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12 A ambiguidade latente: mudanças climáticas, tecnologia e política no Brasil* Fabrício Monteiro Neves Frederico Monteiro Neves Introdução Este capítulo busca analisar as políticas estatais referentes às mudanças climáticas frente aos desafios trazidos pelo contexto contemporâneo da socie- dade global, caracterizado pela “tomada de consciência” dos “riscos ambien- tais globalmente distribuídos”. Tais riscos ambientais têm exigido respostas políticas, científicas e tecnológicas. Essas respostas compõem um conjunto de alternativas em desenvolvimento visando alcançar o que já se conhece como “sociedade de baixo carbono”, em contraposição àquela com uso intensivo de combustíveis fósseis. A discussão neste capítulo assumirá a forma de duas dimensões, uma descritiva e outra normativa. Na parte descritiva, foca-se especificamente na questão da política pública e na construção tecnológica, no caso das tecnologias agroambientais, da qual emerge um novo discurso em defesa da “sustentabilidade”, mas que, ao mesmo tempo, deve se justificar pela “eficá- cia produtiva”. Na parte normativa, indicam-se mecanismos democráticos para uma efetiva “democracia técnica”, tal como preconizada por Callon, Lascoumes e Barthe (2009). No Brasil, as formas de justificação da política das mudanças climáti- cas e pesquisa agroambiental assumem uma dimensão central no conjunto global dessas políticas, em função da posição do país na divisão interna- cional do trabalho, como país exportador de commodities agrícolas e como centro da maior biodiversidade do planeta. Constatou-se que o contexto problemático de “risco ambiental”, “políticas verdes” e “engajamento eco- lógico” repercute no conteúdo das políticas investigadas, porém, de forma ambígua, ao tentar conciliar na prática variáveis como “sustentabilidade” e “produtividade”. * In: ALMEIDA, Jalcione. Conflitos ambientais e controvérsias em ciência e tecnologia. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. p. 327-339. Usuario Destacar Usuario Destacar 328 A política pública analisada neste capítulo (o Plano Setorial de Mitigação e de Adaptação às Mudanças Climáticas visando à Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura - Plano ABC) é inter- pretada como uma síntese das relações de força na política brasileira atual no que tange à sua inserção no debate climático contemporâneo. Apresenta-se a nós como uma política ambígua, muitas vezes contraditória, que depende da ciência e tecnologia para alcançar seus objetivos de mitigação de gases de efeito estufa (GEE) e de mais produtividade. Mudanças climáticas no contexto brasileiro A problemática das mudanças climáticas tem entrado na agenda política dos países de capitalismo central. O contexto problemático de “risco ambien- tal”, “políticas verdes” e “engajamento ecológico” incide nas novas políticas e tecnologias, as quais irão compor as novas gerações tecnológicas agroambientais, elementos cruciais para o desempenho econômico de qualquer país em uma “sociedade global de baixo carbono”. Principalmente importam ao Brasil, dada a centralidade do país no que toca à biodiversidade, a produção de combustíveis e a produção de alimentos. Desde a década de 1990, o Brasil tem participado das discussões internacionais que tratam dos riscos relacionados às mudanças climáticas, principalmente no âmbito da Convenção do Clima da ONU, aberta oficial- mente para assinaturas na Conferência Rio-92. Até 2009, ano da aprovação da Política Nacional sobre Mudança do Clima, a posição do país mostrou-se muito conservadora, respaldando-se no princípio das “responsabilidades co- muns, porém diferenciadas”, na qual caberia aos países desenvolvidos arcar com todos os custos incorridos pelas mudanças climáticas por terem sido eles os responsáveis pela maior parcela das emissões de gases de efeito estufa (GEE) desde a revolução industrial. Essa posição apoiava-se sobremaneira na visão de que o desmatamento da Amazônia, que vinha crescendo anual- mente, era um problema sem solução no curto e médio prazo. E que seu equacionamento passaria por uma reorganização das atividades produtivas ligadas ao uso do solo, principalmente a agropecuária. As barreiras políticas e econômicas, nesse caso, eram grandes, devido à força do setor agropecuário na política nacional. Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar Esse quadro começa a se alterar com a publicação do Quarto Relatório de Avaliação do Painel do Clima da ONU (IPCC), em 2007, que deixou muito claro que a América do Sul é altamente vulnerável às mudanças climáticas. Isso levou a uma mudança na percepção das elites de alguns países da região, 329 como Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Colômbia sobre a vulnerabilidade de seus territórios, que desencadeou o início de ações tímidas entre alguns setores desses países. (Viola, Barros-Platiau e Leis, 2008). Internamente, o desmatamento da Amazônia deixava de ser o calcanhar de Aquiles do governo federal, já que o Plano de Redução do Desmatamento da Amazônia, estabelecido em 2003, começava a dar sinais de que era possível reduzir o desmatamento com uma política de fiscalização e parceria com se- tores produtivos exportadores. Também estava sendo gestado, nesse período, um plano para inserir maior competitividade na agricultura nacional tendo foco na redução das emissões de gases de efeito estufa, o Plano Agricultura de Baixo Carbono. Todas essas iniciativas confluíram para a aprovação da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), em 2009, que definiu novo eixo de atuação do país com relação ao tema. Foi definida uma meta de redução das emissões de GEE entre 36,1% e 38,9% das emissões projetadas até 2020 e foram estabelecidos planos setoriais de clima. Atualmente, há oito planos setoriais concluídos, entre eles o Plano Agricultura de Baixo Carbono (Plano ABC), o Plano de Energia (PDE) e o Plano de Redução do Desmatamento da Amazônia (PPCDAm), e dois planos em elaboração (Plano Siderurgia e o Plano Nacional de Adaptação). Conceitos como competitividade da economia brasileira, crescimento econômico e redução das emissões de GEE permeiam o conjunto da política de clima do Brasil, sendo mais relevantes nos planos setoriais relacionados di- retamente aos setores produtivos, como os planos de energia e agricultura. No entanto, a competitividade da economia brasileira aparece como um objetivo maior do que qualquer outro, amalgamando o conjunto das políticas. Logo, o crescimento econômico, ou sua reorientação, tem um status de prioridade, o que exige também novos insumos tecnológicos, seja para o aumento produtivo, seja para a mitigação dos efeitos das mudanças no clima. As políticas climáticas buscam a redução das emissões de GEE no país, mesmo que sejam questionados os valores dessa redução por se basearem em Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar uma projeção de emissão futura. Ademais, elas procuram, como um dos prin- cipais objetivos do Brasil nesse tema, reduzir as taxas de desmatamento nos biomas de floresta e, no caso da agricultura, o Plano ABC propõe a introdução de importantes técnicas que, se supõe, potencialmente levarão à redução das emissões no campo, bem como ao aumento das áreas de florestas plantadas, tendo uma forte interseção com o PPCDAm e o Plano Cerrado. Por fim, o Plano de Energia propõe a expansão da produção de biocombustíveis e da implantação de plantas de hidroeletricidade, como medidas de mitigação. 330 Estes últimos podem ter repercussões contraditórias, principalmente sobre a floresta amazônica. O conjunto das políticas climáticas parece ter um conteúdo minimamente consistente em termos de contribuição com a mitigação da mudança climática, ainda que contenha elementos contraditórios, como o aumento da exploração de petróleooriundo do pré-sal e a expansão da produção de energia elétrica por meio de usinas termelétricas. Se confrontadas com as principais iniciativas de desenvolvimento mais recentes do governo federal, as contradições destas com as políticas climáticas ficam mais evidentes. O caso do pré-sal é o mais impor- tante, pois é um dos componentes mais fortes presentes no planejamento do setor energético nacional. Além deste, o Plano Agrícola e Pecuário 2013-2014, ainda que incorpore o Plano ABC entre suas