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Dilemas de Direito Civil-Constitucional Casos e decisões sobre os novos desafios para a tutela da pessoa humana nas relações existenciais MARIA CELINA BODIN DE MORAES CARLOS NELSON KONDER 2 Apresentação E allora come può il giurista, che non voglia né sterilmente ripudiare il proprio tempo né dolorosamente piangere il declino, come può non guardarsi tutt’intorno e non aprire il dialogo con il mondo dei filosofi? 1 – Natalino IRTI Esta obra é resultado de um projeto de pesquisa – ou melhor, de vários projetos interligados por uma mesma finalidade – que perdura há cinco anos. Mais do que isso, é fruto de um movimento no sentido de tornar o ensino do direito civil mais rico e interessante, adaptando-o ao novo contexto jurídico em que vivemos, ou, para os mais modernos, a um novo paradigma de interpretação e aplicação do direito contemporâneo. As drásticas transformações sociais ocorridas ao longo do século XX tiveram impacto marcante no Direito, impacto que se revelou ainda mais interessante no direito civil, em virtude de se tratar de ramo cuja dogmática foi construída, a rigor, em um passado distante e, portanto, encontra-se, em princípio, mais desatualizada frente às novas conjunturas. Ao mesmo tempo, por se tratar de ramo do direito repleto de construções científicas tão tradicionais, a resistência de alguns de seus operadores em aceitar abrir mão de seus instrumentais teóricos clássicos e rever o significado de conceitos consolidados é mais aguerrida, sendo maior o seu apego aos moldes que herdaram do passado. De modo geral, o período de grave crise econômica que acarretou o colapso do modelo liberal e deu lugar a mecanismos de intervenção do Estado na economia, aliado à revelação das atrocidades do holocausto nazista por ocasião da segunda guerra mundial, que impuseram uma proteção mais plena da pessoa humana, levaram a uma mudança dramática no âmbito do Direito. Construído a partir de estruturas conceituais que, embora aparentemente neutras, eram inspiradas em valores típicos da sociedade do século XIX – direito subjetivo, sujeito de direito, contrato, propriedade etc. – a dogmática do direito civil se revela axiologicamente inapropriada para a análise dos problemas jurídico-existenciais contemporâneos, permeada que está pelo ethos de uma sociedade burguesa individualista e patrimonialista. 2 1 Tradução livre: “E então, como pode o jurista, que não queira esterilmente repudiar o próprio tempo, nem chorar dolorosamente o declínio, como pode olhar-se em torno e não abrir o diálogo com o mundo dos filósofos?” 2 Cf. Maria Celina BODIN DE MORAES. A caminho de um direito civil constitucional. In Direito, Estado e Sociedade: Revista do Departamento de Direito da PUC-Rio, n. 1, 2ª ed.. Rio de Janeiro: PUC-Rio, jul./dez. 1991, pp. 59-73. Este e os demais textos, de minha autoria, citados neste livro, ora estão revistos 3 Observamos assim a passagem de uma época de segurança para uma época de incertezas. 3 As respostas técnicas tão cuidadosamente elaboradas pelos civilistas do passado não mais atendem aos dilemas de uma sociedade civil multicultural e complexa que aspira ser livre, justa e solidária. Assim, o direito civil contemporâneo abre suas portas para a construção de uma normativa mais democrática, plural e solidarista por meio daquilo que se vem chamando de sua “constitucionalização”. 4 Esta perspectiva consiste em dar plena eficácia à premissa teórica kelseniana sobre a qual se constrói o paradigma jurídico contemporâneo: a superioridade normativa do texto constitucional. A Constituição provê o ordenamento de unidade, coerência e sistematicidade ao determinar a obediência de todas as demais normas, inferiores, aos seus preceitos. Trata-se, como é de se destacar, não apenas de uma obediência formal, no que tange à distribuição de competências, mas também uma subordinação material: as normas inferiores devem concretizar, especificar o conteúdo dos mandamentos constitucionais, em especial os valores que se encontram lá positivados sob a forma de princípios. 5 Esta supremacia da Constituição encontra fundamento no princípio da democracia: enquanto as normas inferiores são elaboradas por uma assembleia de representantes ordinários – o Congresso Nacional –, a Constituição é resultado da deliberação da soberana Assembleia Nacional Constituinte. Portanto, a interpretação e aplicação das normas do direito civil devem sempre ser feitas à luz da legalidade constitucional, sob pena de subversão da hierarquia normativa. Isso exige, por parte da doutrina, um urgente controle de validade dos conceitos, técnicos e muitas vezes herméticos, de direito civil, forjados sob a inspiração de valores pouco compatíveis com a ordem contemporânea. 6 Ao mesmo tempo impõe, por parte da jurisprudência, um esforço para, de um lado, permitir que a aplicação das normas civis seja feita em concordância com a Constituição e, de outro lado, evitar que sob o pretexto desta adaptação a garantia de segurança jurídica seja esvaziada e decisões arbitrárias ocorram. O âmbito das situações jurídicas existenciais – isto é, não patrimoniais – é especialmente exemplificativo desta dificuldade. A proteção integral da dignidade da pessoa humana, embora consagrada internacionalmente a partir da segunda metade do século XX e prevista de forma central no art. 1º, III, da nossa Constituição, pode ser efetivada de diversas maneiras. Segundo a melhor doutrina, a dignidade abarca em si uma série de outros princípios – como a liberdade, a solidariedade, a igualdade e a em um volume único: Maria Celina BODIN DE MORAES. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. 3 Maria Celina BODIN DE MORAES. Constituição e direito civil: tendências, Direito, Estado e Sociedade – Revista do Departamento de Direito da PUC-Rio, n. 15, ago.-dez./1999, p. 112. 4 Para uma visão pioneira da perspectiva, remete-se aos seus principais mentores, Pietro PERLINGIERI. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999 e Stefano RODOTÀ, A vida na sociedade da vigilância. Privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 5 Gustavo TEPEDINO. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Temas de direito civil, 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 12-13. 6 Michele GIORGIANNI. O direito privado e suas atuais fronteiras. Revista dos Tribunais, vol. 747. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, jan. 1998, pp. 38-39 4 integridade psicofísica – que podem, em um determinado caso concreto, entrar em colisão entre si. 7 A solução destes hard cases, 8 que vêm sendo enfrentados no Brasil e no exterior, configura verdadeiro dilema para os civilistas contemporâneos, para os quais o arcaico instrumental teórico que se lhes afigura não é de grande valia. No contexto atual, em que já se encontra razoavelmente consolidada em nossa doutrina e jurisprudência a importância da aplicação direta dos princípios constitucionais às relações privadas, em especial da proteção integral da pessoa humana, o desafio emergente é como impedir que o poder conferido ao juiz para este fim não seja desvirtuado, corrompido em exercício arbitrário dos valores pessoais do magistrado. Neste âmbito, somente a análise da argumentação contida na motivação das decisões que realizam a ponderação de princípios nos chamados hard cases pode oferecer parâmetros objetivos pelos quais o judiciário se pauta ou deve se pautar. A análise da solução determinada a tais casos e a sistematização de tais parâmetros é uma contribuição fundamental para garantir o respeito ao valor da segurança jurídica, central em nossoordenamento. Esta obra visa inicialmente permitir ao aluno, através da pesquisa envolvendo casos concretos, a construção de uma perspectiva de análise crítica e renovada do direito civil contemporâneo. Busca-se, assim, o desenvolvimento do raciocínio jurídico do aluno sob o viés de problematização do Direito. Mais especificamente, visa identificar, por meio da análise dos casos, possíveis parâmetros idôneos a guiar o operador do direito na solução destas controvérsias de forma adequada à legalidade constitucional e, simultaneamente, em respeito à segurança jurídica. O catálogo de casos e decisões não se pretende exaustivo nem na sua seleção, nem nas informações que cada relato traz. A seleção foi verdadeiramente arbitrária, no sentido de que foi guiado apenas pelo nosso arbítrio. O único critério guia foi: “é interessante?”. Toda sistematização veio em um segundo momento, quase como uma constatação de como o ordenamento é pródigo em casos interessantes quando despido de formalismos e dogmatismos. Da mesma maneira, os enunciados normativos pertinentes e as referências bibliográficas indicadas foram aquelas mais acessíveis e rapidamente identificáveis. Pedimos àqueles dedicados ao estudo aprofundado de cada um dos temas a compreensão de que uma obra deste porte não pode se permitir a verticalização em cada assunto. Enfim, de maneira, geral, não é um tratado, mas apenas um convite. Um convite a pensar o direito de forma mais lúdica. E este convite não poderia ter sido feito sem a contribuição de muitos dos seus convidados, os alunos e pesquisadores que nos auxiliariam a recolher casos, decisões e informações e a debatê-los, testando seu potencial como material de estudo. Assim, 7 Maria Celina BODIN DE MORAES. O princípio da dignidade da pessoa humana. In _____(org). