Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Sumário: 1. Introdução – 2. Histórico da legislação cambiária – 3 Os títulos de crédito na atualidade; 3.1. Comércio eletrônico – 4. Conceito, características e princípios dos títulos de crédito; 4.1. Princípio da cartularidade; 4.2. Princípio da literalidade; 4.3. Princípio da autonomia – 5. Classificação dos títulos de crédito – 5.1. Quanto à forma de transferência ou circulação – 5.2. Quanto ao modelo – 5.3. Quanto à estrutura – 5.4. Quanto às hipóteses de emissão – 6. Títulos de crédito em espécie; 6.1. Letra de câmbio; 6.2. Nota promissória; 6.3. Cheque; 6.4. Duplicata – 7. Atos cambiários; 7.1. Endosso; 7.2. Aval; 7.3. Protesto – 8. O Código Civil de 2002 e os títulos de crédito; 8.1. A desmaterialização dos títulos de crédito; 8.2. O endosso e seus efeitos; 8.3. A disciplina do aval; 8.4. A cláusula de juros nos títulos de crédito; 8.5. Os títulos ao portador; 8.6. Teoria da criação versus teoria da emissão – 9. Outros títulos de crédito; 9.1. Títulos de crédito comercial; 9.2. Títulos de crédito industrial; 9.3. Títulos de crédito à exportação; 9.4. Títulos de crédito rural; 9.5. Títulos de crédito imobiliário; 9.6. Títulos de crédito bancário; 9.7. Letra de Arrendamento Mercantil – 10. Questões. “Então o senhor acha que o dinheiro é a origem de todo o mal? O senhor já se perguntou qual é a origem do dinheiro? O dinheiro é um instrumento de troca, que só pode existir quando há bens produzidos e homens capazes de produzi-los. O dinheiro é a forma material do princípio de que os homens que querem negociar uns com os outros precisam trocar um valor por outro. O dinheiro não é o instrumento dos pidões, que pedem produtos por meio de lágrimas, nem dos saqueadores, que os levam à força. O dinheiro só se torna possível através dos homens que produzem. É isto que o senhor considera mau? Quem aceita dinheiro como pagamento por seu esforço só o faz por saber que ele será trocado pelo produto de esforço de outrem. Não são os pidões nem os saqueadores que dão ao dinheiro o seu valor. Nem um oceano de lágrimas nem todas as armas do mundo podem transformar aqueles pedaços de papel 1. no seu bolso no pão de que você precisa para sobreviver. Aqueles pedaços de papel, que deveriam ser ouro, são penhores de honra; por meio deles você se apropria da energia dos homens que produzem. A sua carteira afirma a esperança de que em algum lugar no mundo a seu redor existem homens que não traem aquele princípio moral que é a origem da produção? Olhe para um gerador de eletricidade e ouse dizer que ele foi criado pelo esforço muscular de criaturas irracionais. Tente plantar um grão de trigo sem os conhecimentos que lhe foram legados pelos homens que foram os primeiros a plantar trigo. Tente obter alimentos usando apenas movimentos físicos, e descobrirá que a mente do homem é a origem de todos os produtos e de toda a riqueza que já houve na terra. (...) Enquanto pessoas como o senhor não descobrirem que o dinheiro é a origem de todo bem, estarão caminhando para sua própria destruição. Quando o dinheiro deixa de ser o instrumento por meio do qual os homens lidam uns com os outros, os homens se tornam os instrumentos dos homens. Sangue, açoites, armas – ou dólares. Façam sua escolha – não há outra opção – e o tempo está esgotando.” (Ayn Rand, em A revolta de Atlas, na passagem conhecida como “o discurso do dinheiro”) INTRODUÇÃO Desde que o homem deixou de produzir bens apenas para a sua própria subsistência, podemos verificar, ao longo da história, um lento e gradual processo de criação de instrumentos comerciais que tornaram as trocas mais rápidas e mais seguras. O título de crédito é um desses instrumentos. Nas sociedades mais primitivas, o comércio se limitava ao escambo, isto é, a troca direta de mercadoria por mercadoria. Com o passar do tempo e a consequente necessidade de dinamizar as trocas, certos bens passaram a ser usados como “moeda”, ou seja, como meios de troca indireta (inicialmente, o sal, que foi sucedido por metais preciosos, sobretudo prata e outro, e finalmente a moeda-fiduciária ou papel-moeda, imposta pelo estado como meio de troca universal). Mais adiante, a própria moeda já não conseguia atender à dinâmica e à complexidade do mercado, e foi para preencher esse vazio que surgiram os títulos de crédito, os quais servem até hoje para tornar mais rápida e mais segura a circulação de riqueza. Chama-se de direito cambiário ou direito cambial o sub-ramo do direito empresarial que disciplina todo o regime jurídico aplicável aos títulos de crédito. Trata-se, conforme se verá adiante, de regime jurídico recheado de regras, princípios e características especiais, criados especialmente para que os títulos de crédito consigam desempenhar de forma eficiente e segura a sua principal função, que é a circulação de riqueza. Segundo Tullio Ascarelli, o desenvolvimento dos títulos de crédito permitiu que o mundo moderno mobilizasse suas próprias riquezas, vencendo o tempo e o espaço. Com efeito, o crédito, que consiste, basicamente, num direito a uma prestação futura que se baseia, fundamentalmente, na confiança (elementos boa-fé e prazo), surgiu da constante necessidade de viabilizar uma circulação mais rápida de riqueza do que a obtida pela moeda manual. O crédito, ao conseguir fazer com que o capital circule, torna-o extremamente mais produtivo e útil. Sendo assim, resta clara a importância dos títulos de crédito para a história da economia mundial, na qualidade de documento que instrumentaliza o crédito e permite a sua mobilização com rapidez e segurança. Assim, os títulos de crédito são, em síntese, instrumentos de circulação de riqueza. A doutrina noticia que o momento histórico em que os títulos de crédito se desenvolveram foi a Idade Média – não por mera coincidência, foi justamente o período histórico em que surgiu o próprio direito comercial, conforme já estudado no capítulo 1. Costuma-se dividir o direito cambiário em quatro períodos históricos distintos. O primeiro deles é o período italiano, que vai até o ano de 1650. Nesse período inicial, possuem destaque as cidades marítimas italianas onde se realizavam as feiras medievais que atraíam os grandes mercadores da época. Outra característica importante desse período é o desenvolvimento das operações de câmbio, em razão da diversidade de moedas entre as várias cidades medievais. Surge o câmbio trajetício, pelo qual o transporte da moeda em um determinado trajeto ficava por conta e risco de um banqueiro. Esse câmbio trajetício se instrumentalizava por meio de dois documentos: a cautio, apontada como origem da nota promissória, por envolver uma promessa de pagamento (o banqueiro reconhecia a dívida e prometia pagá-la no prazo, lugar e moeda convencionados), e a littera cambii, apontada como origem da letra de câmbio, por se referir a uma ordem de pagamento (o banqueiro ordenava ao seu correspondente que pagasse a quantia nela fixada). O segundo período histórico da evolução do direito cambiário é o período francês, que vai de 1650 a 1848. Merece destaque, nessa fase do direito cambiário, o surgimento da cláusula à ordem, na França, o que acarretou, consequentemente, a criação do instituto cambiário do endosso, que permitia ao beneficiário da letra de câmbio transferi-la independentemente de autorização do sacador. De 1848 a 1930, o direito cambiário viveu a terceira fase de sua evolução histórica. Trata-se do período alemão, que se inicia com a edição, em 1848, da Ordenação Geral do Direito Cambiário, uma codificação que continha normas especiais sobre letras de câmbio, diferentes das normas do direito comum. O período alemão é bastantedestacado pelos doutrinadores por ter consolidado a letra de câmbio, especificamente – e os títulos de crédito, de uma forma geral – como instrumento de crédito viabilizador da circulação de direitos. Por fim, a quarta e última fase da evolução histórica do direito cambiário corresponde ao chamado período uniforme, que se iniciou em 1930, com a realização da Convenção de Genebra sobre títulos de crédito e a consequente aprovação, no mesmo ano, da Lei Uniforme das Cambiais, aplicável às letras de câmbio e às notas promissórias. No ano seguinte, foi aprovada a Lei Uniforme do Cheque. Cabe 2. ressaltar que as leis uniformes genebrinas receberam forte influência da já mencionada Ordenação Geral Alemã de 1848. Atualmente, os títulos de crédito passam por um importante período de transição. Letras de câmbio já não são vistas no mercado, e mesmo títulos como o cheque e a nota promissória vão caindo em desuso e dando lugar às transações com os cartões de débito e crédito, os quais já admitem a assinatura eletrônica. Assim, como tem alertado a doutrina especializada, vivemos a era do comércio eletrônico. HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO CAMBIÁRIA Em virtude do caráter altamente internacionalizado do direito comercial, já destacamos que uma de suas principais características é o cosmopolitismo. Com efeito, o comércio internacional é gradativamente mais intenso, sobretudo em função do processo que se tem denominado de globalização, mais latente, sobretudo, no âmbito das relações econômicas, haja vista o grande número de acordos internacionais de comércio firmados entre os países e o surgimento de expressivos blocos econômicos como, por exemplo, o Mercosul. Nesse sentido, ao longo da história os diversos países atentaram para a necessidade de uniformização da legislação aplicável aos títulos de crédito, uma vez que eles constituem os principais instrumentos de efetivação das negociações mercantis internacionais. Foi então que, em consequência do esforço constante de algumas associações internacionais, como as Câmaras de Comércio italianas e a Association Internationalle pour le Progrès de Sciences Sociales, se organizaram congressos e encontros para a discussão do assunto, os quais culminaram na realização das duas Conferências de Haia, em 1910 e 1912. Na conferência de 1912, foi aprovado o Regulamento uniforme relativo à letra de câmbio e à nota promissória, o qual, seguindo o sistema alemão da Ordenação Geral de 1848, representou um importantíssimo passo no caminho da uniformização internacional do direito cambiário, não obstante as dificuldades encontradas, notadamente a resistência de países como a Inglaterra e a eclosão da 1.