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JAPIASSU Introducao ao pensamento Epistemologico

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 3 
Capa: Ana Maria Silva de Araújo 
 
Impresso no Brasil Printed in Brazil 
 
FICHA CATALOGRÁFICA 
(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de 
Livros, RJ) 
Japiassu, Hilton Peneira, 1934 - Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de 
Janeiro, F. Alves, 202 p. 
 
Todos os direitos reservados à 
LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A. 
Rua Sete de Setembro, 177 - Centro 
20.050 Rio de Janeiro, RJ 
 
 
 
 
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 5 
SUMÁRIO 
 
Prefácio................................................................................................................................7 
 
Alguns instrumentos conceituais........................................................................................13 
 
O que é a epistemologia?..................................................................................................21 
 
A epistemologia genética de J. Piaget...............................................................................41 
 
A epistemologia histórica de G. Bachelard........................................................................61 
 
A epistemologia “racionalista-crítica" de K. Popper...........................................................83 
 
A epistemologia "arqueológica" de M. Foucault...............................................................111 
 
A epistemologia "crítica"...................................................................................................135 
 
Para onde vai a filosofia?.................................................................................................159 
 
Conclusão: um problema em suspenso...........................................................................185 
 
Bibliografia sumária..........................................................................................................195 
 
 
 
 6 
 
 
 
 
 7 
PREFÁCIO 
 
 
 
 8 
 
 
 
 
 9 
Este pequeno livro, como indica seu título, trata do que chamei de "Introdução ao 
Pensamento Epistemológico". Meu propósito foi o de explorar alguns dos caminhos que 
se abrem à epistemologia contemporânea. Os vários capítulos aqui reunidos não têm 
outra pretensão senão a de fornecer um conjunto de Elementos e de Instrumentos de 
reflexão epistemológica sobre os processos de génese, de desenvolvimento, de 
estruturação e de articulação dos conhecimentos científicos. Cada um poderá ser tomado 
como um todo. Não houve, de minha parte, uma preocupação de sistematizar os vários 
temas tratados. Nem tampouco de lhes dar uma ordenação lógica rigorosa. Tentei 
descobrir, nos autores analisados, seu "projeto" fundamental concernente aos problemas 
epistemológicos. Para não sobrecarregar o texto com muitas citações, remeto o leitor à 
bibliografia, onde poderá encontrar os elementos indispensáveis a um maior 
aprofundamento. Não pretendi tanto resolver problemas quanto levantar questões que, 
uma vez examinadas, poderão proporcionar outras respostas, eventualmente 
discordantes. Se isto ocorrer, já está justificado meu esforço de propor à reflexão,* de 
modo simples, mas talvez "polémico", tais Elementos e Instrumentos introdutórios ao que 
hoje se chama de atividade epistemológica. 
 
Trata-se, pois, de uma reflexão epistemológica cuja preocupação fundamental é a de 
situar os problemas tais como eles se colocam ou se omitem, se resolvem ou 
desaparecem na prática efetiva' dos cientistas. Todavia, como para situar e formular os 
problemas torna-se indispensável a presença de certos conceitos, tive a preocupação de 
fornecer algumas concepções engajando o tratamento de certos problemas científicos 
pela epistemologia. Sem dúvida, falar do "objeto" dessa disciplina significa falar de um 
problema a ser colocado para, em seguida, ser resolvido. Não tive a pretensão de 
analisar todos os problemas da epistemologia. Nem tampouco foi minha intenção 
apresentar um quadro completo de todas as epistemologias atualmente existentes. Uma 
síntese, certamente, far-me-ia correr o risco de uma exagerada generalidade. Isto não me 
impediu, porém, de dar atenção a certas epistemologias, por vezes em "conflito". Assim, 
quis elucidar algumas "teses" particulares, sem ter a audácia de fazer com que elas se 
beneficiassem de uma demonstração completa. 
 
O termo "conflito" é aqui utilizado no sentido de certos antagonismos fundamentais na 
elucidação, por parte das abordagens epistemológicas analisadas, da atividade científica. 
Cada enfoque epistemológico elucida a atividade científica a seu modo. Cada um tem 
uma concepção particular do que seja a ciência. Evidentemente, as epistemologias aqui 
 
 10 
expostas não podem ser tomadas por cânones. Cada uma tem um valor de tentativa, e 
não de modelo. Foi de propósito que tomei essas modalidades de epistemologia. Todas 
têm em comum, apesar das des-semelhanças quanto aos seus objetos, às suas 
perspectivas, aos seus métodos e às suas influências recíprocas, um caráter 
deliberadamente não-positivista quanto às suas concepções da ciência. Razão pela qual 
deixei de lado a apresentação desta epistemologia tão desenvolvida e rica, com 
resultados surpreendentes no domínio do conhecimento científico, que é a epistemologia 
lógica, cujos defensores mais notáveis encontram-se filiados à corrente de pensamento 
derivada do empirismo lógico. Portanto, não se trata de uma negligência. Simplesmente 
deixei-a de fora, por tratar-se de um domínio epistemológico já bastante explorado. Por 
outro lado, ele se prende muito mais à elucidação da atividade científica através de uma 
descrição dos métodos, dos resultados, e sobretudo, da linguagem da "Ciência" ou da 
"Razão" nas ciências, do que ao exame propriamente crítico desta atividade, que é o 
objetivo das epistemologias que levei em consideração. Estas, com efeito, preocupam-se 
com a história das ciências, com a "história" da inteligência, com a "arqueologia" das 
ciências e com as relações da ciência com a sociedade que a produz, interferindo tanto 
em sua organização interna quanto em suas aplicações. Finalmente, estou consciente de 
que falar de epistemologia, hoje, já é engajar-se num espaço polémico ou conflitante, pois 
sob este título apresentam-se trabalhos que frequentemente nada têm de comum, 
quando não se excluem explicitamente. Não se tratará, pois, aqui, de conciliar, mas, na 
medida do possível, de colocar em ordem e de justificar: um discurso sobre as ciências é 
um discurso em que a teoria se faz estratégia. E é tomando as ciências em sua 
"historicidade", que se elabora a crítica epistemológica da ciência. Por outro lado, como a 
historicidade não é para a filosofia um simples acidente exterior, mas algo que lhe é 
essencial, da mesma forma a história das ciências se liga de muito perto à filosofia, pelo 
menos, através de sua vertente epistemológica. A história das ciências é um tecido de 
juízos implícitos sobre o valor dos pensamentos e das descobertas científicas. O papel da 
epistemologia é de explicitá-los. 
 
Hilton Japiassu 
 
 
 
 
 11 
ALGUNS INSTRUMENTOS CONCEITUAIS 
 
 
 
 12 
 
 
 
 
 13 
I. Saber, ciência, epistemologia 
 
O termo saber tem hoje, por força das coisas e pela realidade do uso, um sentido bem 
mais amplo que o termo ciência. 
 
a) É considerado saber, hoje em dia, todo um conjunto de conhecimentos 
metodicamente adquiridos, mais-ou-menos sistematicamente organizados e 
susceptíveis de serem transmitidos por um processo pedagógico de ensino. Neste 
sentido bastante lato, o conceito de "saber"poderá ser aplicado à aprendizagem de 
ordem prática(saber fazer, saber técnico...) e, ao mesmo tempo, às determinações 
de ordem propriamente intelectual e teórica. É nesse último sentido que tomamos 
o termo "saber". 
 
 b) Por ciência,no sentido atual do termo, deve ser considerado o conjunto das 
aquisições intelectuais, de um lado, das matemáticas, do outro, das disciplinas de 
investigação do dado natural e empírico, fazendo ou não uso das matemáticas, mas 
tendendo mais ou menos à matematização. 
Hoje em dia, podemos nos servir do termo "saber" para designar uma série de disciplinas 
intelectuais mais ou menos estabelecidas, mas que não podem ser consideradas como 
ciências, no sentido atual do termo: o saber "racional", constituído pela filosofia, ou o 
saber "crente" ou "místico". Entretanto, entre as ciências e os saberes especulativos, 
intercalam-se várias disciplinas cujo estatuto ainda permanece incerto: disciplinas de 
erudição, história, disciplinas jurídicas, etc. Um quadro poderá ilustrar melhor: 
 
SABER EM GERAL 
SABERES "ESPECULATIVOS" (que não são ciências) 
 
A. Racional: Filosofia 
B. Crents ou religioso: Teologia 
 
CIÊNCIAS (que não são saberes "especulativos") 
 
A. Matemáticas 
B. Empíricas e positivas 
 
 
 14 
c) Por epistemologia, no sentido bem amplo do termo, podemos considerar o estudo 
metódico e reflexivo do saber, de sua organização, de sua formação, de seu 
desenvolvimento, de seu funcionamento e de seus produtos intelectuais. Haveria, assim, 
três tipos de epistemologia: 
 
 — Epistemologia global (geral), quando se trata do saber globalmente considerado, 
com a virtualidade e os problemas do conjunto de sua organização, quer sejam 
"especulativos", quer "científicos". 
 
 — Epistemologia particular, quando se trata de levarem consideração um campo 
particular do saber, quer seja "especulativo", quer "científico". 
 
 
 
 15 
— Epistemologia específica, quando se trata de levar em conta uma disciplina 
intelectualmente constituída em unidade bem definida do saber, e de estudá-la de modo 
próximo, detalhado e técnico, mostrando sua organização, seu funcionamento e as 
possíveis relações que ela mantém com as demais disciplinas. 
Fala-se também, hoje em dia, de epistemologia interna e de epistemologia derivada. A 
epistemologia interna de uma ciência consiste na análise crítica que se faz dos 
procedimentos de conhecimento que ela utiliza, tendo em vista estabelecer os 
fundamentos desta disciplina. Enquanto tenta estabelecer uma teoria dos fundamentos 
de uma ciência, a epistemologia interna tende a integrar seus resultados no domínio da 
ciência analisada. A epistemologia derivada, ao contrário, visa fazer uma análise da 
natureza dos procedimentos de conhecimento de uma ciência, não para fornecer-lhe um 
fundamento ou intervir em seu desenvolvimento, mas para saber como esta forma de 
conhecimento é possível, bem como para determinar a parte que cabe ao Sujeito e a que 
cabe ao objeto no modo particular de conhecimento que caracteriza uma ciência. Donde 
a necessidade de se fazer apelo às outras ciências e às suas epistemologias. É a esta 
epistemologia derivada que chamamos de epistemologia geral. Dizer que esta não tem 
objeto, seria o mesmo que admitir que os cientistas estão conscientes de todos os fatores 
(sociais, culturais, ideológicos, filosóficos, políticos) implicados em sua prática efetiva. 
 
