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A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

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A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
 
 A outra grande contribuição da Corte germânica sobre a liberdade de expressão é um julgamento sobre a eficácia privada dos direitos fundamentais[footnoteRef:1]. [1: BVerfGE 7, 198 (Lüth-Urteil).] 
 Essa eficácia irradiante existe, pois é a primeira conseqüência decorrente do caráter principiológico dos direitos, o que já está sedimentado na jurisprudência do Tribunal Constitucional da Alemanha[footnoteRef:2]. A liberdade de expressão do pensamento, de informação, de imprensa, de radiodifusão e de cinematografia que tem como base o artigo 51 da GG tem outros julgamentos importantes[footnoteRef:3]. Ainda há uma importante jurisprudência firmada no tocante aos direitos relativos à manifestação do pensamento como a liberdade de crença, consciência e confessional[footnoteRef:4], como recusa da prestação do serviço militar de guerra tem base o artigo 4 do GG [2: MARTÍNEZ, María Salvador. La libertad de la televisión, p. 181. Segundo a autora, a jurisprudência tem sido neste sentido, desde o primeiro momento e cita: BverfGE 12, 205 (260); 31,314 , 329); 57, 295 (320, 333 e ss).] [3: BVerfGE 12, 113 (Schmid-Spiegel): BVerfGE 25, 256 (Blinkfüer); BVerfGE 44, 197 (Solidaritätsadresse); BVerfGE 93, 266 (“Soldaten sind Mörder”); . BVerfGE 90, 27 (Parabolantenne); BVerfGE 20, 162 (Spiegel-Urteil); BVerfGE 102, 347 (Benetton / Schockwerbung); BVerfGE 52, 283 (Tendenzbetrieb); BVerfGE 12, 205; (1.Rundfunkentscheidung); BVerfGE 57, 295 (3. Rundfunkentscheidung); BVerfGE 73, 118 (4. Rundfunkentscheidung) e BVerfGE 35, 202 (Lebach).] [4: BVerfGE 32, 98 (Gesundbeter); BVerfGE 24, 236 (Aktion Rumpelkammer); BVerfGE 33, 23 (Eidesverweigerung aus Glaubensgründen).
43. BVerfGE 93, 1 (Kruzifix)] 
 Todavia, noque diz respeito à liberdade artística, que está prevista no artigo 5, III, Jürgen Schwabe selecionou apenas um julgamentos na coletânia jurisprudencial do Tribunal Constitucional[footnoteRef:5]. [5: SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, p.495. BVerfGE 30, 173 (Mephisto).] 
 A aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas tem como antecedente histórico o julgamento enolvendo a liberdade de expressão no caso Lüth registrado em 1958.
 Erich Lüth, Presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo comandou um boicote contra a exibição de um filme produzido por um famoso cineasta alemão Veit Harlan, que tinha feito muitos filmes com o apoio do Estado antes e durante a Segunda Guerra Mundial. A base do julgamento foi o artigo 5, que estabelece a liberdade de expressão do pensamento, informação, de imprensa, de radiodifusão e de cinematografia, bem como a liberdade artística e científica. 
 O dipositivo do artigo 5 diz que todos têm o direito de livremente expressar e divulgar seu pensamento por palavra, por escrito e por imagem e, sem impedimentos, informar-se a partir de fontes a todos acessíveis. A liberdade de imprensa e a liberdade de noticiar por radiodifusão e cinematografia são garantidas e não há censura. Todos estes direitos têm seus limites fixados nas normas das leis gerais, nos dispositivos legais para a proteção da infância e juventude e no direito à honra pessoal. Os direitos englobam ainda à prestação da informação pelo Estado e a liberdade de imprensa (Art. 5 I 2, 1ª variante GG). Há ainda no julgamento do caso presente a discussão da liberdade de noticiar por radiodifusão, ou simplesmente liberdade de radiodifusão (Art. 5 I 2, 2ª variante GG) e a liberdade de noticiar por cinematografia, ou simplesmente liberdade de cinematografia (Art. 5 I 2, 3ª variante GG). Embora os direitos de comunicação social (contidos Art. 5 I 2 GG, correspondendo aos três últimos da lista supra) tenham sido positivados na Constituição(Grundgesetz), a partir de sua área de proteção objetiva (ex.: “a liberdade de imprensa ... (é) garantida”), eles outorgaram também direitos subjetivos. Esse entendido é praticamente unânime na literatura especializada e, pelo menos, desde o Spiegelurteil (Decisão 50.)[footnoteRef:6]. É o entendimento oficial do Tribunal Constitucional Federal. Como se verá, a dogmática em torno da liberdade de imprensa gira em torno de suas duas dimensões (a subjetiva e a objetiva) serviu em grande parte de protótipo do desenvolvimento da dogmática geral dos direitos fundamentais, no caso inclusive. Há na decisão fatos que formara jurisprudência que relatam o significado prático liberdade de noticiar por cinematografia, bem como da liberdade de crítica. A liberdade para a realização de um filme continua, porém, sendo tutelada pelo Art. 5 I 1 GG e principalmente pelo Art. 5 III GG, que prescreve a liberdade artística, além de dos direitos fundamentais restantes de comunicação individual e social. [6: SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, p.379.] 