ª Guerra Mundial. Encerrada a grande guerra, a Liga das Nações, organismo multilateral que ganhava importância na disciplina das relações entre os povos, organiza, em 1930, a Convenção de Genebra, que aprovou a chamada Lei Uniforme das Cambiais, relativa às letras de câmbio e às notas promissórias. No ano seguinte, foi realizada nova Convenção, na qual foi aprovada a Lei Uniforme do Cheque. O Brasil participou das Convenções de Genebra, representado pelo professor Deoclécio de Campos, e aderiu, em 1942, ao que nelas ficou decidido. As Convenções foram aprovadas pelo Congresso Nacional, por sua vez, em 08.09.1964, por meio do Decreto Legislativo 54. Por fim, os Decretos 57.663/1966 e 57.595/1966 promulgaram as Leis Uniformes das Cambiais e do Cheque, respectivamente, 3. em nosso ordenamento jurídico. Observe-se que a forma de o Brasil adotar os preceitos das Leis Uniformes foi, por assim dizer, um tanto pitoresca. Isso porque o Brasil já possuía uma legislação muito bem elaborada sobre títulos e crédito: o Decreto 2.044/1908. Como esse decreto possuía status de lei ordinária, somente por outra lei poderia ser revogado. Portanto, esperava-se que a incorporação da Lei Uniforme de Genebra em nosso ordenamento fosse instrumentalizada pelo envio de projeto de lei ao Congresso Nacional, que reproduzisse o seu texto normativo. Houve, portanto, grande controvérsia doutrinária acerca da efetiva adoção, pelo direito cambiário brasileiro, dos preceitos das Leis Uniformes genebrinas. No entanto, em julgamento datado de 04.08.1971, o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, entendeu ter sido legítima a forma de incorporação das Leis Uniformes ao nosso ordenamento jurídico e reconheceu a sua aplicabilidade imediata, inclusive naquilo em que modificar a legislação interna: Lei uniforme sobre o cheque, adotada pela Convenção de Genebra. Aprovada essa Convenção pelo Congresso Nacional, e regularmente promulgada, suas normas têm aplicação imediata, inclusive naquilo em que modificarem a legislação interna. Recurso extraordinário conhecido e provido (STF, RE 71.154-PR, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, DJ 27.08.1971, RTJ 58/70). A partir desse julgamento, a Corte Suprema consolidou seu entendimento, razão pela qual as controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema se dissiparam. Cabe ressaltar, por fim, que o Código Civil de 2002 resolveu tratar sobre títulos de crédito na sua Parte Especial, Livro I, Título VIII, Capítulos I a IV (arts. 887 a 926). O próprio Código, no entanto, ressalvou em seu art. 903 que para os títulos de crédito próprios suas regras só se aplicam se não houver disposição diversa na legislação específica. A questão será analisada com mais detalhes adiante. OS TÍTULOS DE CRÉDITO NA ATUALIDADE Nas sociedades mais antigas da história vivia-se numa economia de escambo, isto é, o “mercado” se limitava às trocas de um bem por outro. Obviamente, com o passar do tempo e o desenvolvimento do sistema de trocas, o escambo praticado nessas sociedades se mostrou insustentável, em razão de suas limitações. Primeiro, o escambo dificultava a troca porque ele exigia uma coincidência de interesses por parte dos partícipes da relação: a troca só se perfaz se cada parte quiser exatamente o que a outra tem a oferecer. Ademais, existe o problema da ausência de equivalência de valor entre os diversos bens. Assim, é forçoso reconhecer que o escambo supria apenas as necessidades de uma economia num estágio muito primitivo. Para superar as dificuldades inerentes ao escambo, o próprio mercado criou, então, um meio de 3.1. troca muito mais eficiente: a moeda. Com isso, um produtor de trigo que quisesse adquirir ferramentas não precisava mais procurar um fabricante dessas peças que estivesse precisando exatamente de trigo: ele podia vender seu trigo por um determinado preço, expresso na moeda usualmente aceita, e depois comprar as ferramentas de que necessitava, pagando por elas também o respectivo preço. No curso da história, inúmeras coisas foram usadas como moeda, mas sempre houve uma preponderância da prata e do ouro exercendo essa função de meio geral de troca. No entanto, com o passar do tempo a economia foi se tornando cada vez mais complexa, e até mesmo a moeda passou a ser um meio de troca ineficiente para dar efetividade a todas as transações ocorridas a todo momento no mercado. Mais uma vez, o próprio mercado deu a sua solução, criando os títulos de crédito, que rapidamente foram incorporados à praxe mercantil, conforme mencionamos acima. Hodiernamente, entretanto, estamos vivendo um novo momento histórico, em que a complexidade das relações econômicas tem demonstrado que nem a moeda nem os títulos e crédito tradicionais (letra de câmbio, nota promissória, cheque, duplicata etc.) conseguem, de maneira eficiente, dar efetividade ao incrível número de transações realizadas no mercado globalizado dos dias atuais. A internet fez o mercado ignorar a distância entre as partes de uma determinada relação jurídica,sobretudo as relações empresariais. Hoje em dia é cada vez mais fácil comprar bens ou serviços de um empresário que se situa em outro estado ou em outro país, o qual às vezes fica em outro continente. E essas transações ocorrem numa velocidade espantosa, inimaginável até bem pouco tempo atrás. Portanto, é preciso repensar os títulos de crédito e, consequentemente, o estudo desse assunto, à luz dessa novel realidade do comércio eletrônico. Assim, neste capítulo, embora mantenhamos o tratamento tradicional da disciplina, expondo os conceitos fundamentais há tempos construídos pela doutrina e comentando as principais regras legais existentes (sobretudo a Lei Uniforme de Genebra), tentaremos abordar a questão da chamada “desmaterialização dos títulos de crédito” e outras relacionadas ao momento em que vivemos. A propósito, uma observação final precisa ser feita: nesse longo e gradual processo de evolução dos meios de negociação, o surgimento de um novo meio apenas diminui o uso dos meios anteriores, mas não os elimina. Assim, quando surgiu a moeda, o escambo não desapareceu, embora tenha passado a ocorrer com bem menos frequência. Da mesma forma, quando os títulos de crédito tradicionais (letra de câmbio, nota promissória etc.) surgiram, o dinheiro teve seu uso diminuído, mas não deixou de ser usado totalmente. Assim, a mesma situação está ocorrendo agora: já não se usam mais os títulos de crédito como antes (por exemplo, quem, nos dias de hoje, ainda anda com um talão de cheques na carteira?), mas eles não desapareceram nem desaparecerão na praxe comercial. Comércio eletrônico Não é novidade que o comércio foi, é e sempre será um fator de integração entre os países, sendo, pois, o melhor mecanismo de manutenção da paz. Povos que mantém relações comerciais uns com os outros não guerreiam entre si. Como dizia Frédéric Bastiat, “quando bens e serviços param de cruzar as fronteiras, exércitos o fazem”. Num passado distante, essa integração provocada pelo livre comércio exigia esforços incríveis, como as “grandes navegações”. Hoje em dia, no entanto, o avanço tecnológico venceu todas as barreiras geográficas possíveis, e a internet nos permite negociar com pessoas do outro lado do mundo em apenas alguns segundos, sem maiores complicações. As negociações/contratações eram, tradicionalmente, instrumentalizadas em meio físico (papel), de modo que o contato pessoal entre as partes contratantes se fazia quase sempre imprescindível. Com a internet, entretanto, permite-se o contato e a manifestação de vontade por meio virtual. A esse tipo de negociação/contratação dá-se o nome de comércio eletrônico. Assim, caracteriza-se o comércio eletrônico sempre que a venda de produtos ou serviços é instrumentalizada por meio de transmissão eletrônica de dados, o que ocorre no ambiente virtual da rede mundial de computadores (internet). Perceba-se que não importa se o objeto do negócio é virtual (uma música ou um vídeo) ou físico (um relógio, uma geladeira ou uma roupa), mas se a manifestação de vontade é instrumentalizada em meio virtual ou físico. Neste caso, as partes costumam assinar de próprio punho os contratos (às vezes se exigindo o reconhecimento da assinatura por tabelião e até mesmo a assinatura conjunta de testemunhas). Naquele, as partes se utilizam de assinaturas digitais. Assim como ocorreu com todas as demais formas de negociação/contratação anteriores (escambo, títulos de crédito etc.), o comércio eletrônico surgiu da própria dinâmica da atividade empresarial, sem que houvesse uma prévia “regulamentação estatal”. Quando o Estado decidiu regulamentar essa