II. Saber e pré-saber 
Antes do surgimento de um saber ou de uma disciplina científica, há sempre uma 
primeira aquisição ainda 
 
 
 
 16 
não científica de estados mentais já formados de modo mais ou menos natural ou 
espontâneo. No nível coletivo, esses estados mentais são constitutivos de uma certa 
cultura. Eles constituem as "opiniões primeiras" ou pré-noções, tendo por função 
reconciliar o pensamento comum consigo mesmo, propondo certas explicações. 
Podemos caracterizar tais pré-noções como um conjunto falsamente sistematizado de 
juízos, constituindo representações esquemáticas e sumárias, formadas pela prática e 
para a prática, obtendo sua evidência e sua "autoridade" das funções sociais que 
desempenham. Como já dizia Aristóteles, "toda disciplina susceptível de se aprender, e 
todo estudo comportando um processo intelectual, constituem-se a partir de um 
conhecimento já presente". 
 
Todo saber humano relaciona-se a um pré-saber. Aliás, a epistemologia contemporânea 
reconhece este fato. Por exemplo, Piaget elabora uma epistemologia genética; Bachelard 
escreve La formation de Vesprit scientifique; M. Foucault, em Lês mots et lês choses, faz 
toda uma "arqueologia" das ciências humanas. Assim, como poderíamos caracterizar 
este pré-saber relativamente ao saber que se procura ou que já foi encontrado? 
 
a) caracterizações pejorativas: opinião, conhecimento comum ou vulgar, etc. 
 
b) caracterizações positivas: empiria, experiência, por vezes "arte", opinião válida, 
etc. 
 
c) caracterização técnica em Foucault: "episteme": infra-estrutura cultural das 
emergências do saber propriamente dito. 
 
O pré-saber, devemos notar, é uma realidade cultural relativa ao saber ou à ciência: é 
relativamente ao sa- 
 
 
 
 17 
ber que há um pré-saber. Trata-se de uma realidade ambígua, comportando 
determinações contrárias ao saber (erro, preconceitos, ideias preconcebidas, etc.) e 
recursos de conhecimento e de atividades mentais indispensáveis ao saber. É em função 
desta relação do saber ao seu pré-saber que vemos definir-se na epistemologia atual 
toda uma série de categorias epistemológicas significativas. Mencionemos as mais 
correntes: 
 
1. Em face da necessidade intelectual do saber e das tentativas de aproximação 
deste saber, temos a categoria de obstáculos epistemológicos (analisada por 
Bachelard em La formation de Vesprit scientifique): "resistência" ou "inércia" do 
pensamento ao pensamento, surgindo no momento da constituição de uma ciência 
como"contra-pensamento", ou num estádio superior de seu desenvolvimento como 
"parada de pensamento". 
 
2. Em face da necessidade intelectual de se definira atitude científica por oposição à 
atitude pré-científica,temos a categoria de corte epistemológico (analisada por 
Bachelard em Lê rationalisme appliqué, cap. VI): trata-se do momento em que uma 
ciência se constitui "cortando" com sua pré-história e com seu meio ambiente 
ideológico; não se trata de uma "quebra" instantânea,trazendo uma novidade 
absoluta, mas de um processo complexo no decorrer do qual se constitui uma 
ordem inédita do saber. 
 
3. Para mantermos o progresso reflexivo da atitude científica, devemos fazer apelo à 
categoria de vigilância epistemológica (Rationalisme appliqué, cap. IV): trata-se de 
uma atitude reflexiva sobre o método científico, isto é, de uma atitude que nos leva 
a apreender alógica do erro, para construir a lógica da descoberta científica como 
polémica contra o erro e como esforço para submeter as verdades aproximadas da 
ciência e os
 
 18 
métodos que ela emprega a uma retificação metódica, a fim de nos libertarmos das 
ideologias, das crenças, das opiniões, das certezas imediatas e chegarmos, assim, 
à objetividade científica; esta não pode repousar num fundamento tão incerto 
quanto a objetividade do cientista (que é sua subjetividade), mas exige o 
estabelecimento das condições de um controle intersubjetivo. 
 
4. Em face da necessidade de explicar o devir de uma ciência, ligando o 
conhecimento de seu passado à análise de seu estado presente, e fazendo 
depender este estado presente de todos os elementos que constituíram sua 
possibilidade, devemos fazer apelo à categoria de recorrência epistemológica. É 
este conceito que torna possível o desenvolvimento de uma história teórica ou de 
um conhecimento teórico da história das ciências. É ele que nos permite 
compreender o devir real de uma ciência, que é o objeto da epistemologia 
histórica. 
 
 
 
 19 
O QUE É A EPISTEMOLOGIA? 
 
 
 
 20 
 
 
 
 
 21 
Devemos dizer, de início, que da epistemologia sabemos muito sobre aquilo que ela não 
é, e pouco sobre aquilo que é ou se torna, uma vez que se trata de uma disciplinarecente 
e cuja construção é, por isso mesmo, lenta. Seu estatuto está longe de poder ser bem 
definido, tanto em relação às ciências, entre as quais pretende instalar-se como disciplina 
autónoma, quanto em relação à filosofia, de que insiste em separar-se sem se dar conta 
de que uma de suas razões de ser é postulá-la como uma das exigências fundamentais 
de qualquer olhar crítico e reflexivo sobre as ciências que se vêm criando e 
transformando o mundo através dos produtos que não cessam de lançar em nossa 
cultura. Por isso, definir o estatuto da epistemologia atual é tarefa delicada, pois os limites 
do domínio de investigação dessa disciplina são muito flutuantes. Além disso, não existe 
sequer um acordo quanto à natureza dos problemas que ela deve abordar. Seu campo de 
pesquisa é imenso, supondo grande intimidade com as ciências, cujos princípios e resul- 
 
 
 
 22 
tados ela deveria estar em condições de criticar. Donde a variedade de conceitos de 
epistemologia. 
 
Comecemos pela noção mais simples. "Epistemologia" significa, etimologicamente, 
discurso (logos) sobre a ciência (episteme). Apesar de parecer um termo antigo, sua 
criação é recente, pois surgiu a partir do século XIX no vocabulário filosófico. Daí um 
primeiro problema: se aquilo que está por baixo desse termo (seu conteúdo) só apareceu 
no século passado, a que condições novas, na história das ciências e da filosofia, 
corresponde este aparecimento? Será que este termo surgiu tardiamente para designar 
uma antiga forma de conhecimento, contemporânea da prática dos primeiros sábios e 
filósofos? Em outros termos: teria a epistemologia começado com a filosofia clássica 
(com Platão, por exemplo), ou somente depois dela? 
 
Colocando a questão nestes termos, podemos confinar a epistemologia, desde o início, 
nos limites do discurso filosófico, fazendo dela uma parte deste discurso. Foi assim que 
fizeram todas as epistemologias tradicionais, chamadas de filosofia das ciências ou de 
teoria do conhecimento. Todavia, colocando de outra forma a questão, caracterizaremos 
a epistemologia como um discurso sobre o qual o discurso primeiro da ciência deveria ser 
refletido. Assim, o estatuto do discurso epistemológico, como duplo, é ambíguo: discurso 
sistemático que encontraria na filosofia seus princípios e na ciência seu objeto. Seria um 
discurso dividido entre duas formas de discurso racional. Por esta dupla pertença ou 
filiação, a epistemologia teria por função resolver o problema geral das relações entre 
filosofia e ciências. Trata-se de saber se tal problema é verdadeiro, ou se a epistemologia 
não deve ir procurar suas funções, seus métodos e seu conteúdo fora da perspectiva 
filosófica. 
 
 
 
 23 
Tradicionalmente, a epistemologia é considerada como uma disciplina especial no interior 
da filosofia. Eram os filósofos que faziam as pesquisas em epistemologia. Esta era "para" 
a ciência ou "sobre" a ciência, mas não era obra dos próprios cientistas. Todas as 
filosofias desenvolveram espontaneamente uma teoria do conhecimento e uma filosofia 
das ciências tendo por objetivo quer evidenciar os meios do conhecimento científico, quer 
elucidar os objetos aos quais tal conhecimento se aplica, quer fundar a validade deste 
conhecimento. Como se pode notar, este programa visa a um duplo fim: em primeiro 
lugar, descobrir um conhecimento positivo: de que fala o cientista? Como fala dele? Em 
segundo lugar, visa a ultrapassar os limites dessas questões, fazendo da prática científica 
o objeto de um juízo: o que é uma verdade científica? Em que condições há verdade? Em 
que limites podemos falar de verdade científica? 
 
Esta concepção tradicional de epistemologia está registrada no Vocabulário de Lalande. 
Para este, com efeito, a epistemologia é a filosofia das ciências, mas com um sentido 
mais preciso. Ela não é, propriamente falando, o estudo dos métodos científicos, os quais 
pertencem à metodologia. Também não é uma síntese, ou uma antecipação conjetural 
das leis científicas (à maneira do positivismo ou do evolucionismo). Essencialmente, a 
epistemologia é o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das 
diversas ciências. Semelhante estudo tem por objetivo determinar a origem lógica (não 
psicológica) das ciências, seu valor e seu alcance objetivos. 
 
