na mídia, as novelas em exibição na TV aberta têm apenas 15% de atores negros, e raramente um protagonista. Contudo, quando o assunto é miséria e cárcere, a população negra assume o destaque. Três quartos dos beneficiários de programas sociais do Brasil Sem Miséria, que inclui o Bolsa Família, o Brasil Carinhoso e o Pronatec, entre outros, são negros. O motivo é que segundo o IBGE (2011), 71% das pessoas que vivem na situação de extrema pobreza são negros ou pardos. Além disso, a população carcerária entre 18 e 29 anos representam 54,8%, e deste grupo, 60,8% do total são negros. “No Brasil os negros são a maioria dos pobres e dos indigentes, possuem uma perspectiva de vida inferior a de pessoas brancas, além da taxa de mortalidade infantil ser maior entre os negros. O índice de desenvolvi- mento humano (IDH) dos negros é inferior ao dos brancos. Os negros possuem menor mobilidade social que os brancos e as desigualdades não são apenas de renda, mas também no acesso a programas sociais, como educação e saúde. No mercado de trabalho, os negros possuem perspectivas muito piores em suas vidas profissionais, seja em relação aos empregos, seja em relação à remuneração. Trabalhadores negros recebem menores salários que trabalhadores não negros em qualquer nível de escolaridade e também a taxa de desemprego entre negros é sempre maior que a de brancos. Os negros são exceções entre a quase totalidade de brancos no comando das maiores empresas do país. A população negra é maioria entre os que moram em domicílio sem água e sem esgotamento sanitário e minoria entre os que possuem compu- tadores residenciais. Na educação, área fundamental na formação do indivíduo e na sua posterior disputa por oportunidades de trabalho, há SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E78 grandes discrepâncias, com os negros sendo a maioria dos analfabe- tos funcionais, possuindo menos anos de estudo e representando uma quantidade ínfima de pessoas nos cursos superiores, em especial nos de maior prestígio social, como Medicina, Direito, Administração, Psico- logia e Odontologia (LIMA, p. 103). RACISMO E AÇÕES AFIRMATIVAS Segundo o IBGE/PNAD (2014), os negros (pretos e pardos) são a maioria da população brasileira, representando 53,6% da população. Os brasileiros que se declaram brancos são 45,5%. Os números mostram um país miscigenado e aparentemente harmônico na questão étnico-racial, mas isso não é a realidade. Apesar de sermos um país miscigenado, não há equidade de direitos, tampouco divisão equânime do poder. O mito da democracia racial continua sendo uma justificativa, e também um obstáculo para o reconhecimento que, no Brasil, há racismo. O mito da democra- cia racial ganhou força com o livro de Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala (1933), e baseia-se na ideia de que os grupos étnicos no país vivem em harmo- nia e sem conflito, ou seja, ela ignora a existência do racismo. É muito claro que as desigualdades sociais e de direitos no Brasil perpas- sam as questões raciais e precisam ser debatidas, pois a discriminação racial é ainda um empecilho ao desenvolvimento econômico, social, cultural e pessoal das minorias étnicas, que sobrevivem em condições de vida aviltantes. A solução é o fim do racismo, mas enquanto isso não acontece, ainda mais em um país como o Brasil, que perpetua o chamado “racismo velado”, Políticas Públicas para negros, indígenas e outras minorias étnicas são necessárias e urgen- tes, e em alguns caso são chamadas de “Ações Afirmativas”. Surge a necessidade política de atribuir direitos iguais a grupos da socie- dade que são oprimidos ou sofrem com as sequelas do passado de opressão. As políticas públicas para estes povos visam combater os efeitos acumulados de séculos de racismo. Racismo e Ações Afirmativas Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 79 Desde o documento da Marcha Zumbi de Palmares, na década de 1990, várias foram as conquistas sociais, culturais e políticas dos negros, e consequen- temente, várias políticas sociais e ações afirmativas. Podemos citar a criação de órgãos governamentais que desenvolvam, coordenam e executam políticas públicas contra a discriminação racial, afirmação da identidade negra e a pre- servação da cultura negra. A Marcha Zumbi de Palmares contra o racismo, pela cidadania e pela vida, que deu origem a um documento com sugestões de combate ao racismo, foi realizado por centrais sindicais, pelo Movimento Negro Brasileiro e órgãos de defesa à cultura e identidade negra. A marcha teve 30 mil pessoas e aconteceu em Brasília. O documento redigido no evento foi entregue ao então presidente, Fernando Henrique Cardoso e, desde 1995 até nos dias atuais, foram criadas várias iniciativas em combate ao racismo e equidade de direitos e oportuni- dades aos negros. Os primeiros órgãos específicos do tema foram no sudeste do país, com as delegacias especializadas em crimes raciais no Rio de Janeiro e em São Paulo, o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo e a Fundação Cultural Palmares. Duarte(2014, on-line)5 cita também focos em políticas educacionais e na saúde. Na primeira, uma análise dos livros didáticos e manuais escolares, eviden- ciando possível racismo e ausência de temáticas negras, além do treinamento de professores para o trabalho de diversidade étnica nas escola e o acesso de negros à universidade e cursos profissionalizantes. Ambas as propostas serão desenvolvidas mais tarde, com a política de Cotas e a Lei 10.639/03. Também houve o pedido de garantia aos negros e negras em relação a saúde, sexualidade com direito de controle reprodutivo e programas de atenção à gravidez; proteção às áreas de Quilombos e garantias de punição ao racismo e preconceito contra religiões de matriz-africana. Ademais, a Marcha também questionou a instituição em um dia para a consciência negra, que con- traponha-se ao 13 de maio. Das várias políticas públicas e ações afirmativas que foram criadas e manti- das ao longos dos anos, iremos focar em duas específicas: o Sistema de Cotas e as Diretrizes Curriculares Nacionais que versa sob a Lei 10.639/03 (atual, 11.645/08). SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E80 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AFRODESCENDENTES Para se entender as cotas, temos que ter ciência de uma coisa: a grande maio- ria da população negra no Brasil é pobre e sem oportunidades, devido a uma herança ideológica escravocrata. Cotas como ações afirmativas não são coisas tão recentes assim. O Brasil vivenciou 354 anos de escravidão, em que a população negra trabalhava para enriquecer a parcela branca, ou seja, as relações raciais de superior e inferior organizavam o contexto de oportunidade durante o período. No segundo rei- nado, a partir da Lei Eusébio de Queiros, em 1850, proibiu-se o tráfico negreiro e a entrada de escravos africanos no Brasil. Trinta e oito anos depois, o cho- que aos escravocratas se acentuou com a Lei Imperial n.º 3.353, chamada de Lei Áurea. A escravidão foi abolida e o negro ficou sem rumo, visto que, mesmo livres, não eram considerados cidadãos, criando uma massa de desempregados. Segundo Giabernadino e Robl Filho (2005), os negros daquele período soma- vam 56% da população e estavam ansiosos em participar economicamente do novo Brasil, que vivia um processo de desenvolvimento. Contudo, o pensamento racial falou mais alto e o Estado, sedento em “embranquecer” o país, criou polí- ticas para a chegada de imigrantes europeus: as cotas para europeu! Desde 1870, o Estado incentivava a “troca” do negro pelo “europeu”. Na pro- víncia de São Paulo, as “cotas para europeus” já tinham força desde 1884, pois existiam medidas para concessão de passagem gratuita aos imigrantes europeus que trabalhassem na agricultura (IANNI, 2004). Dois anos depois, foi criada a Sociedade Promotora da Imigração, entidade não lucrativa destinada a recrutar, transportar e distribuir trabalhadores europeus pelas fazendas paulistas. Assim, elege-se o modelo branco como sendo o do trabalhador ideal e apela-se para uma política migratória sistemática e subvencionada, alegando-se a necessi- dade de dinamizar a nossa economia por meio da importação de um trabalhador superior, do ponto de vista racial e cultural, capaz de suprir, com sua mão-de-o- bra, as necessidades da sociedade brasileira em expansão (MOURA,1988). Desse modo, no período pós-abolição, durante o processo de desenvolvimento do Brasil, o incentivo à vinda de migrantes europeus para cá foi sistêmica, em que estes recebiam terras do Estado brasileiro, concessões, benefícios sociais e acesso à remuneração. Políticas Públicas para Afrodescendentes Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 81 Enquanto isso o negro livre, chamado de “ex-escravo”, sem oportunidade, migrou da senzala direto para as favelas. Entendida a relação entre Cotas e herança social, uso das palavras de Giabernadino e Robl Filho (2005, p. 8): Ora, foram nesses anos que viveram os bisavós de muitos dos que hoje prestam os concursos vestibulares. Mesmo com o significativo proces- so de miscigenação vivenciado no país, pode-se perceber resquícios da postura adotada naquele período ao se observar atenciosamente a realidade da atual sociedade brasileira. Nesse sentido, não é razoável admitir que os descendentes dos que foram antes claramente privile- giados por políticas estatais digam aos descendentes dos que foram brutal e oficialmente marginalizados que, “a política de cotas é injusta, porque somos todos iguais”, e que “para entrar na universidade pública é preciso ter mérito. Não, queridos(as) alunos(as), não somos iguais, e nosso traços étnicos eviden- ciam muito bem isso. Aliás, o discurso de igualdade é um dos pilares do racismo contemporâneo, pois incita a negação de políticas públicas para minorias étni- cas. Somos diferentes sim! Mas o acesso ao direito e oportunidade precisa ser igual. Igualdade nem sempre é equidade! O problema, no Brasil, é que a dife- rença é transformada em desigualdade. Há na internet duas charges recorrentes sobre o tema. Uma tem o título de “Nosso Sistema Educacional”, em que mostra um homem, fazendo o papel de julgador, e em sua frente, um pássaro, um macaco, um pin- guim, um elefante, um peixe dentro de um aquário, uma foca e um cachorro. O homem então diz: “ Para uma seleção justa, todos farão o mesmo exame: esca- lar aquela árvore”, apontando para uma enorme árvore no fundo do desenho. Somos iguais? Se somos iguais, porque o negro ficou de fora das Univer- sidades e, consequentemente, do sucesso em profissões como Medicina, Engenharias, Magistratura? Por que o negro continua sendo o grande con- tingente penitenciário? Por que o negro protagoniza os números de miséria e violência? SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E82 A segunda charge que me refiro é apresenta três crianças tentando ver um jogo, por trás de uma cerca. Na imagem há dois quadros. No primeiro , temos uma com estatura alta, a outra mediana e a outra baixa. Cada criança tem sob os pé um caixote de madeira. A criança alta tem visão completa do jogo, pois o caixote permite que ela fique mais alta, e sua visão ultrapasse a cerca. A segunda criança fica apenas com a cabeça acima da cerca, e a terceira é tão pequena, que mesmo sobre o caixote, não consegue ver. Contudo, todas as três têm cada uma, um caixote cada! Em baixo da imagem vemos a palavra IGUALDADE. No segundo quadro, vemos as três crianças, cada qual agora com quantidades diferentes de caixotes. A primeira por ser alta, não precisa de caixote, a segunda criança de estatura mediana, precisa de um apenas, e a terceira, a mais baixinha fica com dois caixotes. Assim todas as três conseguem ver o jogo. Em baixo da imagem vemos o termo EQUIDADE. A primeira apresenta que igualdade nem sempre é a mesma coisa que equi- dade, enquanto a segunda mostra que, para se considerar o mérito de algo, deve-se compreender se o percurso para o “sucesso” tem o mesmo caminho para todos. Mérito só se justifica entre pessoas com condições de vida semelhantes e não entre desiguais. As cotas raciais não são uma vantagem para os negros e indí- genas, mas uma correção de uma desvantagem histórica. Tanto é que essa ação afirmativa é temporária,visando a longo prazo equiparar o número de habitan- tes negros com aqueles que têm acesso à Universidade. Desse modo, as cotas são uma ação paliativa. Vivemos em meio as cotas, como a Lei 9100/95, que estabelece cota para mulheres nas eleições, e a Lei 9504/97, que indica cota para deficientes físicos em concursos públicos. Mas por que cotas raciais geram tanta polêmica e hostilidade? Oprofissional do Serviço Social deve estar atento às principais dúvidas que se apresentam nas discussões sobre cotas. Ao final da Unidade, dez importantes questões sobre as cotas sociais e raciais serão apresentadas, e você, provavel- mente, terá que responder! Políticas Públicas para Afrodescendentes Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 83 O sistema de cotas para ingresso em Universidades públicas foi adotado bem antes da lei de 2012. Brandão (2005) nos revela que, já na década de 1990, surgiram as primeiras tentativas de ações afirmativas neste contexto, promovidas por Ongs dos direitos negros. Os cursinhos pré-vestibulares gratuitos para alunos carentes e/ou negros foi um exemplo. Em 1999, as cotas chegaram no âmbito legislativo com a Lei 298, que destinava metade das vagas nas Universidades aos alunos que estudassem integralmente (Ensino Fundamental e Médio) em escola pública. Foi esta lei que começou a aquecer as discussões sobre a necessidade de cotas raciais, visto que a quase totalidade de alunos que pleitearam as vagas eram pardos e/ ou negros. Brandão (2005) cita que a discussão sobre cotas raciais em Universidades vem a partir da criação da Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares, que previa no curso de Administração 40% das vagas aos afrodescendentes. Outras Universidades começaram a adotar as cotas após a Marcha Zumbi dos Palmares e da conferência de Durban, na África do Sul (2001), onde aconteceu a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Um ano depois, a Universidade Federal da Bahia (UFBA) acatou as cotas, sendo seguida em 2003 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade de Brasília (UNB), 2004 pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e em 2005 pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Cotas não são um tipo de racismo? Não. Quem concorda com tal falácia desconhece o que é racismo. Cotas so- ciais e raciais são ações afirmativas, que garantem o acesso de negros e po- bres no Ensino Superior, para que a longo prazo, já formados, equilibrem o mercado de trabalho e as profissões tradicionalmente brancocêntricas. O ra- cismo não está na tentativa de equidade, mas está imbricado na sociedade, no imaginário e nas instituições públicas e privadas. Ademais, Giabernadino e Robl Filho (2005, p. 10), citam o artigo 1º, nº. 4, da “Convenção sobre a Elimina- ção de Todas as Formas de Discriminação Racial” (1968), ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968, para refutar esta ideia: Art. 1º. Não serão considera- das discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos [...]”. Fonte: Giabernadino e Robl Filho (2005, p. 10). SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E84 Após a Lei 12.711, somaram-se várias outras Universidades Federais ao sis- tema. Essa lei foi sancionada em agosto de 2012, e dispõe sobre o ingresso nas Universidades federais e nas Instituições Federais de Ensino Técnico de nível médio. De forma simples, a lei tem cunho social e racial, e é voltada aos estu- dantes que cursaram o ensino médio, integralmente, na rede pública, oriundos de família de baixa renda e autodeclarados pretos, pardos e indígenas. A Lei de Cotas reserva, no mínimo, 50% das vagas disponíveis nas Universidades e Institutos Federais para esses grupos. As vagas reservadas às cotas (50% do total de vagas da instituição) serão subdivididas: 25% para estu- dantes de escolas públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita, e 25% para estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a um salário mínimo e meio. Em ambos os casos, também será levado em conta o percentual mínimo correspondente ao da soma de pre- tos, pardos e indígenas no Estado, de acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O aluno que optar pela cota racial deve se autodeclarar negro/pardo/indí- gena em documento, comprovando obviamente suas características fenotípicas. Em alguns casos, documentos de identificação de ascendentes de até segundo grau, documentos oficiais com indicação de cor/raça própria ou de ascendentes até segundo grau em linha reta (pais e avós) e fotos pessoais podem ser exigi- dos. Alguns trechos da Lei 12.711: Art. 1o As instituições federais de educação superior vinculadas ao Mi- nistério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para in- gresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursa- do integralmente o ensino médio em escolas públicas. [...] Art. 3o Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por au- todeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. [...] Políticas Públicas para Afrodescendentes Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 85 Art. 6o O Ministério da Educação e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, serão res- ponsáveis pelo acompanhamento e avaliação do programa de que trata esta Lei, ouvida a Fundação Nacional do Índio (Funai). Art. 7o No prazo de dez anos a contar da data de publicação desta Lei, será promovida a revisão do programa especial para o acesso às institui- ções de educação superior de estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham cursado inte- gralmente o ensino médio em escolas públicas (BRASIL, 2012, on-line). Mais do que polêmicas, devemos nos ater aos resultados. De acordo com a repor- tagem da revista ISTO É (2013, on-line)6, o sistema de cotas não só melhorou a qualidade de vida de milhares de estudantes negros, pardos e indígenas, como também melhorou a qualidade de ensino e reduziu os índices de evasão. Até mesmo o nível de corte das notas acabam subindo, e consequentemente, a qua- lidade dos vestibulares. Segundo dados do Sistema de Seleção Unificada, a nota de corte para os candidatos convencionais a vagas de medicina nas Federais foi de 787,56 pontos. Para os cotistas, foi de 761,67 pontos, ou seja, uma diferença entre eles de menos de 3%. A Lei 12711 deve ser bem estudada por você, aluno(a) do Serviço Social. Ela está na íntegra no site do Planalto, podendo ser acessada em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/Lei/L12711.htm>. Acesso em: 19 abr. 2017. Fonte: o autor. SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E86 Atualmente, em nível de Universidade Federal, das 59 universidades no Brasil: têm cotas para estudantes oriundos de escolas públicas têm algum tipo de cota racial têm cotas para negros e pardos têm cotas para índios têm cotas para de�cientes tem cota para quilombola 32 25 19 7 1 21 Lei 10639 / 11645 - Obrigatoriedade do Ensino de Cultura e História Afrobrasileira e Indígena Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 87 LEI 10639 / 11645- OBRIGATORIEDADE DO ENSINO DE CULTURA E HISTÓRIA AFROBRASILEIRA E INDÍGENA Como vimos, a escola sempre foi mantenedora de um conjunto disciplinar e curricular que privilegiou a cultura eurocêntrica. Na História, nas Artes e na Literatura, a cultura dos indígenas e negros sempre foi invisível, e quando muito, colocada como um anexo da História dos vencedores, da arte europeia e das literaturas dos colonizadores. Mas a escola também tem um papel fundamental no combate ao preconceito e à discriminação, sendo necessário um currículo escolar baseado nos valores dos grupos étnicos, para a formulação de atitudes essenciais à formação da cidadania. A diversidade étnico-cultural tem sido discutida no campo da educação e foi materializada nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNS), a ser desen- volvida por todas as disciplinas e atividades pedagógicas da escola, como um espaço sociocultural em que as diferenças se encontram, principalmente, por meio dos temas transversais. Contudo, quase nada mudou. Era necessário uma reestruturação curricular e de pensamento. O problema se encontrava no currículo escolar, em que a história do negro iniciava-se na escravidão e a do indígena com o descobrimento; na falta de livros didáticos em que o negro e o índio também fosse protagonista e não estereótipos baratos; além da formação de professores, que teimavam em reproduzir discur- sos de inferiorização à cultura, estética e história de minorias étnicas. Nos anos de 1996 a 2000, um Programa de Educação desenvolveu cerca de 14 cursos em oito Estados brasileiros nas cidades de Belo Horizonte, MG; Curitiba, PR; Cáceres, MT; Joinville, SC; Brasília, DF; Porto Alegre, RS; São Paulo e Belém, PA. A estrutura básica do curso “Relações Raciais e Educação” contou com a parceria de outras organizações do Movimento Negro, Universidades, entidades sindicais e secretarias de educação e cultura do Estado e município. Os participantes são prioritariamente professores do ensino fundamental e médio de escolas públicas, algumas do ensino privado, vários educadores popula- res, corpos técnicos e diretores de escolas, ativistas do Movimento Negro, rappers, profissionais de psicologia e operadores do direito. A variação de profissionais é SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E88 pela inquietação, busca de orientação e apoio para enfrentar situações descon- certantes de discriminação racial que ocorrem na sala de aula, no pátio da escola, na sala de professores e nas relações pessoais. A experiência do curso comprova que o professor bem preparado é um multiplicador de informações corretas no processo pedagógico de ensinar e aprender (SILVA, 2001). Silva (2001) elenca os referenciais do curso, que eram desde racismo, discri- minação racial, preconceito/preconceito racial, segregação racial e desigualdades raciais, passando por cultura brasileira e mitos civilizatórios; estratégias de enfren- tamento do racismo até a estrutura dos currículos escolares, saberes negados ou excluídos e saberes produzidos pelas culturas juvenis. O curso foi um sucesso em seu objetivo inicial, que era de desconstruir a imagem sedimentada da cultura do negro, por anos renegada na educação. O MEC, nas diretrizes Curriculares da Educação das Relações Étnico-Raciais (2005, p. 10), deixa claro que “tais políticas têm como meta o direito dos negros se reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias, manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos”, o que se expandiu, mais tarde, em relação aos povos indígenas. Figura 5 - Impérios Africanos. Lei 10639 / 11645 - Obrigatoriedade do Ensino de Cultura e História Afrobrasileira e Indígena Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 89 Logo, o movimento negro, juntamente com o MEC, viu a necessidade de fornecer subsídios legais para implantação de um currículo eficaz, no qual se encontra a diversidade de culturas na sociedade brasileira. As pessoas precisam ser convidadas a refletir sobre sua própria identidade racial e sua interação com o mundo e, a partir dela, refletir sobre sua própria prática pedagógica na insti- tuição escolar (SILVA, 2001). Dessa forma, a Lei 10.639, assim como as cotas, vem para reparar danos “históricos e culturais” que os negros sofreram por anos. Figura 6 - Autores afrodescendentes como Machado de Assis e Luiz Gama. Fonte: Prefeitura de São Paulo Educação (2015, on-line)7. A Lei 10.639 foi uma política de ação afirmativa para área de educação, visto que o relatório para a lei justificava a necessidade dela, já que os padrões culturais, estéticos e históricos do negro, coexistiam de maneira tensa com o padrão da cultura branco europeu, sendo esta hegemô- nica e, portanto, trazia consequências na arte, literatura e na história, privilegiando a brancura e raízes culturais europeias em detrimento de outras culturas. Na mesma lei, se institui no calendário escolar, o dia 20 de novem- bro como “Dia Nacional da Consciência Negra”. Figura 8 - Arte sacra de Mestre Didi. Fonte: Associação Crianças Raízes do Abaeté (2014, on-line)8. SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E90 Figura 7 - Religião de matriz negra. No dia 20 de novembro, celebra-se o Dia Nacional da Consciência Negra, data criada e incluída no calendário escolar em 2003. A data passa a ser ofi- cialmente instituída nacionalmente, mediante a lei nº 12.519 de 10 de no- vembro de 2011, e considerada feriado em mais de mil cidades no país. A data foi escolhida por ser atribuída à morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, considerado herói nas historiografia afro-brasileira. No dia 20 de no- vembro, é comemorado a valorização da história e cultura negra, distancian- do-a assim do dia 13 de maio, atribuído apenas à história da escravidão. Fonte: o autor. Lei 10639 / 11645 - Obrigatoriedade do Ensino de Cultura e História Afrobrasileira e Indígena Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 91 A Lei promulgada em 2003, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, visava basicamente: incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’. Segundo as diretrizes (2005, p. 10): O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, [...] tem como objetivos o reconhecimento e valorização da identidade, histó- ria e cultura dos afro-brasileiros, garantia de seus direitos de cidadãos, reconhecimento e igual valorização das raízes africanas da nação brasi- leira, ao lado das indígenas, européias, asiáticas. - [...] O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a educa- ção das relações étnico-raciais, tal como explicita o presente parecer, se desenvolverão no cotidiano das escolas, nos diferentes níveis e mo- dalidades de ensino, como conteúdo de disciplinas particularmente, Educação Artística, Literatura e História do Brasil, sem prejuízo das demais, em atividades curriculares ou não, trabalhos em salas de aula, nos laboratórios de ciências e de informática, na utilização de sala de leitura, biblioteca, brinquedoteca, áreas de recreação, quadra de espor- tes e outros ambientes escolares. [...] Todavia, a Lei 10.639/03 sofreu alteração em 2008, e passou a ser Lei 11.645/08, em que insere também a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura indígena: § 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da popula- ção brasileira, a partirdesses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na for- mação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o cur- rículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras” (BRASIL, 2008, on-line, grifo meu). Dessa maneira, a partir de 2003, as minorias étnicas, em especial os negros e indí- genas que coexistiram com o europeu na formação do Brasil, passam a ganhar o mesmo espaço na escola. A Lei 11.645 ajudou a dar visibilidade aos povos indígenas e sua cultura, que outrora era desconhecida e silenciada. Com isso, as discussões sobre políticas públicas aos povos indígenas ganhou força e muito mais legitimidade. SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E92 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA INDÍGENAS E OUTROS GRUPOS Neste tópico, abordaremos algumas políticas públicas em relação aos indígenas e outros grupos, em especial os ciganos. Em relação às políticas públicas aos indí- genas, devemos retomar a FUNAI. A Fundação Nacional do Índio (Funai) É um órgão “indigenista” brasileiro, fundado em 1967, e vinculado ao Ministério da Justiça, tendo como missão promover, coordenar e executar políticas públicas aos povos indígenas. A FUNAI nasce a partir de uma necessidade de expandir a luta a favor dos direitos dos indígenas brasileiros, já desenvolvida desde 1910, com o SPI (Serviço de Proteção ao Índio). Até meados de 1990, todo assunto no governo relacionado aos povos indígenas eram concentrados na FUNAI, mas, a partir da metade da década de 90, esse órgão passou a estar subordinado ao Ministério da Justiça, e depois, acabou perdendo força como “única” agência governamen- tal para esse assunto. [...] O desenvolvimento de políticas públicas direcionadas aos povos indígenas está firmemente alicerçado em princípios constitucionais, consoantes aos mesmos que definem o Brasil como Estado democrá- tico de direito, isto é, na Constituição Federal que assegura e reconhe- ce as especificidades étnico-culturais e os direitos sociais e territoriais desses povos. Estes direitos são reafirmados pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, ratificada pelo Brasil em 25 de julho de 2003 e aprovada pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Nos últimos anos têm sido significativos o direcionamento