prática, ela já estava em grau avançado de desenvolvimento. Como a maioria das negociações/contratações do comércio eletrônico se dá entre empresários e consumidores, a norma editada a pretexto de promover a sua regulamentação teve por foco as relações de consumo, e não as relações interempresariais (ver, no início do capítulo seguinte, a importância de distinguir os contratos de consumo dos contratos interempresariais). Tal norma é o Decreto 7.962/2013, e suas preocupações básicas foram assegurar: (i) informações claras a respeito do produto, serviço e do fornecedor; (ii) atendimento facilitado ao consumidor; e (iii) respeito ao direito de arrependimento (art. 1º). A fim de assegurar informações claras a respeito do produto, do serviço e do fornecedor, o art. 2º determina que “os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para oferta ou conclusão de contrato de consumo devem disponibilizar, em local de destaque e de fácil visualização, as seguintes informações: I – nome empresarial e número de inscrição do fornecedor, quando houver, no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda; II – endereço físico e eletrônico, e demais informações necessárias para sua localização e contato; III – características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos à saúde e à segurança dos consumidores; IV – discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessórias, tais como 3.1.1. as de entrega ou seguros; V – condições integrais da oferta, incluídas modalidades de pagamento, disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou disponibilização do produto; e VI – informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à fruição da oferta”. O art. 4º, por sua vez, “para garantir o atendimento facilitado ao consumidor no comércio eletrônico”, determina que “o fornecedor deverá: I – apresentar sumário do contrato antes da contratação, com as informações necessárias ao pleno exercício do direito de escolha do consumidor, enfatizadas as cláusulas que limitem direitos; II – fornecer ferramentas eficazes ao consumidor para identificação e correção imediata de erros ocorridos nas etapas anteriores à finalização da contratação; III – confirmar imediatamente o recebimento da aceitação da oferta; IV – disponibilizar o contrato ao consumidor em meio que permita sua conservação e reprodução, imediatamente após a contratação; V – manter serviço adequado e eficaz de atendimento em meio eletrônico, que possibilite ao consumidor a resolução de demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato; VI – confirmar imediatamente o recebimento das demandas do consumidor referidas no inciso, pelo mesmo meio empregado pelo consumidor; e VII – utilizar mecanismos de segurança eficazes para pagamento e para tratamento de dados do consumidor”. No tocante ao propósito de assegurar o respeito ao direito de arrependimento do consumidor, o art. 5º dispõe que “o fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor”. O consumidor poderá exercer seu direito de arrependimento pela mesma ferramenta utilizada para a contratação, sem prejuízo de outros meios disponibilizados (§ 1o). O exercício do direito de arrependimento implica a rescisão dos contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor (§ 2º). Ademais, o exercício do direito de arrependimento será comunicado imediatamente pelo fornecedor à instituição financeira ou à administradora do cartão de crédito ou similar, para que (i) a transação não seja lançada na fatura do consumidor, ou (ii) seja efetivado o estorno do valor, caso o lançamento na fatura já tenha sido realizado (§ 3º). Vale frisar, novamente, que esse decreto se aplica essencialmente às relações de consumo, como seu próprio art. 1º denuncia: “Este Decreto regulamenta a Lei 8.078/1990 (CDC), para dispor sobre a contratação no comércio eletrônico (...)”.Por conseguinte, quando o comércio eletrônico envolver uma relação interempresarial (contratos entre empresários cujo objeto está relacionado à atividade econômica deles; vide capítulo seguinte), as regras do mencionado decreto não terão aplicabilidade. Não se exigirá, por exemplo, que o site disponibilize todas aquelas informações do art. 2º, tampouco se assegurará, ao empresário contratante, o direito de arrependimento previsto no art. 5º. A economia do compartilhamento É fácil perceber que o comércio eletrônico tem provocado uma verdadeira revolução no mercado. Em primeiro lugar, o comércio eletrônico tem permitido uma maior competição empresarial, já que a prescindibilidade do contato pessoal entre os contratantes permite que empresários situados em locais os mais distantes concorram entre si pela preferência dos consumidores (se antes um músico de uma pequena cidade tinha que optar entre duas ou três lojas físicas perto da sua casa para comprar seu violão, pagando em dinheiro ou cheque, por exemplo, hoje ele pode optar entre n lojas virtuais do mundo todo (!), pagando por meio de cartões de crédito ou débito, sem sair da sua residência). Em segundo lugar, o comércio eletrônico, por facilitar o contato direto entre o fornecedor original e o consumidor final, tem eliminado intermediários e criado uma nova organização mercadológica. Assim, alguns contratos de colaboração tradicionais, como a representação e a distribuição, tendem a desaparecer em determinados setores, ao passo que novos modelos de colaboração empresarial surgirão. No entanto, a maior mudança provocada pelo comércio eletrônico, que ainda não está sendo bem assimilada pelas pessoas, é a facilitação da negociação/contratação P2P (pessoa para pessoa). De um lado, isso faz com que empresários passem a sofrer concorrência não apenas de outros empresários, mas também de não empresários (como exemplo, basta mencionar o crescimento vertiginoso dos sites de compra e venda virtual, que permitem a qualquer pessoa comprar e vender bens usados). De outro lado, isso tem permitido o desenvolvimento da chamada economia do compartilhamento (ou economia colaborativa). Nesse novo modelo econômico, a facilidade de negociação/contratação P2P permite que as pessoas tenham acesso a inúmeros bens e serviços sem a necessidade de adquiri-los e, às vezes, sem a necessidade sequer de realizar trocas monetárias para tanto. Se antes as negociações/contratações centravam-se na compra e venda de bens ou serviços, agora elas tendem a privilegiar a troca, o empréstimo, a doação, o compartilhamento. Dois fatores, a meu ver, tem se mostrado determinantes para o surgimento e o desenvolvimento dessa nova economia: (i) o aumento constante do estoque ocioso de bens, decorrente do processo normal de acumulação de riquezas intrínseco ao capitalismo, e (ii) o avanço tecnológico. Quanto ao segundo fator, três inovações dele decorrentes são decisivas para o sucesso da economia do compartilhamento (ou consumo colaborativo, como preferem alguns): (i) a universalização do acesso aos aparelhos móveis de telefonia celular com acesso à internet e mecanismos de geolocalização, os chamados smartphones, (ii) a difusão dos sistemas de pagamento on-line (cartões de crédito e débito com chips e senhas e empresas como o PayPal, por exemplo), e (iii) a proliferação das redes sociais. Algumas características interessantes desse novo modelo econômico, uma decorrente da outra, merecem ser destacadas. A primeira delas é a eficiência da autorregulação do mercado. Como dito, o comércio eletrônico, nas suas mais variadas modalidades, surgiu e se desenvolveu a despeito da inexistência de uma “regulação estatal”. Trata-se, pois, de um ambiente onde a autorregulação é intensa, descentralizada e extremamente eficiente, pois a facilidade do fluxo de informações na internet força os agentes desse 3.1.2. mercado a construir e manter um capital reputacional elevado. A segunda característica, decorrente da primeira, é a desburocratização e a democratização do empreendedorismo. Enquanto a regulação estatal produz entraves burocráticos insuperáveis e reservas de mercado corporativistas, a autorregulação facilita o empreendedorismo ao deixar nas mãos dos consumidores, e não de funcionários públicos, a decisão sobre quem vai ser bem-sucedido no exercício de determinada atividade econômica. Alvarás, licenças e diplomas não garantem a permanência de um empreendedor no mercado, mas apenas o bom atendimento das demandas dos seus consumidores. Finalmente, a terceira característica da economia do compartilhamento, decorrente das duas anteriormente mencionadas, é a quebra constante de privilégios monopolísticos concedidos pelo Estado, o que, obviamente, está provocando uma reação enfurecida dos respectivos cartéis (a título ilustrativo, cite-se a guerra do cartel dos taxistas contra os aplicativos de transporte urbano). Os pedidos de “regulamentação” dos cartéis desmantelados são absolutamente sem sentido, já que a economia do compartilhamento é fortemente regulamentada, como dito, por mecanismos de autorregulação (as pessoas precisam entender que regulamentação não significa, necessariamente, regulação estatal). Enfim, para que a economia do compartilhamento continue quebrando monopólios, democratizando o exercício de atividade econômica e beneficiando a sociedade, é imperativo que o governo mantenha bem longe as suas mãos sujas. As criptomoedas (o fenômeno bitcoin) De todos os monopólios estatais que podem – e devem – ser quebrados pelo desenvolvimento do comércio eletrônico, o monopólio da emissão de moeda é o mais importante deles. Como visto, o dinheiro não é