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krV T ^ 9 9 9 Copyright <D 1991 by Carlos Antônio Leite Brandão 1999 - 2.ed. Este livro ou parte dele nào pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor Brandão, Carlos Antônio Leite B817f A formação do homem moderno vista através da arquitetura/Carlos Antônio Leite Brandão - 2.ed. - Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. 240p., il. - (Coleção Humanitas) 1. Arquitetura - Filosofia 2. Arquitetura - História I. Título II. Série CDD: 720.1 _________________________________CPU : 72.03___________ Catalogação na publicação: Divisão de Planejamento e Divulgação da Biblioteca Universitária - UFMG ISBN: 85-7041-155-3 EDITORAÇÃO DE TEXTO Ana Maria de Moraes PROJETO GRÁFICO Glória Campos (Manga) FOTOS Carlos Antônio Leite Brandão PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS E REVISÃO DE TEXTO Rosa Maria Drumond Costa REVISÃO DE PROVAS André Luiz Gomes Flávia Silva Bianchi Maria Diana C. Santos Maria Stela Souza Reis Rúbia Flávia dos Santos PRODUÇÃO GRÁFICA E CAPA Marcelo Belico FORMATAÇÃO Alexandre Gregole Colucci Eduardo Ferreira EDITORA UFMG Av. Antônio Carlos, 6627 - Biblioteca Central - sala 405 Campus Pampulha - 31270-901 - Belo Horizonte/MG Tel.: (031) 499-4650 - Fax: (031) 499-4768 E-mail: Editora@bu.ufmg.br http://www.editoras.com/ufmg UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Reitor: Francisco César de Sã Barreto Vice-Reitora: Ana Lúcia Almeida Gazzola CONSELHO EDITORIAL TITULARES Carlos Antônio Leite Brandão, Heitor Capuzzo Filho, Heloisa Maria Murgel Starling, Luiz Otávio Fagundes Amaral, Manoel Otávio da Costa Rocha, Maria Helena Damasceno e Silva Megale, Romeu Cardoso Guimarães, Silvana Maria Leal Cóser, Wander Melo Miranda (Presidente) SUPLENTES Antônio Luiz Pinho Ribeiro, Cristiano Machado Gontijo, Leonardo Barci Castriota, Maria das Graças Santa Bárbara, Newton Bignotto de Souza, Reinaldo Martiniano Marques mailto:Editora@bu.ufmg.br http://www.editoras.com/ufmg s M R O LISTA DE FIGURAS 11 NOTA DO AUTOR 13 PREFÁCIO 15 INTRODUÇÃO 21 CAPÍTULO I O GÓTICO 33 Do Pantheon Romano à Catedral Gótica 33 Arquitetura e Significado: O Espaço Gótico 41 Da Arquitetura ao Mundo Gótico 48 A Arquitetura Gótica e a Filosofia Escolástica 4 8 A Divina Comédia e a Arché Medieval 5 6 CAPÍTULO II O RENASCIMENTO 67 A Arché 6 7 Arquitetura e Significado: O Espaço Renascentista 75 A Cidade 7 5 O Edifício 7 9 Da Arquitetura ao Mundo Renascentista 94 CAPÍTULO III O MANEIRISMO 103 A Arché 103 Arquitetura e Significado: O Espaço Maneirista 112 A Cidade 112 O Edifício 115 Da Arquitetura ao Mundo Maneirista 123 CAPÍTULO IV O BARROCO 131 A Arché e o Espírito de Sistema 131 A Arché 1 3 1 O Espírito de Sistema 136 Arquitetura e Significado: o Espaço no Século XVII 143 A Cidade e o Espírito de Sistema 143 Roma e a Piazza San Pietro 144 Paris e o Palácio de Versalhes 157 Borromini e a Arché Barroca 16 3 Bernini e Borromini 16 3 San Cario alie Quattro Fontane 168 Sant’Ivo alia Sapienza 180 A Obra de Guarino Guarini 1 8 4 Da Arquitetura ao Mundo Barroco 188 A Arquitetura Barroca e o Homem Moderno 1 8 8 A Arquitetura Barroca e a Ciência Moderna 1 9 2 A Arquitetura Barroca e a Filosofia Moderna 2 0 0 A Arquitetura Barroca e o Racionalismo Cartesiano 2 0 0 O Barroco em Pascal e Leibniz 2 1 2 CAPÍTULO V A PERDA DA ARCHÉ NO DESENVOLVIMENTO DA MODERNIDADE 220 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 2 2 9 L I S T A D E F I G U R A S 1 - PIRANESI, Giovanni Battista. Pantheon. Interior. (Gravura do século XVII) 35 2 - Santa Sabina. Planta 36 3 - Campo Santo. Pisa 38 4 - St. Stephen. Viena 42 5 - Notre-Dame. Paris. Vista da cabeceira 44 6 - Catedral. Colônia 45 7 - GIOTTO. Exéquias de São Francisco 47 8 - Notre-Dame. Paris. Fachada 53 9 - Catedral Milão 6 6 10 - BRUNELLESCHI, F. Velha Sacristia de São Lourenço. Corte transversal 68 11 - SAVORGNAN e SCAMOZZI. Palma Nova. Planta 76 12 - BRAMANTE. San Pietro in Montorio. Roma 82 13 - Palazzo Pitti. Florença 8 8 14 - BRUNELLESCHI, F. Ospedale degli Innocenti. Florença 89 15 - ALBERTI. Palazzo Rucellai. Florença 9 0 16 - ALBERTI. Santa Maria Novella. Florença 91 17 - BRUNELLESCHI, F. Cúpula de Santa Maria dei Fiori 94 18 - BRUNELLESCHI, F. Capela P azzi . Florença 102 19 - BRAMANTE e MICHELANGELO. Plantas projetadas para a Basílica de São Pedro. Vaticano 104 20 - MICHELANGELO e BERNINI. Vista da cúpula e da Praça de São Pedro 105 21 - FONTANA, Domenico. Plano de Sisto V para Roma 114 22 - PALLADIO. San Giorgio Magiore. Veneza 115 23 - AMMANATI. Palazzo Pitti. Florença. Interior 117 24 - VASARI. Uffizi. Florença 120 25 - MICHELANGELO. P iazza dei Campidoglio. Roma 121 26 - MICHELANGELO. Biblioteca Laurenziana. Florença 122 27 - DÜRER, Albrecht. Melancolia J 124 28 - DELLA PORTA e MADERNO. Trinità dei Motiti e Piazza di Spagna. Roma 142 29 - Piazza dei Popolo. Roma 146 30 - BERNINI e BORROMINI. Piazza Navona. Roma 147 31 - BERNINI. Piazza San Pietro. Vaticano 149 32 - BERNINI. Colunata da Praça de São Pedro. Roma 153 33 - BERNINI. Vista aérea da Praça de São Pedro. Vaticano 155 34 - BERNINI. SanVAndrea al Quirinale. Roma 156 35 - VERSALHES. Planta dos jardins 158 36 - LE NÔTRE, Andre. Jardim de Versalhes. Versalhes 159 37 - Von HILDEBRANT, Lucas. Belvedere Superior. Viena 162 38 - BORROMINI. San Cario alie Quattro Fontane. Roma 165 39 - BORROMINI. SanfAndrea delle Fratte. Roma. Vista posterior 172 40 - BORROMINI. SanVlvo alia Sapienza. Roma 181 41 - GUARINI, Guarino. Palácio Carignano. Turim 185 42 - GUARINI, Guarino. San Lorenzo. Interior 187 43 - F1SCHER VON ERLACH, John Bernhard. Igreja de São Carlos. Viena 189 44 - EIFFEL. Torre Eiffel. Paris 228 7 n o t a d o a u t o r p Lançado em 1991 e rapidamente esgotado, este livro recebe agora a revisão que já há algum tempo lhe era devida, graças à oportunidade oferecida pela Editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Quanto ao aspecto formal, as mudanças dedicaram-se a buscar uma redação mais limpa e orgânica, a organizar melhor notas e referências e a renovar as ilustrações, além de corrigir alguns erros verificados na primeira edição. Quanto ao conteúdo, condensou-se e atualizou-se a análise de alguns edifícios, introduziram-se novas consi derações, atenuou-se a distinção entre os diversos períodos estilísticos e a contraposição entre classicismo e anticlas- sicismo. Em grande parte, isso se deve a recentes estudos realizados sobre o quattrocento italiano que apontam a evidência de um espírito anti-humanista já no interior do Renascimento (sobre tal estudo, preparamos, para breve, a publicação de Quid tum? O Combate da Arte em Leon Battista Alberti, também pela Editora UFMG). Em virtude do seu caráter marcadamente acadêmico e interdisciplinar, preferiu-se manter grande parte das notas e detalhar as remissões biblio gráficas — tendo em vista, sobretudo, aqueles que se iniciam nessas ligações perigosas entre Arte, Arquitetura e Filosofia, interstício em que as intuições costumam ser muitas, mas o rigor, pouco. Nesta oportunidade, cumpre renovar velhos compromissos e consagrar alguns novos. São muitos os que nos ajudaram a produzir este livro e seria impossível agradecer a todos, mencionando-os aqui. Alguns, contudo, vejo-os em cada página acompanhando-me desde a sua origem, tal como aqueles a quem este livro é dedicado. Outros passaram a habitá-lo durante o processo de sua primeira edição e, agora, em sua segunda edição pela Editora UFMG. Sylvio Podestà e Gaby de Aragão arriscaram, em 1991, a abrir a Editora AP Cultural com este livro e estarão sempre comigo nessa trajetória. Relembro-os junto com Newton Bignotto, Maria Lúcia Malard, Soninha e Moacyr, os quais me incentivaram a percorrer esta ponte infindável entre a Arquitetura, a Arte, a História e a Filosofia. Pela ines timável ajuda na produção da dissertação de Mestrado, na primeira edição, e nesta que agora se empreende, firmaram-se como colaboradores indispensáveis Messias Fonseca, Yeda Rodrigues e Jomar Bragança. Ricardo Ostos e RaquelSchmal, monitores do Departamenvo de Análise Crítica e Histórica da Arquitetura da UFMG, foram inestimáveis colaboradores na última fase do trabalho, bem como o Laboratório Gráfico para o Ensino de Arquitetura (LAGEAR) da Escola de Arquitetura da UFMG. Além de competentes e dedicados, a ternura e a paciência de Ricardo e Raquel serviram para cultivar momentos de delicadeza, mesmo quando os estudos se tornavam áridos. Assim contribuíram para manter o saber sempre fecundado pelo sabor. A estes, e aos meus amigos de vida acadêmica, quero deixar registrado aqui meu mais sincero agradecimento, minha homenagem e a alegria de vê-los companheiros nesse percurso que agora se reinicia. Este livro, como não podia deixar de ser, é parte de todos nós. 14 p R E F Á C í O “A filosofia é reflexão sobre uma experiência não-filosófica. [...] A experiência não-filosófica é suficientemente próxima da filosofia para que nessa encontre audiência, lhe inspire inquietude e termine por transformá-la como filosofia.” Serve essa nota de De Waelhens como epígrafe geral para esta obra de Carlos Antônio Leite Brandão que, para efeitos de sua dissertação de Mestrado, selecionou entre um temário peri gosamente amplo e complexo o campo filosófico afeto ao evolver histórico da arquitetura, que em seus passos itine rantes na modernidade ocidental — do Gótico ao Barroco — descreveu a_própria_forinaçãa._es.piritual e ideológica do chamado Homem Moderno. A tese transmuta-se neste livro, onde, com alguma modificação menor, conservam-se tanto o enfoque noético da filosofia, como a ampla recorrência histórica coligida, por quem sabe e soube sempre o sabor sapiencial da arte da arquitetura para além dos seus valimentos pragmáticos. A consentida ambigüidade de termos como Modernidade, Idade Moderna, Homem Moderno, Arte Moderna, Pós-moderno permite-nos não