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A inconveniência da política de abatimento no Rio de Janeiro

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A (IN)CONVENIÊNCIA DA POLÍTICA DE “ABATIMENTO” NO ESTADO DO RIO 
JANEIRO 
ANA MARIA DA CONCEIÇÃO 
JOÃO PEDRO FURTADO 
 
RESUMO 
 
O presente trabalho pretende compreender a (in)conveniência da política de “abatimento” defendida 
pelo governador do estado do Rio de Janeiro. Nesse sentido, a primeira parte deste trabalho apresenta 
um panorama sobre a atual situação da segurança pública do Rio de Janeiro, com o término da 
intervenção federal no estado. Após traçar esse quadro, aborda-se a atual proposta de “abatimento” 
como uma forma de controle da violência, especialmente nas comunidades do estado, inspirada nas 
regras de engajamento adotadas no Haiti, a partir de 2004. Quanto à segunda parte desse trabalho, 
esta intenta compreender se essa política encontraria amparo no ordenamento jurídico brasileiro, 
especialmente no âmbito do direito penal. Por derradeiro, questiona-se sobre a possibilidade de 
alcançar certo grau de controle social em detrimento de direitos e garantias fundamentais inerentes a 
qualquer Estado Democrático de Direito, especialmente no que concerne à violação da dignidade da 
pessoa humana, em perspectiva com o direito social à segurança. A fim de cumprir com tais 
propósitos, buscou-se a utilização de revisão bibliográfica pertinente, bem como a análise das 
afirmações dos principais agentes envolvidos na segurança pública no estado do Rio de Janeiro. Por 
todo o exposto, é possível concluir que a política de “abatimento” não encontra respaldo no direito 
penal brasileiro e colide com diversas normas previstas na Constituição Federal brasileira. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Palavras-chave: Política de “abatimento”; Legítima defesa; Direito à segurança. 
INTRODUÇÃO 
 
 É mais do que notória a complexa situação da segurança pública no Brasil, tendo em vista os 
altos índices de violência que assombram os cidadãos de diversos estados da federação. Somente no 
ano de 2017 foram registrados mais de 65 mil homicídios no Brasil, acarretando a morte de milhares 
de jovens que constituem a categoria mais afetada pela violência letal (IPEA, 2019, p. 5-6). 
 No Rio de Janeiro, especificamente, o número de assassinatos em 2019 vêm sofrendo uma 
redução em relação aos anos anteriores. Contudo, as mortes decorrentes da intervenção policial 
seguem aumentando de forma drástica desde 2013, alcançando em 2018 a quantidade de 1534 pessoas 
mortas (ISP, 2019, p. 15). 
 Como tentativa de “solucionar” esse quadro de insegurança no Rio de Janeiro surgiu a ideia 
de permitir e incentivar que policiais possam disparar de forma letal contra pessoas que estejam 
portando fuzis nas comunidades cariocas. A ação, conhecida vulgarmente como política de 
“abatimento”, entrou em discussão desde o início de 2018, aparecendo de forma mais concreta a 
partir dos debates sobre segurança pública nas últimas eleições para governador do Rio de Janeiro. 
Conforme defendido pelo atual chefe do executivo estadual, seria necessária, inclusive, a atuação de 
atiradores de elite (snipers) para a execução de indivíduos considerados como criminosos. 
 Portanto, trata-se de discussão extremamente relevante, tendo em vista que dialoga com 
questões elementares de Segurança Pública e Direitos Humanos, possibilitando uma reflexão sobre 
os limites do exercício do poder punitivo estatal e a constitucionalidade dessa política de 
“abatimento”. Outrossim, tal temática dialoga com questões mais profundas no que diz respeito à 
seletividade do sistema penal e a reiterada violação de direitos humanos pelos agentes estatais. 
 Buscando compreender melhor o contexto da gênese de tal política, a primeira parte deste 
artigo começa realizando um breve panorama sobre a colaboração brasileira na missão de paz da ONU 
no Haiti. Resgatar essa participação permite entender os traços de similitude entre a atuação militar 
em contexto de guerra e a que se desenvolve nas periferias do Rio de Janeiro, sendo elementar a 
avaliação do engajamento das forças estatais nesses territórios, especialmente a partir do contexto da 
intervenção federal no Rio de Janeiro, que ocorreu em 2018. Diante dessa conjuntura, é possível 
delimitar a constituição do que aqui é chamado de “política de abatimento”. 
 Uma vez definida a conjuntura e a conceituação, a segunda parte deste trabalho pretende 
verificar se essa política encontra respaldo no direito penal. Assim, é analisado de forma minuciosa o 
instituto da legítima defesa a fim de aferir se o “abatimento” de pessoas portando armas de uso restrito 
pode ser enquadrado nessa causa de justificação. Nesse momento, é importante refletir sobre tal 
política à luz do direito penal. 
 Quanto à terceira parte, esta procura investigar se essa estratégia de segurança pública se 
coaduna com os direitos e garantias constitucionais. Busca-se, portanto, apreciar se a tal política de 
“abatimento” defendida por diversos agentes da segurança pública do Rio de Janeiro é compatível 
com os fundamentos do Estado de Direito Democrático que o Brasil pretende ser, bem como se essa 
prática se sustenta diante dos direitos fundamentais tutelados pela Constituição Federal de 1988. 
Por todo o exposto, verifica-se a relevância de um estudo pormenorizado da temática em 
questão, haja vista que esse mesmo discurso de “abatimento” de criminosos pode vir a influenciar 
outros estados brasileiros, e quiçá outros países, na formulação das suas políticas de segurança 
pública. Ocorrendo essa reprodução, é possível que tal prática culmine na violação sistemática de 
pressupostos basilares da ordem constitucional brasileira, agravando ainda mais o quadro da 
segurança pública no país. 
 