uma criação estatal, mas do próprio mercado. O dinheiro surgiu quando as dificuldades da troca direta de bens (escambo) fizeram com que bens mais demandados começassem a ser usados como meio de troca indireta, isto é, começassem a ser usados como “moeda”. Daí vem o “teorema da regressão” de Ludwig von Mises: um bem só pode se tornar dinheiro (moeda), isto é, meio de troca indireta, se antes já tinha valor como mercadoria, ou seja, como meio de troca direta. As primeiras moedas, portanto, foram aqueles bens que, em virtude de certas características (raridade, durabilidade, divisibilidade, portabilidade, testabilidade etc.) eram mais demandados do que outros (ouro e prata, por exemplo). A maior demanda por um bem fazia dele uma mercadoria comerciável: pessoas o aceitavam como meio de troca mesmo não necessitando diretamente dele, mas porque sabiam que, futuramente, conseguiriam trocá-lo por algo desejado com mais facilidade. Quanto mais um bem era demandado, maior era a sua comerciabilidade, e quanto mais sua comerciabilidade aumentava, a demanda por ele também crescia. Entrava-se num ciclo virtuoso até o ponto em que todos aceitavam facilmente aquele bem como meio de troca. O dinheiro acabara de ser criado. A criação do dinheiro facilitou a especialização e a divisão do trabalho, fundamentais para o desenvolvimento econômico e social. Antes, alguém que produzia lanças tinha que encontrar pessoas interessadas em trocar comida por lanças, roupas por lanças etc. Agora, ele precisa apenas trocar suas lanças por dinheiro, e depois usá-lo para adquirir o que precisa. A especialização e a divisão do trabalho, por sua vez, facilitaram a acumulação de riqueza e a formação de poupança, o que permitiu o investimento em bens de capital, melhorando e aumentando a produção, e propiciou a formalização de empréstimos e financiamentos a terceiros, dinamizando a economia. O dinheiro também fez com que os demais bens em circulação no mercado pudessem ser precificadosde forma objetiva, e sabe-se que o sistema de preços é o que permite o cálculo econômico racional: analisando os preços, o empresário sabe se está tendo lucros ou prejuízos e descobre a melhor forma de alocar seus recursos. Mas se o dinheiro surgiu e se desenvolveu livremente no mercado, por que ele hoje é controlado de forma monopolística pelo Estado? A explicação é simples. Numa economia em que se usa o ouro, por exemplo, como moeda, um indivíduo tem duas formas de adquirir dinheiro: (i) produzindo bens ou serviços que outras pessoas queiram pagar por eles ou (ii) dedicando-se à mineração (garimpo). O Estado, por sua vez, adquire dinheiro, via de regra, pela tributação. Ocorre que esta é, normalmente, impopular, podendo gerar revoltas que, como a História nos ensina, derrubam qualquer governo, por mais poderoso que ele seja. Assim, o Estado descobriu que controlar a moeda lhe permite criar dinheiro do nada (sem lastro), sem causar o impacto e a revolta que a tributação causa. A criação de dinheiro sem lastro é chamada de inflação (infla-se a base monetária), e sua consequência inevitável é o aumento dos preços, dada a desvalorização da unidade monetária. Portanto, o controle do dinheiro pelo Estado, exercido através dos Bancos Centrais, é a principal causa das crises econômicas e dos surtos de inflação seguidos de aumento generalizado dos preços que temos visto nas últimas décadas, como há tempos já explicaram os economistas da Escola Austríaca (Ludwig von Mises, Friedrich Hayek e Murray Rothbard). O comércio eletrônico (uso a expressão aqui em seu sentido lato, significando as negociações/contratações virtuais, por meio da internet), porém, pode ajudar a quebrar esse monopólio estatal sobre o dinheiro, com a criação e o desenvolvimento das criptomoedas, cujo exemplo mais significativo é o bitcoin. Não se sabe ao certo quem criou o bitcoin, já que sua origem é um artigo publicado num fórum de criptografia em 2008, assinado por Satoshi Nakamoto, mas acredita-se que se trata de um pseudônimo, já que essa pessoa nunca apareceu em público, tendo desaparecido dos fóruns de que participava alguns anos depois da divulgação de sua revolucionária ideia. O bitcoin é uma criptomoeda que utiliza uma tecnologia ponto a ponto (peer-to-peer) para criar um sistema de pagamentos on-line que não depende de intermediários e não se submete a nenhuma autoridade regulatória centralizadora. O código do bitcoin é aberto, seu design é público, não há proprietários ou controladores centrais e qualquer pessoa pode participar do seu sistema de gerenciamento coletivo. Enfim, o bitcoin é uma inovação revolucionária porque é o primeiro sistema de pagamentos totalmente descentralizado. O comércio eletrônico tradicional é sempre feito através de intermediários (uma operadora de cartão de crédito, uma instituição financeira ou uma empresa de pagamentos on-line, como o PayPal) e lastreado em uma moeda oficial (dólar, real, euro etc.). As transações com bitcoins, por sua vez, não dependem de intermediários e não são lastreadas em uma moeda oficial, mas no próprio bitcoin. Portanto, não se trata apenas de um novo sistema de pagamentos, mas de uma nova moeda. Dada a importância e a singularidade do tema, transcrevo abaixo as explicações de Fernando Ulrich, em seu livro Bitcoin: o dinheiro na era digital, a primeira obra publicada no Brasil sobre o assunto: O que é Bitcoin Bitcoin é uma moeda digital peer-to-peer (par a par ou, simplesmente, de ponto a ponto), de código aberto, que não depende de uma autoridade central. Entre muitas outras coisas, o que faz o Bitcoin ser único é o fato de ele ser o primeiro sistema de pagamentos global totalmente descentralizado. Ainda que à primeira vista possa parecer complicado, os conceitos fundamentais não são difíceis de compreender. Visão geral Até a invenção do Bitcoin, em 2008, pelo programador não identificado conhecido apenas pelo nome Satoshi Nakamoto, transações on-line sempre requereram um terceiro intermediário de confiança. Por exemplo, se Maria quisesse enviar 100 u.m. ao João por meio da internet, ela teria que depender de serviços de terceiros como PayPal ou Mastercard. Intermediários como o PayPal mantêm um registro dos saldos em conta dos clientes. Quando Maria envia 100 u.m. ao João, o PayPal debita a quantia de sua conta, creditando-a na de João. Sem tais intermediários, um dinheiro digital poderia ser gasto duas vezes. Imagine que não haja intermediários com registros históricos, e que o dinheiro digital seja simplesmente um arquivo de computador, da mesma forma que documentos digitais são arquivos de computador. Maria poderia enviar ao João 100 u.m. simplesmente anexando o arquivo de dinheiro em uma mensagem. Mas assim como ocorre com um e-mail, enviar um arquivo como anexo não o remove do computador originador da mensagem eletrônica. Maria reteria a cópia do arquivo após tê-lo enviado anexado à mensagem. Dessa forma, ela poderia facilmente enviar as mesmas 100 u.m. ao Marcos. Em ciência da computação, isso é conhecido como o problema do “gasto duplo”, e, até o advento do Bitcoin, essa questão só poderia ser solucionada por meio de um terceiro de confiança que empregasse um registro histórico de transações. A invenção do Bitcoin é revolucionária porque, pela primeira vez, o problema do gasto duplo pode ser resolvido sem a necessidade de um terceiro; Bitcoin o faz distribuindo o imprescindível registro histórico a todos os usuários do sistema via uma rede peer-to-peer. Todas as transações que ocorrem na economia Bitcoin são registradas em uma espécie de livro-razão público e distribuído chamado de blockchain (corrente de blocos, ou simplesmente um registro público de transações), o que nada mais é do que um grande banco de dados público, contendo o histórico de todas as transações realizadas. Novas transações são verificadas contra o blockchain de modo a assegurar que os mesmos bitcoins não tenham sido previamente gastos, eliminando assim o problema do gasto duplo. A rede global peer-to-peer, composta de milhares de usuários, torna-se o próprio intermediário; Maria e João podem transacionar sem o PayPal. É importante notar que as transações na rede Bitcoin não são denominadas em dólares, euros ou reais, como são no PayPal ou Mastercard; em vez disso, são denominadas em bitcoins. Isso torna o sistema Bitcoin não apenas uma rede de pagamentos descentralizada, mas também uma moeda virtual. O valor da moeda não deriva do ouro ou de algum decreto governamental, mas do valor que as pessoas lhe atribuem. O valor em reais de um bitcoin é determinado em um mercado aberto, da mesma forma que são estabelecidas as taxas de câmbio entre diferentes moedas mundiais. Como funciona Até aqui discutimos o que é o Bitcoin: uma rede de pagamentos peer-to-peer e uma moeda virtual que opera, essencialmente, como o dinheiro online. Vejamos agora como é seu funcionamento. As transações são verificadas, e o gasto duplo é prevenido, por meio de um uso inteligente da criptografia de chave pública. Tal mecanismo exige que a cada usuário sejam atribuídas duas “chaves”, uma privada, que é mantida em segredo, como uma senha, e outra pública, que pode ser compartilhada com todos. Quando a Maria decide transferir bitcoins ao João, ela cria uma mensagem, chamada de “transação”, que contém a chave pública do João, assinando com sua chave privada. Olhando a chave pública da Maria, qualquer um pode verificar que a transação foi de fato assinada com sua chave privada, sendo, assim, uma troca autêntica, e