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 57-59. 8 Na definição de Manuel Atienza, os hard cases [ou casos difíceis] são aqueles nos quais, aplicando-se um critério de racionalidade estrita, resultaria que: a) o caso não tem solução; b) tem uma solução que resultaria inaceitável; c) tem mais de uma solução (incompatíveis entre si). (Para uma razonable definición de razonable. In Doxa. n. 4, 1987, p. 194). 5 agradecemos inicialmente a Miguel Labouriau, que, na condição de bolsista de iniciação científica do CNPq junto ao Departamento de Direito da PUC-Rio, levou a cabo longa e minuciosa pesquisa sobre a tutela da personalidade, a qual permitiu dar início a toda esta empreitada. Agradecemos também a colaboração de João Victor Guedes dos Santos, que deu continuidade a este projeto de pesquisa. Agradecemos ao CNPq pelo auxílio neste projeto. Da mesma forma, parte substanciosa das informações aqui reunidas foram coletadas e organizadas pelos alunos integrantes do grupo de pesquisa junto à Faculdade de Direito da UERJ, coordenados com o imprescindível auxílio do professor Rafael Esteves. Agradecemos, portanto, “aos meninos da UERJ”, isto é a Daniel Lannes, Tabata Poleze, Rafaela Coutinho Canetti, Nathalie Gazzaneo, Ely Caetano Xavier Júnior, Nayara Rocha, Beatriz Chiesse, Laura Caravello, Elias Mendes, Leticia Branquinho, Raphael Linhares e Pedro Rennó. Cabe mencionar ainda a participação dos alunos do Núcleo de Estudos de Direito Civil “Constitucionalização do Direito Civil e Proteção da Pessoa Humana”, do curso de direito do Ibmec, Daniela Pessanha, Evelyn Melo, Erika Ribeiro, Felipe Laport, Fernanda Ballerini, Graziela Rossi, Herbert Moura Teles e Thamires Gualter, que participaram de uma versão embrionária deste projeto, ainda em fase de testes. Enfim, agradecemos a todos os professores e pesquisadores que contribuíram para a seleção do material, seja diretamente nos encaminhando e sugerindo casos, seja através de publicações científicas empreendendo este mesmo esforço de tornar o direito mais concreto e rico. Neste sentido, desejamos nominar os colegas e amigos Ana Carolina Brochado Teixeira, Ana Luiza Maia Nevares, Anderson Schreiber, Bruno Lewicki, Caitlin Mulholland, Carlos Affonso Pereira de Souza, Daniel Sarmento, Daniele Chaves Teixeira, Danilo Doneda, Fernanda Paes Leme, Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barboza, Ingo Sarlet, Luiz Edson Fachin, Marcelo Calixto, Marcus Dantas, Maria Cristina de Cicco, Noel Struchiner, Pablo Rentería, Rafael Esteves, Renata Vilela, Rose Melo Vencelau Meireles, Sérgio Vieira Branco Júnior, Rocco Favale e Thamis Dalsenter. Agradecemos e dedicamos este livro a todos os alunos que nos ensinam todo dia como ensinar direito. 6 Sumário Apresentação .................................................................................................................................... 2 DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO ............................................................................. 10 1. Liberdade de expressão e ato ilícito ....................................................................................... 11 I. Casos e decisões .................................................................................................................. 11 II. Normativa aplicável ............................................................................................................ 24 III. Bibliografia sugerida ........................................................................................................... 26 2. Igualdade racial e direito à livre iniciativa ............................................................................ 28 I. Casos e decisões .................................................................................................................. 28 II. Normativa aplicável ............................................................................................................ 34 III. Bibliografia sugerida ........................................................................................................... 53 DIREITO À IGUALDADE E DIREITO À DIFERENÇA .......................................................... 54 3. Direito à objeção de consciência ............................................................................................. 55 I. Casos e decisões .................................................................................................................. 55 II. Normativa aplicável ............................................................................................................ 66 III. Bibliografia sugerida ........................................................................................................... 68 4. Direito à educação diferenciada ............................................................................................. 70 I. Casos e decisões .................................................................................................................. 70 II. Normativa aplicável ............................................................................................................ 79 III. Bibliografia sugerida ........................................................................................................... 83 5. Direito à identidade corporal ................................................................................................. 84 I. Casos e decisões .................................................................................................................. 84 II. Normativa aplicável ............................................................................................................ 89 III. Bibliografia sugerida ........................................................................................................... 91 6. Direito à competição igualitária ............................................................................................. 93 I. Casos e decisões ..................................................................................................................93 II. Normativa aplicável ............................................................................................................ 99 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 105 DIGNIDADE HUMANA E LIBERDADE INDIVIDUAL ........................................................ 107 7. Direito a um tratamento dignificante .................................................................................. 108 I. Casos e decisões ................................................................................................................ 108 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 112 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 112 8. Direito à mudança de sexo .................................................................................................... 114 7 I. Casos e decisões ................................................................................................................ 114 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 127 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 133 9. Direito à autodeterminação corporal ................................................................................... 135 I. Casos e decisões ................................................................................................................ 135 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 140 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 143 10. Direito a não nascer ............................................................................................................... 145 I. Casos e decisões ................................................................................................................ 145 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 151 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 152 TUTELA DA PERSONALIDADE DA PESSOA HUMANA.................................................... 153 11. Direito à mudança de nome .................................................................................................. 154 I. Casos e decisões ................................................................................................................ 154 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 163 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 166 12. Direito à imagem-retrato, imagem-atributo e identidade pessoal .................................... 167 I. Casos e decisões ................................................................................................................ 