e a construção de políticas, progra- mas específicos e de investimentos do governo federal sem preceden- tes direcionados aos povos indígenas, os quais são geridos por vários órgãos (FUNAI, FUNASA/MS, MEC, MMA e outros). [...] (FUNAI, 2016, s/p.). Hoje, as demandas dos povos indígenas passam a ser responsabilidade de outros órgãos Federais, além de outros ministérios, justamente pela neces- sidade de inter-relações sociais (DE PAULA, VIANNA, 2011). A tabela 1 apresenta quatro decretos federais, que impõem algumas ações acerca das políticas indigenistas em outros ministérios, como Educação, Saúde e Meio ambiente, por exemplo. Políticas Públicas paraIndígenas e outros Grupos Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 93 DECRETO OBJETO DO DECRETO nº 23 04/02/1991 (saúde) Dispõe sobre as condições para a prestação de assitência à saúde das popula- ções indígenas: Art. 5º A Fundação Serviços de Saúde Pública - FSESP, enquanto não for instituída à Fundação Nacional de Saúde, de que trata o artigo 11 da Lei nº 8.029, de 12 de abril de 19990, encarregar-se-á da coordenação dos projetos, tanto na fase de elaboração, quanto na de execução. OBS. Em 16 de abril de 1991, o Decreto Presidencial nº 100 instituiu a Fundação Nacional de Saúde (FNS), que incorporou a Fundação de Serviços de Saúde Pú- blica e, por seu turno, o atendimento à saúde das populações indígenas. A FNS, tempos depois, passou a ser chamada de Funasa. nº 24 04/02/1991 (meio ambien- te) Dispõe sobre as ações visando à proteção do meio ambiente em terras indíge- nas. Art. 4º A coordenação dos projetos mencionados no art 2º caberá à Secreta- ria do Meio Ambiente da Presidência da República, e sua elaboração e execução serão realizadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis e pelo órgão federal de assistência ao índio. nº 25 04/02/1991 (autossustenta- ção econômica) Dispõe sobre programas e projetos para assegurar a autossustentação dos povos ídigenas. Art. 5º Compete ao Ministério da Agricultura e Reforma Agrária, por intermédio da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e ao Ministério da Justiça, por intermédio do órgão federal de assistência ao ídio, a coordenação das ações decorrentes deste Decreto. nº 26 04/02/1991 (educação) Dispõe sobre a Educação Indígena no Brasil. Art. 1º Fica atribuída ao Ministério da Educação a competência para coordenar as ações referentes à Educação Indígena, em todos os níveis e modalidades de ensino, ouvida a Funai. Tabela 1 - Políticas indigenistas Fonte: De Paula, Viana (2011, p. 6). Contudo, a Funai continua a ter um papel estratégico em boa parte das políti- cas para os povos indígenas, primeiro por sua tradição na área, e segundo, pelo protagonismo dela em relação às propostas governamentais. Somado a isso, em 2006, foi criada a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), cuja atri- buição seria criar um outra estrutura com a mesma atuação, mas de caráter permanente: Conselho Nacional de Política Indigenista. O primeiro desafio seria, junto com a FUNAI, criar, coordenar e executar políticas públicas voltadas para gestão ambiental, atendimento à saúde, fiscalização e vigilância territorial, regularização fundiária, geração de renda, valorização do patrimônio cul- tural etc. Contudo, dois fatos são necessários à compreensão: 1) os “povos indígenas são, portanto, sociedades não estatais, com formas próprias de organização política, que convivem legalmente dentro de uma sociedade estatal mais ampla” (DE PAULA; VIANNA, 2011, p. 8); e 2) o que entendemos como “povos indígenas” é um grupo “heterogêneo, fragmentado e multifacetado, características que geram profundas implicações no plano que nos interessa investigar” (DE PAULA; VIANNA, 2011, p. 8). SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E94 Os mais de 220 povos indígenas no Brasil dividem-se em grupos pequenos (de até uma centena de habitantes), até grupos complexos e populosos (com até 30 mil pessoas). Tais grupos possuem seus hábitos, costumes, línguas e ritos, e para tanto, precisam de políticas públicas bem pensadas, dialogando com o governo, membros da sociedade civil e profissionais como assistentes sociais, educado- res, antropólogos, sociólogos e os próprios indígenas, protagonistas do processo. Apresentaremos um resumo de políticas públicas voltadas aos povos indíge- nas, políticas que todo profissional do Serviço Social precisa estar familiarizado. As políticas selecionadas são do âmbito do Ministério da Justiça (MJ)/ Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Ministério da Saúde (MS)/ Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), Ministério da Educação (MEC), Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e Ministério da cultura (MINC). Grande parte da pesquisa é extraída domaterial dos pesquisadores Luis roberto de Paula e Fernando de Luiz Brito Vianna, nomeado “Mapeando políticas Públicas para povos indígenas”, cujo disponibilidade é gratuita no link disponi- bilizado ao final do material. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS POVOS INDÍGENAS DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (MJ)/ FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI) Como citamos anteriormente, a FUNAI era o órgão responsável por toda cria- ção, coordenação e execução de políticas públicas para os povos indígenas, mas que, a partir de um decreto de 2009, passou a estar subordinada ao Ministério da Justiça. O Decreto Nº 7.056, de 28/12/2009, conhecido como “o novo Estatuto da Funai” seria um instrumentos para orientar a atuação da Fundação Nacional do índio. Segue trecho do decreto: DECRETO Nº 7.056 DE 28 DE DEZEMBRO DE 2009. Aprova o Estatuto e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções Gratificadas da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, e dá outras providências. Políticas Públicas paraIndígenas e outros Grupos Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 95 Art. 2º A FUNAI tem por finalidade: I - exercer, em nome da União, a proteção e a promoção dos direitos dos povos indígenas; II - formular, coordenar, articular, acompanhar e garantir o cumprimento da política indigenista do Estado brasilei- ro, baseada nos seguintes princípios: a) garantia do reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas; b) respeito ao cidadão indígena, suas comunidades e orga- nizações; c) garantia ao direito originário e à inalienabilidade e à in- disponibilidade das terras que tradicionalmente ocupam e ao usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes; d) garantia aos povos indígenas isolados do pleno exercício de sua liberdade e das suas atividades tradi- cionais sem a necessária obrigatoriedade de contatá-los; e) garantia da proteção e conservação do meio ambiente nas terras indígenas; garan- tia de promoção de direitos sociais, econômicos e culturais aos povos indígenas; f) garantia de participação dos povos indígenas e suas orga- nizações em instâncias do Estado que definem políticas públicas que lhes digam respeito; e III - administrar os bens do patrimônio indígena, exceto aqueles bens cuja gestão tenha sido atribuída aos indígenas ou suas comunidades, consoante o disposto no art. 29, podendo também administrá-los por expressa delegação dos interessados; IV - promover e apoiar levantamentos, censos, análises, estudos e pesquisas científicas sobre os povos indígenas, visando à valorização e à divulgação das suas culturas; V - acompanhar as ações e os serviços destinados à atenção à saúde dos povos indígenas; VI - acompanhar as ações e os serviços destinados à educação diferenciada para os povos indígenas; VII - pro- mover e apoiar o desenvolvimento sustentável nas terras indígenas, em consonância com a realidade de cada povo indígena; VIII - despertar, por meio de instrumentos de divulgação, o interesse coletivo para a causa indígena; IX - exercer o poder de polícia em defesa e proteção dos povos indígenas. Art. 3º Compete à FUNAI exercer os poderes de assistência jurídica aos povos indígenas, conforme estabelecido na legislação. Art. 4º A FUNAI, na forma da legislação vigente, promoverá os estudos de identificação e delimitação, a demarcação, a regularização fundiária e o registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indíge- nas. Parágrafo único. As atividades de medição e demarcação poderão ser realizadas por entidades públicas ou privadas, mediante convênios ou contratos, firmados na forma da legislação pertinente, desde que o órgão indigenista não tenha condições de realizá-las diretamente. Art. 5º A identificação de áreas destinadas à criação de reservas in- dígenas dependerá de estudos para a descaracterização da ocupação tradicional e verificação das condições necessárias à reprodução física e cultural dos indígenas (FUNAI, 2016, s/p.). SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E96 Todas as políticas a favor dos indígenas baseiam-se nas garantias apresentadas pelo decreto 7.056. Uma das mais importantes, vinculada ao MJ, é a questão do artigo 4, sobre Demarcação Territorial de áreas indígenas. Esse artigo é um dos mais polêmicos e complexos, devido a hostilidade entre grileiros, posseiros, fazendeiros e a comunidade indígena. O pleito de um cidadão indígena por terra é complexo e demorado, e deve ser feito com a participação dos órgãos e profissionais competentes, que auxiliem a comunidade indígena no processo. Daí, vem a importância do conhecimento do trâmite pelo Assistente Social que, em muitos casos, é o único profissional disponível nos intermédios entre o governo e as comunidades nativas. Além disso, durante o trâmite, há ainda a necessidade de argumentos antropológicos e jurídicos convincentes, ou seja, a participação de pesquisadores e advogados no processo. A organização e regularização dessa área é feita pela CGID (Coordenação- Geral de Identificação e Delimitação de Terras Indígenas), e todas as etapas podem ser observadas no organograma feito por De Paula e Vianna, no material Mapeando Políticas Públicas para povos Indígenas (2011, p. 46). Outras infor- mações sobre o tema podem ser encontradas na página da FUNAI, em especial, nos tópicos sobre “terras indígenas” (informações sobre o processo de regulari- zação fundiária indígena e o apoio do PPTAL – Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal). POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS POVOS INDÍGENAS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE (MS)/ FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE (FUNASA) /SESAI Na década de 1990, a responsabilidade pela assistência à saúde indígena era exclusiva da FUNAI. Contudo, transferiu-se tal responsabilidade ao Ministério da Saúde (MS), especificamente para a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Em 1999, o presidente em exercício, Fernando Henrique Cardoso, promulgou a Lei nº 9.836, que atribui a Atenção à Saúde Indígena como parte estrutural do Sistema Único de Saúde (SUS). Conheçamos a Lei: Políticas Públicas paraIndígenas e outros Grupos Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 97 LEI Nº 9.836, DE 23 DE SETEMBRO DE 1999 Acrescenta dispositivos à Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que “dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”, instituindo o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacio- nal decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, passa a vigorar acres- cida do seguinte Capítulo V ao Título II – Do Sistema Único de Saúde: CAPÍTULO V Do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena Art. 19-A As ações e serviços de saúde voltados para o atendimento das populações indígenas, em todo o território nacional, coletiva ou individualmente, obedecerão ao disposto nesta Lei. Art. 19-B É instituído um Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, componente do Sistema Único de Saúde – SUS, criado e definido por esta Lei, e pela Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990, com o qual funcionará em perfeita integração. Art. 19-C Caberá à União, com seus recursos próprios, financiar o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. mapeando políticas públicas para povos indígenas 59 Art. 19-D O SUS promoverá a articulação do Subsistema instituído por esta Lei com os órgãos responsáveis pela Política Indígena do País. Art. 19-E Os Estados, Municípios, outras instituições governamentais e não governamentais poderão atuar complementarmenteno custeio e execução das ações. Art. 19-F Dever-se-á obrigatoriamente levar em consideração a reali- dade local e as especificidades da cultura dos povos indígenas e o mo- delo a ser adotado para a atenção à saúde indígena, que se deve pautar por uma abordagem diferenciada e global, contemplando os aspectos de assistência à saúde, saneamento básico, nutrição, habitação, meio ambiente, demarcação de terras, educação sanitária e integração ins- titucional. Art. 19-G O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena deverá ser, como o SUS, descentralizado, hierarquizado e regionalizado. § 1º O Subsistema de que trata o caput deste artigo terá como base os Distritos Sanitários Especiais Indígenas. § 2º O SUS servirá de retaguarda e referência ao Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, devendo, para isso, ocorrer adaptações na estrutura SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E98 e na organização do SUS nas regiões onde residem as populações in- dígenas, para propiciar essa integração e o atendimento necessário em todos os níveis, sem discriminações. § 3º As populações indígenas devem ter acesso garantido ao SUS, em âmbito local, regional e de centros especializados, de acordo com suas necessidades, compreendendo a atenção primária, secundária e terci- ária à saúde. Art. 19-H As populações indígenas terão direito a participar dos or- ganismos colegiados de formulação, acompanhamento e avaliação das políticas de saúde, tais como o Conselho Nacional de Saúde e os Con- selhos Estaduais e Municipais de Saúde, quando for o caso. Art. 2º O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de noventa dias. Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 23 de setembro de 1999; 178º da Independência e 111º da Repú- blica. FERNANDO HENRIQUE CARDOSO (BRASIL, 1999, on-line). Ademais, houve a necessidade da criação do Subsistema de Saúde Indígena, por levar em conta a complexidade sociocultural das mais de 200 etnias, com todas suas especificidades regionais. Para tanto, foi criado os DSEI (Distritos Sanitários Especiais Indígenas), tendo como local várias partes do país. Os cri- térios de localização dos DSEI levaram em conta basicamente a população local, área geográfica e perfil epidemiológico, infraestrutura, distribuição demográfica tradicional dos povos indígenas, entre outros. Hoje, são 34 DSEI, distribuídos conforme o mapa apresentado: Figura 9 - Mapa de Distritos Sanitários Especiais Indígenas Fonte: adaptado de De Paula e Viana (2011, p. 62). Políticas Públicas paraIndígenas e outros Grupos Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 99 Contudo, os DSEI e as comunidades indígenas dependem da mediação das uni- dades atuantes, que variam desde posto nas aldeias, até funcionários do SUS, passando pela importância do assistente social neste processo. Para tanto, em 2010, com o decreto Presidencial nº 7.336 (artigos 42, 43, 44 e 45), nasce a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que traz um grande ganho do ponto de vista da simplificação e do fortalecimento organizacional das políticas públicas dos povos indígenas, além de fortalecer as relações organiza- cionais e políticas entre o Ministério da Saúde, a Funasa e as DSEI. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC) Atualmente, a Educação Escolar Indígena (EEI), que outrora foi responsabilidade da FUNAI, é hoje do MEC. O ministério da Educação observa que a EEI deve ser bilíngue, diferenciada e intercultural (BRASIL, 1999b, p. 5), ou seja, bilín- gue, respeitando toda a produção linguística das etnias indígenas, diferenciada por entender as especificidades culturais e pedagógicas desses povos e intercul- tural, visando harmonicamente trocas culturais – no ensinar e aprender sobre as respectivas culturas indígenas e não indígena. A gestão da EEI é feita pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), importante setor do MEC nessas questões. O papel da SECADI junto ao MEC é garantir uma educação indígena de quali- dade, baseada em: 1. Formação inicial e continuada de professores indígenas em nível mé- dio (Magistério Indígena). Esses cursos têm em média a duração de cinco anos e são compostos, em sua maioria, por etapas intensivas de ensino presencial (quando os professores indígenas deixam suas aldeias e, durante um mês, participam de atividades conjuntas em um centro de formação) e etapas de estudos autônomos, pesquisas e reflexão sobre a prática pedagógica nas aldeias. O MEC oferece apoio técnico e fi- nanceiro à realização dos cursos. 2. Formação de Professores Indígenas em Nível Superior (licenciaturas interculturais). O objetivo principal é garantir educação escolar de qualidade e ampliar a oferta das quatro séries finais do ensino fundamental, além de implantar o ensino médio em terras indígenas. 3. Produção de material didático específico em línguas indígenas, bilíngues ou em português. Livros, cartazes, vídeos, SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E100 CDs, DVDs e outros materiais produzidos pelos professores indígenas são editados com o apoio financeiro do MEC e distribuídos às escolas indígenas. 4. Apoio político-pedagógico aos sistemas de ensino para a ampliação da oferta de educação escolar em terras indígenas. 5. Pro- moção do Controle Social Indígena. O MEC desenvolve, em articula- ção com a Funai, cursos de formação para que professores e lideranças indígenas conheçam seus direitos e exerçam o controle social sobre os mecanismos de financiamento da educação pública, bem como sobre a execução das ações e dos programas em apoio à educação escolar indígena. 6. Apoio financeiro à construção, reforma ou ampliação de escolas indígenas (DE PAULA, VIANNA, 2011, p. 74). De Paula e Vianna (2011) revelam que a formação de Professores indígenas e a sua inserção nas universidades são os dois pontos principais das políticas públi- cas do MEC. A formação de professores indígenas, em nível de licenciatura/ graduação, é realizada a partir do trabalho em conjunto entre a Secretaria de Educação Superior (SESU) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). A formação de professores indígenas é uma demanda que partiu das pró- prias comunidades, uma vez que os “principais problemas identificados pelo movimento indígena e seus apoiadores durante a década de 1980 dizia respeito ao fato de que o agente principal da educação escolar nas aldeias, o professor, não era indígena” (DE PAULA ; VIANNA, 2011, p. 75). Figura 10 - Professores Indígenas Fonte: NUNES (2013, on-line)9. Políticas Públicas paraIndígenas e outros Grupos Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 101 A questão da identidade e pertencimento é extremamente importante, ou seja, o lócus do discurso de onde se fala. Ninguém melhor que o indígena para tratar de assuntos indígenas (COLLET, 2006). Desse modo, desenvolveu-se políticas para “magistérios indígenas”, que capa- citam professores indígenas a ocuparem o lugar de professores não índios no ensino de 1ª a 4ª série em comunidades. Ademais o MEC e SECADI oferecem o Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Indígenas (PROLIND), que visa “preparar os professores indígenas para que eles atuem como agentes interculturais na execução de projetos de futuro de suas comunidades e povos” (De PAULA ; VIANNA, 2011, p. 77). Em paralelo a isso, o governo federal incentiva as Universidades a adotarem as chamadas “vagas suplementares” oferecidas em cursos regulares, baseando--se em regras próprias e em sua autonomia. Há ainda os chamados “vestibulares indígenas”, ação acompanhada pela FUNAI. Tudo isso tem como objetivo a pro- fissionalização docente do indígena, para que ele atue principalmente em sua comunidade. A participação de grupos indígenas nas construções político-pedagógicas das ações do governo fez com que, em 2010, o ministro da Educação, Fernando Haddad, pela portaria do MEC n º 734, de 7 de junho, criasse a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI), instituída no âmbito do Ministério da Educação como órgão colegiado de caráter consultivo, com a atribuição de assessorar o Ministério da Educação na formulação de políticas para a educação escolar indígena (como observado no art. 2). Ou seja, a CNEEI tem caráter de assessorar o MEC nas questões de políticas públicas aos indígenas e tem a par- ticipação direta de membros das comunidades. Uma das ações do CNNEI foi a implementação da proposta dos Territórios Etnoeducacionais Indígenas, uma espécie de gestão do EEI a partir de uma “terri- torialização” especial. Os territórios etnoeducacionais não estariam subordinados às “regras” administrativas entre as instâncias do Poder Executivo − Federal, Estadual e Municipal. Uma comunidade indígena dos Trombetas/Mapueras, que abrange cidades entre os Estados do PA e AM, por exemplo, não ficariam restri- tos às verbas e demandas desses estados. Caso isso ocorresse, seria um guerra de empurra-empurra na questão de responsabilidade, da qual a secretaria de SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E102 educação do PA ou AM estaria vinculada. Mas, a partir da nova lógica: cada território etnoeducacional compreenderá, independentemente da divisão político-administrativa do país, as terras indígenas, mesmo que descontínuas, ocupadas por povos indígenas que mantêm relações Inter societárias caracterizadas por raízes sociais e históricas, relações políticas e econômicas, filiações linguísticas, valores e práticas culturais compartilhados (DE PAULA, VIANNA, 2011, p. 82). POLÍTICAS PÚBLICAS AOS POVOS INDÍGENAS DO MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE (MMA) E DO MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E AGRÁRIO (MDSA) Aqui veremos alguns projetos de outros ministérios, como o MMA e MDSA. As primeiras demandas do MMA aconteceram por meio de pressão internacional, o que acabou gerando os PDPI (Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas), que visavam mapear e proteger as florestas tropicais brasileiras. O PDPI não existe mais, porém, a preservação da flora e fauna de reservas indígenas é uma pauta constante deste Ministério (BRASIL, MMMA, 2017). Além disso, os projeto do MMA em relação às terras indígenas tem basicamente os seguintes objetivos: ■ Fiscalização contra atividades predatórias. ■ Inclusão dos possíveis impactos sobre elas nos processos de estudo e licen- ciamento ambiental de grandes obras. ■ Consideração dos direitos territoriais indígenas nos processos de cria- ção e gestão de áreas especiais, denominadas Unidades de Conservação. ■ Promoção à conservação e ao uso sustentável dos recursos naturais nelas existentes. Nos últimos anos, o MMA apoiou a ideia de uma autossustentação indígena, conceito que pressupõe a possibilidade e a necessidade de se combinar a inicia- tiva econômica com o cuidado com a gestão ambiental (BLOEMER, NACKE, 2008). A ideia vem acompanhada de dois projetos – ATER e Carteira Indígena. O ATER (Programa de assistência técnica e extensão rural), subordinado a Políticas Públicas paraIndígenas e outros Grupos Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 103 Secretaria de Agricultura Familiar (SAF), apoia a “assistência técnica e exten- são rural em áreas indígenas que têm como referência o etnodesenvolvimento das comunidades, a promoção da segurança alimentar e o incentivo às ativida- des produtivas em comunidades indígenas” (BRASIL, SAF, 2017). Já a “Carteira Indígena” é o nome dado para a “Carteira de Projetos Fome Zero e Desenvolvimento Sustentável em Comunidades Indígenas”, projeto do governo Federal em parceria entre o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), por meio da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SESAN. De acordo com o MMA, a “carteira indígena” tem o objetivo de: contribuir para a gestão ambiental das terras indígenas e a segurança alimentar e nutricional das comunidades Indígenas, em todo o territó- rio nacional. A Carteira apóia projetos com foco na produção de ali- mentos, agroextrativismo, artesanato, gestão ambiental e revitalização de práticas e saberes tradicionais associados às atividades de auto-sus- tentação das comunidades indígenas, de acordo com as suas demandas, respeitando suas identidades culturais, estimulando sua autonomia e preservando e recuperando o ambiente das terras indígenas (BRASIL, 2017, on-line). Somado à “Carteira Indígena”, as principais políticas públicas no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome são: o Bolsa Família e o CRAS indígena. Ampliar o alcance do Bolsa Família aos povos indígenas e a inserção de famí- lias indígenas no “Programa de Atenção Integral à Família (PAIF)”, visto que nos últimos anos apoia famílias socialmente vulneráveis, mas não especificamente pelo viés étnico-racial é o grande desafio do MDS. Ademais, para facilitar isso, o MDS tem atuado nos chamados CRAS indígenas, que atualmente são 545, em todos os Estados, que atendem povos indígenas, sendo que 19 estão instalados dentro das comunidades (PORTAL BRASIL, 2015, on-line)10. O CRAS indígena difere-se dos demais, justamente pela suas especi- ficidades dentro da realidade das comunidades indígenas. Em relação ao trabalho desses CRAS e da FUNAI, a coordenadora de Proteção Social Básica do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Maria Helena Tavares revela: SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E104 O trabalho tem de ser feito de forma acordada e planejada junto ao órgão. Acreditamos que nenhuma política voltada aos povos indígenas possa estar apartada do diálogo com a Funai. E com a Política de As- sistência Social não é diferente. Nós temos cada vez mais tentado apro- fundar esse diálogo, no sentido de que a assistência possa compreender o que a Funai já acumulou, o que ela tem de expertise no trato com povos indígenas (APUD PORTAL BRASIL, 2015, on-line)10. A coordenadora ainda deixa claro o papel das lideranças indígenas no processo: A liderança da aldeia tem um papel fundamental para o trabalho do Cras. A contribuição deles é primordial para o nosso trabalho lá. Mui- tas das vezes são eles que se aproximam da gente, procuram a assistente social ou a psicóloga para solicitar ajuda, algum acompanhamento fa- miliar (PORTAL BRASIL, 2015, on-line)10. POLÍTICAS PÚBLICAS AOS POVOS INDÍGENAS NO MINISTÉRIO DA CULTURA (MINC) Toda sociedade possui um conjunto de atributos chamados crenças religiosas, arte, moral e conhecimento, além de capacidade e hábitos, que juntos são chamados de cultura (LARAIA, 2006). Logo, a cultura é reflexo de sua própria sociedade, e para tanto, se quisermos preservar uma comunidade, precisamos preservar sua cultura. Diante disso, fica difícil defender tal lógica quando observamos o tímido olhar do MINC em relação à cultura indígena. Tímido ou não, o MINC, atualmente, tem três ações em andamento para a valorização e preservação de manifestações culturais dos povos indígenas brasileiros: o “Prêmio Culturas Indígenas”, os trabalhos do IPHAN (Instituto do Patrimônio Históricoe Artístico Nacional ) e os editais dos “Pontos de Cultura Indígenas”. Figura 10 - O cocar é uma manifestação cultural de algumas etnias indígenas. Políticas Públicas paraIndígenas e outros Grupos Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 105 O Prêmio Culturas Indígenas visa homenagear as produções culturais apresen- tadas por próprios integrantes indígenas. Tais produções podem ser de natureza ritualística, religiosa, culinária, arquitetônica, teatral, musical, gráfica, educacio- nal, médica, artesanal, registro sonoro ou audiovisual, ou constituição de acervo artístico. Em 2015, segundo o MINC, o edital do projeto recebeu 319 inscrições, sendo que 70 foram selecionadas, entre 50 projetos culturais e 20 projetos audio- visuais produzidos por indígenas de variadas etnias, recebendo prêmios no valor de R$ 40 mil do Ministério da Cultura (MinC). Já os “Pontos de cultura Indígenas” agregam projetos de índios e não-ín- dios, além de instituições privadas, com o intuito de produzir um “espaço” que se torne ponto cultural. Todavia, dentro do MINC, é o IPHAN que faz o mais importante dos trabalhos de preservação cultural de comunidade indígenas. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), é uma autarquia do governo, vinculada ao Ministério da Cultura, responsável pela preservação do acervo patrimonial tangível e intangível do país, ou seja, é o IPHAN que pre- serva as manifestações culturais do país. O patrimônio cultural de um país abarca, atualmente, não só o tombamento de monumentos arquitetônicos, mas também abrange as produções não palpá- veis e imateriais, como ideias, ritos e espaço sagrados. O IPHAN, por exemplo, registrou a Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica do povo Wajãpi (Amapá), Cachoeira de Iauaretê – Lugar sagrado dos povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri (AM), Ritual Yaokwa do Povo Indígena Enawene Nawe (MT), Tava, Lugar de Referência para o Povo Guarani (Redução Jesuítico-Guarani de São Miguel Arcanjo), A Ritxòkò – Expressão Artística e Cosmológica do Povo Karajá e as Bonecas Karajá, etc. Até que ponto as especificidades culturais de um povo devem entrar em choque com as leis vigentes do país? No caso do ECA, se aplicaria integral- mente às crianças indígenas? SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E106 Com o registro, essas manifestações são salvaguardadas de qualquer inter- venção e, ao mesmo tempo, preservadas em forma de pesquisa, sendo garantidas em sua totalidade e continuidade. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS POVOS CIGANOS Historicamente, os povos ciganos foram excluídos e marginalizados em nossa sociedade. Tidos como indigentes ou ladrões, os ciganos acabaram recebendo estigmas que trouxeram consequências em suas vidas sociais. Tal marginaliza- ção acaba fazendo com que famílias ciganas encontrem-se em precárias situações sociais. No Brasil, há pelos menos três etnias ciganas: Calon, Rom e Sinti. Cada grupo tem seus costumes próprios, mostrando assim a necessidade de especificidades, assim como os povos indígenas. Como povo nômade, há aproximadamente entre 500 –800 mil ciganos no Brasil (GUIA, 2013, on-line)11. Das três etnias, os calon são os mais conhecidos por nós, visto que foram os primeiros a chegar no Brasil, e é o mais numeroso dos três grupos. O idioma dos calon, além do português, é o romani, e seu estilo de vida baseia-se em viver em acampamentos (públicos ou privados), cujo homens trabalham em comércio informal e adotam um estilo “country” no vestir (chapéus, cintos com grandes fivelas, botas, etc (RAMANUSH, 2014, on-line)12. Já as mulheres vivem exer- cendo a “draba”, que é a leitura das mãos, cujo dinheiro auxilia nas despesas do dia a dia. Na vestimenta, usam cores fortes e muito tecido, lembrando muito as ciganas banjara, da Índia. De acordo com o IBGE, há mais 13.400 calon no Brasil, divididos segundo o mapa abaixo: Políticas Públicas paraIndígenas e outros Grupos Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 107 Figura 11 - Mapa de comunidades ciganas Fonte: adaptado de Ramanush (2014). As demandas apresentadas pelos povos ciganos no Brasil são de ordem educacional, acesso à saúde, segurança, inclusão, renda e registro civil. As ações que visam aten- der tais demandas são praticamente lideradas pela SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Social), em conjunto com a Secretaria de Direitos Humanos (SDH), Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), Ministério da Justiça (MJ), Ministério da Cultura (MinC) e Ministério do Meio Ambiente (MMA). De acordo com o Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos (2013), há dois principais Decretos relacionados à promoção dos povos ciganos: ■ Decreto n° 6.040, de 7 de fevereiro de 2007: institui a Política Nacional de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais. ■ Decreto de 25 de maio de 2006, que institui o Dia Nacional do Cigano, a ser comemorado no dia 24 de maio de cada ano. O profissional de Serviço Social, em contato com povos ciganos, deve urgen- temente auxiliá-los a retirar a Documentação Básica e Registro civil, incluindo Certidão de Nascimento, RG, CPF e Carteira de Trabalho. Sem a documentação civil básica, é inviável a participação em outros projetos e ações. SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E108 Grande parte das políticas públicas para ciganos são as mesmas oferecidas para quem tem o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Tarifa Social (luz), Programa Saúde da família, etc. As políticas mais específicas para estas comuni- dades são relacionados as Escolas Itinerantes, cursos de formação para membros da DPU, Centros de Referências em Direitos Humanos, Prêmio Cultura Cigana e Regulamentação Fundiária de acampamentos ciganos. O MEC visa fomentar políticas públicas aos povos ciganos, em conjunto com programas como PRONATEC, Bolsa Família e “Agenda Territorial de Desenvolvimento Integrado de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos”, além das escolas itinerantes, que são escolas públicas inicialmente criadas para o Movimento Sem Terra (MST), que garantem às crianças, jovens e adultos acam- pados o direito à educação. Dado a situação de itinerância, tem a sua base oficial e toda parte documen- tal e pedagógica sustentada por Escolas Base (KNOPF, 2009). A Escola Itinerante, como política pública, existe em seis estados: Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas, Piauí e Goiás. O objetivo é ter uma escola para toda população acampada, além de se converter em centro de encontros de toda a comunidade acampada. Contudo, a ideia do MST também se aplica às comunidades ciganas, visto que grande parte desta população são andantes. Fazer com que os membros dos órgãos públicos conheçam a cultura e os hábi- tos ciganos também é uma política social. Assim, a SEPPIR e Defensoria Pública da União (DPU) firmaram, desde 2012, estratégias para melhorarem a atuação da DPU em comunidades indígenas, quilombolas e ciganas, por meio de cursos e pales- tras de capacitação, apresentando as singularidades culturais destas comunidades. Aliás, falando em cultura, o MINC, possui o Prêmio Cultura Cigana, um concurso público que premia iniciativa culturais de comunidades ciganas em todo o país. Por fim, atualmente, a maior demanda de grupos ciganos é a regulariza- ção fundiária de alguns acampamentos. O fato é que, mesmo sendo de grupos itinerantes, alguns acampamentossão fixos, justamente para agregar grupos temporários. As políticas Públicas de regulamentação fundiária são feitas pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU), e inicia-se com um dossiê feito por qualquer interessado. A Questão dos Imigrantes Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 109 Figura 12 - Ciganos em audiência pública na Câmara de BH. Fonte: Luiz do Mosaico (2013, on-line)13. Além disso, há a urgência de implementação dos chamados Centros de Referência em Direitos Humanos, que são espaços físicos de convivência entre pessoas, onde são implementadas ações que visam à defesa e promoção dos Direitos Humanos. Os Centros são importantes em áreas de conflito étnico-racial, como espaços quilombolas, indígenas e ciganos. Para a implantação, o projeto deve ser feito com a participação de membros da comunidade e profissionais sociais, e entre- gue aos órgãos competentes no âmbito Municipal e Estadual. A QUESTÃO DOS IMIGRANTES No Governo Vargas, a partir de 1930, o país se fechou à imigração, mas, de lá para cá, mesmo com inúmeros problemas, o país se tornou receptivo ao imi- grante, mas não necessariamente inclusivo. SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E110 De acordo com dados da Polícia Federal e da Revista Exame (ARANTES, 2015, on-line)14, o Brasil tem atualmente quase um milhão e oitocentos e cin- quenta mil imigrantes. Este número engloba algumas classificações usadas pelo governo, como 51 asilados, 4.850 refugiados, 11.230 fronteiriços, 45.400 pro- visórios, mais de 595 mil temporários e mais de 1 milhão cento e noventa mil imigrantes permanentes. Em relação aos termos, usados nas políticas de acolhimento humanitário, faz-se necessário uma explicação: o termo imigrante é dado a toda pessoa que se movi- menta de um país para outro, de forma temporária ou permanente, com intenções de residir ou trabalhar. Porém, atualmente, soma-se ao conceito o fato dos refugia- dos, isto é, pessoas que se deslocam de países em razão de catástrofe natural e guerra. O imigrante permanente é aquele que tem intenção de permanecer no país, o temporário não. Já os provisórios esperam uma concessão governamental. Os imigrantes fronteiriços são as pessoas e grupos que se deslocam em zonas de fronteiras entre países vizinhos. No Brasil, isso acontece em regiões de fron- teira, principalmente com o Paraguai (ALBUQUERQUE, 2008). A Questão dos Imigrantes Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 111 O asilado é aquele que, diferente do refugiado, não depende de trâmites técni- cos governamentais, mas sim pela simples concessão do presidente da República, sem embasamento de ordem estritamente legal, ou seja, o asilo é um ato político. Os imigrantes compõem, no Brasil, somente 0,9% da população, mas esse número está em constante crescimento. Os principais imigrantes no Brasil são os bolivianos, haitianos (refugiados pelas catástrofes) e africanos (angolanos, nigerianos, senegaleses, ganenses) e agora, sírios, refugiados de guerra. Arantes (2015, s/p.) aponta para alguns fatores que contribuem com a chegada destes povos no Brasil: o declínio da taxa de crescimento populacional brasileira (que, em con- junturas de expansão econômica, favorece a recepção de trabalhadores estrangeiros); as dificuldades econômicas e crescentes restrições à en- trada de estrangeiros nos países desenvolvidos (que está reconfiguran- do o fluxo migratório em escala mundial, deslocando o eixo da direção Sul-Norte para a direção Sul-Sul); e a crescente presença de empresas brasileiras em outros países (que, no imaginário das populações locais, apresenta o Brasil como um horizonte de possibilidades). Infelizmente, não são esses fatores que protagonizam os relatos de vários dos imi- grantes no país. A guerra, fome, crise política, desastre ambiental e perseguição religiosa configuram os motivos desta diáspora forçada. O caso é tão sério que em 2016, ano que o candidato à presidência dos Estados Unidos Donald Trump criou um discurso de ódio e hostilidade contra imigrantes, o Conselho Federal de Serviço Social no Brasil foi na contramão, e teve como tema/foco do ano as relações fronteiriças e fluxos migratórios internacionais, e tem acompanhado o Projeto de Lei nº 2.516/2015, do Senado Federal, que institui uma nova “Lei de Migração” e altera o atual Estatuto do Estrangeiro. O Serviço Social tem participado da temática, principalmente, para com o auxílio de grupos imigrantes que sofrem com a xenofobia, o preconceito e racismo. O CFESS acompanha a PL 2516, visto que o tema evidencia as con- tradições da violação de direitos sociais de toda ordem. Ademais, os imigrantes buscam nas esferas locais (Município e Estado) direitos e oportunidades, e veem no assistente social um parceiro. De acordo com o site da Câmara (Relações Exteriores), o projeto 2516 tem como foco: SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E112 a acolhida humanitária, com previsão de regularização de documentos, garantia do direito à vinda da família, inclusão social e laboral e acesso a serviços públicos de saúde, de assistência e previdência social, entre outros direitos. Ao imigrante é permitido exercer cargo, emprego e função públi- ca, com exceção daqueles reservados para brasileiro nato. A proposta tam- bém inclui expressamente o repúdio à xenofobia, ao racismo e a qualquer outra forma de discriminação, seja por religião, nacionalidade, pertinência a grupo social ou opinião política (CAMARA, 2016, on-line)15. Essa preocupação à hostilidade sofrida pelos imigrantes se dá pelas constantes notícias de violência contra esses grupos, que advém não apenas da sociedade civil, mas também da mídia (FREITAS; BAENINGER, 2014). O pesquisador Gustavo Barreto de Campos, em sua tese Dois Séculos de Imigração no Brasil: A Construção da Identidade e do Papel dos Estrangeiros pela Imprensa entre 1808 e 2015 (2015), analisou a receptividade brasileira em relação ao imigrante nos jornais brasileiros desde o século XIX, e pasmem, o preconceito, o estigma e a xenofobia permanecem. Nos últimos anos são os sul-americanos como os bolivianos, empregados em pequenas indústrias de roupas no sudeste, que são explorados e submetidos a tra- balhos análogos à escravidão (AFP, 2013), Além dos colombianos, que cruzam as fronteiras fugindo dos conflitos armados de seu país natal e os venezuelanos, que fogem da crise política e econômica e sofrem pela estigmatização. Primeiro, pela relação étnica, visto que são povos de traços nitidamente indígenas, o que mostra a aversão da sociedade brasileira a esses povos. Contudo, são os imigrantes negros que mais sofrem no Brasil. Haitianos e africanos, como senegaleses e guineen- ses sofrem duplamente – um pelo caráter imigratório e outro por serem negros. Campos (2015) cita três casos recentes. Um em Porto Alegre, onde haitia- nos foram humilhados e hostilizados num posto de gasolina, por um gerente de vendas chamado Daniel Barbosa. Em sua fala, Barbosa ironiza o fato do hai- tiano estar empregado no Brasil, e revela que a chegada de “estrangeiros no país é parte de um plano do governo Federal, em conjunto com outros países lati- no-americanos, para transformar o continente em uma nação governada sob o regime comunista” (sic) (TRUDA, 2015, on-line)16. O segundo caso foi em São Paulo, um ataque xenófobo contra quatro hai- tianos, baleados com chumbinho na escadaria da Igreja Nossa Senhora da Paz, no Glicério (FARIAS, 2015, on-line)17. E o terceiro caso, noParaná, é dos boatos A Questão dos Imigrantes Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 113 envolvendo imigrantes da Guiné, identificados como suspeitos de estarem con- taminados pelo vírus ebola. As violências xenofóbicas estampam os jornais. “Imigrantes haitianos e afri- canos são explorados em carvoarias e frigoríficos” diz O GLOBO (SANCHES, 2014, on-line)18. Na reportagem de Mariana Sanches, é claro o tratamento de semiescravidão dado aos imigrantes. Além do mais a “Folha de SP”, de dezembro de 2016, noticiou: “Fiscais flagram haitianos em trabalho precário no Hospital das Clínicas de SP” (KNAPP, 2016, on-line)19, expondo a mesma situação. Na Gazeta do Povo (ANIBAL, 2014, on-line)20, a manchete intitulada “Suspeita de ebola acirra preconceito contra haitianos” mostra como a generalização moti- vada pelo racismo e preconceitos atinge os imigrantes do Haiti, confundidos com africanos, após alerta de suspeita de ebola com guineenses. Já a VEJA SP (FARIAS, 2015, on-line)17 abordou a notícia “Haitianos bale- ados no centro relatam sentir medo de sair de casa”, que uma série de disparos deixou quatro haitianos com balas de chumbo alojadas no corpo, intrigando a polícia e espalhando o temor entre imigrantes. Enfim, manchetes que denotam o preconceito e a necessidade de políticas públicas para os imigrantes. Os esforços do governo, das organizações de defesa dos imigrantes, profissionais sociais e demais membros da sociedade civil é para se recriar uma imagem positiva dos imigrantes, como colaboradores culturais de nossa sociedade. Estamos focando aqui sobre as imigrações do século XXI, pois se elencarmos o quanto os imigrantes italianos, espanhóis, árabes, portugueses, judeus, japoneses e africanos ajudaram na construção sociocultural do Brasil, precisaríamos de uma unidade só para isso. O governo brasileiro entende que o “aumento do número de estrangeiros reflete o crescimento econômico e a consolidação do País no mercado inter- nacional” (FREITAS; BAENINGER, 2014, s/p.), é citado o repertório cultural trazido pelos estrangeiros, além do conhecimento técnico profissional, como o caso de trabalhadores senegaleses que estão sendo contratados por empresas exportadoras de carne do Rio Grande do Sul por dominarem o procedimento halal (modo de criação, sacrifício e consumo da carne, pelos preceitos islâmicos, contidos no alcorão), prescrito pela religião islâmica. Esses fenômenos ajudam e muito o Brasil em seu nicho econômico, como exportador de carne para paí- ses muçulmanos, tanto da África como do Oriente. SOCIEDADE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: NEGROS, INDÍGENAS, CIGANOS, IMIGRANTES E POLÍTICAS PÚBLICAS Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E114 Imigrantes em trabalhos formais aumentariam as contribuições e fariam a economia girar. Quando estabilizados, pagam impostos, geram renda e com- pram. Para tal, precisam de estímulo e auxílio, daí a importância de políticas sociais específicas para estes grupos. No Brasil, em especial no Estado de São Paulo, entre a década de 1980, e o fim da década de 2010, quatro movimentos se fortaleceram em relação aos imi- grantes: direito à saúde, educação, participação política e ao trabalho. Tais ações se deram pela participação de órgãos estaduais e municipais, como a Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, na gestão de Mário Covas, Programa Saúde da Família (PSF), com inclusão de populações vulneráveis, através da Prefeitura de São Paulo, na gestão de Marta Suplicy, da Igreja Católica, através da pastoral do Migrante, e de Dom Paulo Evaristo Arns, então cardeal-arcebispo de São Paulo. No âmbito federal, o visto humanitário e o Estatuto dos Refugiados auxiliaram, principalmente, os imigrantes haitianos e os do Oriente Médio e da África. Percebe-se que muitas discussões ainda devem ser feitas sobre o tema. Há a necessidade da participação do governo, de pesquisadores e profissionais das mais diversas áreas, para que o preconceito e hostilidade contra os imigrantes se finde, e os direitos mínimos possam ser desfrutados por eles em nossa sociedade. Considerações Finais Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 115 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesta unidade, estudamos e refletimos sobre as relações étnico-raciais, sociedade e políticas públicas. Iniciamos nossa reflexão e estudo conhecendo o conceito de raça e sua relação com o termo etnia, sendo que o primeiro está intimamente ligado apenas às questões biológicas, como a cor da pele, e a segunda, mais ampla, ligada à uma identidade sociocultural. Os estudos sobre raça acabaram despertando o nascimento de pseudociên- cias do século XVIII e XIX, que hierarquizam as “raças” e julgavam as pessoas pelos seus biótipos. Tal pensamento aportou no Brasil no fim do século XIX, fomentando a escravidão e o racismo. Com isso, estudamos em nosso material que o passado escravista e o racismo imputado aos negros e alguns povos tirou- -lhes direitos, marginalizando-os. Assim, verificamos que surgiu a necessidade política de atribuir direitos iguais a estes grupos, com políticas de equiparação, chamadas de ações afirmativas. Tais ações visam equiparar direitos aos povos marginalizados pelo precon- ceito, como índios, ciganos e principalmente, negros. Há várias Políticas Públicas para afrodescendentes, mas nosso foco, em especial, foram as mais importan- tes: o sistema de cotas, para ingresso às universidades e a Lei 11.645 (10.639), que obriga o ensino de História e Cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. Seguindo este raciocínio, nosso material elencou algumas políticas públi- cas para os povos indígenas e ciganos, que assim como as ações afirmativas aos negros, visam inserir tais povos na sociedade, garantindo-lhes direitos. E por fim, estudamos a questão dos imigrantes, discutindo os motivos, as necessidades e a realidade desses indivíduos que lutam para se adaptar em nossa sociedade. Percebemos que o Serviço Social tem participado da temática, princi- palmente, para com o auxílio de grupos imigrantes que sofrem com a xenofobia, preconceito e racismo, buscando em nosso país o mesmo objetivo da profissão de vocês: a justiça social. 116 1. Estudamos nesta unidade sobre o Racismo. Vimos que a ideia sobre esse termo pode ser entendida de forma geral como: a. Crença na superioridade apenas cultural de uma raça sobre outras. b. Crença na superioridade apenas biológica de uma raça sobre outras. c. Crença na superioridade total de uma raça sobre outras. d. Crença na inferioridade de uma raça sobre outras. e. Crença na igualdade de uma raça e outras. 2. As peculiaridades dos povos indígenas devem ser levadas em conta quando o assunto é política pública. As comunidade indígenas não são divididas pela ge- ografia territorial, podendo estar em duas, ou até em três cidades diferentes ao mesmo tempo (zonas fronteiriças). Assim, uma escola indígena poderia enfren- tar problemas no acesso ao fomento da secretaria de educação - a qual cidade exigir o dinheiro? Desta forma, o MEC criou um alternativa político-social para isso, chamada: a. Magistério indígena b. Lei 11645 c. Territórios Etnoeducacionais Indígenas d. Distrito Sanitário Especial Indígena e. Centralização de Comunidade 3. Sobre a Lei 11.645, antiga 10.639, leia as assertivas e assinale a alternativa correta: I. A Lei obriga o ensino de cultura e história afro-brasileira, mas deixa optativo o ensino de cultura e história indígena. II. A Lei obriga o ensino de cultura e história indígena, somente no Ensino Pú- blico III. As disciplinas escolares que devem agregar o conteúdo da Lei 11.645 são as: Artes, História e Literatura. IV. A Lei 11.645 insere a História e Cultura indígena naantiga Lei 10.639, que se focava apenas na História e Cultura afro-brasileira. Todavia, não altera o Art. 79-B, que inclui no calendário escolar o dia 20 de novembro como ‘‘Dia Nacio- nal da Consciência Negra”. 117 Assinale a alternativa correta: a. Apenas I e II estão corretas. b. Apenas II e III estão corretas. c. Apenas I está correta. d. Apenas II, III e IV estão corretas. e. Apenas III e IV estão corretas. 4. Sobre as demandas dos povos ciganos, assinale a alternativa que não é um ele- mento emergencial a este grupo, no que tange às políticas públicas: a. Renda b. Acesso a Saúde e Educação c. Liberdade Religiosa d. Segurança e. Registro civil 5. Independente de sua opinião favorável ou não em relação a imigração, qual seria o papel do assistente social para minimizar os conflitos em relação aos estrangeiros? 118 OS 10 MITOS SOBRE AS COTAS 1. as cotas ferem o princípio da igual- dade, tal como definido no artigo 5º da Constituição, pelo qual “todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza”. São, portanto, inconstitucionais. Na visão, entre outros juristas, dos minis- tros do STF, Marco Aurélio de Mello, Antonio Bandeira de Mello e Joaquim Bar- bosa Gomes, o princípio constitucional da igualdade, contido no art. 5º, refere-se a igualdade formal de todos os cidadãos perante a lei. A igualdade de fato é tão somente um alvo a ser atingido, devendo ser promovida, garantindo a igualdade de oportunidades como manda o art. 3º da mesma Constituição Federal. As polí- ticas públicas de afirmação de direitos são, portanto, constitucionais e absolu- tamente necessárias. 2. as cotas subvertem o princípio do mérito acadêmico, único requisito que deve ser contemplado para o acesso à universidade. Vivemos numa das sociedades mais injustas do planeta, onde o “mérito aca- dêmico” é apresentado como o resultado de avaliações objetivas e não contamina- das pela profunda desigualdade social existente. São as oportunidades sociais que ampliam e multiplicam as oportu- nidades educacionais. 3. as cotas constituem uma medida inó- cua, porque o verdadeiro problema é a péssima qualidade do ensino público no país. Ambos os desafios são urgentes e pre- cisam ser assumidos enfaticamente de forma simultânea. 4. as cotas baixam o nível acadêmico das nossas universidades. Diversos estudos mostram que, nas universidades onde as cotas foram implementadas, não houve perda da qualidade do ensino. Uneb, Unb, UFBA e UERJ demonstraram que o desem- penho acadêmico entre cotistas e não cotistas é o mesmo, não havendo dife- renças consideráveis. 5. a sociedade brasileira é contra as cotas. Diversas pesquisas de opinião mostram que houve um progressivo e contun- dente reconhecimento da importância das cotas na sociedade brasileira. Mais da metade dos reitores e reitoras das uni- versidades federais, segundo ANDIFES, já é favorável às cotas. Além do apoio da comunidade acadêmica às cotas, inclusive entre os professores dos cur- sos denominados “mais competitivos” (medicina, direito, engenharia etc). 6. as cotas não podem incluir critérios raciais ou étnicos devido ao alto grau de miscigenação da sociedade bra- sileira, que impossibilita distinguir quem é negro ou branco no país. Somos, sem dúvida nenhuma, uma sociedade mestiça, mas o valor dessa mestiçagem é meramente retórico no Brasil. Na cotidianidade, as pessoas são discriminadas pela sua cor, sua etnia, sua origem, seu sotaque, seu sexo e sua opção sexual. Quando se trata de 119 fazer uma política pública de afirmação de direitos, nossa cor magicamente se desmancha. Mas, quando pretendemos obter um emprego, uma vaga na uni- versidade ou, simplesmente, não ser constrangidos por arbitrariedades de todo tipo, nossa cor torna-se um fator crucial para a vantagem de alguns e des- vantagens de outros. A população negra é discriminada porque grande parte dela é pobre, mas também pela cor da sua pele. No Brasil, quase a metade da população é negra. E grande parte dela é pobre, discriminada e excluída. Isto não é uma mera coincidência. 7. as cotas vão favorecer aos negros e discriminar ainda mais aos brancos pobres. Esta é, quiçá, uma das mais perversas falácias contra as cotas. O projeto atu- almente tramitando na Câmara dos Deputados, PL 73/99, já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, favorece os alunos e alunas oriundos das escolas públicas, colocando como requisito uma representatividade racial e étnica equivalente à existente na região onde está situada cada universidade. Trata-se de uma criativa proposta onde se combinam os critérios sociais, raciais e étnicos. 8. as cotas vão fazer da nossa, uma socie- dade racista. O racismo no Brasil está imbricado nas instituições públicas e privadas. E age de forma silenciosa. As cotas não criam o racismo. Ele já existe. As cotas ajudam a colocar em debate sua perversa pre- sença, funcionando como uma efetiva medida anti-racista. 9. as cotas são inúteis porque o problema não é o acesso, senão a permanência. Cotas e estratégias efetivas de perma- nência fazem parte de uma mesma política pública. Não se trata de fazer uma ou outra, senão ambas. As cotas não solucionam todos os problemas da uni- versidade, são apenas uma ferramenta eficaz na democratização das oportuni- dades de acesso ao ensino superior para um amplo setor da sociedade excluído historicamente do mesmo. 