que João é o novo proprietário dos fundos. A transação – e portanto umatransferência de propriedade dos bitcoins – é registrada, carimbada com data e hora e exposta em um “bloco” do blockchain (o grande banco de dados, ou livro-razão da rede Bitcoin). A criptografia de chave pública garante que todos os computadores na rede tenham um registro constantemente atualizado e verificado de todas as transações dentro da rede Bitcoin, o que impede o gasto duplo e qualquer tipo de fraude. Mas o que significa dizermos que “a rede” verifica as transações e as reconcilia com o registro público? E como exatamente são criados e introduzidos novos bitcoins na oferta monetária? Como vimos, porque o Bitcoin é uma rede peer-to-peer, não há uma autoridade central encarregada nem de criar unidades monetárias nem de verificar as transações. Essa rede depende dos usuários que proveem a força computacional para realizar os registros e as reconciliações das transações. Esses usuários são chamados de “mineradores”, porque são recompensados pelo seu trabalho com bitcoins recém-criados. Bitcoins são criados, ou “minerados”, à medida que milhares de computadores dispersos resolvem problemas matemáticos complexos que verificam as transações no blockchain. Como um analista afirmou, A real mineração de bitcoins é puramente um processo matemático. Uma analogia útil é a procura de números primos: costumava ser relativamente fácil achar os menores (Erastóstenes, na Grécia Antiga, produziu o primeiro algoritmo para encontrá-los). Mas à medida que eles eram encontrados, ficava mais difícil encontrar os maiores. Hoje em dia, pesquisadores usam computadores avançados de alto desempenho para encontrá-los, e suas façanhas são observadas pela comunidade da matemática (por exemplo, a Universidade do Tennessee mantém uma lista dos 5.000 maiores). No caso do Bitcoin, a busca não é, na verdade, por números primos, mas por encontrar a sequência de dados (chamada de “bloco”) que produz certo padrão quando o algoritmo “hash” do Bitcoin é aplicado aos dados. Quando uma combinação ocorre, o minerador obtém um prêmio de bitcoins (e também uma taxa de serviço, em bitcoins, no caso de o mesmo bloco ter sido usado para verificar uma transação). O tamanho do prêmio é reduzido ao passo que bitcoins são minerados. A dificuldade da busca também aumenta, fazendo com que seja computacionalmente mais difícil encontrar uma combinação. Esses dois efeitos combinados acabam por reduzir ao longo do tempo a taxa com que bitcoins são produzidos, imitando a taxa de produção de uma commodity como o ouro. Em um momento futuro, novos bitcoins não serão produzidos, e o único incentivo aos mineradores serão as taxas de serviços pela verificação de transações. O protocolo, portanto, foi projetado de tal forma que cada minerador contribui com a força de processamento de seu computador visando à sustentação da infraestrutura necessária para manter e autenticar a rede da moeda digital. Mineradores são premiados com bitcoins recém-criados por contribuir com força de processamento para manter a rede e por verificar as transações no blockchain. E à medida que mais capacidade computacional é dedicada à mineração, o protocolo incrementa a dificuldade do problema matemático, assegurando que bitcoins sejam sempre minerados a uma taxa previsível e limitada. 4. Esse processo de mineração de bitcoins não continuará indefinidamente. O Bitcoin foi projetado de modo a reproduzir a extração de ouro ou outro metal precioso da Terra – somente um número limitado e previamente conhecido de bitcoins poderá ser minerado. A quantidade arbitrária escolhida como limite foi de 21 milhões de bitcoins. Estima-se que os mineradores colherão o último “satoshi”, ou 0,00000001 de um bitcoin, no ano de 2140. Se a potência de mineração total escalar a um nível bastante elevado, a dificuldade de minerar bitcoins aumentará tanto que encontrar o último “satoshi” será uma empreitada digital consideravelmente desafiadora. Uma vez que o último “satoshi” tenha sido minerado, os mineradores que direcionarem sua potência de processamento ao ato de verificação das transações serão recompensados com taxas de serviço, em vez de novos bitcoins minerados. Isso garante que os mineradores ainda tenham um incentivo de manter a rede operando após a extração do último bitcoin. O futuro do bitcoin, por enquanto, ainda é incerto. É provável que os governos de vários países usem toda a sua força contra essa criptomoeda, já que ela representa uma real possibilidade de quebra do monopólio estatal sobre o dinheiro, o que seria um grande avanço no caminho de uma sociedade mais livre e próspera. CONCEITO, CARACTERÍSTICAS E PRINCÍPIOS DOS TÍTULOS DE CRÉDITO O conceito de título de crédito unanimemente aceito pelos doutrinadores é o que foi dado por Cesare Vivante. O grande jurista italiano definiu título de crédito como o documento necessário ao exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado. Tal conceito foi adotado pelo Código Civil, que em seu art. 887 dispõe que “o título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei”. O conceito de Vivante é o ideal porque nos remete, por intermédio das expressões “necessário”, “literal” e “autônomo”, aos três princípios informadores do regime jurídico cambial: a) cartularidade; b) literalidade; c) autonomia. Alguns autores ainda apontam outros princípios, como a independência/substantividade e a legalidade/tipicidade. Independentes seriam os títulos autossuficientes, ou seja, que não dependem de nenhum outro documento para completá-los (por exemplo: letra de câmbio, nota promissória, cheque e duplicata). Já o princípio da legalidade significa que os títulos de crédito são tipos legais, ou seja, só receberiam a qualificação de título de crédito aqueles documentos assim definidos em lei. Ademais, segundo a doutrina especializada, do conceito de títulos podemos extrair também suas principais características. Primeiro, os títulos de crédito possuem natureza essencialmente comercial, 4.1. daí porque o direito cambiário é sub-ramo específico do direito comercial, desenvolvido com a finalidade clara de conferir aos títulos de crédito as prerrogativas necessárias ao cumprimento de sua função primordial: circulação de riqueza com segurança. Pode-se dizer ainda que os títulos de crédito (i) são documentos formais, por precisarem observar os requisitos essenciais previstos na legislação cambiária, (ii) são considerados bens móveis (nesse sentido, aliás, dispõem os arts. 82 a 84 do Código Civil), sujeitando-se aos princípios que norteiam a circulação desses bens, como o que prescreve que a posse de boa-fé vale como propriedade, e (iii) são títulos de apresentação, por serem documentos necessários ao exercício dos direitos neles contidos. Outra característica dos títulos de crédito é que eles constituem títulos executivos extrajudiciais (art. 585 do Código de Processo Civil), por configurarem uma obrigação líquida e certa. Destaque-se também que os títulos de crédito representam obrigações quesíveis (querable), cabendo ao credor dirigir-se ao devedor para receber a importância devida, e que a emissão do título e a sua entrega ao credor têm, em regra, natureza pro solvendo, isto é, não implica novação no que se refere à relação jurídica que deu origem ao título: a relação jurídica que originou o título, portanto, não irá se confundir com a relação cambiária representada pelo título emitido. Por fim, cabe ressaltar que o título de crédito é título de resgate, porque sua emissão pressupõe futuro pagamento em dinheiro que extinguirá a relação cambiária, e é também um título de circulação, uma vez que sua principal função é, como já afirmamosreiteradas vezes, a circulabilidade do crédito. Princípios e características dos títulos de crédito: Princípio da cartularidade Quando se afirma que o título de crédito é o documento necessário ao exercício do direito nele mencionado, há uma referência clara ao princípio da cartularidade, segundo o qual se entende que o 4.1.1. exercício de qualquer direito representado no título pressupõe a sua posse legítima. O titular do crédito representado no título deve estar na posse deste (ou seja, da cártula), que se torna, pois, imprescindível para a comprovação da própria existência do crédito e da sua consequente exigibilidade. Em síntese, o princípio da cartularidade nos permite afirmar que o direito de crédito mencionado na cártula não existe sem ela, não pode ser transmitido sem a sua tradição e não pode ser exigido sem a sua apresentação. É em função da obediência ao princípio da cartularidade que alguns autores inserem os títulos de crédito na categoria de documentos dispositivos, que consistem, justamente, naqueles documentos que são imprescindíveis para o exercício dos direitos que eles representam. Também se costuma utilizar, com o mesmo sentido de cartularidade, a expressão princípio da incorporação, segundo o qual o direito de crédito materializa-se no próprio documento, não existindo o direito sem o respectivo título. A incorporação, pois, representa a relação direta que se opera entre o documento e o direito de crédito, não existindo este sem aquele. Em obediência ao princípio da cartularidade, (i) a posse do título pelo devedor presume o pagamento do título, (ii) só é possível protestar o título apresentando-o, (iii) só é possível executar o título apresentando-o, não suprindo a sua ausência nem mesmo a apresentação de cópia autenticada. A desmaterialização dos títulos de crédito É preciso destacar, todavia, que o princípio da cartularidade ou incorporação, hodiernamente, vem sendo posto em xeque, em virtude do crescente desenvolvimento tecnológico e da consequente criação de títulos de crédito magnéticos, ou seja, que não se materializam numa cártula. O próprio Código Civil estabeleceu expressamente em seu art. 889, § 3.