ações, busca fomentar majori- tariamente os monocultivos agrícolas e a pecuária extensiva, que é ineficiente em termos de uso do território, e com repercussões negativas no seu contato com as regiões de floresta, além de serem grandes fontes de emissão de GEE. Ademais, com relação ao setor de transportes, ainda que possa indicar um maior investimento em ferrovias em detrimento de rodovias, o Plano Nacional de Logística e Transportes não incorpora elementos de enfrentamento à mudança climática, além de não tratar de temas fundamentais como a mobilidade urbana e o transporte público. Por fim, as alterações propostas para o Código Florestal em 2011 podem repercutir negativamente sobre as áreas de floresta do país, potencializando as emissões e/ou reduzindo os estoques de CO2 na vegetação. (Soares-Filho et al., 2014). Essa visão disseminada entre as políticas climáticas e, mais claramente, entre as políticas de desenvolvimento, que aborda a questão do clima como potencializadora da competitividade nacional (economia de baixa emissão de carbono), pode ser considerada avançada dentro dos marcos de uma economia de mercado, pois ela preconiza a modificação da matriz energética para uma matriz menos emissora de GEE, uma agropecuária que degrade menos os solos e que alie a produção de alimentos com a preservação de florestas, e uma indústria menos poluente, entre outros ajustes técnicos. Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar Todavia, a lógica de funcionamento desse sistema permanece a mesma, se ancorando em objetivos como o produtivismo irrestrito e lucro constante, os quais não são problematizados em nenhuma das instâncias políticas ana- lisadas. A economia de baixo carbono se configura apenas como um ajuste ao sistema vigente, mantendo as mesmas bases de seu funcionamento. Essas bases são as mesmas que conduziram à degradação socioambiental de diversos ecossistemas, e que explicam as atuais taxas de desmatamento da Amazônia, do Cerrado e da Mata Atlântica, já que esses espaços são identificados como 331 potenciais territórios a serem inseridos na lógica do mercado global. (Leff, 2006; Porto-Gonçalves, 2006). Plano Setorial de Mitigação e de Adaptação às Mudanças Climáticas visando à Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura (Plano ABC) O Plano Setorial de Mitigação e de Adaptação da Agricultura tem como objetivo geral garantir o aperfeiçoamento contínuo das práticas de manejo que reduzam a emissão dos gases de efeito estufa e que aumentem a fixação atmosférica de CO2. Na vegetação e no solo nas atividades agropecuárias no Brasil. Para tanto, foram definidos os seguintes objetivos específicos: (i) contribuir para a consecu- ção das metas assumidas voluntariamente pelo governo brasileiro no âmbito dos acordos internacionais; (ii) promover esforços para se obter o desmatamento ilegal zero de florestas, em função dos avanços da pecuária e outros fatores, nos biomas Amazônia e Cerrado, nos próximos anos; e (iii) incentivar arranjos produtivos favoráveis que assegurem a redução de emissões de gases de efeito estufa, enquanto elevem simultaneamente a renda dos produtores, sobretudo com a expansão das seguintes práticas: recuperação de pastagens degradadas, sistemas de integração lavoura-pecuária-floresta, plantio direto na palha, substituição de fertilizantes nitrogenados pela fixação biológica do nitrogênio na produção de leguminosas e outras espécies, plantio de florestas econômicas, entre outras. Os principais compromissos definidos pelo governo federal para esse plano no sentido de contribuir com as metas estabelecidas na PNMC são: (i) redução das emissões antrópicas de gases de efeitos estufa em relação às suas diferentes fontes; (ii) incentivo ao reflorestamento e à recomposição da cobertura vegetal em áreas degradadas, e (iii) auxílio à redução do desmatamento. Para tanto, é no âmbito do Programa Agricultura de Baixo Carbono que essas ações serão executadas. Em junho de 2010, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento Usuario Destacar Usuario Destacar (Mapa) iniciou o processo de elaboração do Programa ABC, que tem o objetivo de aliar a produção de alimentos e bionergia