10. as cotas são prejudiciais para os pró- prios negros, já que os estigmatizam como sendo incompetentes e não merecedores do lugar que ocupam nas universidades. Argumentações deste tipo não são fre- qüentes entre a população negra e, menos ainda, entre os alunos e alunas cotistas. As cotas são consideradas por eles, como uma vitória democrática, não como uma derrota na sua auto-estima, ser cotista é hoje um orgulho para estes alunos e alunas. Porque, nessa condição, há um passado de lutas, de sofrimento, de derrotas e, também, de con- quistas. Há um compromisso assumido. Há um direito realizado. Hoje, como no pas- sado, os grupos excluídos e discriminados se sentem mais e não menos reconheci- dos socialmente quando seus direitos são afirmados, quando a lei cria condições efe- tivas para lutar contra as diversas formas de segregação. A multiplicação, nas nossas universidades, de alunos e alunas pobres, de jovens negros e negras, de filhos e filhas das mais diversas comunidades indígenas é um orgulho para todos eles. Fonte: UFMG ([2017], on-line)21. MATERIAL COMPLEMENTAR Casa grande e senzala Gilberto Freyre (2006) Editora: Global Editora Sinopse: por meio de sua obra, Gilberto Freyre procurou retratar o pensamento brasileiro através das questões raciais. Esta edição traz a apresentação escrita pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, além da revisão das notas bibliográficas e dos índices onomástico e remissivo. ROM - UMA ODISSÉIA CIGANA Sérgio Paulo Adolfo (1999) Editora: EDUEL Sinopse: esse trabalho é resultado de dois anos de pesquisa e convivência com os ciganos do grupo Horarranê, pertencente à grande nação cigana denominada ROM. Os ciganos têm sua origem relativamente rastreada pelos linguistas como sendo na Índia do século XI, de onde teriam saído convidados pelo monarca do Iran. ÍNDIOS NO BRASIL: HISTÓRIA, DIREITOS E CIDADANIA Manuela Carneiro da Cunha (2012) Editora: Claro Enigma Sinopse: ‘’História dos Índios no Brasil´ é resultado dos trabalhos do Núcleo de História Indígena da USP e foi organizado por Manuela Carneiro da Cunha. A obra reúne 27 colaboradores, entre especialistas brasileiros e do exterior, que atuam em diferentes áreas de pesquisa, como antropologia, história, arqueologia e linguística. A coletânea oferece ao grande público a oportunidade de ter acesso às principais questões ligadas à presença dos povos indígenas no Brasil, como, por exemplo, as novas teorias sobre a origem do homem americano. História dos Índios no Brasil dá grande importância à iconografia,trazendo documentos pouco conhecidos e inéditos, além de mapas ilustrativos e vinhetas alusivas à cultura material dos povos indígenas destacados nos estudos. Material Complementar MATERIAL COMPLEMENTAR Racismo, Igualdade Racial e Políticas de Ações Afirmativas no Brasil Sarita Amaro (2015) Editora: EDIPUCRS Sinopse: nunca se falou tanto em racismo em nosso país. O racismo está cada vez mais na mídia e tem sido agenda estratégica nos programas governamentais, do nível federal ao municipal. As reflexões e debates gravitam sobre um tema, em especial: as políticas de ações afirmativas. Criadas para corrigir e reparar situações que integram um processo histórico de exclusões, por racismo, contra os afrodescendentes no Brasil, as políticas de ações afirmativas são dispositivos estratégicos de inclusão social, fundados no princípio da discriminação positiva. Não se tratam de medidas assistenciais, emergenciais ou pontuais, marcadas pela provisoriedade ou benevolência. São, de fato, políticas articuladas, planejadas e estratégicas, requisitando, por conta disso, de previsão orçamentária, de recursos humanos qualificados e de avaliação sistemática... A Negação do Brasil Joel Zito Araújo (2000) O documentário é uma viagem na história da telenovela no Brasil e particularmente uma análise do papel nelas atribuído aos atores negros, que sempre representam personagens mais estereotipados e negativos. Baseado em suas memórias e em fortes evidências de pesquisas, o diretor aponta as influências das telenovelas nos processos de identidade étnica dos afro-brasileiros e faz um manifesto pela incorporação positiva do negro nas imagens televisivas do país. Os indígenas no Ensino Superior Em alguns locais, há leis mais pontuais em relação às políticas públicas de povos minoritários, como os indígenas, por exemplo. O Estado do Mato Grosso do Sul tem uma Lei específica para acesso aos indígenas no Ensino Superior. Para ter mais informações sobre estas políticas na UEMS, acesse: <http://www.uems.br/especiais/indigenas-na-universidade-100616083252/#pg-13>. Acesso em: 19 abr. 2017. MATERIAL COMPLEMENTAR Mapeando políticas Públicas para povos indígenas Grande parte da nossa pesquisa em relação aos povos indígenas é extraída do material dos pesquisadores Luis roberto de Paula e Fernando de Luiz Brito Vianna, nomeado “Mapeando políticas Públicas para povos indígenas”, cujo disponibilidade é gratuita no link disponibilizado no final do material. <http://laced.etc.br/site/arquivos/mapeando.pdf>. Acesso em: 19 abr. 2017. FUNAI A Fundação Nacional do Índio – FUNAI é o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro. Criada por meio da Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967, vinculada ao Ministério da Justiça, é a coordenadora e principal executora da política indigenista do Governo Federal. Sua missão institucional é proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil. Em seu site há muito material e informação sobre o tema. Acesse em <www.funai.gov.br>. Acesso em: 19 abr. 2017. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, J. L. Imigração em territórios fronteiriços. 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U N ID A D E III Professor Dr. Silvio Ruiz Paradiso QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Objetivos de Aprendizagem ■ Refletir a concepção das categorias gênero e sexualidade, bem como suas implicações para o Serviço Social. ■ Problematizar os tipos de violências contra mulheres e LGBTs, como expressões da questão social. ■ Relacionar o processo de redesignação sexual com o Serviço Social. ■ Analisar as concepções e os estigmas que encobrem a reflexão acerca da ideologia de gênero. ■ Compreender os processos de adoção homoparental e o papel do Assistente Social neste espaço. Plano de Estudo A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: ■ Gênero e ideologia no tempo presente ■ Violência de gênero, sexual e políticas públicas ■ Comunidade LGBT, homofobia, transfobia ■ Adoção homoparental ■ Sobre a adoção homoparental no cenário brasileiro INTRODUÇÃO Caro(a) aluno(a), esta unidade discute a constituição da questão de gênero, como essa questão se relaciona e/ou se torna uma expressão da questão social, o que se vêm discutindo sobre a diversidade sexual e quais são os avanços e possibili- dades das políticas públicas para a igualdade de gênero. A importância de estudar o gênero se constitui na medida em que se busca desmistificar/desconstruir preceitos, buscar legislações e políticas públicas que atendam as demandas sociais em uma perspectiva de igualdade de gênero, bus- cando uma sociedade sem preconceitos. Portanto é importante, enquanto graduando(a) em Serviço social, compre- ender a questão de gênero na contemporaneidade, como ela se manifesta como uma expressão da questão social e quais são as políticas públicas direcionadas a ela, visando romper com visões de senso comum conservadoras, proporcio- nando aos estudantes e futuros(as) Assistentes Sociais uma visão crítica e reflexiva acerca do tema para o cotidiano profissional, alinhando a reflexão e a compre- ensão acerca da questão de gênero ao nosso Projeto Ético-Político Profissional. Assim, a relevância dessa unidade é estudar como as diferenças biológicas são usadas como argumentos para construir uma imagem do que é ser homem e ser mulher, partindo de uma visão binária, que desconsidera e criminaliza as demais expressões de gênero, enaltecendo visões conservadoras com o con- comitante desrespeito e violação dos direitos humanos. Essa Unidade também provoca vocês, alunas e alunos, a compreender a apropriação do sistema capita- lista face essa questão, para excluir/discriminar as pessoas que fogem do padrão heteronormativo e/ou por serem mulheres. Por isso, percorremos por meio da pesquisa, de modo a mostrar a importân- cia de se buscar uma igualdade de gênero, para se construir uma sociedade mais justa, humanitária e que de fato tenha liberdade. Abordar-se-á gênero e ideolo- gia, expondo em seguida seus conceitos. Introdução Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 129 QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E130 GÊNERO E IDEOLOGIA NO TEMPO PRESENTE Quando falamos em questões de gênero, logo pensamos em sua definição. Denotativamente, o significado da palavra Gênero, segundo o Dicionário Online de Português ([2017], on-line)1 é: Grupo da classificação dos seres vivos que reúne espécies vizinhas, aparentadas, afins, por apresentarem entre si semelhanças constantes: o lobo é uma espécie do gênero “canis”; todas as espécies de roseiras são agrupadas no gênero “rosa”. Maneira de ser ou de fazer: é esse o seu gênero de vestir-se. Gênero literário, variedade da obra literária, segundo o assunto e a maneira de tratá-lo, o estilo, a estrutura e as características formais da composição: gênero lírico, gênero épico, gênero dramático. Gênero humano, a espécie humana. Gênero de vida, modo de viver, de proceder. Segundo Joan Scott (1995), gênero é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre diferenças percebidas entre os sexos, que fornece um meio de decodificar o significado e de compreender as complexas conexões entre as várias formas de interação humana. Ou seja, discutir questões de gênero, na atualidade, é pensar nas diversas deter- minações atuais que representam grupos que possuem características que os unem e os identificam em relação ao sexo, identidade de gênero e orientação sexual. Primeiramente, pertencemos ao gênero humano, e depois nos identificamos e nos reconhecemos no gênero - como a forma de ser em sociedade (modo de ser e de proceder). Por isso, na contemporaneidade, já não responde a realidade falar em homem e mulher, devemos considerar e validar os gêneros: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais – LGBTI. Quem ou o que define o que somos? Todavia, por mais que entendamos que falar em gênero masculino e feminino não corresponda à realidade, ainda estes são os modelos aceitos e propaga- dos como certo e válido pela moral dominante. Essa questão de gênero nos remete à questão ética que vivenciamos na contemporaneidade. Para Santos e Oliveira (2010, p. 12), “[...] trata-se de identificar como os valores objetiva e subjetivamente construídos são intro- jetados, vivenciados e reproduzidos na vida cotidiana.” Gênero e Ideologiano Tempo Presente Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 131 Reproduzir o estereótipo de gênero (homem e mulher) está condicionado a uma questão de valores, exaltados pela moral burguesa e conservadora (que impera na sociedade), em que se faz uma distinção entre o certo e errado. E é certo ser hete- rossexual, rico, magro, branco e católico, e errado tudo o que se opõe a estes ideais do modelo burguês, e isso determina a (não) aceitação em sociedade, pois de acordo com Cortella (2011), rotulamos e valorizamos as pessoas por estas características. Essas questões são fruto da contemporaneidade, caracterizadas por um modelo econômico capitalista e neoliberal que individualiza o ser humano, exalta o TER, anula as qualidades e capacidades reflexivas desse ser e o leva a alienação permanente. Além disto, a era da informação que vivenciamos, em que os avan- ços tecnológicos trouxeram benefícios à vida humana, também contribuiu para a individualização e disseminação da ideologia dominante e domínio econômico. O capitalismo global apossou-se por completo dos destinos da tecno- logia, libertando-a de amarras metafísicas e orientando-a única e ex- clusivamente para a criação de valor econômico, (DUPAS, 2011, p.11), “[...] e o contato entre as pessoas passa a ser mediado pela eletrônica. O mundo social se desmaterializa-se, transforma-se em signo e simu- lacro” (DUPAS, 2011, p. 13). Porém, começamos a entender que tal domínio precisa ser contestado, obser- vando que não nos identificamos com os padrões historicamente estabelecidos, o que leva à compreensão de que família e gênero são construções sociais, em que as pessoas buscam sua felicidade pelo o que se é e não por aquilo que disse- ram que deve ser. De acordo com Santos e Oliveira (2010, p. 12): QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E132 As relações de gênero são construídas historicamente, sendo funda- mental analisar como estão estruturadas as relações sociais, conside- rando o processo dinâmico dos indivíduos se relacionarem entre si. É no movimento entre as determinações socioestruturais, as conquistas culturais e as iniciativas dos indivíduos em sua singularidade que se definem formas de ser e agir quanto às relações de gênero. Ou seja, falar em gênero é pensar na construção social da identidade de gênero e da orientação sexual, visto que é a partir da relação com o outro que se consti- tui a forma como nos reconhecemos em sociedade, e isso nega os pré-conceitos que bipolarizam (ser homem e ser mulher) a convivência entre os seres huma- nos. De acordo com Souza (2004, p. 70): Pensar o gênero como conhecimento construído na interação significa rom- per com a ideia de naturalização desse conceito, isto é, os modelos elabo- rados e utilizados pelas crianças, adolescentes e adultos não são naturais, nem inerentes à constituição biológica do homem e da mulher. São modelos sujeitos a mudanças, por serem construídos dentro de um contexto social. Pensando na possível origem da questão de gênero, nos remetemos à origem das famílias, quando surge a propriedade privada (marca característica do sistema capitalista) e a inversão do direito matriarcal para patriarcal, e que se definem os papéis de homens e mulheres. O homem deveria ser o responsável pelo provimento do lar, buscando fora dele o prazer sexual, o que caracteriza a possibilidade da infidelidade; e a mulher seria a responsável por cuidar e procriar, ou seja, ela deveria cuidar da casa e seus afazeres, educar os filhos, ser fiel e estar apta para a reprodução. No entanto, Silva (2011) afirma que família não é uma organização natu- ral, mas sim uma construção social (bem como as relações de gênero), em que, de acordo com as condições históricas e sociais, as pessoas se unem em família para cumprir uma dada função social. Porém, a ideia de organização natural entre homem e mulher vem se repro- duzindo na educação das crianças, pois existem brinquedos e brincadeiras masculinas e femininas, revelando uma transmissão de valores e comporta- mentos esperados para cada um. Essa transmissão de valores e papéis definidos irão influenciar a vida dessas pessoas, a forma de estar, ver e aceitar o mundo em que vivem. Souza (2004, p. Gênero e Ideologia no Tempo Presente Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 133 71), afirma que, nas crianças, a construção das diferenças entre homens e mulheres “[...] acontece durante as atividades de imitação sobre esses conteúdos e quando atribuem valores aos comportamentos sociais e transmitidos pela cultura.” A partir dos dois anos de idade, a criança já tem consciência de ser menina ou menino. Desde pequena é tratada conforme seu sexo biológico, recebendo informações como “menino é forte como o papai”, “homem não chora” etc. Para as meninas, os afetos são cheios de delicadeza e frases como “bonita como a mamãe, uma bonequinha” e, também, “menina, feche as pernas!”. “São frases que vão delimitando a identidade sexual e os papéis masculinos e femininos. Corresponder ao que é esperado vai dando consciência do grupo ao qual per- tencemos, se é o de homens ou de mulheres” (PICAZIO, 1998, p. 20). É exatamente por essa questão que se faz necessário que, o debate sobre gêneros, seja uma premissa desde o ensino infantil e fundamental nas escolas, por meio de mudanças de atitudes em relação às brincadeiras e à transmissão de valores – morais, para contribuir com a desmistificação dos conceitos de homem e mulher e inserir, nesse espaço, a discussão LGBT como gênero. Pois, já que gênero é uma construção social nos “Espaços como a família, a escola, o grupo de amigos, e outros são mencionados como lugares de produção de valores, normas, conhecimentos e condutas que influenciam também a vida das crianças” (SOUZA, 2004, p. 71), é a partir destes que uma nova educação tem a possibili- dade de romper com a lógica que vivemos, por meio da reflexão e transformação. Atualmente, ao debater gênero nos colocamos frente a diferentes entendi- mentos sobre o assunto: Sexo e sexualidade são normalmente tomadas como sinônimos; toda- via, sexo é concernente ao aspecto natural, biológico, da distinção física entre o homem e a mulher. No senso comum, sexo remete-se ao ato sexual. Já a sexualidade refere-se à esfera mais ampla, dos sentimentos, das interações entre as pessoas, conforme asseguram alguns pesquisa- dores (SILVA, 2010, p. 23). Ademais, é necessário ressaltar que gênero e sexualidade, embora intrinseca- mente ligados, não são sinônimos. Enquanto o conceito de gênero é limitado e compreendido nas diferenças anatômicas presentes nos corpos masculino e feminino, a sexualidade por outro lado é mais ampla, expressando sensações, pertencimentos, identidades. QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E134 Ao passo que o gênero se resume a ser puramente biológico, a sexualidade, por outro lado, é uma construção natural, também biológica e social. A sexuali- dade está interligada às relações de gênero, pois é gerenciada por normas morais que ditam as formas de vivenciá-la, uma vez que essas normas foram construí- das historicamente. Além do mais, da mesma forma que a ela estão associados noções de masculino e feminino, também estão implícitos comportamentos, o ato sexual e papel sexual (COSTA, 2012). Em outras reflexões, o termo sexo foi questionado por remeter ao biológico, e a palavra gênero passou a ser utilizada para enfatizar os aspectos culturais relaciona- dos às diferenças sexuais. Gênero remete à cultura, aponta para a construção social das diferenças sexuais e diz respeito às classificações sociaisde masculino e de femi- nino. A partir dessa visão aparentemente consensual do conceito de gênero, o termo foi empregado de diferentes maneiras pelos historiadores (PINSKY, 2009, p. 162). Ou seja, gênero pode ser entendido como questão biológica e construção social. E a partir daí, nos remetemos à identidade de gênero, que está ligada a questão de como o ser se reconhece em sociedade (gays, lésbica, bissexual, tra- vesti e transexual), e a orientação sexual que está relacionada ao desejo e atração entre as pessoas, sejam homem – mulher; mulher – mulher; homem – homem. A questão central deste debate está no respeito. Será que há necessidade de determinações, ou o que importante é reconhecer que esses gêneros existem e devem ser respeitados? Porém, o preconceito e a violência existem. Então, se faz importante refle- tir sobre as seguintes perguntas: o que podemos fazer para contribuir para a inversão da lógica atual, de padrões estabelecidos e preconceitos? A alteridade? A educação? Busca por outra sociabilidade? E como estamos hoje? Borges (2013, on-line)2, em uma entrevista ao Jornal Le Monde Diplomatique, situa-nos na contemporaneidade em relação às questões de gêneros. A grande mudança das últimas duas décadas foi o aumento da visibilidade do que a gente chama de as diferenças de sexualidade e identidade. Até então, a homossexualidade ou as sexualidades menos de acordo com a heteronormati- vidade viviam muito marginalizadas. Com esse aumento da visibilidade, há uma representação social e cultural muito maior com literatura, filmes com personagens gays e novelas com gays que Gênero e Ideologia no Tempo Presente Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 135 fogem do estereótipo. Assim, começa-se a ver toda uma luta da militância con- tra o preconceito e as representações degradantes da figura do homossexual... Enfim, hoje há uma nova visibilidade e uma maior tolerância, mas aceitação é uma coisa complicada, que não é tudo ou nada. Você diz: “A sociedade aceita o gay?”. Depende. Por exemplo, dizem: “Você é livre, tudo bem”. Agora, quer que seu pai seja gay? Não, aí é diferente. E se for o professor do meu filho? Há dife- rentes graus de aceitação. Ainda não chegamos a um nível social e cultural em que haja aceitação da diversidade sexual com mais naturalidade. Do ponto de vista cultural, o que acontece é que essa identidade homosse- xual é uma forma de defesa em uma sociedade heteronormativa, e as pessoas se autoidentificam com isso. Na minha geração, não se sabia o que era. Havia um desejo diferente, mas não havia ninguém na família para perguntar, não existiam modelos. Hoje, qualquer menino de 13 anos que sentir um desejo homoerótico já sabe que isso tem um nome, que isso é ser gay. O psicólogo nos traz que a visibilidade aumentou e afirma o papel das mídias para a grande massa popular de por o assunto em pauta, mas que a homofobia ainda está presente. Por esse motivo, ainda temos que trabalhar a aceitação em sociedade. Além disso, caracterizando a era atual, podemos destacar o reconhecimento da união homoafetiva a partir de 2011 no Brasil, e no dia 14 de maio de 2013 foi editada a Resolução nº 175 que autorizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, que legitima o casal homoafetivo como uma família com todas as impli- cações – possibilidade de dependência no Instituto Nacional do Seguro Social, de adoção, de ter informações em caso de situações de saúde, de hospitaliza- ção, entre outras. O debate de gênero é também um debate ético, é falar de valores, de refle- xão, de ação, de mudanças de paradigmas e de direitos humanos, e neste sentido, atualmente, existe o reconhecimento de Orientação sexual ao invés de Opção sexual, o que contrapõe aquilo que por muito tempo se acreditou e ainda se há ranços, que a homossexualidade “era” tida como problema psiquiátrico, ou seja, como uma doença. Temos que destacar, também nesse contexto, a importância do movimento LGBT que surgiu no Brasil nos anos 1970 [...]. O Movimento LGBT procura ser QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E136 um porta voz desses sujeitos (homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais), por meio de ações que procuram ir para além das fronteiras do gueto, em busca de direitos civis e de cidadania (COSTA, 2012, p. 62. Grifo nosso), e esse movi- mento conseguiu e consegue suscitar visibilidade e faz surgir projetos de lei e políticas públicas no país. Em relação aos papéis atribuídos a homens e mulheres historicamente, deve- mos questionar suas alterações ou não alterações, o que pode nos revelar também a análise de como está posta atualmente a questão de gênero. Enfim, especificamente no Serviço Social, uma profissão de natureza interven- tiva, ética (por possuir valores que defendem) e política (por ter uma determinada direção social), se faz necessário discutir gênero na formação acadêmica; pois durante a atuação profissional, o/a assistente social é um dos profissionais que atua por meio de uma dimensão socioeducativa e que poderá contribuir para o entendimento e a aceitação destas questões, tanto referente ao indivíduo como a família. Portanto, vivemos uma era de desafios em que avanços aconteceram, mas ainda há muito o que vencer, aceitar, desconstruir e construir, onde o ser humano seja visto em plenitude na sua genericidade humana, e não reduzido a uma ques- tão de gênero. A distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído. (Judith Butler) Violência de Gênero, Sexual e Políticas Públicas Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 137 VIOLÊNCIA DE GÊNERO, SEXUAL E POLÍTICAS PÚBLICAS Ao pensarmos sobre a construção das políticas públicas e sociais para as mino- rias sociais, principalmente aquelas relacionadas às minorias de gênero, torna-se importante realizar algumas considerações a respeito de determinadas catego- rias de análise, que perpassam e são lócus de reflexão para a compreensão da construção das políticas públicas sociais brasileiras, em uma determinada con- juntura sócio-histórica, cultural e política, que criaram as condições objetivas e materiais para sua implantação. É também a partir da confluência de diversos atores sociais no cenário polí- tico, além dos interesses antagônicos das classes sociais em consonância com projetos societários mais amplos, procurando legitimar a ordem societária vigente ou a sua superação, que se dará a direção social das políticas públicas e sociais ao longo da dinâmica da sociedade brasileira. Interesses sociais, políticos e eco- nômicos, muitas vezes relacionados com as diversas transformações sociais, vinculadas ao processo de (re)estruturação da sociedade capitalista e sua busca de legitimação enquanto sociedade. A construção das políticas públicas e sociais no cenário brasileiro se dará a partir da década de 1930, diante das profundas transformações societárias, oriun- das do processo de reestruturação e expansão da sociedade capitalista, procurando se legitimar enquanto sociedade. Nesse processo, tem afirmado, explicitado e refor- çado as suas contradições e lógicas assentadas na desigualdade, na submissão do trabalho na lógica do capital, contribuindo para o agravamento das mazelas da questão social. Dessa forma, diversos atores sociais têm se articulado no cená- rio político, procurando criar respostas para o enfrentamento da questão social. As políticas públicas e sociais então surgem, tendo como ideário a garan- tia da reprodução da sociedade capitalista e como uma resposta às contradições deste mesmo sistema, procurando criar dentro da sociedade um consenso entre asclasses sociais, ao procurar assegurar minimamente os interesses da classe tra- balhadora e atender os interesses de expansão da acumulação de riqueza pela sociedade burguesa. Gramsci traz importantes contribuições para compreen- dermos o papel do Estado dentro da sociedade capitalista: QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E138 O Estado é certamente concebido como organismo próprio de um grupo, destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima desse grupo, mas este desenvolvimento e esta expansão são concebi- dos e apresentados como a força motriz de uma expansão universal, de um desenvolvimento de todas as energias “nacionais”, isto é, o grupo dominante é coordenado concretamente com os interesses ge- rais dos grupos subordinados e a vida estatal é concebida como uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados, equilíbrios em que os interesses do grupo do- minante prevalecem, mas até um determinado ponto, ou seja, não até o estreito interesse econômico-corporativo (GRAMSCI, 2000, p. 41-42). A construção das políticas públicas e sociais brasileiras surgem a partir de condi- ções sociais específicas e socialmente determinadas. São respostas engendradas no seio da sociedade para a superação das contradições da sociedade capitalista, principalmente a partir da década de 1930, com o agravamento das expressões da questão social, oriunda do desenvolvimento da sociedade capitalista, e as for- mas de articulação dos diferentes atores sociais, procurando, a partir da luta de classes, legitimar seus interesses. Dessa forma, elas não são neutras e nem surgem da vontade política de determinados grupos, mas expressam a tensão entre os embates dos diferentes atores sociais, engendrados no seio da luta de classes na sociedade capitalista. Nosso objetivo aqui não é aprofundar sobre a forma de constituição e desen- volvimento das políticas brasileiras, mas somente trazer alguns elementos, para podermos analisar como se dá a construção das políticas para a minoria social relacionada à diversidade de gênero e sexual, como forma de garantia de direi- tos sociais e do desenvolvimento da cidadania. Como produto social de uma conjuntura específica, as políticas públicas e sociais caracterizam-se por serem respostas do Estado frente às demandas sociais, políticas e econômicas expressas nas contradições e antagonismos da sociedade. A partir desta configuração, essas políticas têm como característica a busca pela garantia dos direitos sociais e da cidadania e, algumas delas, especificamente a Política de Assistência Social, trará como eixo a proteção social a determinados grupos em situação de risco social. É importante problematizar o que seja o risco social dentro da sociedade capitalista e o que tem que ser evitado, protegido por Violência de Gênero, Sexuale Políticas Públicas Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 139 essas políticas. E, visto que elas se configuram como políticas afirmativas e tem caráter compensatório dentro da nossa sociedade, discussão esta que, diante do objetivo do nosso trabalho, não será possível desenvolvê-la. Porém, apesar de não aprofundarmos essas questões, é importante destacar que estas políticas públicas e sociais procuram garantir os direitos sociais e o empoderamento dos grupos sociais, considerados em situação de vulnerabilidade social. Entre eles, atualmente são desenvolvidas políticas voltadas para os grupos sociais considerados minorias, como a criança/adolescente, a mulher, o idoso e grupos inseridos na diversidade de gênero e sexualidade – LGBTI (Lésbicas, Gay, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexuais). Após esta breve análise, procuraremos conhecer os avanços relacionados às políticas para determinados grupos considerados minorias sociais, como as mulheres, além dos grupos relacionados à diversidade de gênero e sexuais – LGBTI. Sabemos que, historicamente, a partir do surgimento e desenvolvimento da sociedade capitalista, ocorrem profundas transformações societárias, que influenciaram na forma de organização e configuração das famílias, seja em relação aos seus papéis familiares, dentro do grupo familiar, como também de gênero. Na verdade, essas configurações não estão isoladas, visto que a defi- nição “do que é ser homem”, e “o que é ser mulher”, perpassa pela construção social do gênero. É a partir da categoria trabalho e sua racionalização e do modo de produ- ção capitalista, que se constrói historicamente e configura a questão de gênero na sociedade, direcionando e determinando os papéis sociais. Essa definição se torna importante para a garantia da reprodução das relações sociais e das rela- ções de poder dentro de uma determinada ordem societária. A reprodução de determinados valores e relações sociais, historicamente construídos e enraizados no tempo presente, como o machismo, a homo-lesbo- -transfobia e o patriarcado, propiciam cotidianamente a ascensão da barbárie, por meio da violência contra a mulher e contra LGBTIs. Mais uma vez, cabe des- tacar que tudo que foge do padrão estabelecido, do que é esperado dentro do que socialmente é considerado como “ser homem” ou “ser mulher”, será alvo de determinadas práticas de violência e exclusão social. QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E140 As questões correlatas à violência sexual e de gênero irão perpassar pela ques- tão da diversidade de gênero e sexual, diante da necessidade dessa sociedade de enquadrar os seres sociais em determinados padrões construídos histori- camente, como forma de reprodução do padrão de dominação e do modo de produção desta sociedade. As mulheres são vítimas de diversas formas de violências, sejam elas físicas, psicológicas, emocionais entre outras, fruto do machismo e da dominação do homem em relação a ela, o que tem causado muitas vezes sua morte. Apesar da violência contra a mulher não ser algo recente, a formulação da política de proteção a ela ainda é recente, e muita vezes não é possível garantir a proteção dos seus direitos de forma efetiva. isso se deve ao fato dessas ques- tões estarem permeadas por fenômenos sociais e históricos, por ideologias que naturalizam determinadas relações sociais de dominação. Para isso, torna-se necessária uma educação emancipatória, que procure desconstruir determi- nadas ideologias e visão de homem e de mundo, permeadas culturalmente por relações de dominação. Por essas questões, percebemos que atualmente não existem políticas afir- mativas em relação ao homem, diante do fato que, historicamente, ele não tem Violência de Gênero, Sexuale Políticas Públicas Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 141 sofrido violências da mesma forma que a mulher outros grupos minoritários. É importante problematizar essas questões, pois apesar do homem possuir uma situação privilegiada em relação à mulher e as demais minorias de gênero, perce- bemos a forma como se configuram os papéis sociais e as cobranças em relação aos sujeitos sociais. O homem, particularmente, tem sofrido com a questão da violência como a mulher, mas, cotidianamente, essa sociedade cobra do homem a reprodução de diversos papéis sociais estabelecidos, como o de provedor da família, “que homem não pode chorar” entre outros. Ou seja, a própria constituição de deter- minados papéis sociais e sua reprodução no bojo da sociedade se torna uma forma de violência, institucionalmente aceitas e naturalizadas pelos seres sociais. A formação das políticas públicas e sociaisafirmativas e de proteção às mulheres não foram criadas de forma abstrata ou pelo interesse do legislador. Elas são fruto das lutas sociais e do avanço dos movimentos da classe trabalha- dora, de categorias profissionais e, principalmente, do movimento feminista, que tem avançado na luta pela garantia dos direitos das mulheres e pela igualdade de condições para homens, mulheres e grupo sociais excluídos. O movimento femi- nista tem se articulado com outros movimentos sociais, na busca de avançar o debate sobre a questão de gênero e na garantia dos direitos para toda a população. A construção de políticas de proteção a mulher se dá de forma muito recente no país, mas presenciamos que a primeira iniciativa de atender as reivindica- ções da mulher no cenário brasileiro se deu em 1985, com a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, vinculado ao Ministério da Justiça, sendo com- posto por uma Secretaria Executiva, uma Assessoria Técnica e por um Conselho deliberativo. Fruto da conjuntura social e política da época, marcada por diversas transformações sociais e avanço dos movimentos sociais, entre eles o movi- mento feminista. A função do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher era promover, em âmbito nacional, políticas para assegurar condições de liberdade, igualdade de direitos e plena participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do país. Em 2002, por meio da pressão dos movimentos feministas e de outros seto- res da sociedade, foi criada a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, e em 2003, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, temos a criação da Secretaria QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E142 Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), vinculada ao gabinete da pre- sidência, tendo a Secretária status de Ministro. A SPM passa a abrigar em sua estrutura o CNDM (Conselho Nacional dos Direitos da Mulher), agora como órgão consultivo e não deliberativo. Em 2004, foi criado o I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, para “servir de instrumento de trabalho para o Governo Federal, Estadual e Municipal, e pelos movimentos sociais” (Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, 2004). O plano representa o compromisso do Estado na criação de políticas para o com- bate ao machismo, por reconhecimento das desigualdades de gênero e o combate às formas de violência contra a mulher. O plano possui 199 ações, distribuídas em 26 prioridades, partindo de quatro linhas de atuação: a autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania, edu- cação inclusiva e não sexista, saúde das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos e o enfrentamento à violência contra a mulher, considerados como fundamen- tais para o desenvolvimento do direito a uma qualidade de vida digna para as mulheres. Esse plano foi avaliado no ano de 2007, onde foi criado um segundo plano de políticas para as mulheres. Em 2006, ocorreu um fato social que sensibilizou a população: um caso de violência doméstica, contra Maria da Penha Maia Fernandes, que pos- suía 23 anos de casada e sofreu várias agressões e ameaças de assassinato, chegando a ficar tetraplégica. Diante deste fato, foi criada a Lei 11.340, que leva seu nome como homenagem. A Lei Maria da Penha busca criminali- zar e punir os casos de violência contra as mulheres, ocorridas no âmbito doméstico ou familiar. Recentemente, mesmo após a criação da Lei Maria da Penha e de meca- nismos de atenção e proteção à mulher, percebemos que o índice de violência ainda é muito grande. É o que nos revela os dados divulgados pelo IPEA (2013, on-line)3, sobre os índices de violência intrafamiliar, especificamente no que tange a violência contra a mulher. Estudo preliminar do Ipea estima que, entre 2009 e 2011, o Brasil registrou 16,9 mil feminicídios, ou seja, “mortes de mulheres por conflito de gênero”, espe- cialmente em casos de agressão perpetrada por parceiros íntimos. Esse número indica uma taxa de 5,8 casos para cada grupo de 100 mil mulheres. Violência de Gênero, Sexuale Políticas Públicas Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 143 Esses dados mostram que, apesar dos avanços em termos de políticas de pro- teção a mulher, ainda é alto o índice de violência contra a mulher e, em muitos desses casos, elas correm risco de vida. Esses dados provam que é necessária uma política mais efetiva de proteção à mulher, além do desenvolvimento de práticas de educação emancipatória nas escolas, contribuindo para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e que respeite as diferenças. Além dos dispositivos legais, atualmente com a estruturação da Política Nacional de Assistência Social – PNAS em 1993, temos alguns serviços que pro- curam atender à mulher e suas famílias vítimas de violência doméstica, como o CRAS e principalmente o CREAS, atendendo a população que tem seus direi- tos violados e vítimas de diversas formas de violência. Além do mais, com a lei, foram criadas as Delegacias da Mulher e os Juizados Especiais da Mulher. Alguns municípios também criaram centro de convivência e acolhimento para mulhe- res que sofrem com a ameaça de seus companheiros. Entretanto, apesar desses avanços, ainda é significativo os casos de violência contra mulher e até mesmo de homicídios. Em muitos desses casos, a mulher pos- sui filhos, sendo necessário prestar atenção integral a ambos. Percebemos, dessa forma, que torna-se necessário um trabalho mais efetivo das políticas públicas e sociais, procurando principalmente, através da articulação com a educação, o desenvolvimento de uma sociedade mais humana, justa e igualitária, pois o machismo é um fenômeno sociocultural presente na formação da nossa sociedade. Conforme mencionado anteriormente, abordaremos a construção das políticas de gênero relacionadas à diversidade sexual, somente para uma maior compreensão da problemática, visto que a própria política pública e social a apresenta de forma fragmentada. Porém, acreditamos que falar de diversidade de gênero e sexual seja falar das diversas formas de manifestação das questões de gênero. Afinal, todos nós compomos a diversidade. Como nos coloca Boaventura de Sousa e Santos (1995, on-line)4, devemos “lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discrimi- nem. E lutar pela diferença sempre que a igualdade nos descaracterize”. Dessa maneira, conforme mencionado anteriormente, a construção das polí- ticas públicas e sociais, de forma geral, se dá a partir da necessidade da luta dos movimentos sociais em busca da legitimação dos direitos das camadas da socie- dade em situação de vulnerabilidade social. QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E144 A construção das políticas de proteção à mulher relacionadas à diversidade sexual ainda são recentes, e também se dá no mesmo bojo das lutas de classes e dos movimentos sociais em busca da afirmação dos direitos, bem como da eman- cipação política e humana da classe trabalhadora. De forma análoga, podemos dizer que, assim como a mulher tem sofrido diver- sas formas de violência em decorrência do machismo, os demais grupos relacionados à diversidade sexual como gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, pansexuais entre inúmeras outras formas de ser, sofrem inúmeras formas de violências em decor- rência da homofobia. Toda a forma que foge do padrão estabelecido e hegemônico da sociedade e que, de certa forma, apresenta um enfrentamento contra as formas de dominação social, sofre com as formas de opressão e violência. A construção de políticas de garantias de direitos para estas minorias ainda é muito recente, diante principalmente de avanços de setores conservadores da sociedade, que tem assumidos cargos importantes na garantia dos direitoshumanos, como é o caso da bancada evangélica na câmara dos deputados, e da comissão dos direitos humanos. A luta pela conquista e afirmação dos direitos sociais e políticos do movimento LGBT, vem em busca não só do seu reconhecimento enquanto sujeito e a sua aceitação pela sociedade. Ela também aglutina forças com os novos movimentos sociais, como o feministas e movimentos tradicionais, como o dos trabalhado- res e operários, em busca da consolidação da cidadania e no fortalecimento de um projeto de sociedade mais justa, igualitária e humana. Os avanços que se tem contemporaneamente, em termos de políticas volta- das para a diversidade de gênero e sexual, ainda se concentram no Estado de São Paulo, devido aos avanços dos movimentos sociais, e também no Rio Grande do Sul, onde se concentra grandes estudos relacionados à temática. Apesar de serem grandes conquistas, elas são significativas para a popula- ção LGBT, por garantir alguns direitos mínimos para essa população. O terreno que propiciou esses avanços no Brasil foi a partir de 1997, quando no governo de Covas, no Estado de São Paulo, foi lançado o Programa Estadual de Direitos Humanos, cujos principais objetivos eram a consolidação da democracia, jun- tamente com a promoção e a educação frente aos Direitos Humanos. Segundo Costa (2012, p. 118): Violência de Gênero, Sexuale Políticas Públicas Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 145 As ideias presentes no Programa Estadual dos Direitos Humanos po- dem ser percebidas como uma gênese do futuro Plano Estadual de En- frentamento da Homofobia e Promoção da Cidadania LGBT, uma vez que as mesmas diretrizes apresentadas neste documento são “repagi- nadas” no outro. Em 2006, por meio do Comitê de Direitos Humanos da ONU, o estabelecimento dos Princípios Yogyakarta diz que todos os seres humanos nascem livres e iguais na dignidade de direitos, e coloca como necessidade a proteção específica dos direitos humanos da população LGBT, reconhecendo que este grupo tem direi- tos específicos, que são negados diante da sua orientação sexual. Segundo Costa (2012), esta comissão também apontou que, para lidar com os desafios postos a essa realidade, é necessário uma atuação multidisciplinar, buscando a garantia integral dos direitos dessa população. O autor ainda diz que, o que esse documento traz de diferente, se deve ao fato de colocar que todos os direitos inerentes aos seres humanos são negados para essa população específica, e como estratégia para seu enfrentamento, expressa as medi- das que os Estados devem viabilizar para as garantias mínimas, sendo composta por 23 diretrizes. A partir da luta de João Antônio Mascarenhas, no sentido de inserir a luta pelos direitos LGBT nos direitos Humanos, temos em 2004 o lançamento do programa do governo Federal “Brasil sem Homofobia - Programa de Combate à Violência e à discriminação contra LGBT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais) e de Promoção da Cidadania Homossexual”, oriundo do Plano Plurianual 2004-2007. Figura 1 - PARE A HOMOFOBIA. O Brasil, considerado um país “liberal” é um dos que lideram o ranking de violência contra LGBTs. QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E146 A partir desses avanços, foi elaborado o Plano Estadual de Enfrentamento da Homofobia e Promoção da Cidadania LGBT, com base nos princípios contidos no documento de Yogyakarta, tendo o Programa Brasil sem Homofobia como o grande precursor. Dentre outras ações conquistadas, temos o Plano Nacional de Enfrentamento da Epidemia de AIDS e das DST’s entre gays, HSH (Homens que fazem sexo com Homens) e Travestis (2007, on-line)5, o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT (2009, on-line)6 e em 2010 a Política Nacional de Saúde LGBT. Atualmente, se encontra na vanguarda do debate o Projeto Lei 122/06, para a criminalização da homofobia em todo território nacional, e também existe uma iniciativa de anteprojeto de um Estatuto da Diversidade Sexual, sendo apresen- tada no Fórum Mundial de Direitos Humanos, procurando aglutinar esforços em torno da garantia da proteção específica para essa população e dos seus direitos. Apesar de todos os avanços e propostas apresentadas no cenário político brasileiro, ainda vivenciamos inúmeros desafios. Ainda são constantes os casos de homicídios contra homossexuais, transexuais e travestis. Presenciamos que, diante do avanço dos movimentos LGBT e de categorias profissionais que apoiam estes movimentos, conseguimos avanços nas conquistas de alguns direitos, mas ainda caminhamos a passos lentos, pois até nos dias atuais a homofobia não foi criminalizada em todo país. COMUNIDADE LGBT, HOMOFOBIA, TRANSFOBIA A diversidade sexual corresponde a uma temática em constante discussão na contemporaneidade. Essas discussões existem há séculos, porém obteve um cres- cimento expressivo em meados do século XX (PRADO; MACHADO, 2008). É reportada de inúmeros questionamentos, atribuindo a ela conceitos, valores e culturas que se fazem influentes no processo de construção de identidade da pessoa. Anterior à discussão é necessário definir a categoria Diversidade Sexual. Comunidade LGBT, Homofobia, Transfobia Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 147 Segundo Prado e Machado (2008), “expressa a noção de que há uma multipli- cidade de identidades, desejos e práticas sexuais que envolve as relações humanas. Pode ser entendido como o oposto de unicidade ou monismo sexual” (p. 140). Esta multiplicidade de identidades, como citam os referidos autores, estão rela- cionadas à identidade de gênero – masculino e feminino. Butler (2003), diferencia sexo de gênero, relacionando a primeira com questões biológicas e a segunda como influência de uma cultura. Concebida origi- nalmente para questionar a formulação de que a biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, “o gênero é culturalmente construído (...) a unidade do sujeito já é potencialmente contestada pela distinção que abre espaço ao gênero como interpretação múltipla do sexo” (BUTLER, 2003, p. 24). Silva (2013) afirma que a sexualidade humana é plural e complexa, existindo diversas formas de manifestação da identidade sexual das pessoas. Foucault (2007) e Butler (2003) remetem a sexualidade no campo do poder, do saber e da construção histórica de uma identidade que, ao longo do tempo, vai sendo interpretada de formas diferenciadas. Além disso, Silva (2009), argumenta que a sexualidade humana, suas múltiplas expressões e seus impactos na sociedade consiste em novas expressões da questão social. As dificuldades de travestis e transexuais adentrarem-se ao mercado de tra- balho, a desqualificada educação básica, dificuldades em romper estereótipos e estigmas em face da diversidade sexual humana, instruir alunos, professores, chefes de empresas e de instituições públicas, trabalhar com famílias de LGBTI’s, o consumismo atrelado à política e movimentos sociais, intolerância e conser- vadorismo são algumas características que representam a expressão da questão social pelo público LGBTI. A visibilidade LGBTI começa a transparecer na década de 1970, quando se acentua os movimentos pela reivindicação de direitos e com ela uma série de implicações, identificadas pelas descrições do parágrafo anterior. As problemá- ticas pelas quais passam os LGBTIs são oriundas do preconceito ainda instalado na sociedade brasileira, distanciamento frente ao conhecimento científico sobre a categoria diversidade sexual, ausência de discussões avançadas na educação básica e a defesa da hegemonia heteronormativa pelos conservadores.QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E148 No Brasil, a virada dos anos de 1970 para os anos 1980, não se caracterizou somente pelas discussões que opunham os que consideravam que a questão das “minorias” (negros, índios, mulheres e homossexuais) deveria estar subordinada (ao menos em uma primeira etapa) à questão mais ampla da democratização do país e da revolução social. O primeiro movimento homossexual brasileiro esteve também profundamente dilacerado quanto a se constituir ou não em torno de uma identidade homossexual. Havia naquele momento uma grande inquietação quanto à possibi- lidade de essencialização (ou “reificação”, para usar uma expressão mais comum à época) da oposição hetero/homossexualidade e da conseqüente instituição de novas formas de rotulação, estigmatização e marginalização (CARRARA; SIMÕES, 2007). A formação da identidade sexual que rompesse com os conflitos ideológicos entre heterossexual – homossexual, masculinidade (relacionado ao compor- tamento das mulheres) – feminilidade (relacionado ao comportamento dos homens), ativo (homem insertivo, mantêm o papel de macho) – passivo (receptivo, caracteriza-se por efeminado, pois exerce um papel sexual feminino) começou a ser discutida pela antropologia, no referido período de manifestações popula- res, considera. Aproveitaram-se os movimentos pela redemocratização do país para agregar política homossexual no cenário ditatorial – democracia do Brasil. Não poderia ter existido melhor época para as manifestações dos homos- sexuais, pois os partidos políticos da época consideravam que os movimentos da minoria não seriam relevantes em relação às lutas sociais e desigualdades, e tampouco importantes para o processo político da época. Porém, com o reco- nhecimento das lutas sociais como forma de poder do povo, e relacionando-as ao controle das pessoas em suas vidas cotidianas, esses movimentos (da mino- ria) ganharam força e foram considerados como categorias políticas de grande representatividade (CARRARA ; SIMÕES, 2007). A partir dessa fase, os homossexuais começaram a construir uma identidade sexual concreta, conquistaram espaços próprios, iniciaram a produção de pesquisas, passaram a ser atores sociais nas literaturas e até hoje lutam para conquista de direi- tos. Só é possível pensar a homossexualidade porque a realidade apresentada pelas relações capitalistas tem se confrontado com paradigmas religiosos, proporcionando maior abertura nas discussões apresentadas nesse momento, contribuindo ainda para a maior visibilidade “trans”, que há décadas ainda viviam sob a invisibilidade social. Comunidade LGBT, Homofobia, Transfobia Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 149 Segundo França (2007), os primeiros espaços públicos destinados aos homos- sexuais surgiram na década de 1980, com os guetos. Mais adiante, surgiram comércios específicos, e vimos a moda favorecendo à ascensão de homossexu- ais em seus contextos sociais, as academias – a busca pela estética perfeita, por corpos esculturais. Tudo isso, ao longo das últimas décadas, levaram o segmento LGBTI ao excessivo consumo. A publicidade e propaganda são meios de divul- gação de produtos que mais prendem a atenção das pessoas. Esse é o fenômeno que os meios de produção capitalista propiciou, a reto- mada da fase clássica e neoclássica da história da homossexualidade, como o culto à beleza, ao corpo escultural, musculatura, vaidade, cultura literária e entreteni- mentos. A diferença neste tocante é que hoje vivemos em um sistema moderno, com recursos tecnológicos altamente avançados, com mais possibilidades de aquisição de bens de consumo. Ressalta-se também que estas características têm sido apropriadas também por homens e mulheres heterossexuais. Até aqui, observamos que não se pode excluir a diversidade sexual da questão social, pois é possível analisar as diversas implicações socioculturais, econômi- cas e descriminalizadoras, além do fenômeno do alto consumo e busca por um status social pelo uso incessante do capital, e também da referência e elo entre movimento LGBT e mercado consumidor como construtores de uma identidade coletiva, com sujeitos de diferentes concepções, culturas, percepções, gostos, etc. Se considerarmos que o mercado segmentado produz diferentes categorias em torno do que é “ser homossexual”, e faz circular referências e imagens iden- titárias acerca dos possíveis estilos ligados à homossexualidade, podemos dizer que ele também colabora para construir e reforçar identidades coletivas que ser- vem de referência para a atuação do movimento, e vice-versa. Temos, então, um campo comum entre movimento e mercado (FRANÇA. 2007, p. 294). O movimento LGBTI não é isolado em seu público e contexto social. A cria- ção de estratégias de ação política e quebra de paradigmas envolve a participação de vários atores sociais, inclusive o mercado. Um dos paradigmas mais complica- dos de ser rompido consiste no modelo hegemônico heterossexual e hierárquico na identidade de gênero (homem sobre as mulheres) e oposição sexual entre os ativos (insertivos) no topo e abaixo o grupo passivo (receptivos). É uma maneira de diferenciar pessoas pela preferência sexual nas relações íntimas. QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E150 Esta forma de hierarquização de gênero, segundo Carrara e Simões (2007), se tornou uma cultura preponderante entre as classes populares brasileiras. Os auto- res, mediante seus estudos, definem esse modelo hierárquico de anglo-europeu. É possível perceber a forte influência europeia nas questões da sexualidade con- forme prerrogativas históricas analisadas pela literatura nacional e internacional. (...) O modelo baseado na hierarquia de gênero e na oposição ativida- de/passividade sexual estaria, para o autor, enraizado no sistema cul- tural e social formado em torno de um modo concreto de produção, a economia rural de plantation[3] (grifo nosso), que teria dominado a vida brasileira por quase quatro séculos (FRANÇA, 2007, p. 88). Como podemos perceber, as relações de produção capitalista, no período de colonização do Brasil, é um exemplo de como os camponeses, índios e escravos eram explorados, tanto pela mão-de-obra barata quanto sexualmente. A classe explorada geralmente exercia o papel de receptivos em relações com os senho- res dos latifúndios. Voltando à realidade contemporânea, apresentamos um último ponto inte- ressante, que não poderia ficar à margem das reflexões até agora realizadas. A globalização, que é um processo rápido de inter-relação sócio-econômico-cul- tural entre países dos cinco continentes, favoreceu a expansão da cultura de hegemonia e hierarquização de gênero, bem como a oposição entre atividade/ passividade. Como dizem os autores Carrara e Simões (2007), as relações inter- nacionais proporcionam uma importação e exportação de culturas e paradigmas de várias naturezas. A cultura da sexualidade, sua prática e suas diversas formas de expressão tam- bém são disseminadas pela globalização, visto que, com a internet, convivência pessoal ou virtual com pessoas de variadas localidades, acesso a uma diversidade de informações e opções de entretenimento e de desenvolvimento intelectual, estamos mais susceptíveis a aprimorar práticas, apreender novas realidades, atri- buir novos valores, alterar concepções, formar acepções da nossa realidade e até mesmo planejar e caminhar por novos rumos. O texto de Carrara e Simões (2007) cita a realidade de travestis e transe- xuais, mediante conhecimentos importados de vários países, como carreiras com altos salários, partirem para países da Europa para prostituição, já que o Comunidade LGBT, Homofobia, Transfobia Re prod uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 151 Brasil não oferece condições de inserção digna do segmento “TT” (Travestis e Transsexuais) no mercado de trabalho. O mesmo acontece com outros membros do segmento LGBT, por não encontrarem oportunidades de estabilidade ou acesso aos direitos que possam proporcionar a realização de um objetivo, de uma meta ou qualidade de vida, estes se deslocam para outros países como forma de fugir da exploração do capi- tal, buscar mais reconhecimento ou atingir os objetivos. Com a visibilidade do segmento LGBT nos espaços de trabalho, na comuni- dade e academia, o Estado sentiu-se obrigado a pensar as expressões da questão social voltadas à Diversidade Sexual, criando espaços de deliberação e de con- trole social, formulando políticas públicas de garantia de direitos e de combate às expressões intolerantes e preconceituosas, discussões em âmbito nacional da realidade LGBT na contemporaneidade e levantamento de propostas pelas Conferências Estaduais e Nacionais. Sabemos que o caminho é longo, pois existem enfrentamentos expressivos como a intolerância religiosa, que invade a política brasileira, ferindo a laicidade do Estado Nacional e interferindo em questões de ordem como o fim dos preconceitos. Figura 2 - Drag queens sempre foram símbolos de militância LGBT no mundo todo. QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E152 A militância se mostra cada vez mais fortalecida no cerne do pressiona- mento frente o Estado. Essa pressão, reivindicação, estímulo à participação popular, realização de eventos como Encontros, Simpósios, Congressos, Grupos de Discussões, Cafés Filosóficos e as Conferências, conduz a sociedade civil a exigir do Estado Mínimo que ele observe com mais sensibilidade a causa LGBT, pois esse público está cada vez mais visível na sociedade, formando e consoli- dando laços de sociabilidade e de afetividade, e conquistando direitos e espaços importantes no cenário social, familiar, profissional e acadêmico. Sobre a sociabilidade, Roughgarden (2008) afirma que, os contatos LGBTs, além de comunicar o prazer entre pessoas do mesmo sexo, representam hoje cate- gorias sociais de fácil inserção e sociabilidade. Duprat (2009), em sua reportagem na Revista A Capa, faz um recorte apontando as diversas formas de fazer a militân- cia, seja na internet com os blogs, sites de relacionamento como Orkut, Facebook, Messenger ou MSN, comumente conhecidos, e o mais recente Twitter. Cabe lem- brar que o meio eletrônico também corresponde a um espaço contraditório, quando grupos intolerantes disseminam o ódio por meio desses veículos informativos. Outras formas de promoção da militância consistem no enfrentamento de bar- reiras no cotidiano das pessoas, pois “pequenas atitudes, como beijar em público e se assumir, podem ser encaradas como militância cotidiana” (DUPRAT, 2009, p. 34). O ativismo também ocorre por meio das expressões artísticas, como pin- turas homoeróticas ou também chamadas de HomoGraphix criado pelo artista Bernardo de Gregório (DUPRAT, 2009), além da militância tradicional, realizada em ações coletivas, de atuações em ONG’s ou em organismos estatais, dentre outros. Assim “quando falamos em liberação sexual, estamos falando de liberar um espaço interior que luta entre a necessidade de eclodir e de ser reprimido” (TREVISAN In: GOLIN; WEILER, 2002, p. 166). Portanto, concordando com Trevisan, a sexualidade humana compreende um dispositivo macroestrutural, pois engloba fatores tanto internos quanto psicológicos, comportamentais, cognitivos e exteriores ou sociais, como culturais, econômicos, políticos e educacionais, que vão da transmissão de papéis da família até as relações interpessoais na comunidade. Dessa forma, é importante que o público LGBT lute pelos seus direitos, concre- tizando a possibilidade de estabelecer a igualdade de direitos sociais e o respeito nos espaços de sociabilidade, rompendo assim com a hegemonia heteronormativa. Adoção Homoparental Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 153 ADOÇÃO HOMOPARENTAL A adoção por casais homossexuais trouxe uma grande polêmica na sociedade. Não só nesse novo século, mas há muitos anos esse assunto vem repercutindo no mundo e atualmente ganhou fortalecimento. Esse tipo de adoção ainda é muito discriminada pela sociedade e proibida juridicamente até 2015. A religião se opõe radicalmente à aprovação de leis que deferem a homossexuais o direito de obte- rem uma união legal e a permissão de adotarem filhos. Infelizmente a Igreja ainda interfere nas ações do Estado, rompendo severamente o ideal do Estado Laico. O percurso conservador ainda reduz com carga preconceituosa a luta LGBTI com a palavra homossexualismo. A palavra homossexualismo vem repleta de preconceito e discriminação, pois o homossexualismo está relacionado à doença: “homossexual” = atração pela pessoa do mesmo sexo e o sufixo “ismo” = doença. Portanto foi criada pela Desembargadora do Tribunal Superior de Justiça do Rio Grande do Sul e vice- -presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) Maria Berenice Dias o termo “homoafetivo” para relacionar a classe LGBTI e toda sua his- tória, estrutura social e direitos. Maria Berenice Dias é lutadora assídua pelos direitos dos homossexuais, como a união e adoção por casais homoafetivos. Segundo o Relatório de violência homofóbica no Brasil de 2012, publicado pela Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, foram registrados pelo poder público 3.084 denúncias de 9.982 violações relacionadas à po- pulação LGBTI, apresentando um quantitativo de 4.851 vítimas. Já a Organização das Nações Unidas (ONU) revela que 70% das mulheres sofrem algum tipo de violência durante a sua vida. Dentre elas, as de idade entre 15 a 44 anos possuem mais risco de sofrer estupro e violência domés- tica do que câncer, acidentes de carro, guerra e malária, de acordo com da- dos do Banco Mundial. Fonte: Secretaria dos Direitos Humanos (2012, on-line)7 e Portal Brasil (2014, on-line)8. QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E154 Figura 3 - A adoção é um desafio para casais homoafetivos. O que se garante à criança e ao adolescente são os direitos fundamentais como seres humanos e cidadãos, que estão implicados no artigo 227 da Constituição: Art. 