167 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 182 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 182 13. Direito à sepultura ................................................................................................................. 184 I. Casos e Decisões ............................................................................................................... 184 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 190 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 211 A EXPANSÃO DA PRIVACIDADE ........................................................................................... 213 14. Direito à privacidade e liberdade de informação ............................................................... 214 I. Casos e decisões ................................................................................................................ 214 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 225 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 226 15. Direito ao esquecimento ........................................................................................................ 228 I. Casos e Decisões ............................................................................................................... 228 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 233 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 243 16. Direito a não saber ................................................................................................................. 244 I. Casos e decisões ................................................................................................................ 244 8 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 248 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 263 TUTELA DA PERSONALIDADE NA FAMÍLIA ..................................................................... 265 17. Direito do incapaz à constituição da própria família ......................................................... 266 I. Casos e decisões ................................................................................................................ 266 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 277 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 279 18. Direito do incapaz à assistência moral ................................................................................. 281 I. Casos e decisões ................................................................................................................ 281 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 287 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 292 19. Direito a não sofrer punição corporal.................................................................................. 294 I. Casos e decisões ................................................................................................................ 294 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 296 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 298 20. Direito a conhecer as próprias origens genéticas ................................................................ 300 I. Casos e decisões ................................................................................................................300 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 307 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 309 21. Direito a elaborar um testamento vital ....................................... Erro! Indicador não definido. I. Casos e decisões .................................................................... Erro! Indicador não definido. I. Normativa aplicável .............................................................. Erro! Indicador não definido. II. Bibliografia sugerida ............................................................. Erro! Indicador não definido. DIGNIDADE E REPRODUÇÃO................................................................................................. 311 22. Reprodução assistida ............................................................................................................. 312 III. Casos e decisões ................................................................................................................ 312 IV. Normativa aplicável .......................................................................................................... 317 V. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 320 23. Embriões congelados ............................................................................................................. 322 I. Casos e decisões ................................................................................................................ 322 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 331 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 332 24. Gestação substituta ................................................................................................................ 333 I. Casos e decisões ................................................................................................................ 333 II. Normativa aplicável .......................................................................................................... 337 9 III. Bibliografia sugerida ......................................................................................................... 338 10 DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO 11 1. Liberdade de expressão e ato ilícito Entre as hipóteses de colisão de princípios ensejadoras de casos difíceis, a liberdade de expressão parece ser a principal fonte de exemplos. A liberdade de expressão é assegurada de maneira geral em todos os Estados democráticos, por vezes referida mesmo como símbolo do grau de democraticidade de um dado ordenamento. No entanto, o exercício da liberdade de expressão é pródigo em produzir lesões a outros bens jurídicos tutelados pelo ordenamento. Desta forma, em todos os ordenamentos se reconhece a necessidade de impor limites ao exercício da liberdade de expressão, sejam eles expressos ou implícitos, internos ou externos, legais ou judiciais, definidos a priori ou a posteriori. Assim, nos casos em que há colisão entre tais interesses, surge a necessidade de averiguar se o exercício da liberdade de expressão ultrapassou um desses limites e, portanto, saiu da esfera da licitude. I. Casos e decisões 1 O Caso Lüth. Veit Harlan, diretor de cinema na Alemanha nazista, conseguira grande destaque com seus filmes de incitação ao ódio contra os judeus, até o período da Segunda Guerra Mundial. Seu filme que obteve o maior destaque na propaganda nazista fora a obra intitulada “Jud Suss”. Após 1945, novo filme de Harlan, “Amante Imortal” (Unsterbliche Geliebte), seria lançado, mas desta vez não havia tônica antissemita em seu conteúdo. Mesmo assim, Lüth, um judeu alemão convocou o público alemão, em especial donos de casas de cinema e produtores de filme, a boicotarem os filmes produzidos por Harlan. O Tribunal Distrital de Hamburgo decidiu que Lüth deveria deixar de promover boicotes ao novo filme de Harlan, pois tal boicote violava regra presente no Código Civil Alemão acerca da prática de ato ilícito. Inconformado com tal decisão, Lüth recorreu ao Tribunal Constitucional alemão. Diante desse impasse, algumas questões surgiram. Inicialmente, o Tribunal Constitucional considerou que a atitude de Lüth em face dos filmes de Harlan, qual seja, a de conclamação ao boicote, estava protegida pela liberdade de expressão. Em segundo lugar, contudo, a Corte Constitucional entendeu que a atitude de Lüth feria, sim, dispositivo presente no Código Civil alemão, referente à moral pública. Como, então, integrar esses dois elementos (aparentemente) contraditórios e dar uma solução satisfatória ao caso concreto? A solução encontrada pelo Tribunal Constitucional 12 alemão foi efetuar um balanceamento dos princípios constitucionais colidentes no caso concreto. O resultado encontrado pelos integrantes daquela Corte foi priorizar, no caso em questão, o princípio da liberdade de expressão. Neste sentido, a decisão proferida pela Corte Constitucional alemã no caso Lüth foi definidora de um novo paradigma no Direito no que se refere ao modelo de interpretação das normas jurídicas. Tal inovação, desde então, espalhou-se por todo o mundo ocidental em que se adota o modelo de Constituição rígida, abrindo possibilidades a um sem número de novas experiências no que se refere à efetividade dos direitos e garantias fundamentais, especialmente no tocante à sua incidência sobre as relações jurídicas privadas. É o que se convencionou chamar de conteúdo objetivo dos direitos fundamentais. A finalidade primária dos direitos fundamentais é a de salvaguardar as liberdades individuais contra interferência das autoridades públicas. Eles são direitos defensivos do indivíduo contra o Estado. Esta é uma decorrência do desenvolvimento histórico do conceito de direitos fundamentais e também do desenvolvimento histórico que levou à inclusão de direitos fundamentais nas constituições de vários países [...]