restar apenas no campo da mera cronologia, ora fixada no período que segue imediatamente ao medievo, ora apontando para o complexo cultural mais contemporâ neo (fim do século XIX, começo do século XX e a atualidade). Indo além da cro n o lo g ia , Carlos Brandão adentra-se pelo campo dos juízos valorativos, uns positivos, outros negativos, acerca do que se conceitua como Modernidade, Pós-Modernidade etc. Há em tudo e sempre um senso de historicidade balizando intrinsecamente a reflexão filosófica. E isso por uma questão de princípio. Atento àquilo que Manfredo Tafuri designou o eclipse da h is tó r ia , na sua crítica ao funcionalismo, Carlos Brandão conscientiza-se da “tarefa fundamental do atual crítico da arquitetura: Recuperar o papel e o significado das obras junto com as concepções e ideologias^originárias às quais se ligam.”1 Daí continuar afirmando: Para nós, voltar à história nào significa abrir um reservatório de valores e formas codificadas nem um outro instrumento de projetação qualquer. Significa, ao contrário, contestar o pre sente — tanto a tradição do novo do moderno, como o novo tradicional do pós-moderno — procurando-se sempre reen contrar o sentido da arquitetura e os valores traduzidos pelo ato de projetação e construção dos edifícios.2 Veja que já na epígrafe de seu livro há um cotejo do futuro com o passado, que de alguma maneira vem caucionar o sen tido do presente. A preferência se inclina para as exigências do pretérito — tomado sempre como valor redivivo ou redivível ou resgatável: “Entre todas as exigências da alma humana, nenhuma é mais vital que a do passado. [...] E nós não possuímos outra vida, outro sangue, além dos herdados do passado e dirigidos, assimilados, recriados por nós.”3 Carlos A. L. Brandão segue aqueles que recriaram, parcial mente que seja, a noética filosófica, quando debruçando-se sobre o evolver temporal da arquitetura (fato ou experimento não-filosófico em si mesmo), toma como ponto de referência axial de sua reflexão o próprio sentido da arché que inspira a tectônica inventiva que o homem construiu, vem construindo. Não tanto pela estabilidade eleática de um princípio único que teimaria em se repetir na diversidade temporal, mas, antes, pela capacidade ou virtualidade inventiva que o princípio animador da arte arquitetônica possui inscrito em si mesmo, ao passar do Romano ao Bizantino, ao Românico, ao Gótico, ao Renascentista, ao Maneirista, ao Barroco, ao Rococó, seqüência histórica que pontua aquilo que, no cenário do 1 Conferir a Introdução deste livro. 2 Conferir a Introdução deste livro. 3 O autor cita a epígrafe da p.7 desta obra, optando por uma inversão na ordem das frases. % r i 16 Ocidente, Jacques Maritain, na esteira de E. Mâle, L. Venturi, A. Malraux, G. Bazin, designou o advento do eu — expressão reinterpretada por Brandão, quando enfatiza a emergência da subjetividade criadora nos meridianos dos tempos que construíram a modernidade. “Tirai o andaime, o saibro, a caliça, a pedra, a massa e a argamassa, fica a forma e a arquitetura da forma...”, teria dito alhures e com outras palavras o neoplatônico Plotino. Seja, a forma. Problema fundamental para a arte, para a arte da arqui tetura e para a filosofia da arte. E para a filosofia da arquitetura. A questão da forma é recolocada pela Gestaltpsychologie. E, assim, incitada, segue a filosofia a pensar o estatuto ontoló- gico daquilo que nem é uma coisa, nem se reduz a uma idéia. Sempre a não-filosofia despertanto a argúcia meditativa do filósofo. O filósofo Carlos Brandão busca as intuições pri mevas de sua meditação na vivência concreta daquilo que se oculta sob a vetusta roupagem da expressão conceituai designada situs. Pouco importam as alfaias que o termo recebia dentro da teoria dos predicamentos de Aristóteles e na de seus comentadores escolásticos. Na verdade, Brandão (e nós com ele) recebemos a noção de situs, já estabilizada semanticamente para significar algo atinente não ao espaço tout court, mas àquilo que designamos o espaço humano, o espaço humanizado, os sítios de nosso solo humano, lugar de nosso habitar, residência, habitação. Contrastando com o mero ubi (lugar-onde) as categorias aristotélicas referem sin gelamente o situs como accidens disponenspartes corporis in loco. Ou, então, ordo partium in loco. No mesmo onde , no mesmo lugar, as partes ordenam-se diferentemente, como quem, estando na mesma casa, visita cômodos diversos. Há, pois, no mesmo ubi, o sedere, o stare, o inflecti, o decumbere\ em última análise, as milhentas possibilidades de nosso ser-aí, de nosso D asein , de nosso estar, estar-no-mundo, já surpre endidas nas irradiações gestuais das modestas posturas de nosso corpo. O estar (assim ou de outro modo) transfigura-se e se redime de sua pobre materialidade, quando o centro de atribuição se personaliza no estar próprio do ser humano in genere, e se pessoaliza na situação humana de cada pessoa individual, única, inédita, que não apenas aceita seu sítio, 17 mas o determina e o arquiteta, antes de engendrá-lo e edificá-lo. É a pessoa que faz o seu estar, o seu bem-estar, o seu mal- estar... Carlos Brandão dará especial atenção ao sentido do habitar , que, por outra via mais transcendente, redime o gesto de se autodispor num sítio, concretizando a ordopartium in loco numa dimensão onde tanto o lugar, como o corpo que o freqüenta, o estar, e o gesto de se dispor para um determinado estar são recalibrados à luz de uma concepção do próprio ser. Disso falaremos adiante. Notemos antes sua estratégia de profundidade. Ao se re portar diretamente ao conceito arché, na busca dos primeiros princípios que respeitam à compreensão da arquitetura, sua pesquisa é solidária com a que busca na palavra ars (e de pois Arte), a modulação ética e política de sua antecedente etimológica arete. Essa modulação que dá conta do sentido social da arte e, mais imediatamente, da arte da arquitetura, Carlos Brandão foi buscá-la direto dos harmônicos do radical arché. Para tanto, reinterpreta — dentro da melhor tradição científicadas ciências humanas, e seguindo as interferências dessas últimas sobre o âmbito filosófico em suas vertentes contemporâneas — reinterpreta a noção de situs, efetuando um audaz translado de sua significação espacial para o nível temporal ou, mais propriamente, para o nível histórico. Trata-se agora da situação histórica do homem, crédito inalie nável de sua existencialidade, mais do que crédito estacio nário de sua essencialidade. Essa situação não é tão-somente um dado irrecusável — aquela determinatio ad u n u m que atinge inelutavelmente as coisas sempre postas, dispostas, repostas, colocadas, deslocadas, transpostas, transferidas, manipuladas. A situação humana é a sua soberba gestual autodeterminante de seu estar. Na ordem individual, quando edifica um pouco de seu ter\ de suas posses, de seu habere , arquitetando e edificando o seu habitat, tecendo a rede de seu hábito ou a trama de seus hábitos. Mas, principalmente, quando a pó lis interfere na ãgora , monumentalizando e historializando seu ser cultural e sua presença civilizatória. Consegue assim o homem eternizar-se, perenizando no ins tante sua experiência histórica, sua solução inédita para con sertar as inadiáveis relações que deve assumir com o mundo, consigo mesmo, com os demais homens e com os deuses. 18 Carlos Brandão, sem desconhecer a solução do classicismo greco-romano, nos leva a investigar outro período, intermediá rio entre o contemporâneo e o da cidade antiga. Por isso, já na introdução, nos adverte: O que pretendem os aqui é, justamente, analisar a arquitetura com o docum ento da lenta formação deste homem moderno, desde o final do período medieval até o século XVIII, reapren dendo-a com o imagem da relação hom em -Deus-m undo esp e cífica de cada período, do Gótico ao Barroco .4 É para nós significativo que ao falar de arte, Palavra , Pa lavra Essencial, a que funda o ser — e não a que se banaliza e se publicaliza — Heidegger use a expressão casa, habitação, m oradia : a palavra é a morada do ser. A arquitetura como arte — para além de seu sentido prag mático — é também Palavra que funda o ser, que lhe oferece o recato, a segurança, a morada onde confirmamos nossas certezas. Carlos Brandão cita, pois, Heidegger, ao se referir à crise do sentido do habitar , entendendo por habitar o funda mento do ser do homem, como o sentimento da proteção e segurança existencial frente aos deuses, ao universo e a si mesmo: “E já não aprendemos a habitação como se fosse o ser (sein) do homem: e menos ainda pensamos na habitação como traço fundamental da condição humana. [...] É preciso, antes de tudo, aprender a habitar. Talvez o objetivo de nosso estudo esteja nesse aprendizado.”5 Menos por este livro, menos pela sua atividade docente e mais por seu labor reflexivo, que uma década e meia de con vivência profissional me autoriza a testemunhar, Carlos A. L. Brandão tem dado provas de que seu aprendizado tem efeti vamente se consumado. Arquiteto e filósofo, tem já provado soberania, autárkeia , mattrise de soi même na área de sua especialização. Essa sua força intelectual, seu título de nobreza, seu habere, seu modus se habendi. Que não é outro o significado da venerada palavra habitus . Tão diferente da rotina. E do habitude . 4 Conferir mais uma vez a Introdução. 