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à crian- ça e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dig- nidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Código Civil definem família como união dos pais e dos filhos ou apenas de uns dos pais e seus descendentes, um conceito básico que também não proíbe uma união estável de homossexuais. Unindo esses segmentos, poderíamos conceituar família como União de inteira responsabilidade do ser humano no seu juízo perfeito, seja por meios legais, reli- giosos, por concubinato ou mesmo união homoafetiva. Direito não deve decidir de que forma a família deverá ser constituída ou quais serão as suas motivações juridicamente relevantes(...) For- mando-se uma que respeite a dignidade de seus membros, a igualdade na relação entre eles, a liberdade necessária ao crescimento individual e a prevalência nas relações de afeto entre todos, ao operador jurídico resta aplaudir, como mero espectador (CARBONERA, 1999, p. 23). Adoção Homoparental Repr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 155 A revista Veja, de 11 de julho de 2001, fez uma reportagem retratando casais homoafetivos que conseguiram adotar filhos, e comprova-se que essa concep- ção está totalmente enganada. A maturidade de muitos homossexuais perante seus filhos, a educação e o posicionamento perante a sociedade, enfrentando o preconceito são visíveis e elogiáveis. Alguns pais homossexuais dizem que seus filhos possuem namorada, que nada afeta a relação deles, que é tudo normal, basta preparar as crianças e ensiná-las como lidar com o preconceito. Vimos então que não há proibições em um homossexual adotar uma criança, já que a lei vigente não mostra nenhuma lei pertinente, apenas o artigo 29 do ECA que se aproxima de uma ilegalidade, porém sua interpretação fica obscura no entendimento do tema, “Art. 29 - Não se deferirá colocação em família subs- tituta a pessoa que revele, por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado”. A orientação sexual ou identidade de gênero jamais poderiam ser utilizadas como justificativa para obstruir ou indeferir qualquer processo que envolva a adoção de crianças e adolescentes. Sobre a união civil entre casais homoafetivos, em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece a união civil entre pessoas do mesmo sexo, ampliando a conquista de direitos e deixando nítida a importância da luta LGBTI para o avanço da dignidade entre essas pessoas nos seus contextos de sociabilidades. Confira trechos da decisão publicada na época no portal do STF: Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgarem a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descum- primento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, reconheceram a união estável para casais do mesmo sexo. As ações foram ajuizadas na Corte, respectivamente, pela Procuradoria-Geral da República e pelo gover- nador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. O julgamento começou na tarde de ontem (4), quando o relator das ações, ministro Ayres Britto, votou no sentido de dar interpretação conforme a Constituição Federal para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. O ministro Ayres Britto argumentou que o artigo 3º, inciso IV, da CF veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual. “O sexo das pessoas, salvo disposição contrá- ria, não se presta para desigualação jurídica”, observou o ministro, para concluir que qualquer depreciação da união estável homoafetiva colide, QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E156 portanto, com o inciso IV do artigo 3º da CF. Os ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gil- mar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso, bem como as ministras Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ellen Gracie, acompanha- ram o entendimento do ministro Ayres Britto, pela procedência das ações e com efeito vinculante, no sentido de dar interpretação confor- me a Constituição Federal para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Na sessão de quarta-feira, antes do relator, falaram os autores das duas ações – o procurador-geral da República e o governador do Estado do Rio de Ja- neiro, por meio de seu representante –, o advogado-geral da União e advoga- dos de diversas entidades, admitidas como amici curiae (amigos da Corte). Ações A ADI 4277 foi protocolada na Corte inicialmente como ADPF 178. A ação buscou a declaração de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Pediu, também, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis fossem esten- didos aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. Já na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, o governo do Estado do Rio de Janeiro (RJ) alegou que o não re- conhecimento da união homoafetiva contraria preceitos fundamentais como igualdade, liberdade (da qual decorre a autonomia da vontade) e o princípio da dignidade da pessoa humana, todos da Constituição Federal. Com esse argumento, pediu que o STF aplicasse o regime ju- rídico das uniões estáveis, previsto no artigo 1.723 do Código Civil, às uniões homoafetivas de funcionários públicos civis do Rio de Janeiro (Migalhas, 2011, on-line)9. Sobre a discussão acerca da adoção homoparental, confiram o próximo subca- pítulo deste texto. Sobre a adoção homoparental, a ministra Cármen Lúcia ressaltou que as uni- ões homoafetivas já são reconhecidas como entidade familiar, com origem em um vínculo afetivo, e merecem tutela legal. (Instituto Brasileiro de Direito de Família) http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=A&id=533 http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=A&id=533 http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=A&id=533 Sobre a Adoção Homoparental no Cenário Brasileiro Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 157 SOBRE A ADOÇÃO HOMOPARENTAL NO CENÁRIO BRASILEIRO “Vivemos numa sociedade de classes onde as desigualdades sociais, econômicas e políticas ultrapassam os limites da imaginação” (FONSECA, 2002, p. 15). Dentro dessas desigualdades, encontra-se um grande número de crianças e adolescen- tes em situação de abandono, com pais ou responsáveis vivendo em situações de risco, e outros, até mesmo sem referências familiares. Crianças e adolescen- tes que se encontram sobre riscos sociais são encaminhadas para os Serviços de Acolhimento Institucional, historicamente conhecidos como orfanatos e abrigos e que, no tempo atual, se apresentam com outras configurações. Em alguns casos, o abandono decorre da ausência de condições objetivas para o exercício do direito à paternidade ou maternidade, ausência estas que não nos cabe julgar, mas sim, compreender e analisar, a partir de uma conjun- tura historicamente construída. Os motivos para o acolhimento são diversos, podendo ser determinado diretamente por juízes/juízas das Varas da Infância e da Adolescência, ou pelo Conselho Tutelar em casos de maior gravidade. A legislação, nesse caso o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº. 8069/1990), preconiza que o acolhimento deve ser provisório e excepcional. Todavia, o que pesquisas recentes apresentam é um quantitativo de crianças e adolescentes que passam boa parte ou toda essa fase peculiar de desenvolvimento acolhidas em Instituições. Varia-se o perfil que facilita ou obstruí oportunida- des de colocação em família substituta. Cabe afirmar que os processos de adoção no Brasil ainda apresentam faces perversas, em que casais ou indivíduos habilitados para a adoção buscam crianças com base em raça/etnia, no caso a caucasiana/branca, sem problemas de saúde, recém-nascidos ou na fase inicial da infância. Quem não se enquadra nos per- fis dos cadastros de adoção, acabam construindo toda a infância e adolescência nos Acolhimentos, sem perspectivas de inserção em famílias substitutas. Dentro desse contexto, pautamos o assunto de casais homossexuais virem a adotar filhos, uma prática de adoção que nada tem a ver com caridade, solida- riedade ou ato de bondade. Na realidade, essa prática condiz com a possibilidade de famílias substitutas, independentemente da orientação sexual ou identidade QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E158 de gênero, devolverem a dignidade,os valores humanos e a cidadania a esses jovens em situação de abandono. Falar em adoção homoparental é falar em direito: direito de casais homossexuais ou LGBTIs solteiros de adotarem filhos, de constituírem família a partir dos seus desejos; direito de crianças e adolescen- tes em acolhimento, sem referências familiares, de terem mães ou pais a partir da colocação em família substituta. Até 2015, a adoção por casais homoparentais não era legalizada. Apenas o homossexual na condição de solteiro podia entrar com o pedido. No Brasil, casais gays ainda enfrentam preconceito de assistentes sociais no processo de adoção. No Brasil, existiam casos de deferimento da adoção através do direito com- parado (analogia), que mostra a nova realidade social do país, as novas exigências e as novas constituições de famílias que estão se estabelecendo na sociedade. Somente em março de 2015 o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhe- ceu o direito de casais homoafetivos à adoção de crianças e adolescentes, sem qualquer distinção. A decisão foi feita pela Ministra Carmen Lúcia, atual presi- dente do STF. Veja alguns trechos da decisão histórica, registradas no portal do Instituto Brasileiro de Direito de Família (2015, on-line)10: Sobre a Adoção Homoparental no Cenário Brasileiro Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 159 Nesta quinta-feira, dia 17, o Supremo Tribunal Federal (STF) manteve decisão de acórdão do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) que auto- rizou a adoção conjunta para um casal gay, em julgamento de recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público do Paraná (MP-PR). O casal Toni Reis e David Harrad, fundadores do Grupo Dignidade, entrou em 2005 com pedido de habilitação para adoção junto à Vara da Infância e Juventude de Curitiba. O juiz foi favorável à adoção conjun- ta, mas colocou duas restrições: as crianças a serem adotadas tinham que ser meninas e ter mais de 10 anos de idade. Eles recorreram ao TJPR, que entendeu estarem habilitados para a adoção e que não havia limitação quanto ao sexo e à idade dos adotandos em razão da orienta- ção sexual dos adotantes. O MP-PR recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supre- mo Tribunal Federal (STF) contra a decisão do TJPR, alegando que o casal não formava uma entidade familiar e, portanto, não estaria apto a adotar filhos em conjunto. O MP argumentou que a Constituição da República não prevê expressamente outras configurações familiares, exceto a formada por homem e mulher, de forma intencional para “não eleger (o que perdura até a atualidade) a união de pessoas do mesmo sexo como caracterizadores de entidade familiar”. No STJ, o recurso foi indeferido. Em 2010, no STF, o ministro Marco Aurélio Mello rejeitou o recurso porque a matéria em discussão era a restrição quanto à idade e ao sexo das crianças, e não o conceito de en- tidade familiar. Depois, o MP interpôs o recurso extraordinário ao STF. Enquanto o processo não voltava do STJ/STF, o casal Toni e David não podia adotar em Curitiba. No entanto, a decisão do TJPR permanecia valendo porque o recurso do MP não tinha efeitos suspensivos e Toni e David puderam adotar seu primeiro filho em 2012, em outro estado, e em 2014 obtiveram a guarda de mais um menino e uma menina. Decisão final - A ministra Cármen Lúcia, relatora do caso, ressaltou que as uniões homoafetivas já são reconhecidas como entidade fami- liar, com origem em um vínculo afetivo, e merecem tutela legal. Segun- do ela, não há razão para limitar a adoção, criando obstáculos onde a lei não prevê. “Delimitar o sexo e a idade da criança a ser adotada por casal homoafetivo é transformar a sublime relação de filiação, sem vínculos biológicos, em ato de caridade provido de obrigações sociais e totalmente desprovido de amor e comprometimento”, disse. A ministra incluiu em seu voto a interpretação da Corte no julga- mento da ADI 4277/ADPF 132 (2011), de relatoria do então ministro Carlos Ayres Britto, que reconheceu a união homoafetiva como enti- dade familiar. QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E160 No julgamento histórico, em 2011, Ayres Britto ressaltou que a Cons- tituição Federal não distingue a família heteroafetiva da família ho- moafetiva. “Por isso que, sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo ‘família’ nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido coloquial pratica- mente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser.” O ministro foi seguido à unanimidade pelos demais, e na ocasião ele disse que não devem existir interpretações preconceituosas e homofóbicas da Constituição e que a isonomia entre casais heteroafetivos e homo- afetivos somente será plena se tiverem os mesmo direitos à formação da família. “Assim interpretando por forma não-reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito con- trário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico. Quando o certo - data vênia de opinião divergente - é extrair do sistema de coman- dos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verba- lizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de qual- quer outro e constituído, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade’’ (IBDFAM, 2015, on-line)10. Obviamente que, até o tempo presente, a adoção por casais homoafetivos ainda é condenada e discriminada por cidadãos com posicionamentos e ações conserva- doras. As posições possuem embasamento unicamente pautado no texto bíblico. Não há análise para refletir a terrível cultura do abandono no Brasil e a realidade perversa de crianças e adolescentes em Acolhimentos Institucionais, pois muitos serviços como esses ainda revitimizam esses jovens do que realmente os protegem. O Serviço de Acolhimento para Crianças e Adolescentes Brasileiro está muito aquém de oferecer acolhimento digno e humano para esse público. O preconceito é excedente, baseado em mitos como o de que filho adotivo de gay se tornaria gay também, outros falam que a homossexualidade é uma anomalia genética e que família é apenas a constituição de homem, mulher e filhos. Não há uma abertura para a compreensão dos novos arranjos familiares atualmente postos na sociedade. Sobre a Adoção Homoparental no Cenário Brasileiro Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 161 Há também as barreiras religiosas, que não aceitam a homossexualidade e consequentemente a adoção por casais homossexuais. Atitude tão reacionária e preconceituosa como essas é que, grupos religiosos que ocupam espaços de poder no aparelho do Estado, tentam aprovar desde 2013 o Estatuto da Família, que compreende no retrocesso às transformações sociais e culturais que per- mitiram a compreensão e o reconhecimento da categoria Famílias (no plural), considerando e respeitando seus diversos arranjos, além da conquista de direitos para todos aqueles que vivem em famílias alheias do arranjo nuclear tradicional (pai, mãe e filhos – nesta ordem). Ainda que as questões acerca da sexualidade e gênero no Brasil estão envoltas de tabus e preconceitos, nossa sociedade está em passos curtos avançando em con- quistas.Tudo é fruto do trabalho e pesquisa de organizações e conselhos, além das lutas diárias dos cursos e profissionais do Serviço Social, que visam a equi- dade de direitos, independente da condição sexual dos indivíduos. Redesignação de gênero: Chamamos de identidade de gênero a forma como a pessoa se identifica como homem ou mulher, ou seja, uma auto-imagem. Por vezes, há incom- patibilidade entre a forma que me vejo e penso, e as características físicas determinados ao nascimento. Esta incongruência recebe o nome de distúr- bio de identidade de gênero. Tal condição traz a pessoa sérios problemas psicológicos. Logo, é necessário entender a diferença entre identidade de gênero (“como a pessoa se vê”), sexualidade (“por quem a pessoa se sente atraída”) e ana- tomia biológica (“genitália”), já que são características totalmente indepen- dentes. No caso de “redesignificação de gênero” a pessoa vai adaptar seu corpo à sua auto-imagem, seja de homem ou mulher. Para tanto, o processo vai desde tratamento hormonal e acompanhamento psicológico até pro- cedimentos cirúrgicos e estéticos. Fonte: adaptado de Manica ([2017], on-line)11. QUESTÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIIU N I D A D E162 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo, foi possível concluir que gênero é um conceito construído coleti- vamente. O gênero é o sexo socialmente e historicamente construído. Por meio de um contexto determinado, se constrói no imaginário das pessoas o que é ser homem e o que é ser mulher, e essa construção social é perpassada por uma ide- ologia. Há um poder ideológico para manutenção da hierarquia heteronormativa masculina para reproduzir preconceitos/discriminações contra as mulheres e contra os LGBTIs, como se esses fossem inferiores e devessem ser subordina- dos aos homens. Gênero é um elemento constitutivo de relações sociais, baseadas nas dife- renças entre os sexos, e é uma forma primária de dar significado às relações de poder. Assim, lutamos por liberdade e igualdade de gênero, e não por uma liberdade burguesa de direito de consumo, de ir às praias, à baladas LGBTIs, de comprar produtos, mas para além do consumo, o direito de ser cidadão, de ser considerado um sujeito de direitos. A emancipação da mulher e dos LGBTIs só será possível quando estes tive- rem todos seus direitos respeitados - direito político, de ser cidadão. Porém, não se trata apenas de direitos sociais, mas também ter acesso a equipamentos sociais de qualidade, tais como: saúde, educação, creche, moradia, entre outros, e não por meio de políticas públicas que reforçam ainda mais a questão da subordina- ção da mulher, como no caso do programa bolsa família, entre outros. Precisamos de políticas públicas para toda a população que trabalhe com valores e com preconceitos, a fim de se posicionar contra o machismo e a homo- fobia, além de combater e prevenir a violência, a discriminação e o preconceito. É importante também criar políticas públicas que atendam à questão de gênero em sua totalidade, indo além de medidas paliativas. Por isso, mais do que legisla- ções e políticas públicas para igualdade de gênero, lutamos por um rompimento de paradigmas, pela construção de novas relações e valores, baseadas na igual- dade e na liberdade de gênero. 163 1. Segundo Joan Scott (1995), gênero é um elemento constitutivo das relações so- ciais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, que fornece um meio de decodificar o significado e de compreender as complexas conexões en- tre as várias formas de interação humana. De acordo com a citação da autora, estamos pensando em qual categoria? a. Orientação Sexual. b. Ideologia de Gênero. c. Relações de Gênero. d. Violência de Gênero. e. Homo-lesbo-transfobia. 2. De acordo com o texto, para a garantia da conquista da emancipação de mulhe- res heterossexuais e de LGBTIs, é necessário: a. Somente a luta por maior respeito e tolerância. b. Somente a garantia dos direitos políticos. c. Garantia de direitos sociais e políticos com acesso de qualidade aos equipa- mentos das diversas políticas públicas existentes. d. Acesso aos equipamentos das políticas públicas. e. Vagas nos atendimentos de saúde e assistência social. 3. Sobre a adoção por casais homoparentais, reflita e assinale a alternativa cor- reta. a. É um processo ilegítimo, proibido no Brasil até hoje. b. É um processo permitido no Brasil, porém ilegítimo e imoral. c. É um processo legítimo, garantido em 2015 pelo Supremo Tribunal Federal em que reconhece casais de pessoas do mesmo sexo como família. d. É um processo legítimo, garantido em 2015 pelo Supremo Tribunal Federal em que reconhece casais de pessoas do mesmo sexo como família, porém imoral e inaceitável. e. É um processo legítimo, garantido em 2015 pelo Supremo Tribunal Federal a partir dos pressupostos do Estatuto da Família. 4. Segundo as reflexões realizadas a partir da leitura desta Unidade, é possível afir- mar que o Serviço Social, diante das múltiplas expressões das identidades sexu- ais e de gênero: 164 a. Possui compromisso ético-político em compreender, respeitar e lutar pela livre expressão da diversidade sexual e de gênero, pautando-se no direcio- namento do Projeto Ético-Político Profissional e no Código de Ética do Assis- tente Social. b. Possui o direito de escolher, compreender e respeitar as múltiplas expressões da diversidade sexual e de gênero. c. Possui dever de compreender e de orientar à uma adequação aos padrões heteronormativos vigentes. d. Possui dever ético de respeitar a diversidade sexual e de gênero, pautando-se no direcionamento positivista da profissão. e. Não precisa se atentar a esta questão, já que vivemos em uma sociedade ain- da moldada por padrões heteronormativos. 5. O I Plano Nacional de Políticas para Mulheres, criado em 2004 pelo Governo Fe- deral, apresenta quatro frentes de trabalho, que são: a. Dependência; Igualdade no Mundo do Trabalho e Cidadania; Educação Inclu- siva e Sexista; Saúde das Mulheres, Direitos Reprodutivos e o Enfrentamento à Violência contra a Mulher. b. Autonomia; Igualdade no Mundo do Trabalho e Cidadania; Educação Sexis- ta; Saúde das Mulheres, Direitos Reprodutivos e o Enfrentamento à Violência contra a Mulher. c. Obediência; Permanência e Trabalho Doméstico; Educação Sexista; Saúde das Mulheres, Enfrentamento à Violência contra a Mulher. d. Autonomia; Igualdade no Mundo do Trabalho e Cidadania; Educação Inclu- siva e não Sexista; Saúde das Mulheres, Direitos Sexuais e Reprodutivos e o Enfrentamento à Violência contra a Mulher. e. Autonomia; Igualdade no Mundo do Trabalho; Educação Inclusiva e não Sexista; Saúde das Mulheres, Direitos Sexuais e o Não Enfrentamento à Vio- lência contra a Mulher. 165 O DIREITO À IDENTIDADE DE GÊNERO E AO NOME CIVIL DOS TRANSEXUAIS: UMA ANÁLISE DO ATUAL CENÁRIO E DA NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO DAS NORMAS BRASILEIRAS Uma Análise do olhar da Doutrina sobre os Transexuais Muitas são as teorias e os estudos sobre os transexuais para identificar o transtorno que eles possivelmente sofrem. A teoria neurológica mais aceita pelos médicos é a holandesa. Ao estudarem o hipotálamo, região do cérebro responsável pelo desen- volvimento dos hormônios sexuais, em cadáveres, os holandeses verificaram que a região da chamada “estria terminal” é 44% maior nos homens em relação às mulhe- res, e ao medirem em seis transexuais a mesma região, verificaram ser 52% menor do que a média masculina, sendo, portanto, mais próxima do tamanho encontrado nas mulheres. Outros estudos afirmam que os transexuais possuem um quociente intelec- tual (QI) um pouco acima da média, entre 106 e 118. Também há hipóteses de que, entre os últimos dias de vida fetal ou nas primeiras semanas de vida, o indivíduo sofre uma impregnação hormonal no hipo- tálamo, pelo hormônio contrário ao de seu sexo biológico. Algumas experiências iden- tificaram umaalteração nos cromossomos das células dos transexuais, outras identi- ficaram independência total entre o sexo psicológico – ligado a um processo com- plexo que se forma desde o nascimento e depende de influência, primeiramente, da mãe e, depois, do pai – e o sexo biológico, que depende de cromossomos. O médico Drauzio Varella traz a seguinte afirmação: “Em 66% dos transexuais, a incongruên- cia se instala já na infância; nos demais, ela se desenvolve na adolescência e na vida adulta. Quanto mais tardia for a transi- ção para o novo sexo, mais dolorosa será. ” Os transexuais podem ser divididos em dois grupos: aqueles que nasceram com o fenótipo masculino, porém tem a identi- dade de gênero feminina (MTF – sigla em inglês que significa Male to Female), sendo melhor identificados como femininos e não afeminados; e aqueles que nasceram mulheres, mas se identificam como homens (FTM – sigla em inglês Female to Male) e não são masculinizados, mas masculinos. A doutrina apresenta duas modalidades. A primeira conhecida como o transexual verdadeiro, ou primário, é aquela dos indi- víduos que apresentam, desde a formação de sua identidade, rejeição ao corpo bioló- gico e a convicção de pertencerem ao sexo oposto. Ou seja, precocemente já manifes- tam vontade inequívoca de modificação de sexo. São eles que buscam a cirurgia como único meio de adequação, e é para eles que se entende que a cirurgia deve ser autorizada. O segundo grupo é conhecido como transexual secundário, tratando-se daqueles que oscilam entre o travestismo e homossexualidade, manifestando a von- tade de pertencer ao sexo oposto, porém não tendo rejeição de seu próprio corpo, como no caso do transexual verdadeiro. Entende-se, neste caso, não ser recomen- 166 dável a cirurgia de resignação, ante a complexidade da mesma, pois sua condi- ção não é contínua e efetiva. Ainda assim, lembram-nos os autores Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves, que o secundário também é aquele que tenta se comportar de acordo com as regras da dita normalidade, numa tentativa de adaptação e adequação de suas prefe- rências, sendo difícil julgá-lo. Trecho extraído de um Trabalho de Con- clusão de Curso em Bacharel de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, para ter acesso ao trabalho, acesse o link: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/ poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/traba- lhos2015_2/ana_lopes.pdf>. Fonte: Lopes (2015, on-line)12. Material Complementar MATERIAL COMPLEMENTAR Preconceito contra homossexualidades - a hierarquia da invisibilidade Frederico Viana Machado, Marco Aurélio Máximo Prado (2008) Editora: Cortez Sinopse: as sexualidades sempre foram um tema importante nas discussões políticas da sociedade, estando hoje, inclusive, com forte presença na mídia. É nesse contexto que fica evidente o quanto os homossexuais tornaram-se um grupo influente, que luta por igualdade de direitos, e que têm imensa relevância no cenário cultural e político. A Garota Dinamarquesa Tom hooper - Universal Pictures (2016) Cinebiografia de Lili Elbe (Eddie Redmayne), que nasceu Einar Mogens Wegener e foi a primeira pessoa a se submeter a uma cirurgia de mudança de gênero. Em foco o relacionamento amoroso do pintor dinamarquês com Gerda (Alicia Vikander) e sua descoberta como mulher. Orações para bobby Russell Mulcahy - (2009) A católica devota Mary Griffith tenta “curar” o filho homossexual Bobby, mas ele acaba se suicidando com a pressão da sociedade e a mãe se torna defensora dos direitos gays. REFERÊNCIASREFERÊNCIAS BARBIERI, T. Sobre a categoria gênero: uma introdução teórico-metodológica. In: Revista Interamericana de Sociologia, ano 6, n. 2-3, maio/dez., México, 1992. BARROCO. M. L. S. Código de Ética do/a Assistente Social comentado. São Paulo, Cortez, 2012. BARROSO, F. L. A. Os Homossexuais na Mídia Segundo Militantes, Acadêmicos e Jor- nalistas. 