. É igualmente verdadeiro, no entanto, que a Lei Fundamental não é um documento axiologicamente neutro. Sua seção de direitos fundamentais estabelece uma ordem de valores, e esta ordem reforça o poder efetivo destes direitos fundamentais. Este sistema de valores, que se centra na dignidade da pessoa humana, em livre desenvolvimento dentro da comunidade social, deve ser considerado como uma decisão constitucional fundamental, que afeta a todas as esferas do direito público ou privado. Ele serve de metro para aferição e controle de todas as ações estatais nas áreas da legislação, administração e jurisdição. Assim é evidente que os direitos fundamentais também influenciam o desenvolvimento do direito privado. Cada preceito do direito privado deve ser compatível com este sistema de valores e deve ainda ser interpretado à luz do seu espírito. O conteúdo legal dos direitos fundamentais como normas objetivas é desenvolvido no direito privado através dos seus dispositivos diretamente aplicáveis sobre esta área do direito. Novos estatutos devem se conformar com o sistema de valores dos direitos fundamentais. O conteúdo das normas em vigor também deve ser harmonizado com esta ordem de valores. Este sistema infunde um conteúdo constitucional específico ao direito privado, orientando a sua interpretação. (SARMENTO, Daniel. Os Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 112-113). O caso Lüth permite, também, analisar outra questão interessante, inserida no contexto da proteção à liberdade de expressão: é tutelável, num Estado Democrático de Direito,a manifestações de ódio, desprezo ou intolerância contra determinados grupos (também conhecidas como hate speech), motivadas por preconceitos, sejam de que tipo for? 13 2 As Charges de Maomé. Manifestações de revolta e indignação de muçulmanos em vários cantos do mundo por causa da charge retratando Maomé, publicada em um jornal dinamarquês, trouxeram à tona a discussão sobre os limites da liberdade de expressão e sobre a difícil relação entre o Ocidente e mundo islâmico. As charges apareceram inicialmente no jornal dinamarquês Jyllands-Posten em setembro e foram posteriormente republicadas por jornais de países como Alemanha, Itália, Holanda e Espanha – todos dizendo estar exercendo seu direito à livre expressão. Os desenhos associam o profeta Maomé ao terrorismo dos extremistas islâmicos. Deve-se observar que na cultura muçulmana são proibidas as representações gráficas de Deus ou de Maomé e, exatamente por isso, as caricaturas foram consideradas um insulto. Os governos dos EUA e da Grã-Bretanha criticaram os jornais europeus que republicaram as charges do profeta Maomé, dizendo não ser aceitável insultar grupos ou religiões em nome da liberdade de expressão. Outros governos, como o da Alemanha, se recusaram a condenar as republicações, defendendo o direito dos veículos e comunicação à livre expressão. (BBC.com, acesso em 06 fev. 2006.) 3 Saiu no New York Times. O diretor-executivo do jornal americano The New York Times, Bill Keller, afirmou que o cancelamento do visto do chefe do escritório da publicação no Rio, Larry Rohter, “levanta sérias dúvidas quanto ao tão falado comprometimento do país com a liberdade de expressão e de imprensa”. Sobre a questão, o Ministério da Justiça anunciou o cancelamento do visto temporário de Rohter, que escreveu uma reportagem dizendo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva estaria abusando do consumo de bebidas alcoólicas, “em face de reportagem leviana, mentirosa e ofensiva à honra do presidente da República Federativa do Brasil, com grave prejuízo à imagem do país no exterior [...]”. O presidente negou ter problemas com o álcool e disse que a reportagem de Rohter foi sem fundamentos, difamatória e um exemplo de mau jornalismo. (BBC.com, acesso em 12 mai. 2004.) 4 Defina material obsceno. Redes de televisão americanas podem ser obrigadas a pagar multas de cerca de US$ 500 mil por transmitir cenas consideradas obscenas ou indecentes caso as recomendações de um comitê do Congresso sejam transformadas em lei. As recomendações são uma reação à polêmica causada pelo incidente em que o seio da cantora Janet Jackson foi exposto na transmissão ao vivo, em rede nacional, do Super Bowl – a partida que decide a temporada do futebol americano. A proposta de lei que aumenta o valor das multas foi aprovada por 49 votos a 1, no Comitê de Energia e Comércio da Câmara. A divulgação de material considerado obsceno é ilegal em qualquer situação nos Estados Unidos. No caso de material indecente, no entanto, a proibição só se aplica em horários específicos, nos quais crianças possam estar assistindo a TV. Essa diferenciação existe porque o material “indecente” está protegido 14 pela primeira emenda da Constituição americana, que defende a liberdade de expressão. É considerado indecente material que contém “referências” a sexo ou a excreções, mas não chega “ao nível da obscenidade”. Contudo, argumentou o presidente do Comitê, Joe Barton que “a responsabilidade pessoal é uma liberdade tão importante quanto a liberdade de expressão, e os pais responsáveis dos Estados Unidos buscam criar os seus filhos com um forte senso de responsabilidade por suas ações – por que artistas devem ser excluídos disso?” Outras penalidades também estão previstas para redes de televisão que violarem a legislação, como revogação da licença, confisco, suspensão de autorizações etc. O incidente levou empresas de comunicações americanas a aumentar os controles sobre programação potencialmente obscena ou indecente. A MTV americana, por exemplo, decidiu transmitir o novo clipe da cantora Britney Spears apenas em horários noturnos, alegando que o vídeo é muito “cheio de vida” para ser visto durante o dia. Em outro caso, a maior empresa de rádio do país, a Clear Channel, demitiu o radialista Howard Stern, por conduzir uma entrevista tida como “vulgar ou ofensiva”, e o DJ Bubba The Love Sponge por colocar no ar uma paródia de conteúdo explicitamente sexual. Disponível em <http://en.wikipedia.org/wiki/Super_Bowl_ XXXVIII_ halftime_show_controversy>, acesso em 4 jan. 2011. 5 Arte exemplar ou censura? O governo de Israel pediu que o governo da Suécia retirasse uma instalação artística que mostra uma suicida palestina, afirmando que a obra incita novos ataques. O embaixador israelense em Estocolmo, Zvi Mazel, foi expulso da galeria onde a instalação Snow White and the Madness of Truth (Branca de Neve e a Loucura da Verdade) estava exposta, acusado de atos de vandalismo contra a obra. A instalação mostra um barco flutuando em um líquido vermelho que tem como vela uma foto de Hanadi Jaradat, uma estagiária em advocacia de 29 anos que se matou em um ataque suicida em um restaurante em Haifa, Israel. “É impossível justificar a incitação e o cultivo ao ódio mostrado nesta exibição em nome da liberdade de expressão”, disse o porta-voz do ministério do Exterior israelense, David Saranger. “O governo sueco não pode ficar indiferente e deve tomar medidas para retirar a obra”. Saranger defendeu o ato do embaixador à instalação, afirmando que “nenhum israelense pode ficar indiferente”. Dror Feiler, o artista israelense que colaborou com a obra disse que Mazel tentou censurar “a liberdade de expressão e a liberdade artística”. “Sou totalmente contra ataques suicidas”, acrescentou Feiler. O diretor do museu, Kristian Berg, disse que a instalação vai permanecer onde está. “Pode-se ter uma visão pessoal sobre o significado da obra, mas não é permitido usar violência e nunca deve ser permitido calar um artista”, afirmou. Disponível em <http://en.wikipedia.org/wiki/ Snow_White_and_The_Madness_of_Truth>, acesso em 10 fev. 2011. 