5 Idem. 19 ] Como filósofo, prova estar autorizado a repensar a arquitetura, recolocando-a no seu contexto histórico — seu verdadeiro habitat. E, mais do que nunca, situando — junto e através do seu labor meditativo — a obra humana do arqui teto ao nível do processo de des-ocultação ou d esv ela m en to do Ser, a-létheia, epifania, esplendor, luzir e verdade. Quando os arquitetos (que também são gente) encontram o sentido do Ser, as casas tornam-se habitáveis... porque confirmam as nossas certezas... Moacyr Laterza 20 i n t r o d u ç ã o A arquitetura funcionalista que dominou o século XX trouxe consigo dois axiomas*que distorceram as pretensões dos seus fundadores: por um lado, o repertório tecnológico-construtivo e as necessidades sociais reduzidas à sua pragmaticidade tornaram-se os condicionantes fundamentais dos projetos e recolocaram a arquitetura como serviço mais do que como arte; por outro, promoveu-se a novidade absoluta como o objetivo maior de suas criações vanguardistas e_ rompeu-se com toda e qualquer referência à história da arquitetura e aos estilos passados. Contudo, por mais que tenha feito, esse funcionalismo começou a ser criticado por todos os lados, a partir da década de sessenta, seja pelo seu caráter abstrato e intelectual que não atende às exigências de identidade cultural do habitante com seu habitat, seja pela desconfiança em re lação à tecnologia e aos avanços construtivos, como capazes de resolverem os problemas sociais e o bem-estar da humani dade. Proclamava-se, então, o esgotamento de sua linguagem formal, considerada excessivamente racional, fria e objetiva. Sem avaliar-lhes o mérito, o movimento pós-moderno, que se consolida ao final dos anos setenta, assume tais críticas e propõe uma retomada da tradição, do passado e dos estilos históricos da arquitetura. Essa atitude historicista pós-modernista, no entanto, é falsa. Sob sua máscara esconde-se o atrelamento da arquitetura a uma sociedade violentamente consumista, que substitui a sociedade industrial moderna. O resultado é o ressurgimento de uma mentalidade arquitetônica vitoriana, responsável por um Meo-ecletismo assentado em formas desprovidas de significado e que, em momento algum, promove a identidade cultural, cuja falta seria a razão da crise do funcionalismo, ou a compreensão histórica tão proclamada pelos pós-modernistas. Mas o maior perigo se assenta na redução da história a instrumento de uma prática revivalista que esvazia a arqui tetura de sentido. Tornada mero objeto de consumo, ela não se define nem como serviço à sociedade, nem como expressão , artística.. Nesse ponto, a crítica histórica viu-se reduzida a uma justificação teórica da muleta estilística a que somos obrigados a recorrer em nosso tempo. E, ao invés de retomar-se a história, tende-se a substituí-la. Por caminhos diferentes, o eclipse da história desencadeado pelo funcionalisüKx-se prolonga no pós-moderno.1 Portanto, se a retomada da crítica histórica é necessária, a maneira pela qual ela foi compreen dida é falha, e perigosa o suficiente, para exigir dos teóricos e historiadores uma leitura do passado da arquitetura que seja capaz de confirmar, a cada passo, a totalidade caracterís tica do objeto construído — x) mentido das formas e o signifi cado do edifício e da cidade frente ao contexto histórice-e- existencial da humanidade. Esta é a tarefa fundamental do atual crítico da arquitetura: recuperar o papel e significado das obras junto com as concepções e ideologias originárias às quais se ligam. Voltar à história não significa, pois, abrir um reservatório de valores e formas codificadas, nem um outro instrumento de projetação qualquer. Significa, ao contrário, contestar o presente — tanto a tradição do novo do moderno, como o novo tradicional do pós-moderno — procurando-se sempre reencontrar o sentido da arquitetura e os valores produzidos pelo ato de projetar e construir edifícios.2 Na verdade, só atingiremos o âmago" da crise disciplinar que hoje vivemos se compreendermos que o eclipse da história, promovido por aquelas duas atitudes, corresponde ao eclipse do sentido da arquitetura. Com muita argúcia e no apogeu do funcionalismo, Heidegger percebia que a verdadeira crise 1T he d a n g e r is t h e t h e o r e t i c a l j u s t i f i c a t i o n o f t h e s t y l i s t i c c r u t c h . Mohology-Nagy, Sybil. The canon of arquitectural history. In: The history, th eo ry a n d c r it ic ism o f a rq u itec tu re , p a p e r s f r o m the 1964, p.40, citado por TAFURI. Teorias e h istória da a rq u i te tu ra , p.34. Como introdução às atitudesmodernas e pós-modernas, ver também PORTOGHESI. D epois d a a r q u i te tu ra m o d ern a \ SUBIRATS. D a v a n g u a r d a ao p ó s -m o d e r n o e, principalmente, TAFURI. Teorias e h istória d a a rq u i te tu ra , destacando o primeiro capítulo, A arquitetura moderna e o eclipse da história, p.31-106. 2 Sobre as tarefas da atual crítica da arquitetura frente à história, conferir TAFURI. Teorias e h is tó ria d a a r q u i te tu r a , p .275-286. da arquitetura não era unia..crise de ctlojamerilgs^ maq uina crise do sen tido do h a b ita r — entendendo o h a b ita r como •w o fundamento do ser do homem e como o sentimento de proteção e segurança existencial frente aos deuses, ao universo e a si mesmo: “Já não aprendemos a habitação como se fosse o ser (sein) do homem; e menos ainda pensamos a habitação como traço fundamental da condição humana. É preciso, antes de tudo, aprender a habitar.”3 Talvez o objetivo de nosso estudo esteja nesse aprendizado. Tal crise manifes ta-se antes do século XX ç, reflete um estágio ulterior das concepções do homem moderno a respeito de si mesmo, de Deus e do mundo. Portanto, ela ultrapassa o campo específico da arquitetura e remete-nos a questões científicas e filosóficas no seio das quais o arquiteto desenvolve sua prática. O que pretendemos aqui é, justamente, analisar a arquitetura como documento da lenta formação deste homem moderno, desde o final do período medieval até o século XVIII, reaprendendo-a como imagem da relação homem-Deus-mundo, específica de cada período, do Gótico ao Barroco. Tanto na arquitetura quanto na filosofia, o surgimento do homem moderno é um marco que altera a produção artística e teórica. Representa a descoberta e a afirmação da subjeti vidade criadora que se consolida no cogito} ergo sum de Descartes e na arte barroca. A história da arquitetura divide-se em dois momentos: um primeiro, onde os edifícios mais significativos imitam o Universo ( mímesis)\ e um segundo, onde o que importa é a expressão de uma progressiva subje tividade, cuja autonomia e infinitude caracterizam o homem do século XVII que luta para se comunicar e se revelar ao mundo, através do trabalho executado na matéria pelo arqui teto ( metteur en oeuvré). Pesquisar o eclipse do sentido da arquitetura requer, antes de tudo, encontrar, justamente, em que ponto a passagem de um momento a outro contribuiu para seu aparecimento. Superar a atual crise, portanto, exige com preender as razões e condições do nascimento do homem moderno, a fim de encontrarmos o sentido original da própria perda de sentido que agora experimentamos. 3 Conferir HEIDEGGER. Construir; habitar, pensar, p.345 et seq. / 23 Cremos que uma releitura daquele período da arquitetura ocidental — do final século XII ao início do XVIII — resgata o aprendizado requerido ao crítico atual e confere ao nosso estudo um inseparável caráter didático. Esse caráter é dupla mente dimensionado. Por um lado, ele se dirige aos historia- dores, críticos de arte e, especialmente, aos arquitetos, procurando remetê-los aos significados primários dos quais se origina o objeto arquitetônico e aproximá-los do campo científico e filosófico. Carece de sentido, como já afirmamos, a análise do edifício que se abstrai das concepções existenciais que conferem totalidade e legitimidade ao produto do trabalho do arquiteto. Este documenta, nas suas obras, os problemas mais fundamentais colocados pela humanidade em um deter minado momento histórico e é desta relação, entre ele e a sociedade, que depende o sucesso e o valor artístico do edifício. Por outro lado — na medida em que, com o mesmo interesse, dirigimo-nos a pessoas de outras áreas, especialmente a filo sófica — preocupamo-nos em orientar e educar os olhos para uma fruição do objeto arquitetônico que lhe faça justiça e alcance a plenitude das significações contidas nos recursos formais, funcionais e construtivos adotados pelos arquitetos. Causa-nos preocupação, e isso se deve muito à pragmaticidade desenvolvida pelos próprios funcionalistas, uma progressiva dessensibilização ou dificuldade de entendimento da arqui tetura enquanto manifestação artística. Retomando-a enquanto tal, introduziremos os recursos específicos e as profundas pos sibilidades significativas da sua linguagem, das quais, infeliz mente, afastamo-nos cada vez mais. Daí a estratégia da nossa análise. Em primeiro lugar, re colheremos edifícios que comportam um elevado grau de monumentalidade frente à história. Contudo convém não con fundirmos monumentalidade com grandiosidade, pomposi- dade ou algo parecido. Entendemos o m onum ento como aquele edifício que incorpora um determinado valor, ideologia ou mensagem e a transmite pelos séculos afora. Por isso, eles permanecem no tempo. Tal escolha, portanto, se define pela capacidade do edifício revelar-nos os valores de uma época histórica determinada; capacidade esta que ajuda a definir o seu valor artístico-expressivo. Assim, por exemplo, tanto 4 * t 24 a suntuosidade da Basílica de São Pedro como a rusticidade de Santa Sabina, ambas em Roma, carregam enorme valor monumental.4 Passemos ao segundo ponto. Nosso objetivo aqui é visualizar as concepções mais significativas em que se dá a formação do homem moderno através da arquitetura. Se o conseguirmos, acreditamos afirmá-la como meio fundamental por intermédio do qual o homem confere significado à sua existência. Por isso, o caminho da investigação que adotamos se dedica, primei ramente, à análise do edifício para, em seguida, e através dele, reconhecermos as concepções históricas das quais é expressão. Assim, evitamos um duplo erro: cair em um histo- ricismo no qual a arquitetura é tomada como mero reflexo da época, sem reconhecer o papel ativo por ela desempenhado de afirmar ou contrariar as ditas concepções