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Plano de Estudo A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: ■ Ética e Moral ■ Ética, moral e o perfil do assistente social ■ Ética, tecnologia e sociedade ■ Redes socias ■ Cyberbullying ■ Ética, Meio-ambiente e sociedade INTRODUÇÃO Tecnologia, Meio-Ambiente e Ética e Moral são temas recorrentes nos notici- ários do dia a dia. Mais que isso, são temas recorrentes nossos, no agir diário. Dessa forma, tais elementos fazem parte dos processos sociais, e precisam ser conhecidos e discutidos dentro da profissão do Assistente Social. Esta unidade contemplará, inicialmente, o que é ética e o que é moral, suas diferenças e como elas podem influenciar o papel de escolha do profissional de Serviço Social. Veremos que a Ética é universal e atemporal, enquanto a Moral é cultural e temporária. A Ética é baseada na reflexão e em princípios, e a Moral é latente e baseada em crenças, quase sempre pessoais. Seguindo esse tema, discutiremos sobre as relações entre moral e ética e o perfil do assistente social, principalmente quando a moral pessoal acaba passando por cima da ética universal. Ainda no campo da ética, iremos discutir e refletir sobre seu papel, na atual sociedade dominada pela tecnologia e redes sociais. Compreenderemos que a identidade social passa por reformulações negociadas a partir do uso da inter- net, gerando situações nem sempre aceitas pelos princípios sociais básicos e, consequentemente, éticos. A Tecnologia transformou o comportamento da sociedade, sendo um dos objetos de estudo do Serviço Social. Ainda sobre esse tema, investigaremos o cyberbullying, uma espécie de bullying que acontece no ciberespaço - e que é próprio da cibercultura -, espalhando pela rede a intole- rância e a violência. Por fim, iremos refletir e estudar a relação da ética e sociedade com o meio- -ambiente, e compreender que, na atual conjectura, nós, como sociedade e natureza, somos um e, dessa forma, o que atinge um, atinge o outro. Espero que esta unidade possa trazer muita reflexões sadias sobre ética, moral, tecnologia e meio ambiente, sob o viés social. Introdução Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 175 ÉTICA, TECNOLOGIA E MEIO AMBIENTE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IVU N I D A D E176 ÉTICA E MORAL O Assistente Social deve ter muita clareza nos conceitos sobre ética e moral e, princi- palmente, em seu papel com esses termos e, consequentemente, no resultado positivo da responsabilidade social. O tema é ainda mais importante na atualidade, visto que as mudanças na sociedade tem acontecido de forma acelerada, gerando fenôme- nos ambíguos e polêmicos na vida social. Como apresenta Carvalho (2011, p. 240): A ética faz parte da natureza do Serviço Social”. A ética no Serviço So- cial deve ser observada no âmbito da responsabilidade social. Mas o que é “ética”? É a mesma coisa que “moral”? Ética e moral tem haver com questões como “devo ou não devo?”, “isto é certo ou errado”, “isto é contra minhas crenças pessoais?. No início do Serviço Social,os princípios reguladores da profissão estavam associados em “princípios e valores que organizavam a sociedade, onde a comu- nidade, a solidariedade e a identidade decorriam dos princípios do dever moral” (Carvalho, 2011, p. 240) e aqui, a moral é entendida como “o que devo fazer” ou “o que é preciso fazer” (BESSON; GUAY, 2000, p. 48). Dessa forma, a moral do assistente social era um conjunto de “valores, princípios, normas de conduta”, muitas vezes pré-determinada pela tradição e documentos normativos, como o código da década 47 e dos anos 65, ambos puramente moralistas, no sentido religioso/conservador. Mas moral é a mesma coisa que ética? Não. Ética e Moral muitas vezes têm seus significados como sinônimos, mas são conceitos distintos. Ética é um termo de origem grega, que vem de ethos, literalmente, morada, habitat e refúgio. Mas a ideia da palavra seria natureza, índole, um local onde o caráter habita, bom costume, etc. Além disso,re- tomando aos filósofos, já que Ética é um dos motes da Filosofia, podemos entendê-la como um tipo de reflexão que se refere à natureza da ação humana, um modo de ser. Já Moral, do latim morals, relativo aos costumes, maneira e comportamento, é uma ideia que se tornou verdadeira. A moral torna-se resultado de um padrão cultural do momento, tendo como base regras para o convívio social harmônico entre todos os membros daquela sociedade, visto que é esta própria sociedade que, previamente, estabelece os valores para a formação de sua moral que, no entanto, podem ser questionados pela ética. Ética e Moral Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 177 Figura 1 - Dilema moral. Em suma, a princípio, todas as condutas são morais pois são ações humanas e comportamentos. Nesse caso, entende-se moral enquanto ação do sujeito que vive em sociedade. A Ética é, por sua vez, a ciência da moral: é ela quem pensa, analisa e valida ou não um ato moral. Assim, um ato pode ser não ético, mas ação realizada. A moral tem caráter prescritivo e normativo, assim como as leis, que são normativas mas nem sempre éticas. Cela especial para quem tem curso superior, por exemplo - é lei, norma e moral, mas não ético. Diferenciar pessoas de conduta criminosa a partir de seu grau de instrução, privilegiando-a, fere princípios, e por isso fere a ética. Ganhar salário pelo seu trabalho é lei e é moral, mas o valor nem sempre é ético. A con- duta ética é um comportamento que deve se valer da relação com o outro, ou seja, nunca unilateral. ÉTICA, TECNOLOGIA E MEIO AMBIENTE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IVU N I D A D E178 Cortina (2005) revela que Aristóteles compreendia a ética como uma esco- lha, que visava o viver bem com e para os outros, criando relações justas. E Platão entendia ética por este viés, da virtude justa. Além desses, outros pensa- dores observavam a ética como uma escolha, baseada na razão (reflexão). Logo, a ética seria uma reflexão sobre a moral, sendo esta explicada e fundamentada de forma racional. É como se a Ética explicasse a Moral, dando-lhe, em deter- minado contexto, validade ou não, e aí entra a questão de ser ético para ter uma responsabilidade social. Na construção das liberdades e garantias, a ordem moral transfor- ma-se em ética e tem um significado não de prescrição de compor- tamentos, mas de reflexão sobre os mesmos. A ética não impõe nor- mas, mas questiona o que acontece, é uma análise da atitude face ao ocorrido (factos). Por isso, a ética descreve, propõe, reflecte, a par- tir de condições determinadas, os melhores princípios a seguir [...]. Pressupõe uma reflexão sobre a moral e as razões justificativas dessas normas, regras, princípios e direitos em determinada realidade social (CARVALHO, 2011, p. 240). Por isso, nas palavras de Besson e Guay (2000, p. 49), a ética interessa saber “o que é o melhor em determinada situação, quais os melhores princípios, o melhor objectivo a seguir”. Dessa forma, algumas profissões possuem códigos de ética, que visam justamente apresentar os princípios e nortear o compro- misso com os usuários, com base na liberdade, democracia, cidadania, justiça e igualdade social. Ou seja, independente da moral do profissional de Serviço Social, há uma conduta esperada, visando a responsabilidade social. A ética no Serviço Social deve ser encarada como suporte a uma ontolo- gia do ser social, levando em conta o contexto da época (moral). Em 1986, o código de ética do Serviço Social deu um salto em relação aos anteriores, na questão de desvincular da profissão a moral religiosa e tradicionalista. Esta mudança nasce em 1979 com o III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, trazendo uma nova perspectiva de conscientização profissional, des- vinculando-se da moral e focando-se na Ética. Ética e Moral Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 179 Anos depois, surgiu a necessidade de revisão deste código, tendo em vista as rápidas mudanças sociais que surgiram entre os anos de 1986 e 1993, como a Guerra Fria, as Guerrilhas na América do Sul, a descoberta do vírus HIV, o nas- cimento de movimentos gays, a popularização de tecnologias pessoais como PC, walkman, video cassete e CD-rom, a conquista do espaço, as ameaças nucleares, os alimentos transgênicos e, especialmente no Brasil, o avanço das Igrejas neo- pentecostais com a teologia da prosperidade e o nascimento do SUS e do ECA. Não só na releitura da moral da nova sociedade e na incorporação teórica de cunho marxista, mas a ética no Serviço Social vale-se também com o cuidado até mesmo no uso de termos específicos: [Há] o reconhecimento da linguagem de gênero, adotando-se em todo o texto a forma masculina e feminina, simultaneamente. Essa última expressa, para além de uma mudança formal, um posiciona- mento político, tendo em vista contribuir para negação do machis- mo na linguagem, principalmente por ser a categoria de assistentes sociais formada majoritariamente por mulheres. [...] Do ponto de vista do conteúdo, as mudanças procedidas foram relativas à modi- ficação de nomenclatura, substituindo o termo “opção sexual” por “orientação sexual”, incluindo ainda no princípio XI a “identidade de gênero” , quando se refere ao exercício do serviço social sem ser discriminado/a nem discriminar por essa condição (BRASIL, 1993, p. 13 –14). Nesta unidade, quero que possamos refletir sobre o papel da ética em nossas esco- lhas, nossos (pré)conceitos, na nossa moral e na realidade social tão subjetiva em que vivemos. Entendamos que o código de ética visa sugerir um comporta- mento homogêneo entre os profissionais, independentemente de suas crenças, experiências e valores familiares e culturais. Ética é universal e atemporal, enquanto Moral é cultural e temporária. A Éti- ca é baseada na reflexão e em princípio, enquanto a Moral é latente e base- ada em crenças. ÉTICA, TECNOLOGIA E MEIO AMBIENTE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IVU N I D A D E180 ÉTICA, MORAL E O PERFIL DO ASSISTENTE SOCIAL O que define um comportamento moral na sociedade? Muitos poderão entender que os códigos morais são acatados mediante uma escolha pessoal ou convicção íntima, fazendo com que a pessoa aja de acordo com o costume de seu grupo ou sociedade. Assim, nesta “norma”, quem segue tais códigos são pessoas morais e quem não segue, imorais. Todavia, como já alertamos, tanto uma pessoa considerada socialmente imoral, quanto a moral, podem cumprir leis jurídicas e ambas serem éticas. O julgamento em relação a moral é definido por questões pessoais, pois até mesmo um comportamento ou costume de um grupo pode ser questionado. Ou seja, ninguém nasce moral ou imoral, pois o caráter de quem é ou não, bemcomo os parâmetros de julgamento são culturais e, por vezes, simbólicos. Podemos romper padrões morais sem necessariamente deixar de sermos éti- cos. Roubar é algo imoral em nossa sociedade. Imagina a seguinte situação: uma pessoa rouba um remédio para salvar a vida da avó, e outro, que vive em condições de miséria, rouba um litro de leite no mercado para saciar a fome do filho. Ambos quebraram uma regra da sociedade vigente em que vivem, mas os fatos podem ser justificados eticamente? É ético deixar o filho padecer de fome e/ou a avó morrer? Por essa razão, a Ética é “racional’’ e reflexiva, além de demandar um debate coletivo, levando em consideração princípios maiores que qualquer valor moral subjetivo. Logo, os “códigos de ética” das profissões fazem esse papel, de “suge- rir” e apresentar os princípios que criam uma cultura ética e, consequentemente, uma responsabilidade social. No código de Ética do Serviço Social, temos uma série de fundamentos que visam essa “cultura ética” do assistente social. Vejamos quatro princípios, que se encontram na primeira parte do código Princípios Fundamentais: I. Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das deman- das políticas a ela inerentes - autonomia, emancipação e plena expan- são dos indivíduos sociais; [...] VI. Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incen- tivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças; Ética, Moral E O Perfil Do Assistente Social Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 181 VII. Garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profissio- nais democráticas existentes e suas expressões teóricas, e compromisso com o constante aprimoramento intelectual; VIII. Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero; [...] XI. Exercício do Serviço Social sem ser discriminado/a, nem discrimi- nar, por questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, na- cionalidade, orientação sexual, identidade de gênero, idade e condição física (CRESS MG, on-line1). Reparem que esses princípios vão de encontro com os valores morais de cada um, ou seja, o código deixa implícito que, independentemente de convicção teórica, preconceitos raciais, sexuais, religiosos e visão pessoal em relação ao que a pes- soa deve ou não escolher, o assistente social precisa ser ético, não discriminar o próximo, não ser preconceituoso, não defender o machismo, xenofobia, homo- fobia ou o racismo, reconhecendo a liberdade individual e escolhas dos cidadãos. É seguindo esse código que se propõe a responsabilidade social. E, se o código tem estes princípios como premissas, é porque algo não ia (ou não vai) bem na profissão nesse âmbito, do choque entre moral e ética. Segundo Simões (2005), um dos elementos que mais interferem nas decisões e escolhas do assis- tente social, trazendo consequências para a profissão, são os valores religiosos: [os valores religiosos] são fortes motivadores para o ingresso na pro- fissão, sejam eles de base católica ou evangélica/protestante. A idéia de fazer o bem, de ajuda ao próximo, da busca da justiça social, o ideal do “bom samaritano”, são elementos repetidamente trazidos por aqueles que escolhem o serviço social. [...] Curiosamente, a formação profis- sional em serviço social é bastante avessa às justificativas religiosas e ao ideário de ajuda social do qual seus alunos são portadores ao ingres- sarem nos cursos. Em contraposição a estas idéias, os cursos oferecem uma formação extremamente politizada a seus alunos e, principalmen- te nas universidades públicas, a formação tem uma ampla base marxis- ta e socialista (SIMÕES, 2007, p. 175). Simões (2007) apresenta um conflito ideológico dentro da profissão de Serviço Social, visto que muitos estudantes ingressam no curso com uma motiva- ção religiosa, sendo que os valores religiosos deveriam ser dispensados ou ÉTICA, TECNOLOGIA E MEIO AMBIENTE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IVU N I D A D E182 colocados em segundo plano, no caminhar do ofício. Certamente, o conflito está na ordem moral, que pode custar caro à responsabilidade social que o assistente social tem como dever. Talvez seja por isso que a religião, quando estudada numa perspectiva ontológica marxista (base teórica do Serviço social), é condenada, visto que cria mecanismos que barram a tomada de consciên- cia social e coletiva (dirigida pela ética), em detrimento de uma consciência pessoal (crença): Segundo Marx (2010), a crítica para com a religião está fundamenta- da no fato de que os seres humanos devem ser conscientes em saber que são responsáveis pelas transformações e mudanças do mundo em que vivemos. No entanto, essas transformações só serão possíveis en- quanto atos coletivos. Para o autor, a religião atua na contramão da conscientização da sociedade, isto porque ela idealiza uma sociedade perfeita em outro mundo, fora deste. No paraíso. Neste pensamento a religião é entendida como um mecanismo que barra a tomada de consciência humana frente a real situação social. Assim, a preocupa- ção dos homens ocupa-se de pensar no outro mundo, em que tudo será perfeito e completo. O resultado disto é que as situações sociais deste mundo, ou seja, a luta de classes que gera opressão e exploração, são encaradas como processos naturais, e/ou como culta por erros (pecados) de forma culpabilizadora e individualista. Ou seja, os acon- tecimentos não são entendidos como resultado de um dado processo histórico e social (DUTRA, 2015, p. 4). Dutra (2015), em sua pesquisa, mostra que a presença da religião no exercício profissional de assistentes sociais é determinante nas análises de alguns profis- sionais. A neutralidade, que garante assim a ética, é posta de lado, enquanto o conservadorismo torna-se protagonista. A pesquisa realizou, em 2012, mais de 22 entrevistas com vários assistentes sociais atuantes na região norte do Estado do Paraná. Umas das questões era sobre a denominação religiosa dos profissionais, e mostrou que 77% dos entrevistados se declararam católicos, 14% evangélicos, 5% espíritas e 4% declararam não frequentar nenhuma ins- tituição religiosa. Ética, Moral E O Perfil Do Assistente Social Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 183 Figura 2 - A religião pode e deve ser uma aliada à justiça social, nunca o inverso. A parte mais importante da pesquisa era saber se estes profissionais levavam em conta a moral pessoal (religiosa) para explicar os problemas sociais, e o resul- tado foi positivo. Grande parte acreditava que os problemas sociais são vontade divina e não resultados de processos sócio históricos. Seguem três relatos: [...] A maior parte dos casos de violência envolve o uso de álcool e drogas por parte [...], normalmente estão sob o efeito destas substâncias quando cometem a agressão. Então você vê, se a família seguisse a Deus essas coisas de violência não aconteceriam no lar [...]. Então eu acho, [...] vem aqui sabe, mas essas famílias nem seguem a Deus, fica difícil” (3 AS20) Só que na vida da gente profissional e sabendo que existe esta domina- ção do mal... Nenhuma política pública vai acabar com a pobreza e so- frimento da humanidade, os teóricos sabem disso, embora continuem estudando para achar um meio de acabar. Então vamos ter que fazer alguma coisa, pois parar e ficar olhando não vai adiantar só Deus mes- mo que vai acabar com a pobreza, é um plano grande pra humanidade, mas as pessoas não conseguem acreditar nisso. Ele permite estes de- sastres, tristezas, essas coisas que a gente vê nos atendimentos, a gente vê tristeza, temhora que me emociono, vou embora com a imagem da ÉTICA, TECNOLOGIA E MEIO AMBIENTE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IVU N I D A D E184 pessoa na cabeça, os problemas vêm todos de uma vez, você não sabe como pode ter acumulado na vida de uma pessoa tantos problemas, que e você fala “por onde começo?”. Eu tenho muita alegria de ter mi- nha vida com Deus, com minha família, eu convivo com esta realidade, mas o meu desejo é de fazer algo mais, mas enquanto eu não posso ter uma igreja do lado do [...] eu vou tentar fazer o meu melhor [...] (AS4). Os problemas sociais estão ai, mas também têm oportunidades e al- guns usuários não agarram, mas se a pessoa tiver uma espiritualidade e estiver ligada a alguma igreja, com certeza vai ter outros caminhos, vai estar mais ligado à oração, a tentar fazer o bem, e seguir o que esta na Bíblia e seus próprios preceitos, agora se a pessoa não vai pra igreja, não tem uma linha a seguir, um objetivo, com certeza ele vai pro caminho mais fácil, mais fácil entre aspas porque mais pra frente vai ter conse- quências[...] (AS1) (DUTRA, 2015, p. 8). Desde a década de 1980, o Serviço Social partiu para um projeto profissional emancipatório, e esse deslocamento da moral sobre a ética traz, segundo Netto (2011), o retorno do conservadorismo ou neoconservadorismo. Iamamoto (1992) lembra que essa característica é prejudicial à profissão, pois faz dela uma profissão baseada mais em fundamentos doutrinários do que em fundamentos científicos. E me refiro ao conservadorismo, uma tendência de manter o status quo de grupos dominantes, que se beneficiam com a desigualdade, miséria, alie- nação e com a violência de sujeitos historicamente oprimidos (mulheres, negros, indígenas e homossexuais). Não estamos de maneira alguma defendendo a retirada da religião do Serviço Social, visto que temos que entender toda a participação da religião na gênese da profissão, bem como a relação dela em fenômenos sociais, como o nascimento, no seio da Igreja Católica, e da Teologia da Libertação, por exemplo. A liberdade de crença é e deve ser garantida em toda formação e prática do Serviço Social, “mas nenhuma crença religiosa deve pautar a atuação de indi- víduos ou grupos no exercício da profissão” (PINHEIRO, 2015, p. 215). Esse é o problema, quando há interferência da moral religiosa nas ações e decisões do assistente social, que em tese devem ser neutras neste âmbito, em concordância com a ética (em especial, com aquela baseada no código da profissão), mas que acabam contribuindo para uma ausência da responsabilidade social, pois a ética tem “uma acessão voluntária de responsabilidade e de lei não particular, mas de intenção universal” (KNOCH, 2003, p. 9). Ética, Moral E O Perfil Do Assistente Social Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 185 Ainda que não tão investigado, o assunto é recorrente nas discussões univer- sitárias. Tanto que a professora do curso de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Claudia Neves da Silva resolveu iniciar um projeto de pesquisa com o objetivo de entender como a religião afeta os profissionais da área de Serviço Social e suas ações (HIRAFUJI et al. 2011, on-line)3. O fato é que, impor valores pessoais dentro da profissão de Serviço Social, além de antiético, adensa um forte antagonismo, visto que permite a manutenção de privilégios de certos grupos, motivados por valores religiosos, morais ou polí- ticos. O Serviço Social luta contra os privilégios sociais, auxiliando a justiça e a equidade. Por exemplo: O ECA não diz nada sobre a impossibilidade de um homos- sexual adotar uma criança, ou seja, ele/ela tem o direito da adoção. Contudo, os seus valores morais dizem que isso não pode acontecer, pois é errado. Veja, você está interferindo em um direito e privilegiando apenas heterossexuais no âmbito da adoção. Não se deve, também, mostrar indiferença em auxiliar famí- lias ciganas ou moradores de terreiros afro brasileiros. Nesse amplo arco de elementos, percebemos que o neoconservadoris- mo religioso cumpre funções importantes para a reprodução cultural das desigualdades, desde o cotidiano dos sujeitos até as questões po- líticas de ataque e supressão de direitos. A lógica machista, patriarcal e heterossexista ganha fôlego nos dogmas e doutrinas em seus vieses fundamentalistas (PINHEIRO, 2015, p. 198). Por mais absurdo que são esses exemplos, eles são reais (SILVA, 2017) e demons- tram o antagonismo dito anteriormente – se o Serviço Social tem como premissa a busca de direitos, equidade social e justiça, esse comportamento é incompa- tível com a profissão: Ética é o conjunto de valores e princípios que nós usamos para decidir as três grandes questões da vida: Quero? Devo? Posso? Tem coisa que eu quero mas não devo, tem coisa que eu devo mas não pos- so e tem coisa que eu posso mas não quero. (Mario Sergio Cortella)2. ÉTICA, TECNOLOGIA E MEIO AMBIENTE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IVU N I D A D E186 O preconceito se transforma em moralismo quando julgamos o com- portamento dos outros segundo critérios morais em uma situação que não é para ser julgada moralmente. São atitudes discriminatórias que negam serviços ou desrespeitam usuários, em função de preconceitos, respaldando-se em ideias conservadoras da sociedade. Logo, contam com uma base social de apoio para se manifestar, como dissemos as ações implicam responsabilidades, pois – independente da intenciona- lidade – acarretam consequências (BARROCO,2012, apud PINHEI- RO, 2015, p. 215). Porém, se o assistente social precisa se policiar em relação às suas crenças pes- soais, ele também precisa estar na defensiva sempre, pois na sociedade, no dia a dia, na mídia e nas redes sociais, a ética é um fenômeno em jogo, principal- mente na sociedade da comunicação. ÉTICA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE A discussão sobre a tríade Ética, Tecnologia e Sociedade não é recente, mas se aguçou em meados dos anos de 1990, com a clonagem da ovelha Dolly. As ques- tões eram de âmbito religioso, político e social, mas todas giravam em torno do “se”, e consequentemente do desdobramento disso na sociedade e na questão ética no âmbito social. Logo, a tecnologia, encarada como uma heroína hodierna, passa a se apresentar como vilã e a ser protagonista dos questionamentos éticos. O debate se popularizou, visto que, nos anos de 1990, as Tecnologias da Informação e Comunicação adentraram aos lares de muitas famílias por meio dos Personal Computer, celulares e da própria internet. É a época em que o capitalismo transformou as relações de mercado, em que a máquina começa a substituir o homem, e o conhecimento torna-se mercadoria (LOJKINE, 1995). O capitalismo, mais do que depressa, se aproveitou da sociedade do conheci- mento para o avanço tecnológico, redesenhando as profissões. O impacto disso foram as mudanças de condições sociais, alteridade de sujeitos sociais e a ope- racionalidade das profissões (COLMÁN DUARTE, 2014). Ética, Tecnologia e Sociedade Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 187 A tecnologia no Serviço Social não é nosso foco, mas sim as mudanças de caráter ético-moral que elas trouxeram na sociedade, já que os limites de alguns fenômenos começam a ser debatidos e questionados. Logo, uma sociedade de iden- tidades sociais em conflito com a ética traz consequências diretas nesta profissão. Veja a seguir algumas questões tecnológicas que acabam acarretando dis- cussões no campo da ética em nossa sociedade: Uso de tecnologia na guerra: A guerra fomentou o avanço da tecnologia para melhorias bélicas e armamentistas. Então, uma questão importante é: até que ponto a tecnologia pode ser consideradabenéfica para a guerra? O uso de drones, por exemplo, que substituem soldados na caça e na espiona- gem, pode até minimizar o impacto de morte civil, mas ao mesmo tempo, um drone pode matar um civil sem o peso da consciência, ou seja, sem pro- jetar uma reflexão, que em teoria, um soldado humano poderia fazer. Desde quando uma guerra pode ter minimizantes? Drones são usados para envene- nar águas e lançar explosivos a distância, enquanto o soldado contemporâneo está em sua confortável sala, e ao mesmo tempo em guerra. Isso é ético? Vigilância em vídeo em tempo real: As câmeras estão em todos os lugares, como um sistema de vigilância e punição. Estamos sendo vigiados constante- mente, como se estivéssemos em um reality show. Em 1949, o escritor George Orwell escreve o romance 1984, em que há um personagem fictício chamado “grande irmão” ou Big Brother. Ele controla, fiscaliza e vigia uma sociedade, punindo todos que são contrários à ela. Hoje, aplicativos como StreetView, Google Earth e Google maps mos- tram regiões do mundo todo, e podem ser atualizadas em tempo real futuramente. Ou seja, até que ponto locais privados e públicos podem ser vigiados nesse nível? A segurança vale o fim de nossa privacidade? Figura 3 - Sorria, provavelmente, você está sendo filmado(a)! ÉTICA, TECNOLOGIA E MEIO AMBIENTE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IVU N I D A D E188 Deep Web: Chamada de “web profunda”, a deep web é um espaço virtual em que estão armazenados conteúdos não indexados nos sites de busca, ou seja, não encontrados. É justamente por isso que é chamada deep web, pois seu conteúdo fica escondido e só pode ser acessado com mecanismos específi- cos. O fato é que a deep web apresenta conteúdos que vão desde manual para construir