 No julgamento realizado pelo Tribunal Estadual de Hamburgo, Luth havia sido responsabilizado pelo boicote, com base no artigo 826 da Norma Substantiva da Alemanha, que obrigava o causador de danos a compensar o dano.  Contudo, houve a interposição de um recurso junto à Corte Constitucional Alemã, que reformou a decisão justificando que a sentença prolatada em Hamburgo havia desrespeitada o direito de opinião e a liberdade de expressão de Erich Lüch. Curiosamente, os fatos que deram origem à discussão jurídica foram ligados inicialmente ao direito privado envolvendo um judeu e um alemão já na Alemanha democrática.
 O alemão Veit Harlan era um produtor de cinema congrado e depois do regime nazista, ganhava a vida fazendo e dirigindo filmes. Nos anos 50, dirigiu um filme romântico chamado “Amada Imortal”. O conteúdo do filme nunca sofreu um questionamento de conteúdo.
 O problema todo era que durante o nazismo, Veit Harlan havia sido colaborador de Jozef Göbles, ministro da Propaganda de Adolf Hitler. No cinema alemão era o principal responsável pelos filmes de divulgação das idéias nazistas, de conteúdo anti-semita e da supremacia da raça ariana. As idéias nazistas estão especialmente por força do filme “Jud SüB”, de 1941, considerado como uma das mais odiosas e negativas representações dos judeus no cinema. Coisas que ficaram no passado, afimrou em sua defesa nos tribunais, pois havia agora uma democracia. Todavia ainda assim, algo muito vivo na memória dos judeus alemães que haviam sobtevivido as perseguições. Os judeus, por sua vez, afirmavam que um filme de conteúdo nazista não se apaga com a história
 No período que antecedeu o lançamento do filme “Amada Imortal”, vários judeus de prestígio e de influência na mídia alemã resolveram boicotá-lo, ainda que o filme não tivesse nada que lembrasse o nazismo ou o anti-semitismo, pois acreditavam que estariam exercendo a liberdade de expressão presente na Lei Fundamental de Bonn.
 Liderando o boicote, surgia Eric Lüth, um judeu-alemão que presidia o Clube de Imprensa. Ele redigiu um contundende manifesto fazendo críticas contra o cineasta, conclamando os “alemães decentes” a não assistirem ao filme. A carta-boicote foi muito divulgada e repercutiu em todo país, pois ganhou as manchetes dos jornais e revistas, além de divulgação nas emissoras de rádio. 
 As manifestações surtiram efeito e o filme foi um fracasso de público, trazendo prejuízos financeiros aos produtores.
 Devido a isso, Veit Harlan, juntamente com os investidores do filme, ingressaram com ação judicial alegando que a atividade jornalística e a liberdade de manifestação do pensamento de Eric Lüth violava o Código Civil alemão. Sustentaram que todo aquele que causa prejuízo deve cessar o ato danoso e reparar os danos causados. A tese prevaleceu em todas as instâncias ordinárias.
 Eric Lüth não se conformou, pois via fundamento constitucional no boicote. Questinava: a Lei Fundamental alemãnão garante a liberdade de expressão? Por que serei punido por exercer uma liberdade constitucional e nada mais fiz mais do que manifestar uma opinião? Com base nisso, recorreu para a Corte Constitucional alemã.