e evitar um incon tável número de aspectos históricos irrelevantes que fariam desviar a atenção da potencialidade expressiva do objeto artís tico. Não queremos provar que a arte é produto do meio, mas que é co-autora dele, e interage com ele dialeticamente. Chegamos, então, ao terceiro ponto de nossa estratégia. Desejamos uma descrição clara e relevante da totalidade a rq u ite tô n ica e procuramos a intenção que a ela preside. Consideramo-la como um pequeno m undo , onde se concre tizam valores sociais os quais procuramos identificar, sem perder de vista a especificidade da linguagem artística. Três momentos são básicos para essa análise. Primeiramente, devemos empreender uma análise sintática do monumento, estudando a construção lógica interna do seu sistema de sím bolos, formas, técnicas e materiais. Embora esse momento não baste para revelar-nos a verdade da obra, ele é impres cindível para se alcançar a atitude adequada ao recolhimento da experiência transmitida pela obra, e para fazermos justiça ao objeto estudado. Sem ele, não nos embasaremos o suficiente 4 Segundo Argan, el m onum ento es un edificio que conserva su valor y lo transm ite más alia de su própria grandeza histórica, [...] una fo rm a arquitec- tônica que transm itia u n contenido ideológico, u n contenido que se supone conserva u n a vallidez m ás alia de su término, [...] es la obra de arte que atraviesa los siglos conservando y transm itiendo su próprio valor ideológico. ARGAN. El concepto dei espacio arquitectónico desde el Barroco a nuestros dias, p. 55 et seq. 25 para a posterior análise, nem alcançaremos o caráter didático pretendido. Em um segundo momento, a análise pragm ática estuda a relação existente entre o edifício e aqueles que o habitam, procurando encontrar as modificações, reações, atitudes e sentimentos despertados no fruidor, com vistas à transmissão de mensagens e valores significativos de um determinado período. Enfim, é necessário o último e mais interessante momento: a análise semântica, em que estuda remos a relação entre aquele sistemade símbolos e a reali dade histórica com a qual ele interage, entre o signo e o designado. Nesse momento, a arquitetura leva-nos a uma m eta-arquitetura , a algo que a ultrapassa e nos põe em con tato com os valores da época e as significações primárias que lhe conferem a excelência de Arte.5 Mas será legítima essa passagem? Não estaríamos aí tornando a arquitetura excessivamente ampla e dela exigindo mais do que nos pode dar? Esticando-a no leito de Procusto de nossa teoria? Não. Na medida em que a analisamos como Arte, é justamente este o seu dever. Em primeiro lugar, pela própria essência do objeto artístico. Enquanto a ciência se baseia em símbolos descritivos, a arte procura símbolos expressivos que nos proporcionam conhecim ento, mas também expressam valores. A cúpula do Pantheon, por exemplo, sugere um antropocentrismo; a de Santa Sofia, uma admiração mística; a ogiva gótica, um sentimento de transcen dência; a cúpula de Michelangelo, uma atitude introspectiva. A obra de arte é a concretização de um objeto intermediário, resultado do encontro de valores — filosóficos, científicos, religiosos, éticos e estéticos — que por ela são conservados, comunicados e tornados comuns. Mas, o que é um valor? “É o próprio de um bem, de um objeto que responde a algumas de nossas tendências e satisfaz algumas de nossas necessidades.”6 Por isso a arte comunica-nos os valores fundamentais do mo mento histórico por ela concretizado. Cada detalhe arquitetônico de um templo grego, por exemplo, se faz morada da divindade, 5 Essa estratégia inspira-se na análise estrutural proposta por Norberg-Schulz e H. Sedlmayr. Conferir NORBERG-SCHULZ. Intenciones en arquitectura , p.36-70. 6 DUFRENNE. Estética e filosofia, p.23-31; NORBERG-SCHULZ. Intenciones en arquitectura , p.45-49. 26 aproxima-nos da vida e do m undo grego, manifesta-nos a violência dos ventos, a agitação do mar, o brilho do céu, a luminosidade da pedra e as sombras da noite. Como diz Heidegger, a obra de arte “realiza a abertura de um mundo, mantendo-o permanentemente presente”.7 A obra, portanto, apresenta-nos o m u n d o do qual é devedora, e nenhuma investigação histórica sobre ela pode prescindir desta remissão semântica ao m undo que a originou, sob pena de tornar-se incompleta e ingênua. Se não bastasse isso, a própria definição de arquitetura exige que ultrapassemos o puro objeto, e reconheçamos os valores e o m undo que o edifício torna visível. A origem etimológica da palavra arquitetura , entre os gregos, decorre da necessidade de distinguir algumas obras providas de significado existencial maior do que outras, que apresentavam soluções meramente técnicas e pragmáticas. Assim, precedendo ao termo tektonicos (carpinteiro, fabricante, ação de construir, construção), acrescentou-se o radical arché (origem, começo, princípio, autoridade). Nessa origem da arquitetura, se a entendemos como Heidegger, encontra-se o ser essencial da própria arte, o qual a distingue da simples construção. Se gundo Vernant, o termo arché aparece no vocabulário de Anaximandro traduzindo a soberaneidade, a excelência de um princípio original e comum a nortear e ordenar a sociedade grega. A arché é o centro da esfera social daquele mundo e deve ser traduzida nos edifícios, apresentando os deuses, a história e a conformação ética do povo grego. Por essa razão, distinta da simples construção, a arquitetura reenvia-nos às origens, aos princípios fundamentais e às leis originais e éticas que atravessam uma sociedade. Ela produz a visibilidade de um mundo e de sua ordenação e, por meio da arché nela contida, nos dá acesso ao campo originário de onde emerge o edifício com a excelência e a legitimidade de objeto 7 HEIDEGGER. A origem da obra de arte, p.54. Conferir também a apresentação de Maria José R. Campos e o primeiro capítulo, A coisa e a obra, da tradução desse livro, In: HEIDEGGER. Revista Kriterion, p.185-210. Ver ainda PANOFSKY. Significado nas artes visuais , p .22-26, 33-36; ECO. Obra aberta, p.54, 55. Nessa obra Umberto Eco afirma: “A arte, mais do que conhecer o mundo, produz complementos do mundo, formas autônomas que se acrescentam às existentes [...] e que podem perfeitamente serem encaradas senão como substituto do conhecimento científico, como metáfora epistemológica 27 a rq u ite tô n ic o . Portanto um triplo suplemento encontramos nele. Em primeiro lugar, ele reenvia ao começo, a uma ins tância originária que o distingue (suplemento de origem). Além disso, essa origem é ordenadora e, assim sendo, o edifício é harmonioso trazendo em si uma unidade e uma lei exemplar de organização (suplemento de ordenação). Em último lugar, ele é digno de ser teorizável, ou seja, de permitir uma inves tigação que alcança o m undo que lhe dá origem ( suplemento de fenom enalidade ou visibilidade). Por sua própria definição, a arqui-tetura exige-nos esse estudo histórico e teórico, no qual se pode demonstrar como ela nos põe em contato com as origens arquetípicas, as representações e as concepções mais fundamentais daqueles que a construíram. Assim fazendo, a arquitetura participa da história das significações existen ciais, torna-se signo do homem e permite-nos atingir suas concepções mais profundas. Quais seriam estas? As concepções sobre si mesmo, sobre a natureza que o cerca e sobre o absoluto, divindade ou origem da própria existência e do universo. Por isso, depois de atravessarmos as análises sin táticas, pragmáticas e semânticas dos edifícios, aportaremos nos campos científicos, religiosos e filosóficos dos diversos momentos da formação do homem moderno, procurando encontrar neles os fundamentos da arquitetura. Eis, então, a nossa chave de leitura: reconhecermos na arché da arquite tura a arché da época, do m un do , do modo pelo qual os “homens habitaram a terra em um determinado momento”.8 Nesse ponto, evidencia-se a razão do caráter filosófico deste estudo. Quando situamos a arquitetura como arte, reconhecemos o suplemento de fenomenalidade ou visibili dade nela produzido. Isso significa que a análise estética considera as formas construtivas tais como estas se dão na sensibilidade do fruidor, que, com elas, estabelece uma relação familiar, imediata, construída no reino da pura visibilidade. Daí resulta a comoção do nosso olhar. Sendo bem formado, esse olhar é capaz de levar-nos aos limites do visível, presentifi- cando-nos o sentido da totalidade histórico-cultural da obra de arte: é o próprio desejo de ver o caminho que nos conduz 8 Sobre o significado, a origem e a etimologia da arquitetura, conferir PAYOT. Lepbilosophe et Varchitecte\ sur quelques déterminations philosophiques de 1’idée d’architecture, p.7-11 e, principalmente, p .53-65. 