com a redução das emissões de gases de efeito estufa. As ações desse programa foram incorporadas ao Plano Agrícola e Pecuário 2011/2012, que destinou a aplicação de 3,15 bilhões de reais em técnicas que objetivavam garantir eficiência no campo, com a intenção de obter um balanço positivo entre sequestro e emissão de dióxido de carbono.1 1 Neste Programa estão garantidos recursos a agricultores e cooperativas, com limite de financiamento de R$1 milhão por beneficiário, sendo que o crédito será financiado com taxa de juros de 5, 5% ao ano e prazo de reembolso de 12 anos. 332 Cada uma das principais ações integram um subprograma. Essas ações são as seguintes: i) recuperação de uma área de 15 milhões de hectares de pastagens degradadas por meio do manejo adequado e adubação, o que corresponde à redução de 83 a 104 milhões de toneladas de CO2eq; ii) aumento da área com o sistema integração lavoura-pecuária-floresta em 4 milhões de hectares, reduzindo de 18 a 22 milhões de toneladas de CO2eq; iii) ampliação da utilização do sistema de plantio direto na palha em 8milhões de hectares, correspondendo à redução de 16 a 20 milhões de toneladas de CO2eq; iv) ampliação do uso da fixação biológica em 5,5 milhões de hectares, correspondendo à redução de 16 a 20 milhões de toneladas de CO2eq; v) promoção de ações de reflorestamento no país, expandindo a área reflorestada, atualmente destinada à produção de fibras, madeira e celulose, de 6,0 milhões de hectares para 9,0 milhões de hectares, contribuindo para a redução de 8 a 10 milhões de toneladas de CO2eq; e vi) aumento no tratamento dos dejetos da suinocultura de 80% dos estabelecimentos familiares na região Sul, correspondendo à redução de 93,4 milhões de toneladas de CO2eq. Considerando os valores de redução de emissão mais conservadores de cada ação descrita anteriormente, o total potencial de redução de emissão desse plano é de 235,4 milhões de toneladas de CO2eq até 2020. Esse plano setorial será implantado por meio da execução de ações previstas nos subprogramas, que serão coordenadas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, e executadas em conjunto com os Ministérios do Desenvolvimento Agrário, do Meio Ambiente e da Fazenda, além da participação da Embrapa. Além desses, constam no plano outros subprogramas que contemplam ações transversais: (i) sensibilização de difusão do Programa ABC junto aos esta- dos e municípios; (ii) regularização ambiental (Ministério do Meio Ambiente); (iii) regularização fundiária (Ministério do Desenvolvimento Agrário); (iv) promoção de ações junto à Associação dos produtores de inoculantes2, visando à garantia de fornecimento desses insumos para a fixação biológica de nitrogê- 2 Inoculantes para fixação biológica de nitrogênio (FBN) são produtos desenvolvidos a partir de bactérias do solo capazes de estabelecer uma associação com as plantas e possibilitar o seu autofor- necimento de nitrogênio. 333 nio; (v) promoção de ações junto à Associação de Plantio Direto visando dar ampla divulgação à ação de ampliação da área de plantio direto na palha; (vi) articulaçãocom as indústrias fornecedoras de insumos agropecuários, máquinas, equipamentos, setor financeiro, visando à adoção das medidas que se fizerem necessárias para a disponibilização de insumos agropecuários, máquinas, equi- pamentos, recursos financeiros que apoiam as ações estratégicas desse plano; e (vii) ampliação da assistência técnica e extensão rural. Nesse plano constam algumas ações de adaptação, que buscam aumentar a resiliência dos agroecossistemas, o desenvolvimento e a transferência de tec- nologias, em especial aquelas com elevado potencial para dupla contribuição, ou seja, que promovam tanto a mitigação quanto a adaptação aos impactos da mudança do clima sobre a agricultura. Portanto, busca-se incentivar o estabe- lecimento de políticas públicas que privilegiem: (i) qualificação profissional em mudanças climáticas; (ii) pesquisa para a identificação de vulnerabilidades dos diversos biomas, conservação e uso sustentável dos recursos genéticos, manejo dos solos e dos recursos hídricos, melhoramento genético como ferramenta de adaptação, entre