bombas, comprar drogas e documentos falsificados, até sexo bizarro e todo tipo de ilegalidade. O acesso é restrito e perigoso, devido a vírus, e por ser constantemente hackeada por marginais e serviços de espionagem. Com o fácil acesso à internet, os conteúdos ilegais da deepweb se prolife- ram na surface web, ou seja, no espaço virtual que acessamos diariamente. Os limites da impressão 3D: As impressoras 3D já estão no mercado para o público comum e podem fazer quase tudo, desde objetos simples, demo- cratizando a manufatura de pequenos empresários, até próteses médicas, como uma perna ou parte da face. Contudo, não é só para atividades honrosas que o uso da tecnologia de impressão 3D avança: há tam- bém o uso dessas máquinas para a confecção de bombas e armas. A popularização dessas impres- soras, que podem ser adquiridas, em opções mais simples, até por menos de 500 dólares, tem levan- tado o questionamento da proliferação de armas para defesa pessoal, pondo em discussão a política de desarmamento, no caso de nosso país. Ademais, grupos terroristas já usam as impressoras 3D para o aumento de arsenal bélico. Bebês geneticamente modificados: Novas pesquisas médicas já indicam a possibilidade de que bebês possam ser selecionados geneticamente. Isso permite que os pais “arquitetem” seu filhos, escolhendo a cor de cabelo, cor dos olhos, altura e sexo. O maior perigo nisso está no fato de se hierarquizar uma etnia específica, criando uma moderna eugenia, em que os super-be- bês estarão no centro das discussões sobre racismo frente a outros povos. Ciberguerra: Na atualidade, o campo de batalha é no mundo virtual, em que os soldados são aqueles que dominam o conhecimento cibernético: o hacker. O poder de um hacker em atacar grupos civis, políticos e religiosos Figura 4 - Mandíbula feita em impressora 3D Redes Sociais Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 189 apenas com alguns cliques é impressionante. O uso deles em retaliação polí- tica e econômica, atacando empresas ou disseminando informações secretas, como vimos nas últimas eleições norte-americanas, entre Trump e Hillary, levanta algumas questões: no mundo virtual, o que é público e privado? Como punir um hacker? A pessoa leiga também utiliza-se do mundo vir- tual para atacar o Estado, através de grupos virtuais, páginas ilegais online e muito boato. Na guerra cibernética, as redes sociais são as maiores prota- gonistas, sendo um espaço em que a ética morreu há tempos. REDES SOCIAIS Chamamos redes sociais toda estrutura social composta de pessoas físicas ou jurídicas que compartilham valores e objetivos em comum. Dentre elas temos as redes sociais online, que possuem o diferencial de estarem no ciberespaço. As redes sociais possuem características próprias, como a horizontalidade, descentralização ÉTICA, TECNOLOGIA E MEIO AMBIENTE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IVU N I D A D E190 e autogeração, possibilitando a opção de se fazerem e se desfazerem rapidamente. As redes mais conhecidas são as que lidam com ideias de relacionamento, como Facebook, Whatsapp, Youtube, Instagram, Snapchat, Google+, entre outros. Há também redes sociais profissionais como o Linkedin, por exemplo. As redes sociais na internet podem ser definidas como serviços basea- dos na web, que permitem aos indivíduos: construírem um perfil pú- blico ou semipúblico dentro de um sistema limitado, articularem uma lista de outros usuários com quem eles compartilham uma conexão, verem e percorrerem sua própria lista de conexões e aquelas feitas por outros usuários dentro do sistema. Atualmente, a rede social facebook é a mais popular entre os internautas. [...] Já no Brasil, conforme afe- rição realizada no mês de março de 2013, o número de usuários que possuíam um perfil nessa ferramenta chegou aos 73 milhões, número elevado ao se considerar que, no país, existem 94 milhões de pessoas com acesso à internet, isto é, pessoas que dispõem de meios de aces- so domiciliar à web, ainda que eventualmente não tenham feito uso (MARTORELL, NASCIMENTO,GARRAFA, 2016, p. 14). A criação de perfil público ou semipúblico faz da rede social uma micro socie- dade, porém diferente da macro sociedade, visto que ainda não tem regras e, consequentemente, um código de ética próprio. Mesmo assim, essa microssociedade chamada “mundo virtual”, em ter- mos jurídicos, nos últimos anos começou a receber os primeiros “problemas” e, consequentemente, um debate sobre “regras” e normas “éticas de conduta” (MENDES, 2011, on-line)4. A relação entre quem você é (curte, compartilha e escreve) nas redes sociais, podem definir sua identidade como sujeito na vida “real”. Tanto, que nos dias atuais, mais de 70% das empresas já consultam Redes Sociais, antes e/ou durante o processo de contratação (MENDES, 2011, on-line)4. No Twitter, sabe-se a opinião pessoal do candidato sobre vários temas, no Facebook, suas crenças pessoais e estilo de vida e no Linkedin, toda sua trajetória profissional. O fato é que essa “checagem” também deve ser questionada no âmbito da ética, pois isso não seria invasão de privacidade? Por outro lado, uma pessoa que compartilha conteúdos de violência animal, racismo, homofobia e pensamentos machistas não é responsável por esta imagem que cria? (GOMES; CHERER; LÖBLER, 2012). Tanto os prós e contras dessa abordagem sugerem que a ética é observada, tanto direta, quanto indiretamente. Redes Sociais Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 191 O uso de redes sociais para fundamentar boatos é a forma de dar as costas à ética. O nome hoax, termo usado para designar os boatos dentro do mundo vir- tual, tem como conceito toda prática em disseminar notícias de teor duvidoso, com pouca ou nenhuma verdade, além de teor catastrófico e algumas vezes o uso de imagens apelativas. ■ Um hoax (boato virtual) tem sua comprovação difícil, com argumentos falaciosos e pessoais,considerando que, geralmente, esse tipo de especu- lação baseia-se no fato de seu criador tentar divulgar a sua crença pessoal e, para alcançar seus objetivos, utiliza-se de argumentos fantasiosos. Um hoax tem como objetivos principais disseminar uma crença pessoal e explorar as “fraquezas” humanas. ■ A princípio, um hoax pode não ter maiores consequências - se for men- tira, logo todo mundo esquece e tudo volta ao normal. Porém não é bem assim. Dependendo das circunstâncias, um boato na internet pode cau- sar vários problemas, razão pela qual este tipo de conteúdo deve ser combatido. A seguir veremos alguns tipos de transtornos que podem ser causados pelos hoaxes: ■ O boato pode ofender, denegrir, causar constrangimento ou comprome- ter a reputação de alguém; ■ Da mesma forma, o boato pode causar problemas a empresas e outras organizações que, além de reputação arranhada, poderão ter trabalho extra para desmentir ou amenizar a situação; ■ Quem divulga o hoax, mesmo não sendo o autor da mensagem, pode ter sua imagem prejudicada por espalhar informação inconsistente, o que é especialmente ruim no ambiente corporativo; ■ A mensagem pode transmitir orientações prejudiciais, como procedi- mentos incorretos em situações de emergência ou dicas de saúde sem comprovação científica; ■ Um hoax também pode induzir o usuário a baixar um arquivo perigoso (malware) ou convencê-lo a informar dados que, na verdade, poderão ser utilizados para ações maliciosas, como uma falsa petição on-line que pede informações confidenciais; ■ Mensagens do tipo podem sobrecarregar serviços de e-mail ou gerar incô- modos em redes sociais por causa da frequência com a qual são divulgadas; ■ Na condição de boato, o hoax pode causar comoção desnecessária, assim como gerar mobilização para situações irreais ou já superadas (ALECRIM, 2012, s/p.). ÉTICA, TECNOLOGIA E MEIO AMBIENTE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IVU N I D A D E192 Recentemente, o caso envolvendo redes sociais e os exames da ex-primeira-dama Marisa Letícia Lula da Silva deixou claro a questão ética. O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) abriu uma sindicância para punir a médica Gabriela Munhoz e o neurocirurgião Richam Faissal Ellakkis. Munhoz teria fotografado os resultados dos exames e postado em um grupo em uma rede social, enquanto Ellakkis teria, na mesma rede social, insultado a ex-primeira dama, violando o Código de Ética médico. Ambos os médicos foram demitidos (O Estado de S.Paulo, 2017, on-line)5. Semanas antes do falecimento da esposa do ex-presidente Lula, o médico Drauzio Varella foi a público desmentir o boato que ligava mamografia ao cân- cer de tireoide. O hoax causou até a necessidade do instituto Oncoguia publicar uma nota, afirmando que não há relação entre o exame e a doença. Varella foi usado como “fonte” no boato, mas nunca havia dito tal informação (COSTA, 2016, on-line)6. A foto do serralheiro Carlos Luiz Batista, de 39 anos, viralizou na inter- net e em grupos de redes sociais. Nas mensagens, a foto dele era identificada como o de um condutor de um carro preto, estuprador e sequestrador de crian- ças (EXTRA, 2016, on-line)7. Sem nenhuma fonte ou checagem, a notícia se espalhou e fez com que Batista não pudesse mais sair de casa. Assustado, teve que registrar queixa na Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) e aguardar o processo. O fato é que, mesmo apagando todas as men- sagens e punindo os criadores do boato, a imagem de Carlos Batista nunca mais será a mesma. Todavia, o caso de maior repercussão foi a da morte de Fabiane Maria de Jesus, linchada e morta após ser vítima de boatos, que diziam que ela sequestrava crianças para fazer magia negra. O caso de Fabiane foi emblemático, visto que primeiro criaram um hoax, de que estavam sequestrando crianças para rituais de magia negra no litoral, em Guarujá. Depois, junto das mensagens, coloca- ram aleatoriamente um retrato falado de uma mulher, dizendo que ela seria a sequestradora. Redes Sociais Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 193 As pessoas da região começaram a ficar preocupadas com a história, sendo que a polícia já havia alertado que nenhuma criança tinha sumido. Contudo, uma página no Facebook chamada “Guarujá Alerta” publicou o hoax, sem checar os fatos. Em um domingo, Fabiane sai de casa, passa no mercado e vai à Igreja com a Bíblia nas mãos. Oferece uma fruta à uma criança que estava sozinha. Neste momento, alguém grita: “olha, a mulher que sequestra para fazer ritu- ais”. Rapidamente, Fabiane começa a ser linchada, sem poder se defender. Em determinado momento, alguém diz que o livro que estava com Fabiane era um “livro de bruxaria”. Fabiane, que sempre foi uma boa mãe e cidadã, morre dois dias depois, sem ao menos saber o motivo (G1, 2014, on-line)8. Alguns agresso- res foram presos, mas ainda hoje, o processo sobre quem começou o boato e o compartilhou segue na justiça. Os casos mostram que, se a ética fosse um fenômeno presente nas redes sociais, nada disso teria acontecido. Muitas vezes, tais casos só fazem a tecnofo- bia crescer, criando uma ideia de que as redes sociais e a internet são perigosas, mas na verdade, ambas são apenas instrumentos. No link abaixo, você acompanha toda a história do caso de Fabiane, acusada injustamente, linchada e morta por causa de um boato em redes sociais. O caso ficou sendo emblemático e conhecido como um exemplo de caça às bruxas moderno, referenciando à caça às bruxas em Salém, nos Estados Unidos do século XVII, tendo como fundamento apenas boatos. Acesse: <http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/05/bcomo-internetb-contri- buiu-para-morte-brutal-de-fabiane.html>. Acesso em: 28 abr. 2017. Fonte: O autor. ÉTICA, TECNOLOGIA E MEIO AMBIENTE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IVU N I D A D E194 CYBERBULLYING O cyberbullying passou a ser conhecido devido ao advento das novas tecnolo- gias de informação e comunicação, sendo uma modalidade de agressão que se situa em um ciberespaço e está apoiada pelas ferramentas tecnológicas de inte- ração, conforme destacam Wendt e Lisboa (2014). O cyberbullying é, de modo geral, um bullying que acontece no ciberespaço, próprio da cibercultura. O termo ciberespaço foi utilizado pela primeira vez por Gibson em seu livro Neuromancer (1984). A partir desse livro, iniciaram-se os estudos sobre ciberespaço. O livro mostra que o ciberespaço não é um local físico ou um território delimitado, mas sim uma rede que mantêm as informa- ções mais acessíveis. O ciberespaço, na concepção de Rabaça e Barbosa (2001), é um universo virtual que contêm informações que circulam e são armazenadas em todos os computadores ligados em rede, um local onde as pessoas se comunicam por meio de computadores interligados à internet, ou seja, um lugar real, mas não físico. Já a cibercultura é a cultura que surgiu a partir do uso da rede de compu- tadores, isto é, se todo espaço produz cultura, o espaço virtual (ciberespaço) também. O autor Pierre Lévy, em seu livro Cibercultura (1999), expressa que ela se constrói sobre a indeterminação de um sentido global qualquer. O refe- rido autor ainda afirma que cibercultura é o “conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento, que se desen- volvem juntamente com o crescimento do ciberespaço”. Barwinski (2010, on-line)9 concorda com Lévy (1999), quanto cita que a “cibercultura é entendida como um conjunto de espaços, atitudes, rituais e cos- tumes que as pessoas desenvolvem quando entram em contato com a tecnologia”. Em síntese, a cibercultura é construída a partir do conhecimento comum e teórico, por meio de culturas aplicadas/inseridas na tecnologia existente no ciberespaço.Após conceituar os termos ciberespaço e cibercultura, torna-se mais fácil enten- der o que é cyberbullying, ou seja, violência ocorrida no ciberespaço. Esse ato violento não ocorre fisicamente, mas sim virtualmente. Segundo Maidel (2009, p. 14), “cyberbullying é um tema relativamente novo na literatura e envolve o uso das tecnologias digitais por crianças e adolescentes Cyberbullying Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 195 com o intuito de promover constrangimento moral ou psicológico.” Em termos gerais, o processo de cyberbullying pode ser compreendido como um tipo espe- cífico de bullying que ocorre por meio de instrumentos tecnológicos, sobretudo telefones, celulares e internet (SLONJE; SMITH, 2008 apud WENDT; LISBOA, 2014). É fundamental descrever o cenário em que o cyberbullying ocorre. O cyberbullying ocorre por meio de violações de senhas, roubo de dados pes- soais, piadas, utilização de informações pessoais, fotos em redes sociais, e-mails entre outros, sem autorização ou conhecimento, com o intuito de desacredi- tar sua imagem perante um grupo ou sociedade. Além do mais, o cyberbullying pode se manifestar de diversas maneiras, tais como injúria, difamação, ofensa, falsa identidade, calúnia, ameaça, racismo, constrangimento ilegal e incitação ao suicídio (MAIDEL, 2009). Semelhante a esse ponto de vista, a autora Shariff (2011) mostra que o cyber- bullying demonstra, de forma simples e reduzida, a questão dos impactos nos ambientes relacionados aos ambientes cibernéticos Figura 5 - Cyberbullying: bullying no mundo virtual ÉTICA, TECNOLOGIA E MEIO AMBIENTE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IVU N I D A D E196 De acordo com Hinduja e Patchin (2009 apud, WENDT; LISBOA, 2014) cyber- bullying é um processo no qual alguém executa, proativa e repetidamente, atitudes como piadas acerca de uma pessoa em contextos virtuais, ou quando um indi- víduo “assedia” alguém através de e-mails ou mensagens de texto, ou ainda por meio de postagem de tópicos sobre assuntos que a vítima não aprecia. A nova era, chamada era digital, trouxe novas soluções, contudo, também novos pro- blemas acerca de vários aspectos, inclusive sobre o comportamento humano. Neste sentido, o cyberbullying é mais frequente entre crianças e adolescentes, pois esse grupo de pessoas não possui condições claras de distinguir o que pode ser aproveitado e o que deve ser descartado no uso das novas tecnologias. Contudo, cresce o número de vítimas e agressores entre adultos. O site SaferNet Brasil foi criado para oferecer recursos a educadores que queiram promover o uso ético e consciente da Internet de forma transversal em suas atividades curriculares e extracurriculares. O melhor do site são as orientações sobre diversas situações de conflito entre internet e ética como o Sexting (uso da Internet para expressão da sexualidade na adolescência), o cyberbullying (bullying virtual), crimes virtuais etc. O site está disponível no link: <http://new.netica.org.br/educadores/orientacoes/orientacoes> Fonte: o autor. Ética, Meio-Ambiente E Sociedade Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 197 ÉTICA, MEIO-AMBIENTE E SOCIEDADE O que meio ambiente tem a ver com justiça social? Bem, devemos nos ater, pri- meiramente, a nossa Constituição, que diz: Todos têm direito ao Meio Ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impon- do-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preser- vá-lo para as presentes e futuras gerações. Art. 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 2002, p. 136). Como percebemos, o meio ambiente é um direito e um bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida. A relação entre meio ambiente, ética e sociedade se configura quando há domínio e exploração da natureza, tanto de modo positivo como negativo, associados ambos ao modo de produção vigente. Esse modelo determinará as relações econômicas e sociais entre os sujeitos. Rodrigues e Souza (2012,p. 2) nos dá um exemplo para ilustrar isso: Um bom exemplo seria um pescador inserido numa economia natural que teria na pesca a necessidade de suprir sua subsistência e outro pes- cador usando das mesmas formas de captura, com o objetivo de lucro monetário para a reprodução do capital. Logo, a partir dessa relação, o meio ambiente tem se transformado diante da ação do sistema econô- mico e social atual. O capitalismo, bem como o moderno sistema de crescimento econômico, que alimenta uma visão de curto prazo, acaba entrando em choque com questões éticas em relação ao meio-ambiente e, consequentemente, trazendo prejuí- zos sociais. Amaral e Cosac (2009) entendem que a degradação da natureza e a injustiça social andam de mãos dadas quando o assunto é o atual modelo de crescimento econômico. Não iremos no ater aos vários modelos de crescimento que o Brasil optou desde a década de trinta, período em que privilegiou a industrialização. Porém, sobre estes modelos, temos um questionamento: Foi necessário? Sim! Somente com esse sistema o país teria condições de empregabilidade em massa, produção de riqueza e uma melhor distribuição de renda. Todavia, desde a década de 30 do século XX até os anos 90 do mesmo século, nenhum projeto ou modelo de crescimento foi sustentável, isto é, privilegiando o meio ambiente. ÉTICA, TECNOLOGIA E MEIO AMBIENTE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IVU N I D A D E198 De lá para cá, a ilusão de que um país pode crescer sem afetar a natureza ou certos grupos sociais, só ratificou as palavras de Marx (1968, p. 71), que “[...] na lógica do capital, não há crescimento sem a exploração da natureza, do tra- balhador e também não há aumento do capital sem aumento da pobreza e da vulnerabilidade social.” Ou há crescimento econômico, ou há exploração da natureza. Em último caso, não há nada ou há apenas pobreza: “A natureza for- nece os meios de produção, mas o produto não pertence ao trabalhador e sim à propriedade privada, resultado do trabalho exteriorizado da relação externa do trabalhador com a natureza”(MOREIRA, 2013, p. 20). Da extração de minérios até o fomento à pecuária, qualquer atividade que vise o crescimento econômico de um país terá consequências diretas na natureza. Assim, somente a partir do início dos anos 2000, na gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um pacote denominado “Avança Brasil” e em 2007, na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foram criados, aliando, ao mesmo tempo, conceitos de sustentabilidade social e ambiental. O PAC, em específico, trouxe consigo os Projetos de Trabalho Técnico Social (PTTS), isto é, projeto que visa um “mapeamento” social, econômico, ambiental e cultural das regiões que serão afetadas pelo Programa de Crescimento. Os envol- vidos devem ser obrigatoriamente profissionais do Serviço Social, Psicologia e/ou Sociologia, com experiência comprovada na área de desenvolvimento comunitário. Em 5 novembro de 2015, ocorreu o pior acidente da mineração brasileira no município de Mariana, em Minas Gerais. Essa tragédia ambiental afetou diretamente as estruturas sociais da população, e é um exemplo claro de como a força do capital pode influenciar as forças da natureza. Leia as re- portagens completas em: <http://g1.globo.com/minas-gerais/desastre-am- biental-em-mariana/> Fonte: o autor. Ética, Meio-Ambiente E Sociedade Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 199 Os projetos visam consolidar e sustentar os resultados de transforma- çõesfísica, social e cultural executados pelo PAC nas áreas de interven- ção propostas, integrando diversos serviços e ações nas comunidades atendidas pelo projeto. O Projeto de Trabalho Técnico Social (PTTS), vem garantir condições para o exercício da participação comunitária, promover atividades para elevação da qualidade de vida das famílias, fomentar e valorizar as potencialidades dos grupos sociais atendidos, fortalecer vínculos familiares e comunitários, viabilizar a participação dos beneficiários nos processos de decisão, implantação e manutenção dos bens e serviços, a fim de adequá-los às necessidades e à realidade local e promover a gestão participativa, com vistas a garantir a susten- tabilidade do empreendimento. Na área ambiental os trabalhos socioe- ducativos nos entornos são feitos através de campanhas educativas, ofi- cinas de multiplicadores (coletivo educador) para recuperação da mata ciliar e das nascentes, palestras sobre resíduos sólidos, projeto para a redução do lixo, reciclagem e coleta seletiva (MOREIRA, 2013. p. 23). Nesse sentido, Moreira (2013, p. 24) reafirma o papel do Serviço Social com a ética no meio-ambiente, pois crê que o assistente Social tem como responsabilidade dentre outras, executar trabalhos no sentido de ampliar a responsabilidade ambiental e ecoló- gica da sociedade através de uma educação sustentável, ou seja, educa- ção ambiental junto à comunidade local. Figura 6 - Meio ambiente é responsabilidade social ÉTICA, TECNOLOGIA E MEIO AMBIENTE Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IVU N I D A D E200 Independente de ser um profissional do Serviço Social ou não, todo cidadão deve compreender que os problemas ambientais têm causas socioeconômicas, polí- ticas e culturais, ou seja, cabem discussões multidisciplinares. Por essa razão, é impossível atualmente falar de responsabilidade social sem tocar na temática ambiental. O assistente social, atualmente, tem a necessidade de compreender e se posicionar em relação à realidade socioambiental, objetivando junto com as comunidades a transformação por meio da observação, conscientização e ação. A ética ambiental vai de encontro ao paradigma do crescimento econômico atual, que visa ações de bem-estar a curto prazo, em detrimento de consequên- cias indeléveis a longo prazo, causadas pela natureza. [...] maior concentração de riqueza, aumento da pobreza, degradação do meio ambiente, utiliza forma predatória de recursos naturais, pre- mia a dimensão material da vida fortalecendo o individualismo e ali- mentando a visão de curto prazo. Cria, no limite, um cenário favorável para que cada cidadão não se preocupe com as futuras gerações (AMA- RAL; COSAC, 2009, p. 88-89). A preocupação com o outro (futuras gerações) é um pilar da responsabilidade social. É uma questão de princípio. É ético! Dessa forma, devemos compreen- der que o Serviço Social tem várias responsabilidades com a sociedade, inclusive em mantê-la harmônica com a natureza. CONSIDERAÇÕES FINAIS Finalizamos nossa unidade, que abordou temas como Tecnologia, Meio-Ambiente, Ética e Moral que, como vimos, são recorrentes e importantes nas relações sociais e consequentemente no trabalho do Assistente Social. Percebemos que estas quatro palavras fazem parte do nosso dia a dia, e o modo como lidamos com elas dizem muito sobre nós. Considerações Finais Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 201 De início, estudamos e conceituamos o que é Ética e Moral, dois elementos intrínsecos na sociedade que precisam ser conhecidos e discutidos dentro da profissão do Assistente Social. A partir disso, entendemos que a Ética é baseada na reflexão e em princípios, enquanto a Moral é latente e baseada em crenças, quase sempre, pessoais. Tal diferenciação nos possibilitou, dentro desta unidade, compreender o poder de influenciação que nossas crenças pessoais podem causar, bem como o papel e escolha do profissional de Serviço Social. Vimos exemplos de como a moral, principalmente religiosa, interfere negativamente no processo, na ação e no perfil do assistente, que a princípio deve ser regido apenas pela ética, guardando sua moral para casos pessoais. Em seguida, investigamos as relações entre tecnologia e ética, na perspec- tiva que, no mundo da internet, há uma outra sociedade, a virtual, que padece tanto quanto a sociedade real em relação a falta de ética. Estudamos especifica- mente essa relação nas redes sociais, por meio dos boatos e hoax. Ainda neste viés, continuamos a discutir sobre o fenômeno do cyberbullying, uma espécie de bullying que acontece no ciberespaço, espalhando assim, pela rede, a intole- rância e a violência. Por fim, discutimos e refletimos sobre o papel social que a relação entre ética e meio-ambiente propõem, ainda mais em uma sociedade do consumo. Vimos que trabalhar para a igualdade social, sem levar em conta a relação entre socie- dade e a natureza, é um sonho utópico. 202 1. Um motorista de ônibus dialogava com uma mulher sobre uma notícia que saíra no jornal naquela manhã: “Eu não acho que bandido deveria viver, se o ladrão se feriu no assalto, deveria ficar lá. Não há por que da polícia acionar uma am- bulância”. Essa ideia do homem está intimamente ligada a uma questão moral e ética. So- bre isso, leia as assertivas, e em seguida, assinale a alternativa correta: I. Achar que todo bandido deve morrer é um princípio ético do motorista do ônibus. II. Salvar a vida de alguém, independentemente de ser um criminoso ou não, é um princípio ético. III. Ficar indignado por um criminoso estar vivo é fruto de uma moral pessoal. IV. Se os policiais que atenderam o criminoso tivessem a mesma moral do moto- rista do ônibus, os criminosos não seriam salvos. Estão corretos: a. Somente II, III e IV; b. Somente I, II e IV; c. Somente II e IV; d. Somente I, II e III; e. Somente I. 2. Uma dona de casa recebeu o seguinte mensagem via rede social: ‘’ATENÇÃO, REPASSEM! Casais homossexuais estão adotando meninos para abusarem sexualmente de- les. Os casos estão crescendo em todos os Estados. Incentive seus amigos e fami- liares a não apoiarem a adoção de crianças por casais gays’’. A mensagem foi repassada. A mulher, por ser muito religiosa e ser contra a ado- ção por casais homoafetivos, não se deu o trabalho de checar as fontes e a vera- cidade da notícia, acabando por disseminar um hoax. Ao fazer isso, a mulher tomou uma atitude: a. Ética; b. Moral; c. Imoral; d. Anti-ética; e. Amoral. 203 3. O cyberbullying é um fenômeno que acontece em situações específicas. Assinale a alternativa correta a esse respeito: a. Acontecem em casa, a partir de um computador b. Acontece apenas na escola c. Acontece na escola , a partir de um computador d. Acontece em qualquer lugar, a partir de qualquer mídia digital com acesso à internet. e. Acontece em qualquer lugar, a partir de um computador. 4. Para Marx, o crescimento econômico só acontece mediante a exploração da Na- tureza. Isso, consequentemente, gera outra situação, que seria: a. O aumento da riqueza do país b. O aumento da riqueza dos trabalhadores c. O aumento da desigualdade social d. O aumento da preocupação com o meio-ambiente. e. A competitividade entre os governos. 5. Na sua opinião, você acredita que suas crenças pessoais/morais/religiosas po- dem afetar suas escolhas e decisões dentro da profissão de Assistente Social? Por quê? 204 A ÉTICA NA PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE * Rosângela Trajano Se todos os homens construíssem valo- res morais desde a infância não estaríamos sofrendo com o aquecimento global. A moral que define os bons costumes de uma sociedade é estudada pela ética. Uma vez que a ética estuda a moral, penso estar- mos diante de um estudo crítico e rigoroso quanto a preservação do meio ambiente. Os homens provocam as horríveis catás-