Como podemos depreender dessa concepção, a epistemologia usaria a ciência como 
simples pretexto para filosofar. A filosofia teria com a ciência uma relação puramente 
interesseira, explorando-a para seus próprios fins. Isto se torna manifesto nas três 
funções clássicas atribuídas à filosofia das ciências: 1. Situar o lugar do 
 
 
 
 24 
conhecimento científico dentro do domínio do saber. Esta atividade, propriamente tópica 
(topos: lugar), é dupla: de um lado, ela distingue as funções e os meios que são 
apropriados às outras formas de conhecimento; do outro, apresenta o sistema geral de 
todas essas funções. Donde o paradoxo do discurso filosófico, que se confere a si 
mesmo um lugar específico no interior deste conjunto, mas permanecendo-lhe estranho, 
pois cabe-lhe designar seu esquema global. Daí a questão: por que a filosofia tem este 
privilégio de distribuir em torno de si os outros discursos? Não poderia o discurso 
científico descobrir por si mesmo seu próprio lugar? Destas questões, podemos deduzir a 
segunda função da filosofia das ciências. 2. Estabelecer os limites do conhecimento 
científico: este não pode tudo conhecer. Tal limitação se exprime numa série de 
oposições: ciência e sabedoria, conhecer e pensar, compreender e conhecer, etc. Estas 
duas atividades, de distinção e de limitação, supõem o uso de uma categoria, que é o 
produto da intervenção filosófica. 3. Buscar a natureza da ciência. Ora, a ciência não 
existe. Do ponto de vista da prática dos cientistas, não há ciência em geral, mas sistemas 
de conhecimentos específicos, em evolução e apropriados a seus objetos. "A" ciência 
não passa de uma ficção. 
 
Ao buscar a natureza do conhecimento científico, a filosofia das ciências não se dá por 
objeto um conhecimento em sua génese e estruturação progressiva, em vias de se fazer 
ou em processo, mas um conhecimento "em si", como fato. Ela se dá um objeto ideal, e 
não esses objetos reais que são as diversas modalidades nas quais os cientistas 
trabalham efetivamente e a partir das quais eles constroem, ao mesmo tempo, o edifício 
de suas teorias e esses elos positivos que permitem seu desenvolvimento. Portanto, 
trata-se de uma modalidade de epistemologia que poderíamos chamar de 
"metacientífica", em 
 
 
 
 25 
oposição às epistemologias ditas "científicas". Ela parte de um postulado: o de que o 
conhecimento é um fato que pode ser estudado em sua natureza própria e nas condições 
prévias de sua existência. As questões colocadas por este tipo de epistemologia referem-
se sobretudo à possibilidade do conhecimento. Ela não se interroga sobre suas 
condições concretas de elaboração, de génese, de organização, de estruturação ou de 
crescimento. Daí as questões fundamentais: "como é possível o conhecimento?", "o que 
é o conhecimento?" 
 
As razões de tal atitude não devem ser procuradas apenas nas doutrinas dos grandes 
filósofos, mas também no próprio pensamento científico, que por muito tempo acreditou 
ter atingido um conjunto de verdades definitivas, embora incompletas, permitindo que se 
interrogasse sobre "o que é o conhecimento". Ora, hoje em dia, o conhecimento passou a 
ser considerado como um processo e não como um dado adquirido uma vez por todas. 
Esta noção de conhecimento foi substituída por outra, que o vê antes de tudo como um 
processo, como uma história que, aos poucos e incessantemente, fazem-nos captar a 
realidade a ser conhecida. Devemos falar hoje de conhecimento-processo e não mais de 
conhecimento-estado. Se nosso conhecimento se apresenta em devir, só conhecemos 
realmente quandopassamos de um conhecimento menor a um conhecimento maior. A 
tarefa da epistemologia consiste em conhecer este devir e em analisar todas as etapas 
de sua estruturação, chegando sempre a um conhecimento provisório, jamais acabado ou 
definitivo. 
 
É neste sentido que podemos conceituá-la como essa disciplina cuja função essencial 
consiste em submeter a prática dos cientistas a uma reflexão que, diferentemente da 
filosofia clássica do conhecimento, toma por objeto, não mais uma ciência feita, uma 
ciência verda- 
 
 
 
 26 
deira de que deveríamos estabelecer as condições de possibilidade, de coerência ou os 
títulos de legitimidade, mas as ciências em vias de se fazerem, em seu processo de 
génese, de formação e de estruturação progressiva. Seu problema central, e que define 
seu estatuto geral, consiste em estabelecer se o conhecimento poderá ser reduzido a um 
puro registro, pelo Sujeito, dos dados já anteriormente organizados independentemente 
dele num mundo exterior (físico ou ideal), ou se o Sujeito poderá intervir ativamente no 
conhecimento dos Objetos. É da tomada de posição relativamente a este problema, que 
as epistemologias se repartem em duas categorias ou orientações distintas. Portanto, de 
um lado, temos as epistemologias genéticas, para as quais o acordo entre o Sujeito e o 
Objeto deverá ser estabelecido progressivamente: o conhecimento deve ser analisado de 
um ponto de vista dinâmico (na sua formação e em seu desenvolvimento) ou diacrônico, 
quer dizer, em sua estrutura evolutiva. Por outro lado, temos as epistemologias não-
genéticas, para as quais o acordo entre o Sujeito e o Objeto deve ser feito desde a 
origem, não sendo aceita a perspectiva histórica ou temporal: o conhecimento é estudado 
de um ponto de vista estático ou sincrônico, quer dizer, em sua estrutura atual. 
 
É claro que, no interior dessas duas categorias podem ser distinguidas subclasses, 
conforme o acordo suponha um primado do Objeto que se impõe ao espírito 
(conhecimento tirado do objeto), um primado do Sujeito (conhecimento tirado do sujeito) 
que antecede ao objeto, ou uma interação entre o Sujeito e o Objeto. E as epistemologias 
contemporâneas repartem-se segundo confiram o primado ao Sujeito, ao Objeto ou à 
Interação entre ambos. Contudo, as epistemologias atualmente vivas e significativas 
estão centradas sobre as interações do Sujeito e do Objeto: a epistemologia 
fenomenológica, 
 
 
 
 
 27 
ilustrada por Husserl; a epistemologia construtivista e estruturalista, ilustrada por Piaget; a 
epistemologia histórica, ilustrada por Bachelard; a epistemologia "arqueológica", ilustrada 
por Foucault; a epistemologia "racionalista-crítica", ilustrada por Popper. 
É necessário que se compreenda como a epistemologia se situa a si mesma 
relativamente à filosofia das ciências e a outras disciplinas que lhe são mais ou menos 
afins. Em outros termos, a epistemologia se situa na intersecção de preocupações e de 
disciplinas bastante diversas, tanto por seus objetivos quanto por seus métodos. É muito 
difícil encontrar uma lista completa e precisa dessas disciplinas. Limitemo-nos a algumas. 
Trata-se, de fato, de uma divisão nas maneiras de abordar a epistemologia, isto é, de um 
conjunto de vias de acesso a esta disciplina, cada uma com seu tipo próprio de 
inteligibilidade, constituindo uma abordagem que não se impõe às outras. 
 
A. A filosofia das ciências 
 
No pano de fundo de toda abordagem epistemológica, encontramos toda uma tradição 
filosófica. Todos os grandes filósofos também foram teóricos do conhecimento, quer 
dizer, construíram uma teoria do conhecimento fazendo parte integrante de seu sistema 
filosófico. Eles se perguntaram como a ciência é possível. Ao se referirem às ciências, 
tinham em vista duas coisas: quer ultrapassá-las com métodos análogos, quer opor-se a 
elas determinando seus limites e tentando abrir, com essa crítica, outros caminhos 
possíveis. As diversas teorias clássicas do conhecimento eram o produto de uma reflexão 
sobre as ciências, dizendo respeito aos diversos 
 
 
 
 28 
tipos de saber e às suas fontes: razão, imaginação, experiência, etc. No fundo, a questão 
como vinha a significar em que condições. Procuravam-se, pois, as condições ou os 
princípios logicamente exigidos para que a ciência se tornasse possível. Podemos 
chamar essas teorias do conhecimento, partindo de uma reflexão sobre as ciências e 
tentando prolongá-la numa teoria geral do conhecimento, de epistemologias 
"metacientíficas": elas visam a estabelecer a relação que o Sujeito e o Objeto mantêm 
entre si no ato de conhecer, mas tendo em vista determinar o valor e os limites do próprio 
conhecimento, a fim de extrair sua natureza, seu mecanismo geral e seu alcance. 
 
Todas as formas clássicas de epistemologia estiveram sempre, de um modo ou de outro, 
vinculadas ao progresso das ciências. No passado, houve uma solidariedade da filosofia 
com as ciências. Todos os filósofos refletiram sobre aquilo que faziam. E foi assim que se 
constituiu a filosofia das ciências. O problema consiste em saber como ela ainda pode 
justificar-se hoje em dia. Atualmente, são os próprios cientistas que se interessam por 
refletir sobre o que fazem. De uma forma ou de outra, eles se colocam, mesmo que seja 
de modo implícito, questões sobre a razão de ser dos problemas, dos métodos e dos 
conceitos de suas disciplinas. Aliás, há toda uma tendência a fazer a reflexão sobre a 
ciência curvar-se à disciplina científica: de um lado, fazendo-se apelo à linguagem lógica, 
do outro, multiplicando-se os contatos com os fatos. Isto não quer dizer que a 
epistemologia tenha cortado completamente seus laços com a filosofia: em primeiro lugar, 
porque as grandes epistemologias continuam estreitamente associadas a uma filosofia; 
em seguida, porque elas a sugerem ou a confirmam; finalmente, porque acima das 
epistemologias "regionais" ou "internas", há problemas de epistemologia 
 
 
 
 29 
geral que ultrapassam a competência dos especialistas. E mesmo que possamos colocar 
em dúvida a validade atual de uma epistemologia filosófica, não poderíamos negar a 
importância de uma teoria da história das ciências. Esta teoria, muito solidária da 
epistemologia, não perde seu caráter filosófico. Uma teoria das ciências só é 
epistemológica porque a epistemologia é histórica. Assim, a historicidade é essencial ao 
objeto da ciência sobre o qual é estabelecida uma reflexão que podemos chamar de 
"filosofia das ciências" ou epistemologia. E a história das ciências, não sendo ela própria 
uma ciência, e não tendo por isso mesmo um objeto científico, é uma das funções 
principais da epistemologia. 
 