1. A MISSÃO DE PAZ DA ONU NO HAITI E A POLÍTICA DE “ABATIMENTO” 
 
A Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH) foi aprovada pela 
Resolução 1542 do Conselho de Segurança da ONU, com o intuito de restabelecer a segurança e 
normalidade institucional do país, depois de sucessivos episódios de turbulência política e de 
violência no Haiti, que culminaram com exílio do então presidente, Jean Bertrand Aristide. 
Em 13 de abril de 2007, o Conselho de Segurança da ONU adotou a Resolução 2350 (2017), 
que estendeu o mandato da Missão das Nações Unidas pelos seus últimos seis meses, e estabeleceu 
uma nova operação de manutenção de paz no país, a partir de 16 de outubro do mesmo ano. Essa 
nova operação foi composta apenas por civis e unidades de polícia, e foi denominada Missão das 
Nações Unidas para o apoio à Justiça no Haiti (MINUJUSTH). 
Durante todas as operações no Haiti, o Brasil esteve no comando do componente militar da 
Missão, o qual contou, ainda, com a participação de tropas de países como França, Argentina, Bolívia, 
Canadá, Paraguai, Uruguai, Portugal, Turquia, Croácia, dentre outros (BRASIL, 2019), além do 
efetivo brasileiro do Exército, da Marinha e da Força Aérea. 
Ressalta-se que, a chamada política de “abatimento” do atual governador do estado do Rio de 
Janeiro, Wilson Witzel, encontra correspondência no contexto da missão de paz da ONU no Haiti, 
em que tropas das Forças Armadas atiraram em membros de forças rebeldes e gangues armadas por 
estarem portando fuzis (KAWAGUTI, 2018). 
 Nesse contexto, as tropas seguiram o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas (CARTA 
DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945), que dispõe sobre ação relativa a ameaças à paz, ruptura da paz e 
atos de agressão. A legislação deu às forças armadas mais flexibilidade para decidir quando atirar 
para matar, embora também trouxesse restrições ao uso da força. 
http://www.minustah.org/
http://www.un.org/en/sc/
Quando a ONU deixou o Haiti em 2017, não havia mais grupos rebeldes ou gangues 
controlando territórios. De acordo com Roberto Escoto, ex-comandante da Força de Pacificação da 
Maré (Operação São Francisco, de 2014) é possível afirmar que as ações da tropa no Haiti foram 
eficazes e desmantelaram os movimentosrebeldes haitianos. Porém, segundo ele, o que se observou 
na MINUSTAH é que as ações militares foram acompanhadas por ações sociais promovidas em 
grande escala pelo braço civil da ONU, o que representou o grande motivo do êxito das operações.1 
 Ressalta-se também que o Exército brasileiro levou à Missão de Paz das Nações Unidas para 
a estabilização do Haiti uma tropa especializada e treinada para as piores situações de guerra e 
conflitos, a fim de pacificar as mais violentas favelas haitianas. Um grupo secreto, composto por cerca 
de 20 homens, era trocado a cada seis meses, e recebeu o nome de Destacamento de Operações de 
Paz (DOPAZ). 
 No Brasil, foram esses mesmos militares que atuaram em operações contra traficantes 
durante a ocupação do Exército nas comunidades da Maré e do Alemão, ambas localizadas na zona 
norte do município do Rio de Janeiro. Essa tropa especializada atuou ainda no combate ao terrorismo 
durante a Copa do Mundo e nas Olimpíadas. Caso houvesse algum ataque ao Brasil, seriam esses 
militares que atuariam (STOCHERO, 2017). 
 Após todas essas ondas de violência, e a partir de um discurso de certa anomia nas 
comunidades do Rio de Janeiro, a qual indicaria uma situação sui generis, em que pese os índices de 
violência do estado não serem os maiores do Brasil, foi decretada, em 16 de fevereiro de 2018, a 
intervenção federal pelo então presidente Michel Temer. Tal intervenção na segurança pública do Rio 
de Janeiro se deu em um momento no qual o estado estava mergulhado não apenas numa onda de 
insegurança, como também numa crise financeira, refletida no regime de recuperação fiscal, ao qual 
o Rio aderiu em setembro de 2017. 
Com o advento da intervenção, o cargo de comando foi dado ao general Walter Braga Netto. 
Na verdade, desde 2017, os militares já estavam atuando no Rio de Janeiro (ainda que pontualmente), 
em articulação com o governo estadual. No entanto, de fevereiro de 2018 até o final da intervenção 
(que durou 319 dias), todas as decisões sobre a segurança do Rio passaram a ser tomadas pelo 
interventor federal, o general supramencionado. 
À época da intervenção federal no Rio de Janeiro, a qual se estendeu de 16 de fevereiro a 31 
de dezembro de 2018, e representa o contexto no qual surgiram políticas de segurança pública como 
a política de “abatimento”, o general da reserva do Exército Brasileiro Augusto Heleno Ribeiro 
 