28 à filosofia. Através dela, resgatamos a espessura do m undo original e o espetáculo do qual os homens, a obra e os artistas participavam sem, talvez mesmo, perceber. Aquela análise estética que, inicialmente, tomava o edifício em sua fenomenalidade — como algo que se dá a ver, que se mani festa — ganha assim uma dimensão filosófica que nos leva a buscar na manifestação da obra a manifestação do m undo no qual ela se insere. O esforço filosófico se ancora, portanto, numa aprendizagem da sensibilidade que aponta para o leitor, através da análise do monumento, a possibilidade de leituras sensíveis mais aprofundadas que o fazem perceber no espaço construído o espaço vivido. Os próprios conceitos operatórios da arquitetura vêem-se alargados no horizonte dessa abordagem. Quando encontrarmos, por exemplo, o centro, o caminho, a /wze as tensões nos edifícios, reconheceremos não apenas elementos espaciais, mas estruturas existenciais que o arquiteto cuidou de assumir e presentificar. Isso estabelece um jogo de sentido rico e crítico por meio do qual a arquitetura é reconduzida ao espaço maior da história. Mas, simultaneamente, a história se reconhece na concre- tude da obra arquitetônicae, também aqui, é importante o olhar filosófico que a resgata e que, infelizmente, parece faltar no revivalismo presente em parte da produção arquitetônica pós-moderna. Esse olhar afasta-nos da “historicidade letal, oficiosa, pomposa e idolatrada dos museus”, como diz Merleau-Ponty, em A Linguagem Indireta e as Vozes do Silêncio, e nos introduz em uma história da arquitetura mais viva e mais real, que expõe a pulsação da vida do artista sob sua época. Através da obra, o olhar filosófico me instala no tempo, inspeciona o m undo e acolhe o sentido original do edifício. Por meio dele, a história da arquitetura deixa de ser um ídolo exterior, ou um arquivo de formas, para ser um âmbito de interrogações e espantos, um centro de reflexões que jamais se esclarece conclusivamente, mas que insiste em invocar a verdade da arquitetura — da qual parecemos nos afastar definitivamente. Enfim, só esse olhar crítico e vigilante pode impedir que as informações históricas se esgotem no passado. É ele o responsável pelo desejo incessante de conferir às reflexões deste livro um sentido de abertura para a conside ração da arquitetura presente e futura. 29 Tais propósitos justificam a bibliografia adotada. Três autores foram fundamentais. Primeiramente, Daniel Payot e seu livro Le Philosophe et UArchitecte, pelo reconhecimento da arché filosófica dos períodos mais importantes da história da arquitetura, inspiração deste trabalho. A seguir, Christian Norberg-Schulz, autor da análise estrutural mais interessante, a nosso ver, dos períodos da história da arquitetura ocidental. Em seu M eaning in Western Architecture, principalmente, encontramos tanto uma boa análise das obras quanto uma ancoragem, ainda que rapidamente feita, no m un do que lhes deu origem. Contudo, talvez pela amplidão temporal a que o autor se propõe abarcar, não saboreamos a substância profunda dos períodos investigados e a maneira pelas quais eles se inter-relacionam. Compreendendo o estudo da for mação do homem moderno neste período que vai do Gótico ao Barroco, acreditamos precisar melhor tais relações. Tam bém a leitura histórica da arquitetura feita por Giulio Cario Argan tornou-se importante caminho de acesso às origens da arquitetura no período estudado e, embora bem mais restrito do que o mundo revelado por Norberg-Schulz, o seu cotejamento entre os propósitos dos vários estilos e dos vários arquitetos é precioso, principalmente o desenvolvido em El Concepto dei Espacio Arquitetônico desde el Barroco a Nuestros Dias. Reconhecido o território básico da investigação arquitetônica, cumpre destacar os autores que nos guiaram na investigação científica e filosófica da passagem do homem e do universo gótico ao homem e ao universo moderno. Entre esses, Ernst Cassirer (Indivíduo y Cosmos en la Filosofia dei Renacimiento), Edwin Burtt (Los Fundamentos Metafísicos de la Ciência Moderna) e Robert Lenoble ( Origines de la Pensée Scientifique Moderné) forneceram-nos os pontos fundamentais da mudança ocorrida. Delimitada, assim, a geografia a ser per corrida, partimos para a consulta aos estudos mais interessantes relativos à arte e à arquitetura de cada época, e para os textos mais representativos das concepções do homem em cada uma delas. Do primeiro estudo, destacamos Worringer, Panofsky, Wittkower, Pappaioannou, Venturi, Hauser, Maritain, Giedion e Zevi, além dos já citados Argan e Norberg-Schulz. Do segundo destacamos, dentre outras utilizadas, as obras de Dante, Shakespeare, Cervantes, Nicolau de Cusa, Bruno, Bacon, Galileu, Maquiavel, Montaigne, Pascal, Leibniz, Newton, Hume e, principalmente, Descartes. Uma de nossas grandes perguntas no começo deste trabalho era em que ponto as duas principais manifestações do homem seiscentista, aparentemente tão opostas, o racionalismo cartesiano e a arquitetura barroca, se entrelaçavam. Para resolvê-la, alguns comentadores de Descartes, como Gueroult, Laport, Lefrève e Lebrun foram-nos de grande ajuda. A esses e aos demais — impossível serem todos comentados aqui — espero que nosso estudo faça justiça, assim como a preciosidade dos seus textos. Bem sabemos quão difícil seria acrescentar-lhes algo novo ou pretender substituí-los. Contudo, dar-nos-emos por satisfeitos se, reunindo-os, sensibilizarmos filósofos, arquitetos, estudantes, historiadores, críticos, professores de arte e outros interessados em uma dimensão existencial da arquitetura enquanto signo do homem, merecendo interesse e reflexão muito mais ricos e profundos do que aqueles que, até agora, têm-lhe sido dedicados. Nào se trata apenas de estudar o seu passado, mas recuperar o seu sentido, recuperá-la enquanto arqui-tetura , salvando-a, enfim. E o que significa salvá-la? Deixá-la voltar ao seu próprio ser de habitação , de estadia dos mortais na terra, de lugar no qual reside a nossa condição humana. Tratemo-la com cuidado, portanto. 31 C A P í T U L O 0 GÓTICO De Deus, a obra humana é neta, é descendente. Se volveres a lembrança ao Gênese, entenderãs que o homem retira da natureza o seu sustento e a sua felicidade. Dante Alighieri A Divina Comédia, Inferno, XI. DO PANTHEON ROMANO À CATEDRAL GÓTICA Desde a arte clássica, como exposto por Vitrúvio em De Architectura Libri Decem (século I a.C.), até o início da modernidade, a arquitetura afirma estabelecer uma relação de reciprocidade com o universo. Q edifírin se asseme lha .ao cosmos, e a sua construção à criação do universo. Dessa ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------- — 1 -------------------------------------------------- — --------------------- . . . ___________________ _______________ ____________________________________ _ . 5 1 - ......................... ... . . . --- --------------------------------------------------~ ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ --- — — - ---------------------- -------------------------------------------------------------- ---------------------- -------- forma, um envia ao outro e, através da arquitetura, micro e macrocosmos se comunicam. O universo serve coma modelo original para o edifício e este, reciprocamente, apresenta-nos o universo: O templo representa o mundo; mas o mundo, inversamente, é construído com o um templo. Aqui, o reenvio é recíproco [...] e o edifício com o a rq u i- te tu ra , isto é, ordem simétrica, reenvia ao mundo com o m odelo , isto é, harmonia, proporcionalidade universal. 1 Esse período da história da arquitetura, como afirma Payot, é dominado pela idéia de uma mímesis arquitetural, em que ^o edifício adquire sua excelência, sua arché, ao enviar-nos à 1 PAYOT. Lephilosophe et Varchitecte\ sur quelques déterminations philoso- phiques de l’idée d’architecture, p.68. (grifos nossos) 1 origem, ao mundo, ao Criador, ao modelo cósmico, à natureza: “alguma coisa de divino — que confere à arquitetura superio ridade — comanda, então, várias tentativas para produzir a verdadeira arquitetura: imitar o edifício construído segundo as prescrições de Deus”.2 O Pantheon (Roma, 118-128) é um belo exemplo disso ao impressionar o espectador pelo caráter cósmico do firmamento que sua cúpula representa. O espaço circular, centralizado no eixo vertical, definido sob a grande abertura no zênite da cúpula, domina o Pantheon. Nele, a sagrada dimensão da vertical se introduz na organi zação interna do espaço, unifica a ordem cósmica e a ordem humana e faz com que o homem “se experimente como um deus inspirado, explorador e conquistador, como um produtor de história de acordo com o plano divino”.3 Este homem é quase divino, confiantemente estabelecido no seu poder, na sua autoridade e no império que domina e explora. Tal centralidade reflete, portanto, além do universo, a confiança que o homem.deposita em si mesmo e que o leva afigurar um pseudocosmos, em suas construções, no centro do qual ele se imagina situado. Com significado semelhante, vere mos esse esquema espacial centralizado repetir-se nas plantas renascentistas. Contudo, junto com a decadência do império romano, dilui-se essa divinização do homem e, como conseqüência, os edifícios medievais deixam cie criar o pseudocosmos antropocêntrico do Pantheon. Neles, uma atmosfera diáfana e mística penetra no espaço e desperta no espectador um sen timento de sobrenaturalidacle e transcendência. A mesma idéia de mímesis permanece presidindo os edifícios. Porém, não são mais os céus que chegam à terra, mas o homem que deve elevar-se a Deus e à graça divina^) E a igreja é o edifício encarregado dessa ascensão, que nos põe em contato com verdades mais elevadas do que as encontradas no plano ter reno. É dentro da igreja que o Deus cristão — que nào pode 2 PAYOT. Lephilosophe et Tarchitecte; sur quelques déterminations philosophiques de 1’idée d’architecture, p.74. 3 NORBERG-SCHULZ. G enius loci\ towards a phenom enology o f architecture, p .51,52. Sobre o Pantheon, conferir, nesta m esm a obra, p .50-57; ZEVI. S a b er ver la a r q u i te c tu r a , p .6 l ; NORBERG-SCHULZ. In te n c io n e s en a r q u i te c tu r a , p .80. 