B. A história das ciências 
 
Esta disciplina conheceu um grande desenvolvimento no início do século XX. O grande 
problema que se coloca é o do conhecimento do passado: em que medida podemos 
descrever uma história das ciências sem interpretar os conhecimentos passados através 
dos conhecimentos presentes? Uma história puramente descritiva corre o risco de 
introduzir juízos de valor inoportunos sobre o que os cientistas "deveriam ter feito", sobre 
seus "erros", etc. E hoje sabemos que fazer a história das ciências consiste em fazer a 
história dos conceitos e das teorias científicas, bem como das hesitações do próprio 
teórico. Trata-se de um esforço para se elucidar em que medida as noções, as atitudes 
ou os métodos ultrapassados foram, em sua época, um ultra passatempo. Mais 
profundamente, como nos mostrou Canguilhem, interrogar-se sobre a história das 
ciências consiste em interrogar-se ao mesmo tempo sobre sua finalidade, so- 
 
 
 
 30 
bre seu destino, sobre seu porquê, mas também sobre aquilo pelo que ela se interessa, 
de que ela se ocupa, em conformidade com aquilo que ela visa. Sendo assim, a 
epistemologia não pode deixar de interessar-se pela história das ciências. É através da 
epistemologia queos filósofos se interessam por ela, na medida em que esta consciência 
crítica dos métodos atuais de um saber adequado a seu objeto vê-se obrigada a celebrar 
o poder desses métodos, lembrando os embaraços que retardaram sua conquista. Assim, 
entre as razões apresentadas por Canguilhem para se fazer história das ciências: 
histórica (extrínseca à ciência, entendida como discurso verificado sobre determinado 
setor da experiência), científica (realizada pelos cientistas enquanto são pesquisadores e 
não académicos) e filosófica, esta última é a mais importante. Porque, sem referência à 
epistemologia, toda teoria do conhecimento seria uma meditação sobre o vazio. Por outro 
lado, sem relação à história das ciências, a epistemologia seria uma réplica inútil da 
ciência que toma como objeto de discurso. 
 
Portanto, contrariamente aos epistemólogos que se reclamam do empirismo lógico, para 
os quais a história das ciências situa-se fora do campo epistemológico, pois pertenceria 
às ciências empíricas, ligadas ao conhecimento dos fatos, sustentamos que a 
epistemologia é profundamente solidária das ciências, devendo alimentar-se amplamente 
de seus ensinamentos. Na perspectiva positivista, a ciência só é tomada como objeto de 
estudo na medida em que existe a título de fato, isto é, como ciência presente. 
Contrariamente a esta posição, devemos dizer que compete à epistemologia fornecer à 
história das ciências o princípio de um juízo, pois é ela que lhe ensina a última linguagem 
falada por tal ciência, permitindo-lhe, assim, recuar no tempo até o momento em que esta 
linguagem deixa de ser inteligível. É a epis- 
 
 
 
 31 
temologia que nos permite discernir a história dos conhecimentos científicos que já estão 
superados e a dos que permanecem atuais (ou sancionados), porque atuantes e 
colocando em marcha o processo científico. A diferença entre o historiador das ciências e 
o epistemólogo consiste em que o primeiro toma as ideias como fatos, ao passo que o 
segundo toma os fatos como ideias*, inserindo-os num contexto de pensamentos. Em 
outras palavras, o primeiro procede das origens para o presente, de sorte que a ciência 
atual já está sempre anunciada no passado, ao passo que o segundo procede do 
presente para o passado, de sorte que somente uma parte daquilo que ontem era 
considerado como ciência pode hoje ser fundado e justificado cientificamente. 
Resulta que é a epistemologia, enquanto teoria do fundamento da ciência, que faz com 
que o objeto da história das ciências não se identifique com o objeto da ciência e com 
que a história das ciências seja uma tomada de consciência explícita do fato de as 
ciências serem discursos críticos e progressivos para a determinação daquilo que, na 
experiência, deve ser tido por real. É ainda ela que faz com que o objeto da história das 
ciências seja um objeto não dado, mas um objeto construído, um objeto cujo 
inacabamento é essencial. Em suma, da história das ciências, filosoficamente 
questionada, surge uma filosofia das ciências que outra coisa não é senão uma das 
modalidades da epistemologia geral, e que constitui uma das vias de acesso à 
epistemologia, próxima às que passam pela psicologia, pela sociologia e pela 
metodologia dos conhecimentos. 
 
C. A psicologia das ciências 
 
Esta disciplina ainda está em seu início. Mas seu campo de pesquisa é vasto. Há muitas 
questões episte- 
 
 
 
 32 
mológicas que só são resolvidas através de uma psicologia do conhecimento. Por 
exemplo, a seguinte questão: qual é a influência dos processos simbólicos inconscientes 
sobre a produção do pensamento lógico na pesquisa científica? Estamos hoje em 
presença de todo um trabalho que certamente podemos chamar de epistemologia 
psicológica, visando a elucidar como se articulam as diferentes etapas do conhecimento, 
desde a infância até a ciência dos adultos, associando estreitamente a análise lógica à 
análise psicológica. São as pesquisas levadas a efeito por Piaget e sua equipe no Centro 
Internacional de Psicologia Genética, em Genebra. Ao partirem da questão fundamental 
do pensamento kantiano: "como o conhecimento é possível?", acreditam esses autores 
que a psicologia genética foi criada para trazer-lhe uma resposta. Eles mostram toda a 
carência da filosofia tradicional para solucionar este problema, bem como as 
insuficiências, tanto das velhas certezas e respostas do empirismo, quanto das novas 
soluções propostas pelo positivismo lógico. E pretendem instaurar, com a psicologia 
genética, as bases sólidas de uma nova epistemologia. Esta não pode mais contentar-se 
com uma fidelidade às tradições anglo-saxônias, que permanecem orientadas para um 
associacionismo empirista, o que reduziria todo conhecimento a uma aquisição exógena, 
a partir da experiência ou das apresentações verbais ou audiovisuais dirigidas pelos 
adultos. Por outro lado, a epistemologia genética tampouco aceita a solução proposta 
pelo empirismo lógico que, no processo de aquisição dos conhecimentos, continua a 
fazer apelo aos fatores de ineidade e de maturação interna. A nova epistemologia precisa 
ser elaborada a partir de uma concepção construtivista da aquisição dos conhecimentos: 
sem pré-formação, nem exógena (empirismo) nem endógena (ineidade), mas por 
contínuos ultrapassamentos das elaborações sucessivas. 
 
 
 
 33 
Ao partir de sua concepção da psicologia genética, entendida como o estudo do 
desenvolvimento das funções mentais, Piaget mostra que este desenvolvimento pode 
fornecer uma explicação ou, pelo menos, um complemento de informação quanto aos 
mecanismos dessas funções mentais em seu estado acabado. Por outro lado, mostra que 
podemos utilizar a psicologia genética para encontrar a solução dos problemas 
psicológicos gerais e dos problemas do conhecimento. Em suma, é a esta epistemologia 
que devemos a maneira diferente de colocar o problema fundamental do conhecimento: 
ao invés de perguntar "como o conhecimento é possível?", devemos perguntar "como 
crescem os conhecimentos?" Donde podemos identificar a epistemologia da psicologia à 
psicologia do conhecimento científico em geral. 
 
D. A sociologia do conhecimento 
 
Também esta disciplina empreende pesquisas estreitamente ligadas à epistemologia. 
Assinalemos, por exemplo, o lugar que ocupam Marx, Durkheim, M. Weber, Manheim e 
muitos outros sociólogos do conhecimento. É evidente que as tendências manifestadas 
por esses autores em seus trabalhos são bem diferentes. Todavia, todos têm em comum 
uma abordagem global: para eles, os conhecimentos não são considerados como 
construções autónomas e individuais, mas como atividades sociais, inseridas num 
determinado contexto sócio-cultural. O conhecimento científico é sempre tributário de um 
pano de fundo ideológico ou filosófico. Também é tributário da religião, da economia, da 
política e de outros fatores extracientíficos. Sendo assim, o simples fato de concebermos 
a ciência ou um conhecimento científico como possíveis, já é um pressuposto que tem 
origens fi- 
 
 
 
 34 
losóficas ou ideológicas. Por conseguinte, uma sociologia do conhecimento deve ter, 
entre outras funções, a de estabelecer uma ruptura entre os saberes comuns e saber 
científico, interrogando-se sobre as condições sociais que tornam inevitável esta ruptura 
com o conhecimento espontâneo e ideológico. Ela tem a missão de evidenciar os 
pressupostos inconscientes das tradições teóricas. Ora, este fato de encontrar as 
condições históricas e sociais em que se realiza a prática sociológica, para ultrapassá-
las, já é um trabalho específico da crítica epistemológica. 
 
Nas últimas décadas, fala-se também de sociologia da ciência. Distinta da sociologia do 
conhecimento, que guardou um caráter especulativo para estudar o problema de uma 
determinação social do conhecimento, a sociologia da ciência dá preferência às 
pesquisas concretas do condicionamento sociale dos fatores não-científicos 
concernentes às diversas descobertas científicas. Ela se interessa sobretudo pelo 
progresso da ciência, mas tentando levar em conta as relações entre a ciência e a 
sociedade: as consequências que decorrem da ciência, de seus progressos e de suas 
realizações para a vida social e sua organização. Não se interessa tanto, como a 
sociologia do conhecimento, pelos sistemas do conhecimento científico, mas pelos 
próprios cientistas, em suas condições sociais reais de trabalho. 
 