6 Embalagem opaca. Venda de revista sem embalagem opaca gera condenação da Trip Editora e Propaganda por comercializar revista com foto de uma mulher seminua sem a 15 proteção de embalagem. A multa imposta é de 20 salários mínimos. O valor deve ser destinado ao fundo do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. A editora foi autuada pelo Juizado da Infância e da Juventude em maio de 2001 porque a capa da revista Trip, edição 89, além de não estar protegida, não continha advertência sobre o conteúdo, o que foi considerado em desacordo com o art. 78 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A questão não foi decidida no mérito ao óbice decorrente da Súmula 7 e da vedação ao reexame do contexto fático-probatório nos termos seguintes: [...] A questão passa a ser o exame da revista considerada pornográfica por exibir uma mulher com os seios à mostra, quanto à obrigatoriedade de envoltório plástico em seus exemplares. Observe-se que a avaliação é eminentemente subjetiva e dependente de posicionamento mais ou menos tolerante. (...) Essa visão não pode ter guarida em uma Corte de precedentes como o STJ. Não há como ser conhecido este recurso, sem análise da prova, para qualificar e valorar a percepção fática: a revista e a fotografia, se merecedoras ou não de um plástico leitoso que oculte a sua capa. Enfim, merecedora da censura. Diante do óbice da Súmula 7, não conheço do Recurso Especial. (STJ, 2ª T., REsp 507.487, Rel. Min. Eliana Calmon, julg. em 02.10.2003) 7 Médicos querem rever textos jornalísticos. A resolução que determina que médicos aprovem textos de jornalistas antes da publicação não contraria a liberdade de expressão. A opinião dos médicosestá publicada no site do Conselho Federal de Medicina. De acordo com a nota, ao “Conselho Federal de Medicina, que é o órgão legalmente supervisor da ética profissional médica, cabe o dever de zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exercem legalmente”. A liberdade de manifestação de pensamento, de exercício de atividade profissional lícita e de acesso às informações são garantias constitucionais erigidas pelos artigos 5º, inciso IV e XIII, 220, §§ 1º, 5º e 6º da Constituição Federal e reiteradas em suas especificidades no inciso IX do mesmo artigo 5º. Assim, diversamente do que vem sendo divulgado, a conduta somente será legítima e resguardada pela imperatividade constitucional se estiver conforme com os padrões da legalidade, vedada, portanto, a conduta antiética e aquelas legalmente condenadas. Portanto, ao Conselho Federal de Medicina, que é o órgão legalmente supervisor da ética profissional médica, cabe o dever de zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exercem legalmente. A Resolução Nº 1.701/2003, não tem, assim, caráter repressivo, mas meramente educativo. (Consultor Jurídico, <www.conjur.com.br>, publicação em 1 de outubro de 2003). 16 8 Um tapinha que dói e muito. A produtora da música “Um Tapinha Não Dói” foi multada pela justiça gaúcha, ao entender que a letra banaliza a violência e estimula a sociedade a inferiorizar a mulher. A decisão foi tomada pelo juiz federal substituto Adriano Vitalino dos Santos, da 7ª Vara Federal, em 19.02.2008, e a apelação ainda está tramitando no TRF-4ª Região. Segundo afirmou o juiz: “entendo que a fixação da indenização em R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) é proporcional ao dano causado e suficiente para dissuadir a ré a não praticar novos atos ilícitos, devendo o montante ser revertido em favor do Fundo Federal de Defesa dos Direitos, a teor do artigo 13 da Lei 7.347/85”. A ação foi movida pelo Ministério Público Federal e pela organização não governamental Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, que alegaram que a letra justifica a violência masculina a partir do comportamento sexual da mulher. Sustentaram ainda que a liberdade de expressão não é direito absoluto e tem limitações reconhecidas pela Constituição em face do princípio da dignidade. O juiz entendeu que houve dano moral difuso à mulher e estabeleceu a multa, que deverá ser revertida ao Fundo Federal de Defesa dos Direitos. (O Estado de São Paulo, de 25 de março de 2008, acesso em 7 fev. 2011). Veja o inteiro teor da sentença em <http://bit.ly/ehsaMs>, acesso em 7 fev. 2011. 9 Defensores da legalização da maconha são proibidos de defendê-la. Os defensores da legalização da maconha, proibidos de fazer passeata vão protestar em defesa da liberdade de expressão. Os organizadores da Marcha da Maconha entenderam que a decisão da Justiça de suspender a manifestação foi “um equívoco total”. “Não estamos estimulando o uso de drogas, mas debatendo a legislação. E esse direito de debater nos foi negado. A polícia sempre acompanhou as passeatas, inclusive com agentes à paisana que filmavam a marcha. Nunca houve confronto. Esse ano, eu e outros quatro organizadores fomos detidos quando divulgávamos a passeata”. O advogado Gustavo Alves, que foi detido, afirmou: “Tive meu direito constitucional de liberdade de expressão tolhido”. O sociólogo disse que ficou preocupado ao ver, em um jornal carioca, a foto de uma bandeira do integralismo na Marcha Rio em Defesa da Família, organizada pela vereadora Sílvia Pontes (DEM) em resposta à Marcha da Maconha. “Fiquei preocupado em ver esses elementos do fascismo sendo exibidos. Esse tipo de gente é agressiva. Eles já demonstraram historicamente do que são capazes, mas acho que não vamos ter problemas. Acho que o confronto não interessa a eles”. Portal G1, <g1.globo.com>, acesso em 05 mai. 2008. 10 Discurso de intolerância. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília, manteve proibida a circulação do livro “Orixás, caboclos e guias – deuses ou demônios?”, do bispo Edir Macedo, principal líder da Igreja Universal do Reino de Deus. A decisão é do desembargador Souza Prudente, que negou o recurso ajuizado 17 pelo bispo contra determinação da Justiça Federal da Bahia. Segundo alegou o Ministério Público Federal, algumas passagens do livro incitam a segregação religiosa e a intolerância a crenças afro-brasileiras. Os adeptos dessas religiões foram classificados de seguidores do demônio. A obra foi impedida de ser vendida ou distribuída. Todos os exemplares existentes em estoque foram retirados das prateleiras. A multa para o descumprimento da ordem foi fixada em R$ 50 mil. Em sua decisão, o desembargador do TRF afirmou que “as liberdades públicas não são incondicionais e a liberdade de expressão especificamente não se revela em termos absolutos, como garantia constitucional, mas deve ser exercida, nos limites do princípio da proporcionalidade, proibindo os excessos nocivos à salvaguarda do núcleo essencial de outros direitos fundamentais, como no caso em exame”. Disponível em <www.midiaindependente.org>, acesso em 08 dez 2005. 11 A proibição de negar o holocausto. Um homem acusado de negar o Holocausto foi detido hoje no aeroporto londrino de Heathrow a pedido das autoridades alemãs. O alemão, nascido na Austrália, Gerald Fredrich Toben, de 64 anos, foi detido em cumprimento de uma ordem europeia de detenção tramitada pela Alemanha. Concretamente, Toben foi acusado de publicar na internet material “de natureza antissemita e/ou revisionista”, que nega, aprova ou diminui a importância da morte em massa de judeus pelos nazistas. A ordem especifica que o acusado cometeu o crime na Austrália, Alemanha e em outros países. O fundador do Instituto de Adelaide, uma publicação impressa, com site na internet, que questiona o Holocausto, Gerald é acusado de publicar material na Internet “de um antissemita e/ou de natureza revisionista”, que “nega, aprova ou minimiza o assassinato em massa de judeus pelos nazistas”. The Telegraph <http://bit.ly/g7Ybx6> , acesso em 1º de out. 2008. 12 Discurso de ódio (Hate speech). Trata-se de habeas corpus destinado à absolvição de Siegfried Ellwanger, editor de vários livros de cunho antissemita, preso no Brasil. O réu e seus advogados pretendiam provar que antissemitismo não é racismo, crime que nossa Constituição considera inafiançável e imprescritível. Alegou-se, ainda, a livre- manifestação de pensamento como direito fundamental protegido constitucionalmente. Ao final, contudo, a Corte Suprema negou absolvição ao réu. Habeas-corpus. Publicação de livros: antissemitismo. Racismo. Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência constitucional. Liberdade de expressão. Limites. Ordem denegada. [...] 11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as consequências gravosas que o 18 acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, art. 5º, § 2º, primeira parte).O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. [...] Ordem denegada. (STF, Trib. Pleno, HC 82.424, Rel. Min. Moreira Alves, julg. 17.09.2003) 13 Discriminação contra nordestinos? O MPF pretendia condenar o jornalista Diogo Mainardi a pagar uma indenização por haver violado o direito de não discriminação quanto aos nordestinos. No caso, havia uma colisão de direitos fundamentais: de um lado a liberdade de expressão jornalística, o direito de crítica e o direito de manifestação do pensamento; do outro, o não preconceito e a não discriminação. A atitude, que por vezes beira o ato ilícito, demanda um exercício de ponderação para solução do caso. Na sentença, o juiz concluiu que, entre tolerar pequenas ofensas e limitar a liberdade de expressão, deve preferir-se a tolerância em nome da liberdade. Ação civil pública. Ofensas escritas por jornalista contra os nordestinos, sergipanos e cuiabanos. Regra de tolerância. Direito à livre manifestação. Ausência de dano. 1. A liberdade de expressão talvez seja o maior fundamento da democracia. Esta, por sua vez, é muito trabalhosa para exercitá-la, mas vale a pena. 2. Entre tolerar pequenas ofensas e limitar a liberdade de expressão, prefiro a tolerância em nome da liberdade, mormente quando se verifica que o dano inexistiu. 