34 ser compreendido como abstração de fenômenos naturais, históricos ou humanos, mas só pela fé — se revela. É ela a portadora da mensagem religiosa, a única que providencia segurança existencial e espiritual para o homem do meclievo: é preciso atingirmos o amor de Cristo para compreendermos o significado da vida. Figura 1 - PIRANESI, Giovanni Battista. Pantheon. Interior (Gravura do século XVII) Espacialmente, essa comunhão deve ocorrer no altar, onde reside o centro de ascensão. Mas, para atingi-lo, deveremos percorrer todo o caminho longitudinal da nave, símbolo do cam inho da salvação que devemos trilhar em nossas vidas. Depois de comungar com Cristo, o homem retorna ao mundo e contribui para transformá-lo numa verdadeira civitas dei. A basílica cristã primitiva é a responsável por introduzir essa longitudinalidade cristã que substitui a centralidade romana.' Santa Sabina (Roma, 422-432) é um ótimo exemplo disto. A articulação horizontal é nitidamente dominante e o movimento 35 K em profundidade é ritmado pelas arcadas da nave, pela cobertura e pela sucessão dos vitrais superiores. A trajetória do observador é o tema interior da construção, definindo o espaço à medida que nele se caminhar/O Pantheon era estático e centralizado. Santa Sabina, ao contrário, é dinâmica, tensionada entre o altar e a nave, banhada por uma luz tão uniforme que, atravessando as aberturas como se fosse a própria mensagem divina, ilumina a parte de cima do edifício e reserva uma maior escuridão para as naves laterais inferiores. Ao penetrar, a luz trabalha a superfície, desmaterializando-a, o que resulta num espaço mais espiritualizado./ Figura 2 - Santa Sabina. Planta Tanto o movimento horizontal como essa espiritualização são mais evidentes em San Apolinar Nuevo (Ravena, 493-526), onde o ritmo faz-se mais acelerado pelo excesso de referências horizontais e a anulação das verticais e onde se utiliza uma cromaticidacle bem maior no revestimento interior. Mesmo nas plantas centrais do Bizantino, as linhas verticais são ofuscadas e o espaço se dilata até fluir velozmente e alcançar as perspectivas mais tensas. A famosa Santa Sofia (Constantinopla, terminada em 537) é um bom exemplo disso, com suas arcadas internas a tensionar e longitudinalizar a planta centrada. Como no Pantheon, sua cúpula coroa a igreja e mimetiza o universo. 4 Sobre a Basílica de Santa Sabina, ver NORBERG-SCHULZ. Meaning in western architecture, p.66; ZEVI. Saber ver la arquitectura, p.62-69. 36 # Em Santa Sofia, porém, a luz é diáfana e a atmosfera mística inunda o edifício, desmaterializa o caráter tectônico dos muros e transporta o fiel para um mundo onde não valem as leis do reino físico e profano, mas as do sobrenatural e transcen dente Reino de Deus,-Não há aquele eixo vertical e centrali zador do Pantheon, definido pela abertura zenital. Em Santa Sofia, as janelas cruzam, sob a cúpula, fachos de luz que representam a luz divina emanada da abóbada celestial, difun dindo-se sobre o mundo dos homens. Esse efeito é reforçado pelos pilares e paredes que perdem sua aparência de suporte e são desmaterializados pelo revestimento de mármore e mosaicos. Um poeta da corte de Justiniano I (483-565), que mandara construir a igreja, expressa o sentimento evocado por Santa Sofia*. Q uando o prim eiro raio de luz, com seus braços rosados, expulsou as trevas saltando de arco em arco, todos os príncipes e o público cantaram cânticos de prece e louvor; lhes parecia que os pod erosos arcos tivessem sido edificados no céu. E acima de tudo se eleva pelo ar incomensurável o grande elmo que, curvando-se com o os céus radiantes, abraça a igreja. [...] A torrente dourada de raios resplandecentes cai com o chuva e i golpeia os olhos dos hom ens de modo que mal se consegue olhar. [...] Assim, através dos espaços da grande igreja irrom pem raios de luz que expulsam as nuvens de preocupação, preenchendo o espírito com esperança, e mostrando o cam i nho para o Deus vivo. [...] Quem quer que ponha o pé dentro deste lugar sagrado gostaria de nele perm anecer para sempre, e seus olhos se encheriam de lágrimas de júbilo .5̂ v Na igreja, portanto, o fiel sente-se transportado para um mundo transcendental, onde se põe em contato com a luz de Deus, quase a cegar-lhe. Para isso, será importante a apre sentação do cam inho da salvação , ao fim do qual faz-se a comunhão, favorecendo a interpretação longitudinal das basílicas cristãs primitivas, modelo que será adotado de preferência aos esquemas mais centralizados da arquitetura 3 Versos de Paul, the Silentiary, citado por NORBERG-SCHULZ. M e a n in g in w estern arch itec ture , p.69, 70. Sobre Santa Sofia, conferir, ainda nesta mesma obra, p.66-70. Sobre as arquiteturas cristã primitiva e bizantina, conferir NORBERG-SCHULZ. M e a n in g in w estern a rch ite c tu re , p.58-74; ZEVI. S a b er v e r ia a rq u ite c tu ra , p.62-69. v 37 bizantina. Desta, permanecerá o tratamento interior cias super fícies e o caráter transcendente e espiritual de seu espaço. Observe-se que, tanto no Paleocristão como no Bizantino, o edifício se volta para dentro de si próprio. Seja pela tensão entre a porta e o altar, seja pela tensão entre o alto e o baixo, em ambos os estilos o mundo divino e o mundo humano se colocam à distância, quase como rompidos e inacessíveis. A partir da arquitetura românica uma nova relação começa a se estabelecer: a igreja se abre para seu entorno e torna visível a mensagem religiosa desenvolvida no seu interior. Com isso, ela torna-se força ambiental ativa que invade o mundano e representa a tentativa de fazer a mensagem divina penetrar neste mundo e interagir com e!e. Também a métrica românica e o ritmo longitudinal dos seus edifícios procuram uma comunicação maior com o movimento do homem, inclusive, exteriormente. A Catedral de Pisa (1063-1118) e a Catedral de Santiago da Compostela (1075-1125) exemplificam essa maior comunicabilidade do edifício. . Figura 3 - Campo Santo. Pisa 38 ► Junto com a longitudinalidade, as torres sineiras encarregam-se de verticalizar a construção. Norberg-Schulz percebe aí um duplo propósito de transcendência e proteção. Transcendência, entendida como o desejo de se alcançar as verdades e graça divinas, e proteção , simbolizando o papel de segurança exis tencial que a Igreja desempenhava para o homem medieval. Ao verem esses elementos verticais, todos os homens sob ela abrigados percebiam a protetora existência de Deus. y Durante os séculos X e XI, igrejas e monastérios converteram-se no centro espacial, político e econômico europeu, ao incor porarem as verdades divinas quedeviam reger o mundo humano. Essas verdades eram espirituais e deviam ser repre sentadas na matéria construtiva dos edifícios/Assim a arquite tura românica aproxim a-se do Gótico ao representar a im m a te r ia lia na materialia construtiva, com mais desenvol tura que o Bizantino. Para isso, foi de grande importância no românico o desenvolvimento de uma linguagem tectônica mais baseada na ossatura estrutural do que nas massas, como se vê no interior de Santiago da Compostela ou na Abadia de Cluny (1157), onde os vazios dominam os cheios. Contudo, na aparência geral do edifício românico, ainda eram por demais evidentes o peso das pedras, a natureza dos elementos construtivos e as leis físicas, como a da gravidade.6 Chega-se, então, à arquitetura gótica, concretização de todo o anseio espiritual medieval, e a representação mais bem ela borada das concepções que o homem do período desenvol vera a respeito de Deus, do mundo e de si mesmo. Também nela, a arquitetura terá um escopo religioso e servirá como g u ia para a transcendência do plano inferior ao plano superior. Seu ideal de beleza é o “esplendor do verbo encarnado”, inseparável do bem e da verdade.7 Mais do que qualquer período anterior, será o século XIII imponente pela amplitude e pela harmonia, o século clássico da Idade Média. E a arqui tetura gótica, construtivamente mais desenvolvida* e ousada que a bizantina ou românica, regerá a sinfonia das artes e cada arte em particular (pintura, escultura etc.), adequando a 6 Sobre a arquitetura românica e seus significados, conferir NORBERG-SCHULZ. M eaning in western architecture, p.75-91; ZEVI. Saber ver la arquitectura , p.72-75; CONTI. Como reconocer el arte rom ânico , p.6-39. 7 Conferir NUNES. Revista Barroco, p.24. 39 forma à idéia, a técnica à expressão.8 A arquitetura românica, trabalhando com abóbadas de pedra, caracteriza-se pelo aspectò pesado, em que a essência material constitui a base tanto da construção como da expressão estética: “o estilo ro m â n ico é jam estilo de massasVafirma Worringer. Procu rando “espiritualizar a matéria e dela extraindo as energias vitais__ativas”, as nervuras e ogivas do estilo gótico expressaram, de maneira mais intensa, o “afã'medieval de transcendência”.9 O processo de desmaterialização da arquitetura conclui o esforço abstrato de toda arte medieval, ao erigir, a partir do final do século XII, uma “construção toda nervo, sem carne supérflua, sem massa inútil e que correspondia às necessidades da alma gótica”.10 Como diz Worringer, “a catedral gótica é a representação mais enérgica e ampla da sensibilidade medieval”. Nela, a mística e a escolástica, as duas potências vitais da Idade Média, e que costumam aparecer em inconciliável oposição, permanecem inti mamente unidas e profundamente compenetradas. Se o espaço interior é todo mística, o exterior do edifício é todo escolástica, Une-os o mesmo afã de transcendência, o qual se serve de distintos meios expressivos, ora da sensação orgânica, ora do mecanismo abstrato. A mística do espaço interior é uma escolástica vertida para o íntimo, desviada no sentido da sensação orgânica^ Dir-se-ia que o inconcebível movimento rítmico do espaço se petri ficou do lado externo. As forças ascensionais, que no interior nào chegaram à quietude, parecem precipitar-se para fora, a fim de, livres de toda estreiteza e limitação, irem perder-se no infinito. Em renovados alentos, abraçam-se ao núcleo do espaço interior para superá-lo e, acima dele, disparar em direção ao infinito.11 Esse perfeito recobrimento entre a arquitetura gótica e o espírito do século XIII, referenciado na escolástica, exemplifica a unidade da concepção filosófico-religiosa do mundo medieval. s COHEN, SCHNEIDER. Laform ation d u g én ie moderne, p.2. Ver, nessa mes ma obra, a Introduction générale, p .1-12. 9 “Esta forma é, para dizê-lo assim, um breve esquema linear do afã medieval de transcendência e, portanto, do afã gótico de expressão. WORRINGER. La esencia dei estilo gótico, p .116. 