1 Ver mais em entrevista de Roberto Escoto, general da reserva que comandou a Força de Pacificação da Maré, concedida ao 
repórter Luís Kawaguti, do UOL, no Rio de Janeiro. Disponível em: 
<https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/23/quais-as-consequencias-de-atirar-para-matar-
criminosos-armados-de-fuzil.htm>. Acesso em: 27 set. 2019. 
https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/23/quais-as-consequencias-de-atirar-para-matar-criminosos-armados-de-fuzil.htm
https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/23/quais-as-consequencias-de-atirar-para-matar-criminosos-armados-de-fuzil.htm
Pereira defendeu a adoção de uma “regra de engajamento altamente flexível” para os militares 
envolvidos na intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro (CHARLEAUX, 2018). 
 A “regra de engajamento”, a qual Heleno se refere, é uma espécie de manual operacional que 
determina como as Forças Armadas podem ou não podem usar a força num determinado contexto. 
Uma característica dessas regras é que elas são flexíveis e mudam de um contexto para o outro. 
Contudo, as regras de engajamento devem equilibrar dois objetivos conflitantes: a necessidade de 
recorrer à força para completar os objetivos da missão e a necessidade de evitar o uso de força 
desnecessária. 
 No contexto da intervenção federal no Rio de Janeiro, Heleno fez menção à regra de 
engajamento das tropas da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti que ele mesmo 
comandou no país, nos anos de 2004 e 2005, a fim de defender que regras semelhantes poderiam ser 
usadas agora pelas Forças Armadas no Rio de Janeiro (CHARLEAUX, 2018). 
 Foi justamente o período em que o general Heleno esteve no comando, que concentrou os 
enfrentamentos mais pesados entre as forças das Nações Unidas e grupos armados organizados locais, 
em Porto Príncipe, capital do Haiti. O general participou de vários conflitos armados, com grande 
número de mortes. Todavia, no Haiti, as regras de engajamento permitiam às Forças Armadas uma 
amplitude de uso da força muito maior do que a lei brasileira permite para o Rio de Janeiro. 
 No caso do Brasil, e mais especificamente na intervenção federal no Rio de Janeiro, as Forças 
Armadas estavam sendo usadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Nelas, os 
militares atuam como força policial, diferentemente do caso haitiano. Os manuais, doutrinas e 
procedimentos policiais determinam que seja feito o uso “escalonado”, “gradual” ou “gradiente” da 
força (CHARLEAUX, 2018). 
 O uso gradual da força significa que o policial deve usar sempre a menor força possível para 
atingir o objetivo pretendido, partindo da ordem verbal, ao uso da força física sem emprego de armas; 
posteriormente seria permitida a realização de disparos de advertência e, em último caso, pode-se 
fazer o uso de arma de fogo, apenas quando não há alternativa. 
 Entretanto, o general Heleno considera que esse procedimento escalonado diminui a 
efetividade da ação, motivo pelo qual deveriam ser adotadas regras mais permissivas durante a 
intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro, tal como aconteceu no caso da Missão das Nações 
Unidas para a estabilização no Haiti (CHARLEAUX, 2018). 
 Em entrevista ao jornal Nexo2, o professor de Direito, e membro do programa de pós-
graduação da Escola de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME) e do Observatório Militar 
 