outras pesquisas; (iii) diversificação das unidades e sistemas produtivos atuais, considerando os aspectos econômicos, sociais e ambientais, relacionados com as ações de desenvolvimento rural com vistas a aumentar sua eficiência; (iv) desenvolvimento de sistema integrado de alerta climático; (v) ordenamento territorial (zoneamentos agrícola, ecológico, social e econômico); (vi) aperfeiçoamento e ampliação do seguro rural para dar suporte às ações de adaptação; (vii) pagamento dos serviços ambientais; e, (viii) fortalecimento da transferência de tecnologia, da assistência técnica e da extensão rural visando reduzir a vulnerabilidade das unidades e sistemas produtivos. Análise do Plano ABC O Plano ABC contempla ações voltadas à diminuição das emissões de GEE e adaptação do setor agropecuário, sendo suas ações no âmbito territo- rial nacional, com abrangência temporal de dez anos, mas com possibilidades de alterações em padrões de produção no campo que vão além desse prazo. O plano busca, no conjunto, a modificação de padrões de produção, mais especificamente por meio do aumento da área com o sistema de integração lavoura-pecuária-floresta, a recuperação de uma área de 15 milhões de hectares Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar de pastagens degradadas, por meio de manejo adequado e adubação e plantio direto. Também contempla um sistema de monitoramento, que será efetuado por meio do exame de imagens de satélites das áreas implementadas, além do 334 uso de informações coletadas diretamente do setor bancário, do IBGE, da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), de empresas privadas e de verificações in loco. Em termos da gestão do Plano ABC, será constituída uma comissão que integrará o fórum de coordenação e articulação, coordenada pelo Mapa, com a participação da Casa Civil, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, do Ministério do Meio Ambiente, do Ministério da Fazenda, da Secretaria de Assuntos Especiais e de representantes da sociedade civil. Como visto anteriormente, nesse plano, há a definição de metas, prazos e recursos financeiros, inseridos aí o financiamento da agricultura familiar por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Desse modo, há elementos que indicam que o plano tem possibilida- de de ser executado e que as metas de redução de emissão sejam efetivamente cumpridas. No entanto, há de se ressaltar que, como a maior parte das ações está vinculada a linhas de financiamento, mesmo que essas continuem ascen- dentes3, há o risco de que os agricultores e cooperativas não se interessem pelas tecnologias propostas por resistência, inércia da transferência tecnológica, maior custo de produção, entre outros, simplesmente inviabilizando a execução do plano. Nesse aspecto, os grandes produtores, aqueles que produzem em escala no agronegócio e que já estão bem estruturados, acabam se beneficiando da extensão dessas técnicas que podem melhorar a qualidade da produção. Porém, a maioria dos proprietários, como por exemplo, os agricultores familiares, vai possivelmente encontrar dificuldades muito maiores para se beneficiar desses instrumentos. O Plano ABC busca dar maior escala a técnicas importantes e que já são conhecidas há muito tempo. Assad (2011) observa que, com a efetivação do plano até 2020, a agricultura vai conseguir reduzir as emissões em algo próximo a 200 ou 300 milhões de toneladas de CO2eq. Ele observa ainda que este plano tem grande envergadura para o Brasil na medida em que atinge cerca de 27 milhões de hectares em dez anos, contemplando ações que têm a potencialidade de contribuir com a redução das emissões projetadas do país dentro do setor agropecuário. Todavia, deve-se frisar que o plano utiliza instrumentos de mercado, na forma de financiamento, como forma de fo- mentar as ações propostas, o que pode enfraquecer sua execução. Ademais, há também uma proposta de aumento da cobertura vegetal por intermédio da expansão de áreas de reflorestamento para a produção de fibra, celulose e madeira, além da integração lavoura-pecuária-floresta. Ressalta-se, porém, Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar que a expansão de áreas para a integração lavoura-pecuária-floresta deve 3 Para consulta da evolução do Pronaf, ver Banco Central do Brasil (2015). 