10 WORRINGER. La esencia dei estilo gótico, p .119- Conferir, nesta mesma obra, p.83-96, p .115-124. 11 WORRINGER. La esencia dei estilo gótico, p .125-128. 9 ARQUITETURA E SIGNIFICADO: O ESPAÇO GÓTICO A catedral gótica recolhe as potencialidades espaciais dos períodos precedentes do medievo e as desenvolve plena e organicamente no seu espaço. Dizemos ser ela a clássica expressão da Idade Média porque nela se reunem a longitu- dinalidade do Cristão Primitivo, a espiritualidade, misticidade I e transcendência bizantinas e o estruturalismo, verticalidade e comunicabilidade urbana despontados no Românico. Além disso, como veremos, a catedral gótica realiza a idéia de uma perfeita proporcionalidade entre o nível inferior (mundo sublu- nar) e o nível superior da criação (mundo supralunar), base do período medieval e da arché de suas construções. Em sua pedagogia, ela torna visíveis as palavras da Sagrada Escritura e serve como modelo educativo para o homem conquistar um hábito mental escolástico, ajudando-o a visualizar as verdades mais elevadas, bem como afirma e transmite o papel central da igreja durante a Idade Média, fonte de todas as verdades e vértice regulador de toda a pirâmide hierárquica da sociedade e valores do período. Vimos que, apesar de sua aparência robusta, a igreja româ- nica desempenha um papel urbano mais significativo e conver te-se em centro das pequenas cidades que se desenvolvem a partir do século XI. No século XIII, essas cidades, tendo como base o comércio, já se desenvolveram o suficiente para conquis tar relevante autonomia, atividade e estrutura. Dentro de seus muros, uma vida comunal ultrapassa os limites dos mosteiros e passa a compreender uma unidade social mais ampla. A organização urbana ideal da época colocava a catedral no centro. Dela irradiavam-se dois eixos perpendiculares (Norte- Sul e Leste-Oeste), lembrando a cruz, que dividiam a cidade em quatro quadrantes. Ordenando-a desta forma, acreditáva-se que a cidade repetia a mesma ordenação cósmica concebida pela imaginação medieval, cujo universo era estruturado em quatro pontos cardeais e concebia Roma e Jerusalém, símbolo e berço da cristandade, como seu duplo centro. A função primor dial da catedral é, portanto, estruturar e organizar o espaço, tornando visível o papel central da igreja como instituição que deve governar a sociedade. Mais do que no Românico, 41 Rafael Realce ela acentuará aquela verticalidade que desperta no espectador um duplo sentimento de transcendência e proteção. No Româ nico, essa verticalidade era articulada isoladamente nas torres. No Gótico, toda a igreja, dos arcos botantes às ogivas, se eleva: a verticalidade e a longitudinalidade se articulam aos olhos do espectador. As grandes catedrais da Inglaterra, como a de Westminster (1245-1269), chegam a igualar a verticalidade à longitudinalidade dos seus edifícios. Em St. Stephen, em Viena (1258-1304), vemos, inclusive, como uma decoração superposta acentua a verticalizaçào do já inclinadíssimo telhado. De tais centros verticais irradiam-se a mensagem e a verdade definitiva da religião. o Figura 4 - St. Stephen. Viena 42 O papel estruturador da igreja é reforçado pela valorização visual do esqueleto do edifício. Toda a impressão de massa é retirada das paredes, as quais são transformadas em estruturas diáfanas e transparentes onde dominam o vazio e a luz: é a desmaterialização arquitetônica medieval a reduzir a material ia construída a linhas abstratas que dominam a nossa visão. A despeito da pedra de que é feita, a catedral gótica dá a sensação de ser o espírito representado pela luz e pelo vazio, o que verdadeiramente sustém o edifício. Externamente, a primeira conseqüência visual é que o interior transparece no exterior, e a mensagem da igreja se irradia para toda a comunidade, ofere cendo segurança e foco existencial. Como diz Norberg-Schulz: O exterior dacatedral perde qualquer traço de fecham ento m aciço com o resultado do desejo de transmitir o espirituali zado esp aço interior para todo o h ab ita t. O significado da igreja não perm anece mais encerrado, mas torna-se parte do a m b i e n t e co tid ian o .12 Uma vista da cabeceira de Notre-Dame de Paris (1163-1250) é um impressionante exemplo disto. Outra vista da elegantíssima Notre-Dame de Chartres (1194-1220), também nos revela como a catedral domina a cidade e se torna parte integrante dela, ao ser construída em estreito contato com as casas. Adentremos a igreja. Também no seu interior o edifício parece-nos descarnado e nos deixa à vista somente o esque leto e os vitrais, as linhas tensas e abstratas daquele sob a luminosidade mística, colorida e difusa destes. Mas, aqui, destaquemos a articulação e organização da catedral. Numa catedral como a de Amiens (construída a partir de 1220) ou a de Colônia (a partir de 1248) não se nota quase nenhuma linha horizontal. Ao mesmo tempo, a nave central é muito estreita em relação à sua altura (em Colônia, a relação é de 1:3,8) e as abóbadas ogivais estendem mais ainda a verticali dade dos elementos, esculturas, frisos e pilares. O resultado é um movimento vertical vertiginoso e uma impulsão mística que não favorece uma contemplação sossegada, mas sim um sentimento de êxtase, transcendência e admiração. 12 NORBERG-SCHULZ. M eaning in western architecture , p.97. 43 Figura 5 - Notre-Dcime. Paris. Vista da cabeceira Observemos também a organização espacial de uma catedral como a de Rei ms (construída a partir de 1211) ou a de Chartres. Em primeiro lugar, nelas e na maior parte das igrejas do período, a planta é disposta com a fachada principal a Oeste e a capela-mor a Leste, seguindo um partido longitudinal de três naves como era comum nessa época. A significação da longitudinalidade, como já visto, refere-se ao caminho da salvação. Interessante, contudo, é reconhecermos que a orientação dada ao edifício inspira-se na cruz latina, reservando-se para o altar, onde se situaria a ima gem da cabeça do Cristo crucificado, o Leste, lugar da luz e do sol nascente. A Oeste, a fachada e a suposta imagem dos pés do Cristo crucificado, por oncle o fiel sai do mundo e entra no corpo da igreja, dá acesso ao espaço ao fim do qual a sabedoria divina se revela. Também é dominante o número três, repre sentativo da trindade cristã, em toda estrutura da igreja e não apenas na organização da nave. Visualizamo-lo na articulação horizontal e vertical da fachada e cios portais, nos trifórios, clerestórios e nas estruturas e ritmo espacial interno. 44 Figura 6 - Catedral. Colônia •, 45 Através de magníficos vitrais, como os de Chartres, a luz banha o espaço. Desde o começo da história cristã, a luz se liga ã origem e princípio divino das coisas, e não é de se estranhar, portanto, o papel decisivo que ela deve desempenhar para despertar a religiosidade dentro das catedrais góticas. Pelos verticalizados vitrais das coloridas rosáceas e trifórios, a luz ilumina e atravessa os episódios religiosos neles apresen tados e acaba banhando as estruturas do místico ambiente, no qual as verdades se revelam e a graça se alcança. Concreti zando toda a espiritualidade buscada desde o Cristão Primitivo, a luz desm aterializa a construção e a igreja irradia para toda cidade esse abraço do espírito divino sobre a matéria, os cristãos e o mundo terreno. Segundo Norberg-Schulz, o Gótico conclui um período cia cultura ocidental, denominado a “idade da fé”, no qual o homem experimenta uma progressiva compreensão da reve lação divina e sua relação com o mundo. No Gótico, Deus se aproxima de nosso mundo e se apresenta plenamente como a fonte de todo significado existencial, sem o qual nada se compreende. A fé é o ponto cie partida. A igreja é a fonte das verdades. A catedral gótica é por oncle Deus se aproxima do mundo dos homens. Essa progressiva compreensão de Deus pelo homem também é claramente expressa na pintura, como o demonstram Venturi, Maritain e Panofsky. Desde o Bizantino — passando por Berlingheri, Cimabue, Duccio e outros — eles reconhecem uma progressiva humanidade nas represen tações da pessoa de Cristo e dos santos; representações estas culminando em Giotto (1266-1337), em que se apresentam cenas do cotidiano medieval, da natureza simples franciscana e de uma atmosfera ética e religiosa de caráter mais laico. Em Giotto, finalmente, o “homem penetra na história sagrada como se fosse sua própria história: a divindade desceu até o homem e se tornou sua consciência moral”.13 13 VENTURI. Lapeinture italienne, les créateurs de ía Renaissance, p.47. Para este belíssimo estudo da progressiva presença de Deus no mundo humano, vista através da pintura, conferir, além da obra acima citada, MARITAIN. Creative intuition in art andpoetry, capítulo 1; PANOFSKY. Significado nas artes visuais, p.45-148. Sobre a arquitetura gótica ver, a título de introdução, GOZZOLI. Como reconhecer a arte gótica, p. 3-37; NORBERG-SCHULZ. Meaning in western architecture, p.92-112; ZEVI. Saber ver la arquitectura, p.75-81. 46 m » Figura 7 - GIOTTO. Exéquias de Sào Francisco Como a catedral gótica transmitia a mensagem religiosa e filosófica que fornecia ao homem uma segurança existencial? Responde-nos Norberg-Schulz que, inicialmente, ela se faz espelho de um mundo construído em bases religiosas e inspi rado nas Sagradas Escrituras, tal como os escolásticos as inter pretavam. Sua iconografia, sua iluminação, seu essencialismo estrutural, sua atmosfera mística e transcendente, tudo isto despertava no homem o sentimento de uma comunhão do mundo terrestre com o celeste que, ocorrendo na igreja, levava ao êxtase e ao aprendizado dos valores religiosos, admirados nos dogmas da fé, no exemplo dos santos e na hierarquia das virtudes vistas em seu interior. Como diz E. Mâle, “através da arte as mais altas concepções dos teólogos e escolásticos penetram até certo ponto nas mentes dos seres mais simples”.14 Além disso, a contribuição espacial que presidia a concepção das catedrais se fazia à imagem da ordem cósmica: sua arché se fazia desta mímesis. O homem, entendido como criatura privilegiada, tinha como ambição aproximar-se o mais possível do Reino de Deus e para isto, antes de tudo, ele tinha cie ter fé e humildade, como São Francisco de Assis (1182-1226). 