Daquilo que já sabemos sobre a "natureza" da epistemologia, podemos tirar algumas 
conclusões: 
 
1. O simples fato de ainda hesitarmos entre duas denominações: filosofia das ciências e 
epistemologia (aliás, há várias denominações: filosofia das ciências, teoria do 
conhecimento, lógica das ciências, epistemologia, etc.), já é revelador da impossibilidade 
de estabelecermos um estatuto preciso e definitivo para a episte- 
 
 
 
 35 
mologia. Ora falamos de epistemologia (termo que tem a vantagem de apresentar uma 
conotação mais "séria" e "científica"), ora falamos de filosofia das ciências (termo que 
apresenta a desvantagem de estar carregado de um sentido menos "sério" ou "literário"). 
No entanto, essas noções são complementares: a epistemologia guarda sua autonomia 
relativamente à filosofia, mas permanecendo solidária a ela numa integração profunda. A 
ideia salutar de autonomia não pode degenerar em preconceito isolacionista, nefasto 
como todo particularismo ou separatismo absolutos. Por outro lado, não devemos 
engajar-nos no sentido oposto, substituindo a autonomia indispensável.por uma 
heteronomia desprovida de sentido. É preciso que confiramos à epistemologia uma 
estrutura e um desenvolvimento específicos enquanto ramo do saber, sem no entanto 
prescindirmos daquilo que ela tem de comum com outras disciplinas, inclusive com a 
filosofia. 
 
 2. Portanto, o conceito de epistemologia não tem uma significação rigorosa e 
unívoca, com um conteúdo definitivo e aceito por todos os que se interrogam como se 
constitui uma teoria científica. Qual é o papel, na prática científica, do contexto social e 
ideológico? Qual é a génese das ciências? Qual é sua estrutura? Como crescem os 
conhecimentos? Não existe um quadro comum, onde viriam articular-se 
harmoniosamente todos os trabalhos dos lógicos, dos psicólogos, dos sociólogos,etc. 
Sua colaboração choca-se quase sempre com obstáculos, sendo o primeiro deles o de 
conceituar sua disciplina. 
 
3. Não é pois inútil que cada especialista se interrogue, antes de tudo, sobre a ideia 
que ele faz de sua disciplina. A este respeito, várias questões se colocam.Por exemplo, 
se queremos conceituar a epistemologia, 
 
 
 
 36 
a questão inicial é a seguinte: de que fazemos a epistemologia? Em seguida, as outras 
questões: Quem vai fazê-la? Por que se faz epistemologia? Como ela é feita? E isto 
porque o objeto de uma disciplina não consiste apenas na matéria própria sobre a qual se 
aplica seu estudo, naquilo pelo que ela se interessa ou naquilo de que ela se ocupa, mas 
em sua intenção, seu desígnio ou seu objetivo, quer dizer, em sua finalidade, em sua 
destinação e em seu porquê. E sabemos que não encontramos hoje a unidade de uma 
disciplina na direção de seu objeto, pois toda ciência se dá mais ou menos o seu objeto: é 
a ciência que constitui e constrói seu objeto pela invenção de um método, apropriando-
se, assim, de seu domínio. 
 
4. O conceito de epistemologia é, pois, empregado de modo bastante flexível. Segundo 
os autores, com seus pressupostos filosóficos ou ideológicos, e em conformidade com os 
países e os costumes, ele serve para designar, quer uma teoria geral do conhecimento 
(de natureza mais ou menos filosófica), quer estudos mais restritos interrogando-se sobre 
a génese e a estrutura das ciências, tentando descobrir as leis de crescimento dos 
conhecimentos, quer uma análise lógica da linguagem científica, quer, enfim, o exame 
das condições reais de produção dos conhecimentos científicos. Qualquer que seja a 
acepção que dermos ao termo "epistemologia", a verdade é que ela não pode e nem 
pretende impor dogmas aos cientistas. Não pretende ser um sistema, a priori, dogmático, 
ditando autoritariamente o que deveria ser o conhecimento científico. Seu papel é o de 
estudar a génese e a estrutura dos conhecimentos científicos. Mais precisamente, o de 
tentar pesquisar as leis reais de produção desses conhecimentos. E ela procura estudar 
esta produção dos conhecimentos, tanto do ponto de vista lógico, quanto dos pontos de 
vista linguístico, sociológico, ideo- 
 
 
 
 37 
lógico, etc. Daí seu caráter de disciplina interdisciplinar. E como as ciências nascem e 
evoluem em circunstâncias históricas bem determinadas, cabe à epistemologia 
perguntar-se pelas relações existentes entre a ciência e a sociedade, entre a ciência e as 
instituições científicas, entre as diversas ciências, etc. 
 
 
 
 38 
 
 
 
 
 39 
A EPISTEMOLOGIA GENÉTICA DE J. PIAGET 
 
 
 
 40 
 
 
 
 
 41 
Como o esforço da epistemologia global, referente às ciências humanas, está em estreita 
relação com a concepção que Jean Piaget faz da própria epistemologia, parece-nos 
interessante compreender bem qual o sentido e o alcance dessa epistemologia. As ideias 
essenciais da epistemologia genética, tal como ela é praticada por Piaget, estão expostas 
em três obras: Introduction à l'épistémologie génétique (3 volumes, P.U.F., Paris, 1950), 
Logique et connaissance scientifique (Encyclopédie de Ia Plêiade, Gallimard, Paris, 1967) 
e L'épistémologie des sciences de l’homme (Gallimard, Paris, 1970; tradução portuguesa 
da Livraria Bertrand). 
 
Podemos dizer que a epistemologia genética é a extensão, a todo o campo das ciências 
humanas, da metodologia que possibilitou a Piaget a realização de excelentes trabalhos 
sobre o desenvolvimento da criança: a formação do número, o desenvolvimento da 
inteligência, a aquisição da linguagem, a formação do juízo moral, etc. A esta extensão, 
Piaget trabalha há vinte anos, com o 
 
 
 
 42 
Centro Internacional de Epistemologia Genética de Genebra. 
 
A epistemologia pode, então, ser definida como o "estudo da constituição dos 
conhecimentos válidos". O termo "constituição" recobre ao mesmo tempo as "condições 
de acesso", isto é, os processos de aquisição dos conhecimentos, e as "condições 
propriamente constitutivas", quer dizer, as condições formais ou experimentais que dizem 
respeito à validade dos conhecimentos, e as condições que dizem respeito, quer às 
contribuições do sujeito, quer às do objeto no processo de estruturação do conhecimento. 
Portanto, para Piaget, só há ciência quando estiverem reunidos esses três elementos: 1. 
elaboração de "fatos"; 2. formalização lógico-matemática; 3. controle experimental. Por 
conseguinte, ao lado dos métodos de análise direta tentando, por ocasião da crise de um 
saber implicando a reformulação de certos conceitos, extrair as condições de 
conhecimento por simples análise lógica; e ao lado dos métodos de análise normalizante, 
tais como os do empirismo lógico, que examinam a coordenação entre a formalização e a 
experiência, Piaget interessou-se particularmente pelos métodos de análise genética, que 
procuram compreender os processos do conhecimento científico em função de seu 
desenvolvimento e de sua própria formação: quer segundo uma "sociogênese" dos 
conhecimentos, relativa a seu desenvolvimento histórico no interior das sociedades e à 
sua transmissão cultural (métodos histórico-críticos), quer segundo uma "psicogênese" 
das noções e estruturas operatórias elementares constituindo-se no decorrer do 
desenvolvimento dos indivíduos. É sobre este uso reflexivo da psicogênese que mais se 
destacou a contribuição de Piaget: procurando fundar a construção de uma estrutura de 
conhecimento ou de ação em interação com as atividadesdo sujeito constituinte, a 
psicogênese cul- 
 
 
 
 43 
mina, de fato, em análises genéticas formalizadas e, por conseguinte, permite a 
descoberta de um estatuto científico para as principais estruturas operatórias das ciências 
humanas. Assim, requer-se sistematicamente a cooperação interdisciplinar dos lógicos, 
dos matemáticos, dos psicólogos e dos especialistas da aplicação técnica das noções 
próprias ao saber em questão. 
 
Desde o início, Piaget recusa uma epistemologia que seja filosófica e pretenda constituir 
uma teoria do conhecimento impondo-se a priori ao sistema das ciências. Para ele, a 
especulação apresenta dois aspectos: a) o primeiro diz respeito à reflexão filosófica. Esta, 
por natureza, é apreciativa, interpretativa, valorizadora. E o homem sempre quer integrar 
os saberes objetivos numa visão de conjunto que lhe indique seu lugar dentro do mundo; 
b) o segundo aspecto diz respeito ao esforço para se criar modelos incertos do existente 
nos domínios em que a ciência se cala. Portanto, a filosofia faz apelo a certas pontes 
provisórias entre os domínios controlados pela ciência. Por sua vez, a ciência procura 
substituir essas pontes, tentando aposentar esse segundo tipo de especulação, que ela 
tenta progressivamente tomar da filosofia. Porque tudo o que devemos dizer do mundo, 
quando isto é possível, deverá ser dito cientificamente, e não especulativamente. Embora 
ligados, esses dois aspectos da especulação devem ser diferenciados, pois só o primeiro 
pode assegurar a perenidade da filosofia como axiologia. 
 