º, que “o título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo”. A doutrina tem se referido a esse processo como a desmaterialização dos títulos de crédito, que acaba por contestar, de certa forma, o princípio da cartularidade, dada a proliferação dos títulos em meio magnético, sem que eles sejam, enfim, materializados num documento em meio físico. A desmaterialização dos títulos de crédito, enfim, por permitir a criação de títulos não cartularizados, ou seja, não documentados em papel, cria situações em que, por exemplo, o credor pode executar um determinado título de crédito sem a necessidade de apresentá-lo em juízo. É o que ocorre com as chamadas duplicatas virtuais, muito comuns na praxe mercantil, as quais podem ser executadas mediante a apresentação, apenas, do instrumento de protesto por indicações e do comprovante de entrega das mercadorias (art. 15, § 2.º, da Lei 5.474/1968). Nesse sentido, vale lembrar a inovação trazida pela Lei 11.419/2006, a qual deu nova redação ao art. 365, § 2.º, do CPC/1973, que passou a ter o seguinte teor: “tratando-se de cópia digital de título executivo extrajudicial ou outro documento relevante à instrução do processo, o juiz poderá determinar o seu depósito em cartório ou secretaria”. Essa disposição foi repetida pelo CPC/2015, no art. 425, § 2º. Vale destacar também a Lei 11.076/2004, que criou títulos eletrônicos para o agronegócio. Enfim, o processo de desmaterialização dos títulos de crédito é uma consequência natural do desenvolvimento do comércio eletrônico, que exige que repensemos o conceito de documento, o qual não pode mais ser visto apenas como algo materializado em papel. O documento eletrônico é uma realidade já consolidada nos dias atuais, e o mercado, obviamente, foi quem mais rápido se adaptou a ela, criando a assinatura digital, por meio do sistema de criptografia. Atualmente, o Brasil já possui regulamentação legal da matéria: trata-se da Medida Provisória 2.200/2, de 2001, a qual instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) e que dispôs, em seu art. 1.º, o seguinte: “Fica instituída a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras”. Finalmente, em consonância com esse processo de desmaterialização dos títulos de crédito, foram editados os Enunciados 460 e 461 da Jornada de Direito Civil do CJF, que possuem a seguinte redação, respectivamente: “Art. 889. As duplicatas eletrônicas podem ser protestadas por indicação e constituirão título executivo extrajudicial mediante a exibição pelo credor do instrumento de protesto, acompanhado do comprovante de entrega das mercadorias ou de prestação dos serviços”; “Art. 889, § 3.º Os títulos de crédito podem ser emitidos, aceitos, endossados ou avalizados eletronicamente, mediante assinatura com certificação digital, respeitadas as exceções previstas em lei”. No mesmo sentido, decidiu o STJ pela validade da chamada duplicata virtual: Embargos de divergência em recurso especial. Divergência demonstrada. Execução de título extrajudicial. Duplicata virtual. Protesto por indicação. Boleto bancário acompanhado do instrumento de protesto, das notas fiscais e respectivos comprovantes de entrega das mercadorias. Executividade reconhecida. 1. Os acórdãos confrontados, em face de mesma situação fática, apresentam solução jurídica diversa para a questão da exequibilidade da duplicata virtual, com base em boleto bancário, acompanhado do instrumento de protesto por indicação e das notas fiscais e respectivos comprovantes de entrega de mercadorias, o que enseja o conhecimento dos embargos de divergência. 2. Embora a norma do art. 13, § 1.º, da Lei 5.474/1968 permita o protesto por indicação nas hipóteses em que houver a retenção da duplicata enviada para aceite, o alcance desse dispositivo deve ser ampliado para harmonizar-se também com o instituto da duplicata virtual, conforme previsão constante dos arts. 8.º e 22 da Lei 9.492/1997. 3. A indicação a protesto das duplicatas mercantis por meio magnético ou de 4.2. gravação eletrônica de dados encontra amparo no art. 8.º, parágrafo único, da Lei 9.492/1997. O art. 22 do mesmo Diploma Legal, a seu turno, dispensa a transcrição literal do título quando o Tabelião de Protesto mantém em arquivo gravação eletrônica da imagem, cópia reprográfica ou micrográfica do título ou documento da dívida. 4. Quanto à possibilidade de protesto por indicação da duplicata virtual, deve-se considerar que o que o art. 13, § 1.º, da Lei 5.474/1968 admite, essencialmente, é o protesto da duplicata com dispensa de sua apresentação física, mediante simples indicação de seus elementos ao cartório de protesto. Daí, é possível chegar-se à conclusão de que é admissível não somente o protesto por indicação na hipótese de retenção do título pelo devedor, quando encaminhado para aceite, como expressamente previsto no referido artigo, mas também na de duplicata virtual amparada em documento suficiente. 5. Reforça o entendimento acima a norma do § 2.º do art. 15 da Lei 5.474/1968, que cuida de executividade da duplicata não aceita e não devolvida pelo devedor, isto é, ausente o documentofísico, autorizando sua cobrança judicial pelo processo executivo quando esta haja sido protestada mediante indicação do credor, esteja acompanhada de documento hábil comprobatório da entrega e recebimento da mercadoria e o sacado não tenha recusado o aceite pelos motivos constantes dos arts. 7.º e 8.º da Lei. 6. No caso dos autos, foi efetuado o protesto por indicação, estando o instrumento acompanhado das notas fiscais referentes às mercadorias comercializadas e dos comprovantes de entrega e recebimento das mercadorias devidamente assinados, não havendo manifestação do devedor à vista do documento de cobrança, ficando atendidas, suficientemente, as exigências legais para se reconhecer a executividade das duplicatas protestadas por indicação. 7. O protesto de duplicata virtual por indicação apoiada em apresentação do boleto, das notas fiscais referentes às mercadorias comercializadas e dos comprovantes de entrega e recebimento das mercadorias devidamente assinados não descuida das garantias devidas ao sacado e ao sacador. 8. Embargos de divergência conhecidos e desprovidos (EREsp 1.024.691/PR, Rel. Min. Raul Araújo, Segunda Seção, j. 22.08.2012, DJe 29.10.2012). Princípio da literalidade Quando se diz que o título de crédito é o documento necessário ao exercício do direito literal nele representado, faz-se referência expressa ao princípio da literalidade, segundo o qual o título de crédito 4.3. vale pelo que nele está escrito. Nem mais, nem menos. Em outros termos, nas relações cambiais somente os atos que são devidamente lançados no próprio título produzem efeitos jurídicos perante o seu legítimo portador. A literalidade, em síntese, é o princípio que assegura às partes da relação cambial a exata correspondência entre o teor do título e o direito que ele representa. Por um lado, o credor pode exigir tudo o que está expresso na cártula, não devendo se contentar com menos. Por outro, o devedor também tem o direito de só pagar o que está expresso no título, não admitindo que lhe seja exigido nada mais. Daí porque Tullio Ascarelli mencionava que o princípio da literalidade age em duas direções, uma positiva e outra negativa. Perceba-se a importância do princípio da literalidade para que os títulos de crédito cumpram de forma segura a sua função precípua de circulação do crédito: como a pessoa que recebe o título tem a certeza de que a partir de sua simples leitura ficará ciente de toda a extensão do crédito que está recebendo, sente-se segura a realizar a operação. Assim, uma quitação parcial, por exemplo, deve ser feita no próprio título, porque, caso contrário, poderá ser contestada. O mesmo ocorre, também, com o aval e com o endosso. Um aval tem que ser feito no próprio título, sob pena de não produzir efeito de aval. O endosso, da mesma forma, tem de ser feito no próprio título, sob pena de não valer como endosso. Se o aval é feito, eventualmente, num instrumento separado do título, não será válido como aval, porque não respeita o princípio da literalidade. Poderá valer, no máximo, como uma fiança, que é um instituto do direito civil assemelhado ao aval, porém com efeitos jurídicos diversos. Princípio da autonomia O terceiro e mais importante princípio relacionado aos títulos de crédito, considerado a pedra fundamental de todo o regime jurídico cambial, é o princípio da autonomia. Por esse princípio, entende- se que o título de crédito configura documento constitutivo de direito novo, autônomo, originário e completamente desvinculado da relação que lhe deu origem. Assim, as relações jurídicas representadas num determinado título de crédito são autônomas e independentes entre si, razão pela qual o vício que atinge uma delas, por exemplo, não contamina a(s) outra(s). Melhor dizendo: o legítimo portador do título pode exercer seu direito de crédito sem depender das demais relações que o antecederam, estando completamente imune aos vícios ou defeitos que eventualmente as acometeram. Assim, como bem ensinou o próprio Cesare Vivante, o direito representado num