3. Improcedência do pedido. [...] se, por um lado, identifico uma ponta de preconceito do requerido em algumas das suas manifestações, identifico também, por outro, que o seu estilo literário é extremamente ácido, inteligente e assim o faz basicamente quando comenta sobre os políticos, especialmente os do PT, os que integram o atual governo e quando comenta a postura de colegas seus que aplaudem o governo. Há uma tênue linha entre uma postura e outra. [...] Portanto, se o Sr. Diogo Mainardi disse que não conhece a geografia nordestina, é porque, de fato, ele não conhece. Não há nenhum preconceito nisso capaz de causar dano. O preconceito, se houve, fica por conta do desinteresse, do desprezo de quem se julga superior intelectualmente. O prejuízo é, apenas, do dono do preconceito. Não estou dizendo, com isso, que seja o caso dele. Ele é quem deve saber. [...] 3. Dispositivo. Com esses fundamentos: a) excluo a Globo Comunicação e Participações S/A do polo passivo da demanda; b) em relação aos demais Réus, julgo improcedente o pedido, nos termos do art. 269, I, do Código de 19 Processo Civil. (TRF-1, 1ª V. F., ACP 2007.85.00.000415-6, Juiz Federal Ricardo César Mandarino Barreto, publ. 25.07.2007) 14 Censura no MTG. Ao criticar o movimento tradicionalista gaúcho e a diretoria da entidade respectiva, um membro da associação foi punido com suspensão de três anos e seis meses de atividade no movimento. No caso, além de outras alegações, restou configurado que, a atitude do demandante, na qualidade de radialista, ao tecer críticas ao movimento e a pessoas a ele relacionadas, está assegurada pela Constituição Federal, que garante, entre os direitos fundamentais do cidadão, a liberdade de expressão. Anderson Maldonado Vargas, em 29 de março de 2006, durante o programa radiofônico Bom Dia Tchê, que apresenta há 23 anos, fez leitura de matéria divulgada no Correio do Povo sobre cavalgadas organizadas pela entidade Movimento Tradicionalista Gaúcho contra a cobrança de pedágios, emitindo, como cidadão e radialista, críticas sobre este e outros fatos. Em decorrência, foi suspenso por três anos e seis meses das atividades tradicionalistas, com base no Código de Ética Tradicionalista. Ao final, o radialista teve assegurado seu direito de participar das atividades tradicionalistas. “(...) Ainda assim, deve-se convir que o autor não praticou qualquer ato contra o movimento tradicionalista gaúcho, senão criticou, ainda que severamente, a diretoria de uma entidade. Fê-lo na condição de cidadão livre, ao utilizar-se de uma estação de rádio cujo programa radiofônico apresenta há muitos anos. A liberdade de expressão é fundamento da democracia brasileira, estando tal direito consagrado no artigo 5º, IV da Constituição Federal. (...) Ora, o autor exerceu o direito de crítica, ainda que áspera, ou mesmo injusta, em local público (programa radiofônico), fazendo considerações críticas sobre os destinos do movimento tradicionalista e os atos de seus dirigentes. Acaso estivesse a se comportar de modo inconveniente em uma festividade organizada pela ré, ou praticado algum ato reprovável durante atividade organizada pelo movimento, outra seria a situação. Mas ter opinião a respeito de temas como o movimento tradicionalista e externá-las é direito que a cada cidadão é garantido pela lei maior. A suspensão da participação do autor, ou sua expulsão, por exemplo, do movimento tradicionalista não pode ter por base a sua opinião, a sua crítica, a sua forma de ver as coisas, ainda que expressada de forma equivocada, injusta e contundente.” (TJRS, 12ª C.C., Ap. Cív. 70023491137, Rel. Des. Cláudio Baldino Maciel, julg. 17.04.2008). 15 Críticas ao MGCUBNO. O “Movimento Gnóstico Cristão Universal do Brasil na Nova Ordem”, unido a outras pessoas, insurgiu-se em relação ao conteúdo do livro “A Realidade Gnóstica”. Alegou que a obra é uma forma de difamação do movimento gnóstico, estando carregado de termos ofensivos. Sustentou tratar-se de ataque dirigido à instituição, uma vez que reproduzida parte de seu logotipo na capa do compêndio e 20 citado explicitamente o “Movimento Gnóstico Cristão Universal”. Com base na possibilidade de ‘pessoa jurídica sofrer dano moral’, como determina a Súmula 227 do STJ, salientou que o livro violou o nome e a reputação da instituição e de seus membros, os quais são reconhecidos por sua cultura, tradição e pela pregação da retidão moral. (...) Liberdade de expressão e manifestação do pensamento. Publicação de livro. Inexistência de abuso. Liberdade de consciência e crença religiosa. A publicação de livro que, hostilizando contra determinado movimento religioso, fundado em preconceito vigente em uma das correntes do cristianismo, com a clara intenção de fomentar o debate religioso, não caracteriza abuso da liberdade de expressão nem viola a honra da instituição autora. A crítica religiosa se insere entre as diversas formas de manifestação de pensamento, sendo assegurada aos cidadãos a exposição, debate e exercício de suas crenças (CF, 5º, IV e VI). Apelos improvidos. “(...) uma breve leitura do livro leva à conclusão de que a intenção dos escritores é de fomentar o debate religioso, e não de violar a honra da instituição-autora. Trata-se de um preconceito vigente em uma das correntes do cristianismo, que considera satânico o gnosticismo. Os réus nada mais fizeram do que divulgar a sua visão do movimento gnóstico a partir de sua crença religiosa. Saliento que a liberdade de crença e de consciência são direitos garantidos pela Constituição de 1988 (art. 5º, inciso IV). Garantir a liberdade de religiosa do indivíduo significa assegurar que ele não será penalizado pela exposição, debate e exercício de suas crenças. Por isso, insere-se a crítica religiosa entre as diversas formas de manifestação de pensamento, cuja liberdade também é assegurada na Constituição, art. 5º, inciso IV. (...) É importante ressalvar que não estou apregoando o gozo ilimitado da liberdade de manifestação. Há hipóteses de colisão entre o direito de manifestação do pensamento com outros direitos fundamentais, como o de intimidade da vida privada, honra e imagem. Para esses casos de tensão entre os dois princípios, existem os mecanismos constitucionais que admitem a restriçãoda liberdade de expressão, por meio do direito de resposta proporcional ao agravo, e da indenização por dano material, moral ou à imagem (CF, art. 5º, V). Contudo, a aplicação desta reserva legal qualificada, depende da verificação de lesão aos direitos de personalidade do requerente, que aqui não ocorreu. Não abalam a honra de uma instituição da envergadura da autora os termos utilizados no texto do livro para definição dos postulados e denominação dos fundadores do movimento. A ao fazer referência aos iniciadores movimento gnóstico denominando-os de mago Simão e prostituta chamada Helena, os escritores não concretizam ataque à pessoa jurídica-demandante. Mais uma vez, o que se observa aqui é revelação de uma opinião decorrente a orientação religiosa dos réus, mediante aplicação de uma alcunha comum (mago) e de uma denominação que, embora pejorativa, por repetidas vezes é empregada nos próprios textos 21 do evangelho cristão (prostituta). O mesmo raciocínio serve para as demais expressões consideradas ofensivas pelos apelantes. (...) Não existe, aqui, qualquer acusação pública infundada, como afirmam os autores. Aliás, é evidente que a opinião dos réus dirige-se ao movimento gnóstico em geral, não havendo no corpo da obra qualquer acusação direta ao Movimento Gnóstico Cristão Universal do Brasil na Nova Ordem.” (TJRS, 10ª C.C., Aps. Cívs. nº 70005291349 e nº 70005291661, Rel. Des. Luiz Lúcio Merg, julg. 11.09.2003) 16 Difamação por e-mail. Trata-se de responsabilidade civil por danos materiais e extrapatrimoniais, relacionados com exercício da liberdade de manifestação de pensamento, por meio de mensagem eletrônica. Constatou-se que pessoa certa e determinada teria elaborado e divulgado mensagem eletrônica (e-mail), pela internet, com conteúdo depreciativo em relação à qualidade da gasolina vendida em posto em que havia abastecido seu veículo, taxando-a de “adulterada”. Em sua defesa, tal pessoa limitou-se a invocar excludente de exercício regular de direito, amparada no direito do consumidor de reclamar pelos vícios do produto ou do serviço prestado, com base no art. 26 do Código de Defesa do Consumidor. Ao final, reconheceu-se que a situação narrada caracterizava conflito entre direitos protegidos, por um lado, pela Constituição (liberdade de expressão) e pelo Código de Defesa do Consumidor (direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação perante o fornecedor de produtos e serviços) e, de outro, o direito à imagem, também protegido constitucionalmente. Destacou-se, entretanto, que nenhum direito é absoluto, nem mesmo o do consumidor, no que se refere à reclamação por vícios do produto ou serviço, quando exercidos abusivamente, violando direito de terceiro. Verificou-se que, concretamente, desbordou- se do direito de livre expressão do pensamento, imputando à empresa fatos lesivos ao seu conceito no mercado. Também não se ateve ao direito assegurado no CDC. Constitucional, Consumidor e Processual Civil. Poderes Instrutórios do Juiz. Limites. Gratuidade Judiciária. Pressupostos. Liberdade