11 Mâle. Thegotic image , citado por NORBERG-SCHULZ. M eaning in western architecture , p . l l l . 47 Assim as proporções gigantescas e inumanas de uma catedral como a de Colônia, bem como o ambiente predominantemente místico são condições fundamentais para que o fiel se ponha em contato com Deus. Mas,1 além do sentimento religioso e místico que despertava a fé, ponto de partida do sistema medieval, uma lógica visual governa e articula a construção^ como se desse a entender que, a partir da premissa inicial da fé, a catedral ensina um método de raciocínio'que conduz o fiel a todas as verdades e respostas que lhe são necessárias. Esse raciocínio é o silo gismo típico da escolástica, cujo representante mais signifi cativo é São Tomás de Aquino (1225-1274). A relação entre a catedral gótica e São Tomás de Aquino, desenvolvida por Panofsky, como veremos a seguir, constitui um dos estudos mais interessantes sobre a arte no período. Isso porque, sendo o século XIII o século no qual se concretizam as principais aspirações do homem medieval, relacionar uma catedral gótica com a filosofia de São Tomás de Aquino — que, procurando ordenar o saber teológico e moral acumulado na Idade Média, constrói o seu maior sistema filosófico: a Sum m a Theologiae — resgata, no seu momento de maior maturidade e expressivi dade, o fundamento de um período mais extenso que o século XIII: a harmonia de toda a criação com o Criador, a hierarquia do universo e a unidade artístico-cultural do medievo. DA ARQUITETURA AO MUNDO GÓTICO A ARQUITETURA GÓTICAE A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA i Na sua introdução, Panofsky ressalta a organicidade da relação entre o gótico e a escolástica e adverte para a contemporaneidacle existente entre os três períodos daquela arquitetura — uma época primitiva,, uma época clássica e uma época tardia — e os três períodos da escolástica — um período primitivo, uma idade de ouro e uma fase de decadência.15 Para o autor, não se trata de um 15 PANOFSKY. Architecturegothique etpensée scolastique, p.71-81. 48 w simples paralelismo ou uma simples influência exercida pelos filósofos sobre os artistas: Em op osição a um sim ples paralelismo, essa co n ex ã o é uma au tên tica re la ç ã o de cau sa e e fe ito ; em o p o s iç ã o a uma in flu ên cia individual, essa relação de causa e efeito se ins taura por difusão, m ais do que por co n ta to direto. Ela se instaura pela difusão do que se poderia nomear, na falta de m elhor palavra, uma h a b itu d e m entale, conferindo a este termo o seu sentido escolástico mais preciso de princípio que regula o ato (p r in c ip iu m im p o r ta n s o rd in e m a d a c tu n i)}^ Os arquitetos, pouco provavelmente, teriam lido São Tomás de Aquino, mas estavam expostos à doutrina escolástica, uma vez que “a totalidade do saber humano permanece acessível ao espírito normal e não especializado”.17 Segundo Panofsky, para compreender como esse “hábito mental” da escolástica influencia o Gótico,1 não idevemos procurar estabelecer a relação no conteúdo conceituai da doutrina, mas ^concentrar a atenção sobre seu modus operandi™ E, começando por reconhecer a função social do arquiteto — encarregado de, com suas obras, impressionar o espírito do leigo para que este se ponha em contato com a escolástica — ,19 ele cita São Tomás: “A doutrina sagrada serve-se também da razão humana, não para provar a fé, mas, para tornar claro ( manifestare) tudo o que é exposto nesta doutrina.”20 O poder da razão está em clarificar os artigos da fé, sempre tomada como ponto de partida, seja elucidando-os ou demonstrando-os logicamente, 16 PANOFSKY. Architecture goth ique etpensée scolastique, p.83. 17 Cf. Ibidem. p.70-84, 87. 18 PANOFSKY. Architecture goth ique et pensée scolastique, p.89. A atenção de Panofsky sobre o modus operandi, segundo Pierre Bourdieu, evita analogias superficiais, puramente formais e às vezes acidentais; conferir prefácio em PANOFSKY. Architecture goth ique et pensée scolastique, p .137. 19 Ver PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.89-90: En réalité, ce que Varchitecte, qui ‘concevait la form e de Védifice sans en manipuler lui-m êm e la m atière’pouvait et devait mettre en application, directement et en tan t q u ’architecte, c ’estplutôt cette manièreparticulière deprocéder qui devait être la prem ière chose à fra p p er Vesprit du laic toutes les fo is qu ril entrait en contact avec le scolastique . 20 São Tomás de Aquino citado por PANOFSKY. Architecture gothique et pensée scolastique, p.90. 49 r até estabelecer a verdade única e máxima depreendida da Sagrada Escritura pelos filósofos da igreja, seja expressando-os ou fornecendo “similitudines que manifestam os mistérios pela via da analogia. Assim, a manifestatio, enquanto elucidação ou clarificação, é o que podemos chamar de primeiro princípio regulador da escolástica primitiva e clássica.”21 Dante dizia que o universo inteiro (produzido pela natureza e pelo homem) deveria manifestar a glória do senhor.22 Também para o arqui teto gótico, o que se estabelece como função primordial do seu trabalho é tornar manifesta e visível a verdade da Sagrada Escritura, tal como o filósofo escolástico concebia como sua função principal esclarecer e desenvolver as verdades primeiras, articulando razão e fé. Ora, em que se assenta a possibilidade de essa manifestatio e essa abordagem anagógica serem realizadas na arquitetura? A primeira condição se assenta na crença geral da proporcio nalidade existente entre o mundo inferior e o mundo superior, na analogia que deve existir não só entre a catedral gótica e o universo, mas entre o arquiteto e Deus. Entre esses dois agentes, como sugere São Tomás de Aquino, há “um paren tesco que se pode dizer estrutural: o que a idéia de casa, dentro do espírito do arquiteto, é para a casa (sua similitudo), a idéia do mundo, que está em Deus, é para este mundo. [...] O arquiteto é, assim, o análogo de Deus.”23 O arquiteto conce bido pelo escolástico deve colocar na sua construção, e isto é o que a distingue das demais, meios pelos quais podemos pressentir a perfeição divina e conhecer a sua verdade, mesmo que sem rigor filosófico ou teológico. O arquiteto preside sua construção tal como Deus preside o mundo e, por isso, ele ocupa o lugar mais alto na hierarquia das artes. Em São Tomás de Aquino, a arquitetura é o análogo do mundo e deve tornar visível o princípio, a causa e a hierarquia da criação.24 21 PANOFSKY. A rc h i te c tu re g o th iq u e et p e n sé e scolastique, p. 91. 22 Ver “A D iv in a C om édia e a arché medieval”, sobre a arquitetura do medievo, que se segue neste estudo. 23 Sobre essa importantíssima relação analógica em São Tomás de Aquino, conferir PAYOT. Le p h ilo so p h e et Varchitecte\ sur quelques déterminations philosophiques de 1’idée d’architecture, p .106-111. A / _ Conferir PAYOT. Le ph ilo so ph e et 1’arch itec te; sur quelques déterminations philosophiques de Tidée d’architecture, p .110, 111. 50 ( s '7; 11 A segunda condição de possibilidade dessa manifestatio é a perfeita estruturação de um sistema de pensamento que leva ao esquematismo ou formalismo, a fim de que, para o leitor 1 da Sum m a , ou para o fruidor da catedral, as verdades da fé se tornem perfeitamente claras e seguras. Assim, não só a arquitetura deve manifestar a perfeição divina e estimular a fé, mas também revelar a ordem lógica da criação, sistemati zando-a em partes e conjunto de partes, articulação suficiente, demonstrando a distinção e as necessidades dedutivas entre elas, inter-relação suficiente, e colocando seus imperativos de totalidade, enumeração suficiente, tal como nos livros esco- lásticos ou mesmo na obra de Dante.25 O extremo cuidado com divisões e subdivisões sistemáticas, demonstrações metó dicas, rimas, terminologias e outros aspectos significa que os escolásticos sentem -se obrigados a tornar palpáveis e explícitas a ordem e a lógica de seus pensam entos, e que o princípio de manifestatio, determinante da orientação e do alvo de seus pensamentos, regia também a exposição destes pensamentos, submetendo-os ao q u e p od eria ser ch am ad o o postulado da clarificação pela clarificação.26 Esse hábito mental, como diz Panofsky, ultrapassava as obras filosóficas e literárias. Também se fazia presente na música — composta numa divisão estrita e exata do espaço — e na arquitetura.27 Mas é nesta última que o princípio da clarificação triunfou com pletam ente. Da mesma forma que a escolástica clássica é dominada pelo princípio da manifestatio, a arquitetura gótica clássica é dom inada, com o já observava Suger, pelo que se pode cham ar de princípio da transparência.28 i 25 PANOFSKY. A rc h i te c tu re g o th iq u e et p e n sé e sco lastique , p .92. 26 Ibidem . p .95. (grifos n ossos) 27 C onferir e x c e le n te estudo de PANOFSKY sobre o d e se n h o m edieval, d e s ta ca n d o -se a c o n c e p ç ã o gótica em Villard de H onnecurt. PANOFSKY. S ig n i f ic a d o n a s a r tes v isua is , p .108-128. 28 PANOFSKY. A rch itec tu re g o th iq u e et p en sée scolastique, p .2. (grifos nossos) 51 O primeiro exemplo dessa semelhança é a relação entre a fé e a razão de um lado, e a espacialidade interna e externa de outro. Depois de analisá-la na pré-escolástica, no misticismo e no nominalismo — correspondentes aos estilos românico e gótico tardio29 — Panofsky se dedica ã escolástica clássica. Nesta, permanece
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