 A Corte Constitucional alemã percebeu e, a partir desse julgamento envolvendo o cinema, que existe a eficácia de direitos fundamentais na relação entre os particulares, inclusive. A Corte desenvolveu alguns conceitos que atualmente são as vigas-mestras da teoria dos direitos fundamentais, como por exemplo: (a) a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, (b) a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e (c) a necessidade de ponderação, em caso de colisão de direitos. No Brasil, esses fenômenos chegaram ainda que com outras roupagens. Fala-se em constitucionalização do direito privado, filtragem constitucional, interpretação conforme os direitos fundamentais etc.
 O primeiro é a constatação de que os direitos fundamentais, como princípios constitucionais que são, e por força do princípio da unidade do ordenamento jurídico, são aplicáveis a toda a ordem jurídica, inclusive privada. O segundo aspecto trata da necessidade de se protegerem os particulares contra atos provenientes de outros particulares que atentem contra seus direitos fundamentais.
 O julgamento do caso traz algumas ponderações importantes para a liberdade de expressão. Uma das questões para solução da questão é o de se saber se a convocação ao boicote segundo esses critérios é imoral “sittenwidrig”, por violar os “bons costumes”. A checagem feita pela Corte também verifica os motivos, o objetivo e a finalidade das expressões. Além disto, a Corte queria examinar se o reclamante, na busca de seus objetivos, não ultrapassou a medida necessária e adequada do comprometimento dos interesses de Harlan e das sociedades cinematográficas.
 Os juízes da Corte entenderam que os motivos que levaram o reclamante às suas expressões, não continham imoralidades. E ainda que reclamante não perseguiu nenhum interesse de natureza econômica, ou seja, não visou seu lucro, pois não era produtor de filmes e não tinha em uma relação de concorrência com os autores e nem com as sociedades cinematográficas. O tribunal estadual na sua decisão feita no processo da ação cautelar, revelou que a audiência não havia “motivos indignos ou egoísticos”. 
 A finalidade das expressões do reclamante foi impedir que Harlan se firmasse como representante importante da produção cinematografia alemã. Buscava impedir que Harlan fosse de novo apresentado como criador de filmes alemães e com isso surgisse a impressão de que um novo crescimento da cinematografia alemã tivesse que ser necessariamente ligado à pessoa de Harlan. Os tribunais não podem julgar se a fixação deste objetivo é aceitável do ponto de vista material, mas tão somente se a sua manifestação na forma escolhida pelo reclamante fora juridicamente admissível.
 As expressões do reclamante precisam ser observadas no contexto de suas intenções políticas gerais e de política cultural. Ele agiu em função da preocupação de que o retorno de Harlan pudesse ser interpretado – sobretudo no exterior – como se na vida cultural alemã nada tivesse mudado com o fim do nazismo. Harlan seria também na democracia novamente o diretor representativo da cinematografia alemã, como fora no nazismo. As preocupações correspondiam a uma questão muito substancial para o povo alemão: a questão de sua postura moral e sua imagem no mundo do Pós-Guerra. Nada comprometeu mais a imagem da Alemanha do que a perseguição e extermínio dos judeus pelo nazismo. Existe, portanto, um interesse decisivo de que o mundo saiba que o povo alemão abandonou essa postura e a condena, não por motivos de oportunismo político, mas por causa do reconhecimento de sua hediondez.
 O Tribunal Constitucional Federal chegou, pelo exposto, à convicção de que o Tribunal Estadual desconheceu, no julgamento do comportamento do reclamante, o significado especial do direito fundamental à livre expressão do pensamento, que também alcança o caso em que ele entra em conflito com interesses privados. A decisão do Tribunal Estadual fundamenta-se nesta falha de aferição e uso dos critérios próprios do direito fundamental e, destarte, viola o direito fundamental do reclamante do Art. 5 I 1 GG. Portanto, a liberdade de expressão e outros direitos humanos alcançam as relações entre os particulares.
 O Supremo Tribunal Federal analisou questão atinente à eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas proferindo decisão de vanguarda por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário 201.819-8.

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