Portanto, Piaget defende a constituição de uma epistemologia científica, livre de toda 
teoria filosófica ou de qualquer contaminação ideológica do conhecimento. Por isso, não 
é tarefa da epistemologia, perguntar-se sobre "o que é o conhecimento", da mesma forma 
como a tarefa da geometria não consiste em se perguntar sobre "o que é o espaço". A 
epistemologia deve, pois, consti- 
 
 
 
 44 
tuir-se cientificamente, procurando situar-se in medias res, isto é, em presença das 
ciências que existem efetivamente. Ora, as ciências estão num constante 
desenvolvimento. E é este próprio desenvolvimento que coloca de modo real a questão 
epistemológica fundamental: como o conhecimento científico, quando bem delimitado, 
procedeu de um estado de menor conhecimento a um estado considerado de maior 
conhecimento? Donde a definição complementar da epistemologia: "o estudo da 
passagem dos estados de menor conhecimento aos estados de conhecimento mais 
desenvolvidos". E esta definição já contém a noção do método genético: toda ciência está 
em desenvolvimento progressivo indefinido de estados sucessivos de conhecimento, isto 
é, deve sempre ser considerado, metodologicamente, como relativo a um certo estado 
anterior de menor conhecimento e como susceptível de constituir este estado anterior em 
referência a um conhecimento melhor elaborado. Segue-se que o método genético tem 
por objetivo estudar os conhecimentos em função de sua construção real, bem como 
considerar todo conhecimento como relativo a um certo nível do mecanismo desta 
construção (Intr., vol. I, pp. 11-13). Ora, quando praticamos o método genético, 
verificamos que é preciso pensar as ciências, não somente de um ponto de vista 
psicológico no sentido estrito, mas também dos pontos de vista análogos aos da biologia 
estudando os seres vivos e o sistema da vida, A epistemologia, então, outra coisa não é 
senão esta espécie de anatomia comparada das estruturas mentais do sujeito 
cognoscente. Assim, o estudo comparado das estruturas mentais que intervém no 
desenvolvimento científico pode organizar-se no que Piaget chama de o método 
"histórico-crítico". Todavia, da mesma forma que a biologia associa à história natural da 
evolução da vida e à descrição da "filogênese" das grandes formas de organiza- 
 
 
 
 45 
ção da vida, uma embriologia que é o estudo da "onto-gênese" individual do organismo 
vivo, assim também a epistemologia genética tem necessidade de acrescentar, ao 
primeiro método, um segundo, cuja função é a de constituir uma embriologia mental. Esta 
embriologia da razão pode desempenhar, relativamente a uma epistemologia genética, o 
mesmo papel que a embriologia do organismo relativamente à anatomia comparada ou 
às teorias da evolução. E é deste ponto de vista que a psicologia científica deve trazer 
uma contribuição essencial à epistemologia. Em última análise, o método completo da 
epistemologia genética é constituído por uma íntima colaboração dos métodos histórico-
críticos e psicogenéticos. O que esta colaboração nós permite extrair, no que diz respeito 
às noções ou conjuntos de operações intelectuais, é uma lei de construção, isto é, o 
sistema operatório em sua constituição progressiva. Ora, diz Piaget, só o método 
psicogenético é capaz de fornecer o conhecimento dos estágios elementares dessa 
constituição progressiva, embora nunca alcance o primeiro. O método histórico-crítico, 
por sua vez, só fornece o conhecimento dos estágios intermediários, porém, superiores, 
embora nunca atinja o último (Ibid., pp. 16-18). 
 
Ao falar deste método psicológico engajado na epistemologia, Piaget faz questão de 
precisar que ele deve ser uma "psicologia da ação", muito mais do que uma "psicologia 
da sensação", isto é, um estudo da génese das operações do pensamento e de sua 
estabilização lógica. É deste modo que a epistemologia e seu método genético poderão 
tratar do problema que Piaget declara estar no centro do método próprio à epistemologia 
genética, a saber, o problema da junção entre ó devir mental e a norma permanente, ou 
entre a exigência de constan- 
 
 
 
 46 
te revisão e a necessidade de apoiar-se em certa estabilidade normativa. Por "norma", 
devemos entender, no caso, aquilo que se impõe como verdade científica e que, a este 
título, deve reger o consentimento e a afirmação dos que são formados na ciência. 
Depois de criticar as concepções puramente contemplativas das normas, apoiadas numa 
verdade divina, transcendental ou intuitiva, Piaget afirma que, do ponto de vista da 
análise genética, a ação precede o pensamento. O pensamento, para ele, consiste numa 
composição sempre mais rica e coerente das operações que prolongam as ações, 
interiorizando-as. Deste ponto de vista, as normas de verdade devem exprimir, antes de 
tudo, a eficácia das ações individuais ou coletivas; em seguida, traduzem a eficácia das 
operações; finalmente, expressam a coerência do pensamento formal. Desta forma, o 
método genético não pode incorrer na censura de ignorar o normativo, pois, desde a ação 
efetiva até as operações mais formalizadas, ele segue passo a passo a constituição de 
normas incessantemente renovadas. Estamos, assim, diante de uma epistemologia 
genética que poderá ser considerada, para retomarmos uma expressão que não é de 
Piaget, como o estudo da ciência e do pensamento enquanto "prática teórica". Porque, 
aquilo que este estudo tem em vista, outra coisa não é senão a ação do pensamento. E é 
como saber da ação (intelectual e pensante) que a epistemologia deve começar a 
"operar". 
 
No entanto, ao recusar uma epistemologia que seja "maculada" pela presença da 
filosofia, Piaget deixa a porta aberta a um momento da epistemologia que, a partir de 
estudos particulares já feitos a propósito das diversas ciências, conduz a uma 
epistemologia geral, que ele chama de "derivada". As epistemologias específicas, 
internas e regionais, devem situar-se umas em relação às outras num campo de conjunto 
de possibilidades da 
 
 
 
 
 47 
epistemologia, mesmo que, sendo constituída uma pluralidade de ciências, se coloque o 
problema de encontrarmos uma "classificação" das disciplinas e de levarmos em 
consideração as interconexões existentes entre as várias ciências, quer dizer, suas 
relações interdisciplinares. Piaget foi levado a propor seu próprio sistema das ciências,tal 
como sua prática epistemológica o levou a construí-lo e a compreendê-lo, comparando-o 
com outras sistematizações do passado ou contemporâneas (Plêiade, pp. 1151-1172). A 
reflexão que ele faz sobre a prática epistemológica, especialmente sobre sua experiência 
de psicólogo estudando a génese das noções fundamentais da lógica e das matemáticas, 
leva-o a reconhecer uma maneira de interconexão cíclica entre as ciências e a propor um 
sistema cíclico das ciências (Ibid., pp. 1172-1224). Eis, em síntese, seu sistema: 
 
 
I LÓGICA E CIÊNCIAS MATEMÁTICAS 
 
 
II CIÊNCIAS DA NATUREZA FÍSICA 
CIÊNCIAS DA IDEALIDADE CIÊNCIAS DA REALIDADE III CIÊNCIAS DA VIDA 
 
 
IV PSICOLOGIA 
 
 
 
A flecha ascendente à direita indica o "círculo epistemológico": a Psicologia pressupõe as 
ciências da vida, as ciências da natureza, etc. Contudo, ao fazer-se epistemólogo, o 
psicólogo deve voltar aos próprios fundamentos de toda ciência, a começar pela Lógica e 
pelas Matemáticas. Porque o círculo é inevitável e natural, nada tendo de vicioso. Ele é, 
no nível da ciência, a transposição e a realização concreta do círculo do conhecimento, 
na medida em que o Sujeito só se conhece por intermé- 
 
 
 
 48 
dio do Objeto, e só conhece o Objeto através de sua atividade de Sujeito. Estamos, 
assim, diante do que Piaget chama de um "círculo vivo". Trata-fie de um tipo de círculo 
que comporta desenvolvimento, crescimento e alargamento indefinidos. Todo o processo 
poderia ser imaginado como uma espécie de espiral. Desta forma, a epistemologia 
genética permanecerá essencialmente "aberta". E são as leis desta construção circular 
de conjunto que constituem o "limite" geral dos desenvolvimentos particulares estudados 
pela epistemologia genética. 
Foram essas considerações que levaram Piaget a distinguir dois tipos de epistemologia: 
epistemologia genética restrita e epistemologia genética generalizada. A primeira consiste 
em fazer uma análise psicogenética ou histórico-crítica sobre os modos de crescimento 
dos conhecimentos, apoiando-se sobre um sistema de referência constituído pelo estado 
do saber admitido no momento considerado. A segunda consiste em estudar o sistema 
de referência, porém situado dentro de um processo genético ou histórico. Esta 
concepção pode ser precisada com exemplos. Com efeito, Piaget, com os recursos de 
seu saber psicológico, estuda, com objetivos claramente epistemológicos, a génese da 
noção de número na criança. Ele faz epistemologia genética no sentido restrito. Michel 
Foucault, ao estudar em Les mots et les choses um momento do devir das ciências 
humanas, faz o estudo da relação existente nos séculos XVII e XVIII entre o estado de 
base dos conhecimentos e da cultura da época e o que se realiza nas ciências humanas. 
E isto, para compreender como, a partir daí, as ciências humanas se constituíram nas 
formas que elas têm presentemente. Seu método, não psicogenético, mas histórico-
crítico (ele prefere chamá-lo de "arqueológico"), pode ser compreendido como um método 
de epistemologia genética "generalizada" (no sentido de Piaget). Porque o 
 
 49 
que ele toma em consideração é o modo pelo qual os textos do século XVII e do século 
XVIII, referentes à economia, à linguagem ..., atestam uma certa visão epistemológica 
desses diversos domínios do saber e que não é mais a nossa. O objetivo de Piaget, 
quando faz certo número de considerações histórico-críticas, é o de reinserir as 
epistemologias regionais e restritas na perspectiva de uma epistemologia "generalizada". 
Esta adquire, cada vez mais, um caráter filosófico ou quase-filosófico. 
Esta apresentação sintética da epistemologia genética possibilita-nos fazer-algumas 
precisões: 
 
1. Toda a obra de Piaget visa a constituição de uma epistemologia capaz de fazer a 
transição entre a Psicologia genética e a Epistemologia geral, que ele espera enriquecer 
pela consideração do desenvolvimento. Sua convicção fundamental é a de que os 
conhecimentos resultam de uma construção. Eles constituem, pois, uma criação contínua 
de estruturas sempre novas. Podemos sintetizar o programa e os métodos dessa 
epistemologia dizendo que ela é comandada por um duplo imperativo: a) de um lado, visa 
a garantir a colaboração entre psicólogos do desenvolvimento, lógicos e especialistas das 
diversas disciplinas científicas que se interessam por problemas de ordem 
epistemológica: ela é essencialmente interdisciplinar; b) do outro, visa a reduzir esses 
problemas a formulações que possam ser tratadas pelos métodos da psicologia 
experimental. Portanto, trata-se de um "projeto" eminentemente interdisciplinar que deve 
substituir todos os tipos de ensinos compartimentados das ciências. Para que seja 
realizado tal empreendimento, é necessário que se estabeleça uma estreita união do 
Ensino e da Pesquisa, especialmente para a solução dos problemas novos. Além disso, é 
indispensável que as pesquisas sejam feitas por uma "equipe interdisciplinar", capaz de 
realizar uma colaboração entre as disciplinas 
 
 
 
 50 
e entre os setores heterogéneos de uma ciência, de tal forma que haja certa 
reciprocidade nas trocas e os pesquisadores venham a enriquecer-se mutuamente. 
Todavia, convém que se distinga um enfoque meramente "multidisciplinar", de que 
dependem as aproximações concretas, das pesquisas propriamente "interdisciplinares? 
 