335 ocorrer em regiões que hoje são ocupadas por lavouras ou por pecuária, e é isso que está no plano, caso contrário, essa expansão, ao invés de reduzir as emissões de GEE, contribuirá com o seu aumento. Por outro lado, a ex- pansão das áreas de floresta será realizada, em sua maior parte, por meio de monocultivos de pinus e eucalipto, que poderá ter impactos significativos sobre a biodiversidade. As ações de adaptação que constam nesse plano indicam elementos ope- rativos concretos, que são desdobrados em ações no subprograma de adaptação à mudança climática. Entre elas, citam-se: qualificação de profissionais em mudança climática; pesquisa em recursos genéticos, adaptação dos sistemas agrícolas, entre outros; adoção de tecnologias que reduzam a vulnerabilidade das unidades e sistemas produtivos; desenvolvimento de sistemas de alerta climático, entre outros. O Plano ABC propõe medidas de redução das emissões de GEE que não comprometam o crescimento econômico nas atividades agropecuárias, mas que busquem reorientar as atividades desenvolvidas nesse setor. Assim sendo, esse plano propõe redução de emissão de GEE, não concorrendo diretamente para o crescimento econômico. Com relação aos investimentos para a execução do plano até 2020, estima-se que serão necessários recursos da ordem de 197 bilhões de reais, financiados com fontes orçamentárias ou por meio de linhas de crédito. Até fevereiro de 2015, o plano já havia financiado 32 mil contratos, totalizando 10 bilhões de reais. (Brasil, 2015). Tecnocracia e agricultura no Brasil Se analisado em específico o tópico tecnológico do Plano ABC para as mudanças climáticas, constata-se posição entusiástica com as possibilidades em aberto para a incursão da agricultura brasileira em uma economia de baixo carbono. A citação expõe a parte relativa às mudanças climáticas no Plano ABC no que tange aos desafios tecnológicos a serem encarados para uma agricultura de baixo carbono. Deve-se ressaltar que, dos 12 pontos indicados no plano a seguir, sete explicitam o caráter tecnológico. Desafios: Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar a. qualificar técnicos e produtores para a adoção de sistemas e tecnologias que con- tribuam para a adaptação às mudanças climáticas; b. incentivar a adesão de técnicos e produtores, apresentando as vantagens do processo de transição para a diversificação de sistemas produtivos nas propriedades rurais e para aadoção de tecnologias que permitam o aumento da resiliência, a adaptação e o uso de energias renováveis, considerando os aspectos econômicos, sociais e ambientais; 336 c. reduzir os riscos e minimizar os impactos da mudança do clima na agricultura por intermédio do Plano Nacional de Redução de Riscos e Desastres, integrante do Plano Nacional de Adaptação às Mudanças Climáticas, considerando as possibilidades de inserção no seguro agrícola e em outros instrumentos de política agrícola; d. formar e aperfeiçoar competências, em curto e médio prazos, focadas em mudanças climáticas e sustentabilidade na agricultura; e. fortalecer as ações da assistência técnica e extensão rural com vistas à adequação do setor produtivo aos efeitos da mudança do clima, visando à orientação de medi- das de adaptação que, preferencialmente, também mitiguem as emissões de GEE; f. fortalecer ações de contenção, redução e prevenção da desertificação e arenização, de forma a estabelecer a reconversão produtiva das áreas atingidas e a minimização dos impactos; g. desenvolver e adequar tecnologias de produção que viabilizem a adaptação, ga- rantindo a sua transferência aos produtores; h. desenvolver sistemas de produção diversificados, com foco no aumento da resi- liência e eficiência dos sistemas e na adaptação necessária às mudanças climáticas identificadas nos mapas de vulnerabilidades, buscando sustentabilidade ambiental, geração de renda e melhoria da qualidade de vida; i. criar mosaicos produtivos, baseados na interação de sistemas integrados de lavoura-pecuária-floresta em áreas produtivas, florestadas, de