título de crédito é autônomo porque a sua posse legítima caracteriza a existência de um direito próprio, não limitado nem destrutível por relações anteriores. Um exemplo prático explica melhor. Digamos que “A” compra um carro de “B”, sendo esta compra instrumentalizada por meio da emissão de uma nota promissória no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais). “B”, por sua vez, tem uma dívida perante “C” no valor aproximado de R$ 10.000,00 (dez mil 4.3.1. reais). Nesse caso, “B” poderá quitar a dívida que tem perante “C” utilizando-se da nota promissória dada por “A”, endossando-a (o endosso, como veremos a seguir, é o ato cambial próprio para transferir um título de crédito) para “C”, que se torna o titular dessa nota, podendo cobrar o seu respectivo valor de “A” na data do vencimento. Nessa hipótese, “A” poderá recusar-se ao pagamento do título alegando, por exemplo, eventual nulidade da venda que “B” lhe fez, venda essa que, como dito acima, originou a emissão da nota promissória? A resposta é negativa, e a justificativa está exatamente na aplicação do princípio da autonomia dos títulos de crédito. Ora, se as relações representadas naquele título são autônomas e independentes, os eventuais vícios que maculam a relação de “A” com “B” não atingem a relação de “B” com “C” nem a relação deste com “A”. Pode-se entender, agora, por que afirmamos que o princípio da autonomia é o mais importante princípio do regime jurídico cambial. Não fosse ele, não haveria segurança nas relações cambiais, e os títulos perderiam suas principais características: a negociabilidade e a circulabilidade. Afinal, ninguém se sentiria seguro ao receber um título de crédito como pagamento, via endosso, haja vista a possibilidade de ser surpreso pela alegação de um vício anterior, do qual sequer tinha conhecimento. Em decorrência do princípio da autonomia, portanto, a pessoa que recebe um título de crédito numa negociação não precisa se preocupar em investigar a sua origem nem as relações que eventualmente o antecederam, uma vez que ainda que tais relações existam e estejam viciadas, elas não contaminam as relações futuras decorrentes da circulação desse mesmo título. A abstração dos títulos de crédito e a inoponibilidade das exceções pessoais ao terceiro de boa-fé Decorrentes do princípio da autonomia, há dois outros importantes princípios – ou subprincípios, como preferem alguns autores, uma vez que não trazem nenhuma ideia nova em relação à autonomia, mas apenas uma outra forma de se encarar este princípio. Trata-se dos subprincípios da abstração e da inoponibilidade das exceções pessoais ao terceiro de boa-fé. Segundo o subprincípio da abstração, entende-se que quando o título circula, ele se desvincula da relação que lhe deu origem. Assim, no exemplo dado anteriormente, quando “B” endossou o título para “C”, fazendo-o circular, tal título se desvinculou da operação que lhe deu origem – a compra e venda do carro. A abstração significa, portanto, a completa desvinculação do título em relação à causa que originou sua emissão. Veja-se que enquanto a relação cambial é travada entre os próprios sujeitos que participaram da relação que originou o título, existe uma vinculação entre esta relação e o título dela originado. No mesmo exemplo já mencionado, se “B” não circula o título para “C”, há uma vinculação entre o título emitido e a relação de compra e venda que acarretou sua emissão. Resta claro, portanto, que a circulação do título é fundamental para que se opere a sua abstração, ou seja, para que o título se desvincule completamente do seu negócio originário.Posto em circulação, o título passará a vincular outras pessoas, que não participaram da relação originária, e que por isso assumem obrigações e direitos tão somente em função do título, representado pela cártula. Não custa lembrar, ainda, que essa abstração, decorrente do princípio da autonomia dos títulos de crédito, desaparecerá com a prescrição do título. A prescrição do título opera, pois, não apenas a perda da sua executividade, mas também a perda da sua cambiaridade, ou seja, o título perde as suas características intrínsecas de título de crédito, dentre elas a abstração. Por isso, caberá ao credor, na cobrança de título prescrito, demonstrar a origem da dívida, o locupletamento ilícito do devedor etc., conforme tem decidido o Superior Tribunal de Justiça: Direito comercial e processual civil. Agravo no agravo de instrumento. Embargos à ação monitória. Nota promissória prescrita. Propositura de ação contra o avalista. Necessidade de se demonstrar o locupletamento. Precedentes. Prescrita a ação cambial, desaparece a abstração das relações jurídicas cambiais firmadas, devendo o beneficiário do título demonstrar, como causa de pedir na ação própria, o locupletamento ilícito, seja do emitente ou endossante, seja do avalista. Agravo não provido (STJ, AgRg no AG 549.924/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 05.04.2004, p. 260). Direito Comercial. Recurso Especial. Embargos à ação monitória. Cheque prescrito. Propositura de ação contra o avalista. Necessidade de se demonstrar o locupletamento. Precedente. – Prescrita a ação cambial, desaparece a abstração das relações jurídicas cambiais firmadas, devendo o beneficiário do título demonstrar, como causa de pedir na ação própria, o locupletamento ilícito, seja do emitente ou endossante, seja do avalista. – Recurso especial a que não se conhece (STJ, REsp 457.556/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 16.12.2002, p. 331). O princípio da inoponibilidade das exceções pessoais (a expressão exceção é aqui utilizada em seu sentido técnico-processual, significando defesa) ao terceiro de boa-fé, por sua vez, nada mais é do que a manifestação processual do princípio da autonomia. Assim, ainda utilizando o exemplo acima mencionado, se “A”, procurado por “C”, não paga a dívida constante do título, “C” poderá executar “A”, e este, ao apresentar os embargos, não poderá opor o vício existente na relação originária, travada entre “A” e “B”. Com efeito, os vícios relativos à relação que originou o título são oponíveis apenas contra “B”, mas não contra “C”, terceiro de boa-fé que recebeu o título legitimamente. Afinal, em função do princípio da autonomia, o portador legítimo do título de crédito exerce um direito próprio e autônomo, desvinculado das relações jurídicas antecedentes, por força do subprincípio da abstração. Sendo assim, o portador do título não pode ser atingido por defesas relativas a negócio do qual ele não participou. O título chega a ele completamente livre dos vícios que eventualmente adquiriu em relações pretéritas. A inoponibilidade das exceções pessoais ao terceiro de boa-fé está assegurada pelo art. 17 da Lei Uniforme, segundo o qual “as pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador 5. 5.1. exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”. No mesmo sentido, dispõe o art. 916 do Código Civil que “as exceções fundadas em relação de devedor com os portadores precedentes, somente poderão ser por ele opostas ao portador, se este, ao adquirir o título tiver agido de má-fé”. Vale ressaltar que a boa-fé do portador do título se presume. Por essa razão, se o devedor quiser opor exceções pessoais contra ele, deverá se desincumbir do ônus de provar a sua má-fé, demonstrando, por exemplo, que houve conluio entre o atual portador do título e seu antigo titular. Não demonstrada a má-fé, todavia, as exceções pessoais, como já frisamos, são inoponíveis ao terceiro de boa-fé, que exercerá seu direito de crédito sem ser atingido por nenhum vício ligado a relações anteriores. As defesas que o devedor pode opor a um terceiro de boa-fé, portanto, resumem-se, basicamente, àquelas que digam respeito a relações diretas entre eles, bem como eventuais alegações relativas a vício de forma do título, ao próprio conteúdo literal da cártula, a prescrição, a falsidade, entre outras. Por fim, vale destacar que alguns autores confundem a abstração como subprincípio do regime jurídico cambial e a abstração que caracteriza os chamados títulos de crédito abstratos, que não têm a sua emissão condicionada a certas causas previstas em lei, o que ocorre apenas com os títulos causais. CLASSIFICAÇÃO DOS TÍTULOS DE CRÉDITO Costuma-se classificar os títulos de crédito a partir de diversos critérios. Passaremos, a partir de agora, a abordar os principais critérios classificatórios utilizados pela doutrina. Quanto à forma de transferência ou circulação Sendo a negociabilidade e a circulabilidade as principais características dos títulos de crédito, conforme já apontamos, a classificação deles quanto à forma de transferência merece destaque. Segundo esse critério, os títulos podem ser: a) ao portador; b) nominal à ordem; c) nominal não à ordem; e d) nominativos. Título ao portador é aquele que circula pela mera tradição (art. 904 do Código Civil), uma vez que neles a identificação do credor não é feita de forma expressa. Sendo assim, qualquer pessoa que esteja com a simples posse do título é considerada titular do crédito nele mencionado. A simples transferência do documento (cártula), portanto, opera a transferência da titularidade do crédito. Título nominal, por sua vez, é aquele que identifica expressamente o seu titular, ou seja, o credor. A transferência da titularidade do crédito, pois, não depende apenas da mera entrega do documento (cártula) a outra pessoa: é preciso, além disso, praticar um ato formal que opere a transferência da titularidade do crédito. Nos títulos nominais com cláusula “à ordem”, esse ato formal é o endosso, típico do regime jurídico cambial (art. 910 do Código Civil). Já nos títulos nominais com cláusula “não à 5.2. 