Estas, segundo Piaget, exigem um nível de abstração muito elevado, pois trata-se de 
extrair das ciências humanas, por exemplo, os seus mecanismos comuns, e não somente 
algumas colaborações episódicas e sem integração metodológica. 
 
2. Não sendo completamente hostil à filosofia, pois compreende sua necessidade como 
reflexão valorizadora da relação homem-mundo, e não nega sua legitimidade ou sua 
importância ("ela é mesmo indispensável a todo homem completo, por mais cientista que 
ele seja"), Piaget fica surpreso com a fraqueza das diversas teorias filosóficas do 
conhecimento, pois em geral elas se contradizem, sem haver nenhum critério objetivo 
que nos permita decidir. Elas permanecem especulativas. Trata-se de refletir sobre a 
ciência de modo objetivo, com critérios permitindo um "controle intersubjetivo". 
Diferentemente do positivismo, que empreende uma cruzada contra todo tipo de 
especulação, e condena em bloco toda filosofia, Piaget acha que o cientista que não 
passa pela filosofia permanece portador de uma ''doença incurável". E é por isso que ele 
se insurge também contra o positivismo, que se prende única e exclusivamente aos fatos 
"observáveis". Insurge-se, também, contra a especulação que não seja capaz de fornecer 
instrumentos de controle e de verificação. 
 
Por isso, Piaget concebe a possibilidade de uma passagem da especulação a uma 
ciência experimental, no domínio da teoria do conhecimento. Entre a reconstituição 
especulativa e a teoria científica, quando se 
 
 
 
 51 
trata de criar um modelo dos mecanismos do conhecimento, ele não vê um abismo, como 
pretende o neopositivismo. Há, isto sim, um limiar a ser transposto, porque a especulação 
se elabora a partir de dados que são tomados de empréstimo a outros domínios. O 
grande mérito de Piaget, e que marca seu nome na história, é o de ter criado uma base 
de experimentação própria para a epistemologia. Ele conseguiu isolar os problemas 
concernentes à articulação de base do crescimento dos conhecimentos, e a formulá-los 
numa linguagem possibilitando o controle experimental. Fazendo isto, conseguiu inventar 
modalidades de experimentação e subtrair a teoria do crescimento dos conhecimentos à 
reconstituição meramente histórico-crítica. Assim, sua psicologia da inteligência, ou da 
criança, por mais importante que ela possa parecer, é apenas um aspecto derivado (e 
secundário) de um empreendimento epistemológico. 
 
3. O que Piaget prova experimentalmente, é que há dois tipos de abstração bem 
diferentes. Em primeiro lugar,há a abstração de tipo aristotélico, que leva em conta 
certos aspectos da realidade e descarta outros: ela dá origem a um esquema do 
existente, mas nunca se transforma em operações de pensamento. Em segundo lugar, há 
a abstração réfléchissante, tendo por função extrair as estruturas do pensamento, os 
esquemas assimiladores e seu funcionamento específico. Este segundo tipo de 
abstração, cujo papel é o de coordenar a organização, liga-se aos dados, da mesma 
forma que o primeiro tipo. Contudo, ao passo que a abstração do primeiro tipo é uma 
assimilação dos dados a estruturas mentais existentes, a abstração réfléchissante é a 
própria organização das estruturas mentais tendo em vista sua acomodação. Uma é 
assimiladora e representa o aspecto estático do conhecimento; a outra é acomodadora e 
representa seu aspecto dinâmico. Nesta última abstra- 
 
 
 
 52 
ção, o Objeto desempenha o papel apenas de "ocasião", quer dizer, não se inscreve tal 
qual, com suas qualidades físicas, neste tipo de abstração, pois esta é uma modalidade 
de organização, de coordenação das abstrações simples. A coordenação das ações do 
Sujeito é de caráter lógico-matemático. Ela se prolonga em "operadores" que efetuam 
uma descentração relativamente ao sujeito individual, dando origem ao sujeito do 
conhecimento, o "Sujeito epistêmico" (aquilo que há de comum nos vários sujeitos 
individuais ou egocêntricos). 
 
4. Piaget estabelece que o ponto de partida do conhecimento é o conhecimento sensorio-
motriz. Quatro níveis irão formar a escala de maturação do esquematismo mental: 1. a 
ausência de diferenciação entre á atividade, real ou imaginária, exercida sobre o objeto 
(reunir, dissociar, ordenar, mudar de ordem, etc.); 2. as operações concretas, com 
diferenciação dos dois aspectos mencionados; 3. as operações formais, com 
diferenciação tão forte que as coordenações extrapolam e precedem a realidade 
experimental, de que se liberam por completo; 4. as construções axiomatizadas, que 
transformam as coordenações reais em simples casos particulares das coordenações 
possíveis. Portanto, a criança adquire seus conhecimentos agindo sobre os objetos. 
Fazendo isto, ela não organiza apenas os objetos, mas (mentalmente e de modo não 
consciente) sua própria atividade. E esta é a fonte de duas espécies de organização: a 
primeira, referente ao objeto, a segunda, a ela mesma. O conhecimento se realiza pela 
dialética dessas duas estruturas de transformação, e são elas que a inteligência elabora 
enquanto é um prolongamento da ação. Por isso, todo conhecimento comporta um 
aspecto de elaboração nova. E o problema da epistemologia consiste em conciliar essas 
criações de novidades com o duplo fato: no plano formal, as novidades são 
acompanhadas de necessidades previa- 
 
 
 
 53 
mente elaboradas; no plano real, elas permitem a conquista do real, quer dizer, da 
objetividade. Portanto, a epistemologia genética visa a remontar às fontes, isto é, à 
própria gênese dos conhecimentos, pois a epistemologia tradicional só conhecia seus 
estados superiores. O próprio da epistemologia genética consiste em procurar descobrir e 
extrair as raízes dos diversos conhecimentos, desde suas formas mais elementares, e 
seguir seu desenvolvimento através dos níveis ulteriores, até o pensamento científico 
inclusive. No fundo, o próprio Piaget confessa que sua epistemologia é "naturalista" sem 
ser "positivista"; que ela evidencia a atividade do sujeito sem ser "idealista"; que ela se 
apoia sobre o objeto, mas considerando-o como um limite. O importante é que ela deve 
ver no conhecimento, sobretudo, uma construção contínua. 
 
5. Diferentemente da epistemologia lógica, que utiliza métodos estritamente 
formalizantes, para fazer um estudo da linguagem científica e uma pesquisa das regras 
lógicas que devem presidir a todo enunciado correto (positivismo anglo-saxônico); e 
diferentemente da epistemologia histórica, que privilegia os métodos histórico-cri ticos 
para a elucidação da atividade científica a partir de uma análise, não só da história das 
ciências e de suas revoluções epistemológicas, mas das próprias dé-marches do espírito 
científico (Bachelard, Canguilhem, Foucault), a epistemologia genética de Piaget tem por 
objetivo central a elucidação da atividade científica a partir de uma psicologia da 
inteligência. Esta orientação epistemológica recebeu por caução uma enorme quantidade 
de pesquisas experimentais acumuladas pelos psicólogos há quase um século. Ela 
encontrou em Piaget e em seus colaboradores de Genebra intérpretes não só 
meticulosos mas realmente competentes. Qual a ótica dessa "escola"? Não se trata, de 
forma alguma, de acei- 
 
 
 
 54 
tar o fato da linguagem científica ou comum, a fim de se medir sua validade relativamente 
à sua simplicidade, à sua coerência, à sua exaustividade ou aceitabilidade banal. A 
epistemologia genética não hesita em perguntar-se como a inteligência se constrói, desde 
os primeiros agenciamentos práticos e perceptivos da criança "trabalhando" sobre um 
objeto ou sobre o domínio de suas coordenações corporais, até a elaboração dos 
conceitos que estão na origem dos conhecimentos da física, da matemática, etc. 
 