vegetação nativa e corredores ecológicos, resultando no aumento da resiliência regional e no uso e na conservação de recursos naturais (biodiversidade, água, solos), em conformidade com a legislação vigente; j. estabelecer e adequar os procedimentos dos agentes financeiros para operação em modalidades que incorporem ações de adaptação/mitigação, incluindo financiamento de sistemas diversificados, do uso sustentável da biodiversidade e dos recursos hídricos, e de geração e uso racional de energia; k. desenvolver e disponibilizar tecnologias, por meio de programas de PD&I, que contemplem a gestão integrada de recursos naturais (biodiversidade, água e solo), a disponibilidade de recursos genéticos, a segurança biológica e o uso de energias renováveis; l. garantir acesso às fontes de informações climáticas federais, estaduais e municipais relacionadas à agricultura. (Brasil, 2012, p. 141-143). Deve-se ressaltar que o acesso à tecnologia não ocorre de forma igual e equânime.4 As principais advertências em relação às políticas de redução de emissão de GEE baseadas em práticas tecnologicamente intensivas é que estas tendem a aumentar diferenças sociais, tornar obsoletas práticas sustentáveis julgadas ultrapassadas por novos paradigmas tecnológicos, criar dependência tecnológica entre países aumentando a dependência econômica e aumentar taxas de desemprego com o consequente êxodo rural. No conjunto das tecnologias desenvolvidas para cenários climáticos extremos, destacam-se novas variedades transgênicas (climate ready crops), de- senvolvidas pelas multinacionais Basf (alemã), Syngenta (suíça) e Monsanto 4 Sobre os usos da tecnologia e controvérsias tecnológicas, ver Hess (1997) e Hugues e Pinch (1987). 337 (americana). Essas novas variedades têm características genéticas que as tornam resistentes ao calor, à seca, à água salgada e à radiação ultravioleta, ou seja, ca- pazes de suportar alterações na temperatura do planeta, nos níveis marinhos e na camada de ozônio. Falar dessa “nova ordem genética”, voltada para cenários climáticos futuros, assim, requer que se toque em questões de propriedade intelectual e patentes. Segundo o ETC Group, estas empresas controlam dois terços dos genes registrados nos escritórios de patentes em todo o mundo (ETC, 2011): setor público = 9%; setor privado = 91% (Nota: não foram incluídas 17 famílias designadas como “não declaradas”). Ao mesmo tempo em que o controle de tais tecnologias se concentra cada vez mais, estima-se que variedades agrícolas nativas do sul global estarão mais vulneráveis à extinção: Em um mundo onde a biodiversidade e a subsistência das comunidades agrícolas tradicionais estão sob cerco, algumas questões emergem. As comunidades agrícolas tradicionais, incluindo melhoristas de plantas e de animais, serão capazes de adaptarem-se rápido o suficiente para responder a uma abrupta mudança climática? Será que os bancos de germoplasma e suas características adaptativas estarão acessíveis aos agricultores das regiões do Sul, os quais são mais necessitados? Quem vai decidir? (ETC Group, 2011, p. 4). Nesse sentido, políticas tecnocráticas voltadas para a agricultura tendem a produzir uma ordem agrícola cada vez mais desigual entre países e multina- cionais que controlam os bancos de germoplasma e outras tecnologias agrícolas e países e agricultores do sul global, mais vulneráveis às alterações climáticas. Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar 338 Deve-se ressaltar que políticas cujo foco seja tecnologia e seu acesso trazem implícita ou explicitamente um modelo de agricultura, nem sempre apropriado aos contextos de uso. Vê-se que o risco à dependência tecnológica, aos modelos mais sustentáveis de agricultura e a laços sociais rurais emergem concomitan- temente com a emergência do risco das mudanças climáticas.5 No marco do mercado global de novas tecnologias “adaptadas” ao con- texto das mudanças climáticas, deve-se esperar maior mobilização por parte de movimentos sociais rurais e mesmo de consumidores urbanos, críticos a modelos agrícolas intensivos em uso de agrotóxicos, poluentes e demandador e concentrador de mais área territorial. (Hess, 