5.3. ordem” esse ato formal é a cessão civil de crédito, a qual, como o próprio nome já indica, submete-se ao regime jurídico civil. Por fim, os títulos nominativos, segundo o art. 921 do Código Civil, são aqueles emitidos em favor de pessoa determinada, cujo nome consta de registro específico mantido pelo emitente do título. Nesse caso, portanto, a transferência só se opera validamente por meio de termo no referido registro, o qual deve ser assinado pelo emitente e pelo adquirente do título (art. 922 do Código Civil). Em regra, os títulos de crédito típicos, nominados ou próprios – letra de câmbio, nota promissória, cheque e duplicata – são títulos nominais à ordem, ou seja, devem ser emitidos com indicação expressa do beneficiário do crédito e podem circular via endosso. O único caso de título ao portador, quanto a estes títulos próprios, é o do cheque até o limite de R$ 100,00 (cem reais), conforme veremos adiante. Quanto ao modelo Segundo esse critério classificatório, os títulos de crédito podem ser títulos de modelo livre ou títulos de modelo vinculado. Título de modelo livre é aquele para o qual a lei não estabelece uma padronização obrigatória, ou seja, a sua emissão não se sujeita a uma forma específica preestabelecida. É o que ocorre, por exemplo, com a letra de câmbio e com a nota promissória, títulos de crédito que podem ser criados em uma simples folha de papel, bastando para tanto que nela constem os requisitos essenciais desses títulos. Já o título de modelo vinculado,ao contrário, se submete a uma rígida padronização fixada pela legislação cambiária específica, só produzindo feitos legais quando preenchidas as formalidades legais exigidas. É o que ocorre com o cheque e com a duplicata. Esta, por exemplo, em obediência ao disposto no art. 27 da Lei das Duplicatas (Lei 5.474/1968), deve ser emitida segundo as normas fixadas pelo Conselho Monetário Nacional. Quanto à estrutura Segundo esse critério classificatório, os títulos de crédito podem ser uma ordem de pagamento ou uma promessa de pagamento. Os títulos que se estruturam como ordem de pagamento – letra de câmbio, cheque e duplicata – se caracterizam por estabelecerem três situações jurídicas distintas a partir da sua emissão: em primeiro lugar, tem-se a figura do sacador, que emite o título, ou seja, ordena o pagamento; em segundo lugar, tem- se a situação do sacado, contra quem o título é emitido, ou seja, trata-se da pessoa que recebe a ordem de pagamento; por fim, tem-se a figura do tomador (ou beneficiário), em favor de quem o título é emitido, isto é, pessoa a quem o sacado deve pagar, em obediência à ordem que lhe foi endereçada pelo sacador. No cheque, por exemplo, que se estrutura como uma ordem de pagamento, como dito acima, podem- se ser facilmente identificadas as figuras do sacador (correntista que emite o cheque), do sacado (instituição financeira que cumprirá a ordem de pagamento que lhe foi dada) e o tomador (terceiro que 5.4. recebe o cheque como forma de pagamento e que irá descontá-lo). Por outro lado, nos títulos que se estruturam como promessa de pagamento – nota promissória – existem apenas duas situações jurídicas distintas: de um lado tem-se a figura do sacador ou promitente, que promete pagar determinada quantia; de outro, tem-se a situação do tomador, beneficiário da promessa que receberá o valor prometido. Quanto às hipóteses de emissão Por fim, os títulos de crédito, segundo esse derradeiro critério classificatório, podem ser títulos causais ou títulos abstratos. Título causal é aquele que somente pode ser emitido nas restritas hipóteses em que a lei autoriza a sua emissão. É o caso, por exemplo, da duplicata, que só pode ser emitida, como será visto com mais detalhes adiante, para documentar a realização de uma compra e venda mercantil (duplicata mercantil) ou um contrato de prestação de serviços (duplicata de serviços). Título abstrato, por sua vez, é aquele cuja emissão não está condicionada a nenhuma causa preestabelecida em lei. Em síntese: podem ser emitidos em qualquer hipótese. É o caso, por exemplo, do cheque, que pode ser emitido para documentar qualquer relação negocial. Nesse ponto, é preciso reforçar observação que já fizemos anteriormente: não se deve confundir a abstração como subprincípio do regime jurídico cambial com a abstração ora analisada. Aquela, como visto, é um predicado de qualquer título de crédito, já que todos eles podem circular e, consequentemente, se desprender da relação que lhes deu origem. Esta significa tão somente um atributo que alguns títulos ostentam, o de não ter sua emissão submetida a causas preestabelecidas na legislação. No entanto, é preciso deixar claro que essa é uma opinião particular nossa, a qual, a despeito de ser compartilhada por alguns autores de renome, não é seguida, ao que nos parece, pela doutrina majoritária. Muitos autores, pois, tratam a abstração com um único sentido, razão pela qual defendem que os títulos causais, como a duplicata, não se desvinculariam da relação original, ainda que postos em circulação. 6. 6.1. TÍTULOS DE CRÉDITO EM ESPÉCIE Dentre os principais títulos de crédito previstos na legislação brasileira, destacam-se quatro: (i) letra de câmbio, (ii) nota promissória, (iii) cheque e (iv) duplicata. São títulos que possuem disciplina legal específica e que, por isso, são denominados comumente de títulos de crédito próprios ou típicos. Letra de câmbio Trata-se, talvez, do título de crédito com origem histórica mais remota, já mencionada, em linhas gerais, no tópico inicial do presente capítulo. No período italiano da evolução do direito cambiário, situado na Idade Média, a descentralização do poder político favoreceu o surgimento de cidades (burgos) com relativa autonomia, a qual se manifestava, sobretudo, na utilização de moeda própria. Isso, por sua vez, exigiu o desenvolvimento das operações de câmbio, dado o fato de que as moedas de cada cidade eram diferentes. A letra de câmbio, pois, surge como decorrência dessas operações cambiais (câmbio trajetício). 6.1.1. Com efeito, quando um determinado comerciante realizava negócios em determinada cidade, acumulava uma soma de riqueza representada por moeda local. Ao chegar a outra localidade, todavia, a moeda era diferente. Ele, então, sempre que deixava uma cidade na qual negociara, trocava todo o seu dinheiro com um banqueiro, que lhe entregava uma carta (littera cambii), ordenando que outro banqueiro pagasse a quantia nela fixada ao seu portador. A letra de câmbio é considerada pelos doutrinadores como o título mais apropriado para servir de referência no estudo da teoria geral dos atos cambiários, em razão de sua estrutura permitir, com mais facilidade, o exame dos aspectos mais relevantes relacionados à constituição e à exigibilidade do crédito cambial. Trata-se, todavia, de título que não vingou no Brasil, tendo sido substituído, na praxe comercial, pela duplicata. Alguns autores afirmam que a letra de câmbio não teria tido aceitação no Brasil por possuir uma sistemática interessante: é emitida por alguém para que outro aceite e pague. Enfim, é um título de crédito que depende sobremaneira da boa-fé. Saque da letra A letra de câmbio é um título de crédito que se estrutura como ordem de pagamento, razão pela qual, ao ser emitida, dá origem a três situações jurídicas distintas: a) a do sacador, que emite a ordem; b) a do sacado, a quem a ordem é destinada; c) a do tomador, que é o beneficiário da ordem. Essas três situações jurídicas distintas a que nos referimos acima não precisam, necessariamente, estar ocupadas por três pessoas diferentes. De fato, a Lei Uniforme admite, em seu art. 3.º, que a letra seja sacada: (i) à ordem do próprio sacador; (ii) sobre o próprio sacador; ou (iii) por ordem e conta de terceiro. No primeiro caso, o sacador e o tomador são a mesma pessoa, ou seja, a letra é emitida por alguém em seu próprio benefício. No segundo caso, o sacador e o sacado são a mesma pessoa, ou seja, a letra é emitida pelo sacado contra ele mesmo. Já no terceiro caso, ocorre a situação usual, em que as três situações jurídicas são ocupadas por sujeitos de direito também distintos, ou seja, uma pessoa (sacador) ordena que alguém (sacado) pague a outrem (tomador). Em tese, a letra de câmbio deve ser emitida preenchendo os seus requisitos essenciais, estabelecidos na legislação (arts. 1.º e 2.º da Lei Uniforme): a) a expressão letra de câmbio (cláusula cambiária); b) uma ordem incondicional para pagamento de quantia determinada; c) o nome do sacado; d) o nome do tomador; e) a assinatura do sacador; f) a data do saque; g) o lugar do pagamento ou a menção de um lugar junto ao nome do sacado; h) o lugar do saque ou a menção de um lugar junto ao nome do sacador. Quanto ao segundo requisito, perceba-se que não se admite que o cumprimento da obrigação mencionada na letra fique sujeito à implementação de qualquer condição, suspensiva ou resolutiva. E mais: quanto ao valor da letra, deve ser mencionada a moeda de pagamento, e o art. 1.º, inciso II, do Decreto 2.044/1908 estabelece que as letras emitidas em território brasileiro devem ser pagas em moeda nacional. Admite-se também emissão de letra com indexação, desde que o índice seja conhecido e de ampla utilização na praxe comercial.
Compartilhar