6. O que mais poderia ser contestado à epistemologia de Piaget é o fato de ela ser, 
paradoxalmente, profundamente kantiana. Kant, com efeito, para justificar a física 
elaborada por Galileu e Newton, no fim do século XVIII, construiu toda uma teoria do 
conhecimento procurando evidenciar o fato de que o objeto conhecido seria ao mesmo 
tempo um dado e um construído. Na perspectiva kantiana, haveria o dado (o irreversível) 
que somente a experiência podia cernir, sem jamais poder reduzi-lo por completo. Por 
outro lado, haveria também uma organização prévia, a priori, inconsciente deste dado, 
proveniente da natureza mesma do sujeito cognoscente. Ora, o estruturalismo genético e 
construtivista de Piaget parece esforçar-se por determinar experimentalmente as 
condições reais em que se constrói tal sujeito cognoscente. Para tanto, ele luta contra "as 
sabedorias e ilusões da filosofia", pois estas se dão arbitrariamente uma configuração da 
relação Sujeito-Objeto afirmada como eterna, como se ela pertencesse ao mesmo tempo 
a uma ordem preestabelecida da natureza e do próprio homem. Por isso, Piaget tenta 
mostrar como, geração após geração, a filosofia se construiu a partir de uma experiência 
comum elementar. O exemplo que ele toma é a noção de causalidade. Ele afirma 
categoricamente que esta noção não pode ser nem inata, pois não pertence à essência 
 
 
 
 55 
do espírito humano, nem pode ser .o resultado ou efeito que a ordem natural impõe a 
uma consciência autêntica. A causalidade é o resultado de um longo trabalho operado 
pela criança, em seus gestos, em suas palavras, em suas coordenações sensório-
motrizes e, posteriormente, psicolinguísticas. E não são poucas as experiências 
invocadas por Piaget para comprovar este fato. O que ele pretende mostrar é que é a 
inteligência que se monta, que se estrutura a si mesma, na dialética dos ensaios e dos 
erros, nas retificações que introduzem as diferenças, nos fracassos que fazem surgir as 
contradições e nas sínteses que promovem os progressos. E é esta inteligência que está 
na origem mesma da atividade científica. Os conceitos fundamentais da ciência têm por 
causa real os movimentos de exploração da criança. É nesses movimentos que ela 
procura reconhecer-se para definir-se e poder agir. 
 
7. Apesar do número impressionante das experiências, cada uma sendo convincente, 
quando tomada de per si, temos o direito de nos perguntar: afinal de contas, de que se 
trata? E daí? Piaget responde que se trata de mostrar que todos os conceitos 
determinantes das ciências passadas, presentes e futuras devem inscrever-se numa 
necessidade psicológica, experimentalmente controlável, contanto que se adotem bons 
critérios deexperimentação e de controle. Sem dúvida, é muito interessante sabermos 
como uma criança, hoje em dia, chega a conhecer a noção de causalidade. É até muito 
útil para aqueles que se ocupam de psicopedagogia e que se dedicam ao ensino. 
Todavia, podemos perguntar: em que tudo isso pode esclarecer o funcionamento da 
ciência ou da não-ciência? De que adianta o deslocamento do problema para a criança 
"manipuladora"? Rebaixar o problema ao nível da atividade pueril explica tanto quanto 
elevá-lo- o nível da metalinguagem, quer dizer, pouca 
 
 
 
 56 
coisa. Os homens, em suas atividades sociais racionais, não podem ser considerados 
como "crianças grandes", como as crianças não podem ser tratadas como "pequenos 
adultos". Eles são produtos sociais. A cultura não se deixa reduzir, nem pela inscrição 
lógica ou linguística, nem por sua origem biopsicológica. Tanto a epistemologia lógica 
quanto a genética deixam sem solução o problema essencial do conhecimento científico: 
o do lugar e o do funcionamento das pesquisas científicas dentro da "ordem", dentro do 
contexto sócio-cultural vigente, em que se situam as sociedades elaboradoras desse 
conhecimento. Essas pesquisas se integram, de modo disparatado, em iodas as 
formações sociais e em iodos os tipos de poder: elas participam ativamente do 
desenvolvimento sócio-político-econômico (real ou aparente) das forças produtoras e 
formam, assim, o eixo de nossa modernidade, de nossa racionalidade contemporânea. 
 
8. Embora a epistemologia de Piaget seja uma tentativa de superar o positivismo sob 
todas as suas formas, não podemos negar que ela se inscreve no prolongamento da 
tradição positivista que, no domínio da teoria do conhecimento, pretende elaborar uma 
"ciência da ciência" ou uma "ciência" da organização do trabalho científico, batizando com 
o nome de "epistemologia científica" esta teoria do conhecimento preservada de toda 
contaminação filosófica. Ela seria interna, porque nasceria no próprio interior da atividade 
científica. Ora, aceitar a "cientificidade" da epistemologia, é aceitar, conscientemente ou 
não, a possibilidade de se criar uma "ciência da ciência", uma metaciência que se situa 
num nível superior relativamente à ciência que toma por objeto. O pressuposto filosófico, 
presente no projeto de qualquer "ciência da ciência", não pode ser dissimulado: o simples 
fato de se Justificar a utilidade pedagógica e 
 
 
 
 57 
social de uma "epistemologia científica", e de procurar-se definir seu estatuto científico, já 
é uma atividade filosófica. Talvez possamos encontrar aqui a razão pela qual os próprios 
empiristas consideram Piaget, ora como "neomaturacionista", ora como "neo-
ambientalista", porque sua epistemologia ignora, sistematicamente, os fatores sócio-
culturais na determinação das condutas e considera que o desenvolvimento do 
conhecimento se processa unicamente a partir "do interior" da própria ciência. A esta 
acusação, Piaget reage dizendo que não é nem uma coisa nem outra, pois acha que os 
conhecimentos resultam de uma criação contínua de estruturas novas. Quanto às 
condições sócio-culturais influenciando no processo de conhecimento, Piaget estima .que 
elas são apenas "ocasião" de funcionamento dos conhecimentos, portanto, de seu 
desenvolvimento. Para ele, a função primordial da inteligência é de compreender e*de 
inventar, isto é, de construir estruturas, estruturando o real. O problema da inteligência 
liga-se ao problema fundamental da epistemologia: mostrar que os conhecimentos não 
constituem cópias do real (positivismo), mas assimilações do real a estruturas de 
transformação. É por isso que o conhecimento deriva das ações, quer dizer, de uma 
assimilação do real às coordenações necessárias e gerais da ação. Porque conhecer um 
objeto é agir sobre ele e transformá-lo para se descobrir os mecanismos dessa 
transformação, em ligação com as ações transformadoras. Contudo, é um fato que Piaget 
não fornece elementos para se analisar o papel real desempenhado pela ciência nas 
diversas coletividades em que ela se insere. Ele parece considerar a ciência como se 
pudéssemos ter dela uma definição "neutra". Sem dúvida, ela é uma pesquisa metódica 
do saber. Mas também é um modo de se interpretar o mundo. É uma instituição, com 
suas academias, seus grupos de pressão, seus preconceitos e 
 
 
 
 58 
suas recompensas oficiais. Por outro lado, é um métier, exercido em condições do 
trabalho científico onde aparecem problemas sociológicos e políticos. Não há "ciência" 
autónoma, pura, absoluta. Há uma racionalidade científica. Mas a "razão" científica não é 
imutável. Suas normas são históricas e condicionadas e, por isso mesmo, evoluem. O 
cientista também se serve de sua imaginação. E não está absolutamente ao abrigo de 
toda contaminação ideológica, nem tampouco das pressões sociais, dos desvios 
passionais ou das modas. As pesquisas dependem hoje de um ministério, estão 
intimamente ligadas à indústria, são financiadas por organismos não-neutros. Não se 
pode mais fazer ciência com a boa consciência de um filatelista. Nem tampouco se deve 
crer que os problemas "morais" da ciência se reduzem a casos bem delimitados. Não se 
pode negar mais que as pesquisas científicas estão substancialmente integradas à 
Sociedade. Por isso, a questão que se coloca não é mais: "em que pé anda a ciência?", 
mas: "onde está a ciência?" Relata-se, demonstra-se, prova-se, no interior de dispositivos 
já fixos, sendo o critério a alternativa: verdade-falsidade. O problema parece formular-se 
hoje assim: quem diz? quem demonstra? quem prova? por quê? para quê? 
 
 
 
 59 
A EPISTEMOLOGIA HISTÓRICA DE G. BACHELARD 
 
 
 
 60 
 
 
 
 
 61 
Para compreendermos o projeto epistemológico de G. Bachelard, é indispensável que 
situemos seu pensamento dentro do contexto em que se constroem as ciências hoje em 
dia. Porque toda a sua obra está marcada por uma reflexão sobre as filosofias implícitas 
nas práticas efetivas dos cientistas. Numa palavra, o projeto de Bachelard consiste "em 
dar às ciências a filosofia que elas merecem". Não podemos negar que vivemos um 
momento de triunfo da ciência. Por outro lado, assistimos hoje a um verdadeiro 
questionamento da ciência. Poderá ela trazer a felicidade para o homem? Está em 
condições de vencer o sofrimento? Os benefícios que ela proporciona não estariam em 
grande parte anulados pelas desgraças que engendra? Afinal, o que vem a ser a ciência? 
Quais são seus métodos? Qual o valor dos resultados que ela atinge? Não é um fato 
evidente que ela aliena o homem? 
 
Estas e outras questões entram no campo de investigações da epistemologia. Uma 
reflexão séria sobre a 
 
 
 
 62 
ciência não pode deixar de constatar que fazer ciência é algo extremamente difícil: ela se 
desenvolve com uma força explosiva e o homem atual encontra-se, cotidiana-mente, 
diante de técnicas oriundas da ciência "fundamental", e que, fundamentalmente, ele não 
compreende. Isto constitui para ele uma causa de profunda humilhação. O homem 
comum nada sabe do que se passa no reino da ciência, a não ser certas "informações" 
mais ou menos neo-esotéricas que se divulgam em publicações onde encontramos uma 
mescla de magia, de pseudociência e de charlatanismo. E é por causa dessa humilhação 
diante do poder da ciência que o homem comum se entrega a todos os tipos de 
compensações mais ou menos douradas ou rotuladas de científicas. Por outro lado, tudo 
indica que, diante da ciência objetiva, o homem comum é um estrangeiro. E não são 
poucas as teorias científicas que tentam mostrar que o homem ocupa um lugar apenas 
infinitesimal no universo, e que este lugar nem mesmo é necessário, mas apenas casual. 
 
Enfim, podemos constatar um hiato crescente entre o conhecimento objetivo (científico) e 
toda espécie de sentimentos ou de teoria dos valores. Por definição, a ciência ignora os 
valores. Portanto,

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