2 Entrevista concedida por Carlos Frederico Coelho ao Jornal Nexo. Disponível em: 
<https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/02/19/O-que-%C3%A9-%E2%80%98regra-de-
engajamento%E2%80%99.-E-como-ela-difere-no-Rio-e-no-Haiti>. Acesso em: 20 abr. 2020. 
da Praia Vermelha, Carlos Frederico Coelho, falou sobre as diferenças jurídicas e estratégico-
militares entre as situações do Rio de Janeiro e do Haiti. Para ele, “no caso das tropas brasileiras no 
Haiti, tratavam-se de contingente brasileiro em operação de paz sob a égide de Organização 
Internacional, em país estrangeiro”. Já no caso do Rio de Janeiro, tratou-se de “utilização das Forças 
Armadas para atuação em território nacional, situação prevista na Constituição em caráter 
excepcional”. 
Todavia, embora historicamente as Forças Armadas tenham sido utilizadas em operações 
dessa natureza, de acordo com Carlos Frederico, “dificilmente será encontrado paralelo histórico para 
uma intervenção tão longa, resultado de intervenção federal direta em um ente subnacional, no caso, 
o estado do Rio de Janeiro”. Segundo Carlos, “uma das dificuldades da intervenção federal no Rio de 
Janeiro foi a ausência de contornos jurídicos devidamente definidos, de modo a proteger 
juridicamente não só as Forças Armadas, como também a sociedade em geral, de demandas 
posteriores”. 
Quando questionado sobre se seria desejável aplicar no caso do Rio de Janeiro regra de 
engajamento tão flexível ou tão permissiva quanto a que vigorou no Haiti, sobretudo nos primeiros 
anos da Minustah, Carlos Frederico afirma que “a indicação de qual regra de engajamento utilizar é 
decorrente das necessidades operacionais da missão”. 
À época da entrevista, a intervenção federal ainda estava em curso, motivo pelo qual Carlos 
acreditava ser ainda um pouco prematuro aventurar-se na discussão. Entretanto, ele pondera que “o 
mais importante é que, seja qual for a necessidade operacional, o aparato jurídico dispensado 
acompanhe tal necessidade,de maneira que não haja descompasso entre uma coisa e outra”. 
Durante as eleições de 2018, Wilson Witzel, que disputou contra Eduardo Paes o segundo 
turno na corrida eleitoral para decidir quem seria o governador do estado do Rio de Janeiro, criticou 
a intervenção federal, por defender que as forças armadas não deveriam patrulhar as cidades, mas sim 
as fronteiras. Nessa mesma época, Witzel sustentou em seu programa de governo, que, se fosse eleito 
governador do estado do Rio de Janeiro, daria autorização para “abater” criminosos que estivessem 
portando armas de uso exclusivo das forças armadas. 
Wilson Witzel foi eleito, no segundo turno, com 59% dos votos válidos, e assumiu o cargo de 
governador do Rio de Janeiro em 1º de janeiro de 2019. Desde então, Witzel vem afirmando em 
declarações públicas e na postura do seu governo, o que seria uma das principais propostas de seu 
programa de governo, a saber, o “abate” de qualquer pessoa que esteja portando um fuzil. 