2007). Nesse marco, tais planos aqui elencados deveriam ser propostos e implementados concomitantemente a expansão de espaços democráticos de discussão de seus fundamentos e impactos e, a mudança tecnológica que trazem, de forma implícita ou explícita, deveria ser submetida ao escrutínio e avaliação dos usuários e ao julgamento não só de sua eficácia técnica, mas de suas consequências para os laços sociais sobre os quais impactariam, para, desse modo, fazer valer o imperativo da democracia técnica: Ciência e tecnologia não podem ser geridas pelas instituições políticas atualmente disponíveis. Obviamente, não é uma questão de abandoná-las. Elas deram amplas provas da sua eficácia. Mas as suas limitações não são menos óbvias. Elas devem ser enriquecidas, expandidas, ampliadas e melhoradas, de modo a trazer o que alguns chamam de democracia técnica, ou, mais precisamente, a fim de tornar as nossas democracias mais capazes de absorver os debates e controvérsias despertadas pela ciência e tecnologia. (Callon, Lascoumes e Barthe, 2009, p. 9). O que a democracia técnica pressupõe é a exaustão dos mecanismos con- vencionais de avaliação dos impactos da ciência e tecnologia na vida cotidiana dos indivíduos. Nem o mercado, nem o Estado são mais capazes de prever ou controlar os resultados das complexas tramas de agentes que hoje compõem as redes sociotécnicas. (Latour, 1994). O século XX nos trouxe exemplos das limitações de agentes econômicos, políticos e científicos porque eles se apre- sentaram demasiadamente comprometidos com o sucesso, a todo custo, dos empreendimentos tecnocientíficos, relegando as controvérsias emergentes à condição de obscurantismo e anticiência. No entanto, está cada vez mais difícil “varrer as controvérsias para debaixo do tapete”, dada a proliferação de novos agentes interessados nos impactos das novas tecnologias agrícolas e climáticas. (Hess, 2007). Esses novos agentes têm participado mais incisivamente na produção, circulação e construção das novas tecnologias, formando em diversas situa- 5 Sobreos impactos das políticas de desenvolvimento na agricultura, ver Gupta (1998). 339 ções o que já se chama de “fóruns híbridos”, nos quais, “[...] a direção dada à investigação e aos modos de aplicação de seus resultados são discutidos, pre- dominam incertezas, e todos contribuem com informações e conhecimento para enriquecer o debate”. (Callon, Lascoumes e Barthe, 2009, p. 9). Não se Usuario Destacar Usuario Destacar Usuario Destacar pode, no entanto, esperar que essas novas formas organizativas sejam a regra em todos os contextos democráticos e, portanto, poderiam operar resistências onde quer que as novas tecnologias agrícolas fossem implementadas. As condições institucionais são muito diferentes entre os países e o poder econômico tende a se sobrepor a outros interesses. Porém, as experiências têm se proliferado, a despeito de sua eficácia na contenção das consequências nefastas das novas tecnologias, como é o caso das “Conferências de Consenso”.6 As experiências de mobilização de novos agentes nas controvérsias tecnológicas assumem assim novas formas de engajamento, objetivos e repertórios. (Hess, 2007). É nesse novo contexto de risco climático global e de novas formas de mobilização que as políticas nacionais, como o Plano ABC, terão que mostrar viabilidade, principalmente de seu fundamento tecnológico. 6 Sobre a “Conferência de Consenso”, ver Neves et al. (2015). Referências BANCO CENTRAL DO BRASIL. Anuário estatístico do crédito rural (até 2012). Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/?RED-RELRURAL>. Acesso em: 15 jan. 2015. BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Plano setorial de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas para a consolidação de uma economia de baixa emissão de carbono na agricultura: Plano ABC (Agricultura de Baixa Emissão de Carbono). Brasília, DF: MAPA/ACS, 2012. BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Plano ABC. Disponível em: <http://www.agricultura.gov.br/desenvolvimento-sustentavel/plano-abc>. Acesso em: 15 abr. 2015. CALLON, M.; LASCOUMES, P.; BARTHE; Y. 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