de Expressão e Manifestação de Pensamento. Elaboração e Divulgação de Mensagem Eletrônica. E-Mail. Abuso. Dano Moral. Pessoa Jurídica. Caracterização. Indenização. Valor. Arbitramento. Critérios. Honorários Advocatícios. Compatibilidade com o Trabalho Desenvolvido. (...) O direito de reclamar por vícios do produto ou serviço, assegurado ao consumidor, caracteriza ilícito, quando exercido abusivamente, através de mensagem capaz de abalar o conceito do fornecedor, divulgada por meio eletrônico. (...) (TJRS, 9ª C.C., Ap. Cív. 70005810296, Rel. Des. Mara Larsen Chechi, julg, 29.09.2004) 17 Difamação de criança pela internet. Cuida-se de criança que teve seu nome divulgado na internet como a “segunda pior personalidade de 2000 de Passo Fundo” pelo site 22 “passofundo.com.br”. Da mesma forma, sua página virtual recebeu a mesma qualificação. Argumentou-se ter havido violação da honra e da imagem, além do ato ter sido praticado contra uma criança de onze anos, e que o método de apuração utilizado pelos réus foi baseado em votos aleatórios e anônimos. Em sua defesa, os desenvolvedores do site em que fora divulgada a pesquisa argumentaram que a criança fora indicada pelos internautas como sendo a pior personalidade do ano de 2000, bem como o site que a mesma mantinha na Internet. Destacaram, ainda, a natural exposição da autora, já que realizava atividades artísticas, sujeitando à apreciação crítica dos espectadores. No entanto, o TJRS decidiu que, embora a internet tenha se iniciado na década de 1960, ainda não havia, à época do julgado, legislação brasileira específica a respeito, sem que tal omissão importasse atribuir liberdade absoluta ao seu uso. Foram citados, como exemplos de limites legais a essa liberdade, os enunciados normativos aplicáveis que protegem os direitos da personalidade, dentre os quais se incluem a imagem, a honra, a dignidade e o respeito dos indivíduos. Por exemplo, têm-se os seguintes dispositivos: arts. 5º, V, X e XXXV e 227, caput, da CF; arts. 12, 17 20 e 186 do CC 2002. Responsabilidade civil. Internet. Pesquisa de opinião. Criança apontada como a “segunda pior personalidade e primeiro pior site do ano de 2000 em passo fundo”. Liberdade de expressão. Aparente conflito com o que assegura os direito da criança e a intimidade dos indivíduos. Danos morais configurados. Quantum indenizatório. Juros. Termo inicial. Ilegitimidade passiva. Preliminar afastada. Não se pode negar que a divulgação em site da Internet, revelando resultado da pesquisa de opinião feita junto aos internautas, apontando a autora, criança de onze anos de idade, como a “segunda pior personalidade e primeiro pior site do ano de 2000 em Passo Fundo”, causou constrangimentos e transtornos, ainda mais que a mesma mantinha grande talento artístico e social perante a comunidade, máxime em sendo constatada a alteração de seu comportamento e personalidade. Por outro lado, a divulgação da referida pesquisa, embora constitua exercício do direito constitucional de liberdade de expressão, colide com o também direito fundamental de que ninguém terá a imagem e a honra indevidamente violada ( art. 5º, X, CF 1988), e à proteção auferida à criança pelo ECA. (...) (TJRS, 10ª C.C., Ap. Cív. 70011738846, Rel. Des. Luiz Ary Vessini de Lima, julg. 15.12.2005) 18 O forró do hino nacional. Trata-se de caso em que se discute se uma banda pode gravar o hino nacional em ritmo de forró. A Lei 5.700/1971, que regulamenta a questão, determina enfaticamente a forma musical em que o hino nacional poderá ser executado, cominando punição pecuniária para o seu descumprimento. Pela leitura da Constituição Federal, verifica-se que também os símbolos nacionais são valores de relevância constitucional (art. 13 da CF 1988). Por opção do constituinte, os símbolos nacionais também são valores fundamentais, ainda que, na prática, a sua importância social esteja 23 talvez pequena. Não obstante, entende-se que se está, no caso narrado, diante de uma limitação ao direito fundamental à liberdade de expressão. Desta forma, qualquer restrição a direito fundamental, para ser válida, deve passar pelo teste da proporcionalidade. Dentro dessa ótica, percebe-se claramente que referida lei restringe excessivamente a liberdade artística. Proibir outros arranjos ao hino nacional cria, diga- se, certa incompatibilidade com a liberdade artística "sem censuras", conforme prevista na Constituição Federal. Percebe-se, pois, que certamente não há uma violação ao artigo 13 da CF 1988, mas sim um conflito entre a Lei 5.700/71 e o direito à liberdade de expressão. Neste sentido, tendo em conta a força objetiva dos direitos fundamentais, pode-se interpretar a situação no sentido de que norma superior prevalece em relação à normainferior. Sendo a liberdade de expressão norma presente na Constituição Federal, não poderia lei ordinária restringi-la imotivadamente. Ação civil pública. Hino nacional. Gravação em ritmo de forró. Disciplina legal dos símbolos nacionais. Liberdade de expressão. Limitação pelo estado que depende da realização de um relevante interesse governamental. Inexistência de tratamento desonroso ao hino nacional. Forró como elemento da cultura brasileira. Forma de expressão do amor à pátria que não pode ser imposta pela lei. Improcedência dos pedidos. I- A limitação legal da liberdade de expressão pelo Estado somente guarda compatibilidade com a Constituição quando tiver por objetivo a realização de um relevante interesse governamental. II- A liberdade de expressão deve ser compatibilizada com as demais normas constitucionais, observando-se o fim pretendido pelo agente e mantendo-se a unidade da Constituição. III- A gravação do Hino Nacional, em ritmo de forró, que é elemento da cultura brasileira, não pode ser considerada, por si só, como conduta desrespeitosa ao símbolo nacional. IV- O uso do Hino Nacional, nas mais diversas situações e circunstâncias, não o vulgariza ou banaliza de forma desrespeitosa, devendo ser estimulado, pois contribui para sua sedimentação, no âmago de cada cidadão. V- Não cabe à lei impor à sociedade um determinado modo de expressão do amor pela pátria, mas sim aceitar as diversas formas de expressão desse amor, quando mais quando em consonância com a cultura nacional. (...) O direito à liberdade de expressão não é um fim em si mesmo, mas um veículo pelo qual são expressas ideias e sensações, de modo que se faz necessário verificar a finalidade do agente. No caso, o objetivo do agente não era o de atacar o símbolo do Estado Brasileiro e nem o de denegri-lo, mas sim o de homenageá-lo. (...) Efetivamente, a disciplina do Hino Nacional de forma rigorosa, estabelecida na Lei 5.700/71, não pode ser imposta à liberdade de expressão artística, de modo que a discussão não deve se focar na dissonância dos padrões musicais da gravação efetuada pelos réus para com a Lei 5.700/71, mas sim no fim objeto da conduta dos demandados. Não havendo um tratamento desonroso do Hino, mas sendo a gravação realizada pelos réus um ato de elevação da pátria e do símbolo que a representa, não há de se ter por irregular sua conduta; quanto mais quando a restrição à liberdade 24 de expressão imposta pela Lei 5.700/71 não serviria, no caso, a qualquer interesse governamental relevante, senão a simples limitação da própria liberdade de expressão.Estou convencido de que o uso dos símbolos nacionais, nas mais diversas ocasiões e com diferentes finalidades, não os vulgariza ou banaliza de forma desrespeitosa. Ao contrário, contribui para sua sedimentação, no âmago de cada cidadão, de modo que não cabe à lei exigir da sociedade determinada forma de expressão do seu amor ao País, mas sim aceitar e reconhecer as diversas manifestações desse amor, respeitando-se a diversidade cultural. (TRF-5, 6ª V. F., ACP 99.0007308-8, Juiz Federal José Eduardo de Melo Vilar Filho, publ. em 21.09.2007). II. Normativa aplicável Constituição Federal de 1988 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (...) IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (...) XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; (...) Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. § 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. (...) 25 Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) Art. 18 - Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos. Art. 19 - Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão. Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.701/2003 (...) Art. 3º - É vedado ao médico: a) anunciar que trata de sistemas orgânicos, órgãos ou doenças específicas, por induzir a confusão com divulgação de especialidade; b) anunciar aparelhagem de forma a que lhe atribua capacidade privilegiada; c) participar de anúncios de empresas ou produtos ligados à Medicina; d) permitir que seu nome seja incluído em propaganda enganosa de qualquer natureza; e) permitir que seu nome circule em qualquer mídia, inclusive na Internet, em matérias desprovidas de rigor científico; f) fazer propaganda de método ou técnica não aceitos pela comunidade científica; g) expor a figura de paciente seu como forma de divulgar técnica, método ou resultado de tratamento, ainda que com a autorização expressa deste, ressalvado o disposto no artigo 10 desta resolução; h) anunciar a utilização de técnicas exclusivas; i) oferecer seus serviços através de consórcio ou similares; j) garantir, prometer ou insinuar bons resultados do tratamento. (...) Art. 8º - O médico pode, usando qualquer meio de divulgação leiga, prestar informações, dar entrevistas e publicar artigos versando sobre assuntos médicos de fins estritamente educativos. Art. 9º - Por ocasião das entrevistas, comunicações, publicações de artigos e informações ao público, o médico deve evitar sua autopromoção e sensacionalismo, preservando, sempre, o decoro da profissão. (...) 26 III. Bibliografia sugerida ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais (5ª ed. 2006). Trad. de V. Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. BARROSO, Luís Roberto. Liberdade de expressão versus direitos da personalidade. Colisão de direitos fundamentais e critérios de ponderação. In Temas de direito constitucional, t. III, Rio de Janeiro: Renovar, 2005. BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade da pessoa humana. In_____. Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 57-59 CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In Ingo W. Sarlet (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, pp. 223-243. CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas. In Antonio Celso Alves Pereira e Celso Renato Duvivier Albuquerque Mello (orgs.). Estudos em homenagem a Carlos AlbertoDireito. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 227-246. DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos. Uma história. São Paulo: Cia das Letras, 2009. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais: eficácia das garantias constitucionais nas relações privadas: análise da jurisprudência da Corte Constitucional alemã. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. São Paulo: IBDC, 1998, pp. 207-225. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. _____. Apontamentos sobre a aplicação das normas de direito fundamental nas relações jurídicas entre particulares. In Luis Roberto Barroso (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 119-192. SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e Direito Privado: algumas notas sobre a chamada constitucionalização do direito civil. In Ingo Wolfgang Sarlet (org.). A constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2000, pp. 107-163. SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do “hate speech”. In _____. Livres e iguais: Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 27 _____. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil. In Luis Roberto Barroso (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 193-284. _____. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. TEPEDINO, Gustavo. Direitos humanos e relações jurídicas privadas . In Temas de direito civil, 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 59-78. UBILLOS, Juan María Bilbao. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales? Ingo Wolgang Sarlet (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, pp. 299-338. 28 2. Igualdade racial e direito à livre iniciativa A consolidação do princípio da igualdade, mesmo em sua versão mais clássica e formal, entendida como igualdade de oportunidades, é processo histórico ainda em curso e fonte de diversas controvérsias. A imposição a todos os particulares de que efetuem um tratamento igualitário aos demais entra em potencial conflito com a liberdade individual. Em especial, a discriminação racial, historicamente construída a partir dos modelos econômicos escravagistas, persiste mesmo nas atuais sociedades democráticas. Seja de forma mais explícita, seja subrepticiamente, formas de tratamento diferenciado em virtude da raça ainda são condutas que se encontram em tal frequência que os ordenamentos se veem na necessidade de coibi-las juridicamente. Isto leva, a depender das formas de coibição de práticas de discriminação racial, a uma restrição à livre iniciativa, uma vez que os empreendedores se veem, em maior ou menor medida, privados de determinados aspectos de sua autonomia empresarial. I. Casos e decisões 1 Estatística não vale? O Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região negou ao Ministério Público do Trabalho pedido para inibir o Banco Real de contratar ou promover brancos, homens e jovens em seus quadros de funcionários. Os juízes da Segunda Turma do TRT decidiram que a estatística não pode ser usada como prova de discriminação. Para o juiz Alexandre Nery de Oliveira, a situação demonstra que apenas não houve, nas seleções de pessoal feitas pelo Banco Real, número de eleitos suficientes para ampliação do quadro de negros do banco. De acordo com o magistrado, o processo seletivo não apresenta vício e está de acordo com o permitido pela Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil. A Convenção estabelece que os procedimentos seletivos por mérito não envolvem discriminação, desde que não haja separações por grupos de indivíduos segundo raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social. (Portal Última Instância, publicação em 04 de março de 2008). 2 Já na França... A empresa Renault foi condenada ao pagamento de indenizações em razão de discriminação praticada contra dois de seus funcionários. Lucien Breleur e 29 Daniel Kotor consideravam que suas carreiras eram sub-remuneradas em relação às de seus colegas brancos, em função de serem oriundos do Togo e da Argélia. Depois de ter o pedido negado em primeira instância em 2005, os autores obtiveram ganho de causa na Corte de Apelação. A condenação referente ao empregado Lucien Breluer, eletricista de automóveis de 1971 a 2003, ficou determinada em 80 mil euros de perdas e danos e 8 mil euros de dano moral, como reparação ao bloqueio de sua carreira e da manutenção de sua remuneração em um nível inferior a dos demais trabalhadores. Daniel Kotor, operário especializado e agente administrativo de 1983 a 2004, recebeu 60 mil euros de perdas e danos e 8 mil euros pelos danos morais. Após a observação de um perfil de evolução funcional e salarial, a Corte considerou que “os outros assalariados tiveram um evolução mais importante” do que a de Lucien e Daniel. (Le Figaro.fr, publicação de 02 de abril de 2008). 3 Chineses negros. A Alta Corte da África do Sul, em Pretória, decidiu que os chineses que vivem no país devem passar a ser considerados como cidadãos negros. A mudança era uma reivindicação dos próprios chineses (cerca de 200 mil), que agora poderão se beneficiar das políticas governamentais que procuram acabar com o domínio dos brancos no setor privado da economia. A Associação Chinesa da África do Sul decidiu apresentar o pedido ao Tribunal dizendo que os membros da comunidade sofriam discriminação – tendo dificuldade em se qualificar para contratos comerciais e promoções de trabalho porque eram considerados brancos; mas, durante o período do apartheid eram classificados como “de cor”. A decisão judicial encerra uma batalha de oito anos da comunidade chinesa sul-africana para ter as mesmas vantagens dos negros, índios e pardos. (BBCBrasil.com, publicação de 18 de junho de 2008). Disponível em <http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/7461099.stm>, acesso em 18 dez. 2010. 4 A bordo. A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça negou, por unanimidade, o pedido de habeas corpus de dois comissários da American Airlines, acusados de racismo, para que fossem interrogados nos Estados Unidos, onde residem. Os comissários de bordo norte-americanos Shaw Tipton Scott e Mathew Gonçalves, terão que prestar depoimento à Justiça brasileira no processo a que respondem. Os dois comissários foram processados por agressão a um passageiro brasileiro em junho de 1998, durante um voo da Companhia que saía de Nova Iorque com destino ao Rio de Janeiro. Depois de um desentendimento com o passageiro por causa de assento, Scott teria dito a ele: “Amanhã vou acordar jovem, bonito, orgulhoso, rico e sendo um poderoso americano, e você vai acordar como safado, depravado, repulsivo, canalha e miserável brasileiro”. Seguindo o voto do relator, ministro Felix Fischer, a Quinta Turma decidiu, por maioria, manter a ação penal por entender que a intenção dos comissários foi humilhar o passageiro exclusivamente pelo fato de ele ser brasileiro. A ideia foi ressaltar a superioridade do povo norte americano e a condição inferior do 30 povo brasileiro. Assim, a maioria dos ministros considerou que houve agressão à coletividade brasileira e que suas condutas, em tese, se subsumem ao tipo legal do art. 20, da Lei nº 7.716/1986. (STJ, 5ª T., RHC 19166/RJ, Recurso Ordinário em Habeas Corpus 2006/0049804-8, julg. em 24.10.2006, publ. 20.11.2006).
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