Em agosto de 2019, o atual governador do estado do Rio de Janeiro concedeu uma entrevista 
ao programa “Na Lata”, apresentado por Antonia Fontenelle. Nessa entrevista o chefe do executivo 
estadual começa sua fala defendendo o “abatimento” de criminosos que estejam portando fuzil, 
alegando que a ação policial nessas circunstâncias estaria acobertada pelo Código Penal vigente que 
autoriza a defesa da sociedade. Segundo Witzel, uma pessoa que esteja portando fuzil precisa ser 
abatida imediatamente porque é uma ameaça iminente, conforme se depreende do seguinte trecho3: 
Os nossos militares tinham dúvidas: como proceder diante de alguém de fuzil? 
Durante várias entrevistas eu tive que explicar; me perguntando assim: governador, 
o senhor não está estabelecendo pena de morte? Eu falei: não! Pena é outra coisa. 
Após o devido processo legal, ao invés de se aplicar pena privativa de liberdade se 
aplica pena de morte. Aqui o Código Penal autoriza a defender a sociedade. Alguém 
de fuzil é uma ameaça iminente e tem que ser abatido. Não adianta você perguntar: 
larga o fuzil! Não vai largar... então tem que matar! 
Nessa mesma entrevista a apresentadora questiona sobre um caso que ocorrera alguns dias 
atrás, onde um morador de rua, usuário de drogas, atacou pessoas com uma faca e foi neutralizado 
pela polícia com um tiro na perna. Sobre esse episódio, Fontenelle pergunta ao governador: “cadê os 
snipers... cadê o policial que chega para atirar na testa e resolver o problema na hora? ”. Essa 
indagação da apresentadora decorre de sua opinião sobre o agressor que seria um doente mental 
incurável que está tirando o leito de hospital de alguém e gastando dinheiro público. Ter eliminado 
esse indivíduo se apresenta, assim, como a solução mais eficaz para a resolução daquele problema, 
ainda que este não estivesse portando um fuzil. A resposta do governador sobre o caso do morador 
de rua foi, primeiramente, no sentido de que a atuação policial deve apenas neutralizar a agressão e 
prender o indivíduo, conforme dispõe a lei. Contudo, Witzel afirma, posteriormente, que se estivesse 
no lugar do policial teria atirado para matar, sendo, inclusive, essa a orientação que ele e sua equipe 
fornecem aos policiais. 
Logo, percebe-se que, na visão do chefe do executivo, a política de “abatimento” não se 
restringe apenas aos casos em que pessoas estejam portando fuzis, englobando situações como a do 
morador de rua que estava na posse de uma faca. De todo modo, ao final da entrevista, o governador 
reforça o seu discurso contra pessoas que estejam portando fuzis, dizendo “na lata”: “Não sai de fuzil 
na rua não, troca por uma bíblia... se você sair nós vamos te matar.”. 
Diante de tais afirmações do governador do estado do Rio de Janeiro, torna-se elementar a 
análise da compatibilidade desse “abatimento” de pessoas com as normas do direito penal, a fim de 
verificar se essa diretriz de ação policial encontra respaldo jurídico no ordenamento vigente. 
 
2. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICO-PENAL DA POLÍTICA DE “ABATIMENTO” 
 
Para saber se um policial comete um crime ao atirar para matar o portador de um fuzil é 
necessário, antes de tudo, destacar o que se entende por delito no Brasil. Em síntese apertada, o 
 
3 Entrevista de Wilson Witzel, governador do Estado do Rio de Janeiro, no programa “Na Lata”, apresentado por Antonia 
Fontenelle. A íntegra da entrevista pode ser encontrado no canal “Na Lata com Antonia Fontenelle”. Disponível em: 
<https://www.youtube.com/watch?v=9DrsvVfn94A>. Acesso em: 28 jun. 2020. 
Código Penal (CP) em vigor descreve diversas condutas consideradas como lesivas a bens jurídicos 
e estabelece sanções para quem incorrer nessas figuras típicas. Contudo, não existe nenhum artigo 
que defina o que é crime, deixando essa incumbência aos operadores do direito que, majoritariamente, 
compreendem que o crime é um fato típico, ilícito e culpável. Alguns, porém, defendem uma teoria 
bipartida do delito, excluindo o estrato da culpabilidade por causa do seu esvaziamento oriundo das 
ideias finalistas (CAPEZ, 2019). 
Partindo da teoria dominante, a conduta do sniper de atirar, conscientemente, contra um 
indivíduo que esteja segurando um fuzil pode vir a se adequar perfeitamente no tipo penal do 
homicídio, previsto no art. 121 do CP. Como a ação do agente será sempre típica, o “abatimento” do 
indivíduo somente deixaria de ser criminoso se houvesse algum elemento que afastasse a 
antijuridicidade ou a culpabilidade do atirador de elite. 
O art. 23 do CP estabelece as hipóteses em que uma conduta poderia ser considerada como 
lícita, ainda que se enquadre em um determinado tipo penal. De acordo com esse dispositivo, não 
haverá responsabilização criminal quando a ação for acobertada por uma das quatro causas de 
justificação previstas na parte geral do código, a saber, o estado de necessidade, a legítima defesa, o 
estrito cumprimento de dever legal e o exercício regular de um direito. 
O “abatimento” de criminosos que estejam portando fuzis pretende encontrar fundamentação 
jurídico-penal no instituto da legítima defesa, previsto no referido art. 23 e conceituado no art. 25, 
ambos do Código Penal. Conforme estabelecido no texto legal, uma pessoa somente pode alegar que 
atua em legítima defesa quando repelir uma agressão injusta, atual ou iminente, utilizando-se 
moderadamente dos meios necessários para garantir o seu direito ou o de terceiros. Além desses 
elementos objetivos, alguns autores acrescentam um requisito de natureza subjetiva que é a intenção 
de atuar de forma defensiva, chamada de animus defendendi (BITENCOURT, 2018). 
Entende-se por agressão toda ação ou omissão de violência “dirigida contra bens jurídicos do 
agredido ou de terceiros” (SANTOS, 2014, p. 250). Partindo dessa definição, é possível afirmar que 
constitui uma agressão a conduta de um indivíduo que dispara com uma pistola contra um desafeto, 
haja vista que essa ação viola a incolumidade física da pessoa alvejada. Contudo, caso o sujeito se 
limite a portar uma arma, sua ação não constitui uma agressão ensejadora da legítima defesa pela 
ausência de violência contra terceiros, ainda que tal conduta seja passível de responsabilização 
criminal caso o porte seja ilegal. No caso de uma pessoa estar com um fuzil em mãos, poderá vir a 
responder pelo crime de porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto no art. 16 da Lei nº 
10.826/2003 (Estatuto do desarmamento) e que foi incluído no rol dos crimes hediondos em 2017. 
Não há dúvidas de que um agente armado indevidamente com um fuzil oferece um enorme 
perigo à coletividade, colocando em risco a incolumidade pública e também a sua própria vida. 
Contudo, por mais reprovável que seja, tal conduta por si só não configura a agressão que constitui 
um dos requisitos objetivos da legítima defesa. 
Admitindo-se, hipoteticamente, que haja uma agressão na condutade alguém que esteja 
portando um fuzil, seria necessário avaliar ainda o aspecto da injustiça. Considera-se agressão injusta 
aquela que é ilícita, contrária ao direito, ainda que não tenha natureza criminosa (ESTEFAM; 
GONÇALVES, 2016, p. 403). Com essa conceituação seria até possível, em um primeiro momento, 
considerar o porte da arma como uma agressão injusta. Porém, se esse indivíduo portando um fuzil 
vê uma mulher sendo violentada sexualmente e dispara contra o estuprador, sua agressão não seria 
justa por defender a liberdade sexual de terceiros? Caso fosse preso, poderia responder pelas penas 
cominadas ao porte ilegal, mas não responderia criminalmente pelo disparo nessa circunstância 
porque a nova ação perpetrada difere do ato inicial e pode ser considerado em conformidade com o 
direito. Ainda que essa seja uma hipótese remota, serve ao menos para exemplificar algumas das 
contradições que podem surgir do esforço em se servir do instituto da legítima defesa para eliminar 
pessoas consideradas como perigosas. 
 Outro óbice à aplicação da justificante consiste na necessidade de que a agressão seja atual 
ou iminente. Em linhas gerais, a agressão atual é aquela que é presente enquanto que a iminente seria 
aquela que pode ser percebida de forma manifesta (RAIZMAN, 2019, p. 296). Dessa definição não 
há dúvidas de que o mero fato de uma pessoa portar um fuzil não constitui uma agressão atual. O 
problema reside na imprecisão presente na expressão “iminente” e que acaba dando margem a 
interpretações equivocadas. É preciso deixar claro que a agressão iminente é diferente de uma 
agressão futura que pode, eventualmente, nunca acontecer. É plenamente possível que uma pessoa 
porte todos os dias uma arma sem, contudo, nunca ter efetuado sequer um único disparo. A iminência 
estaria presente no “movimento da mão do agressor em direção à arma” (SANTOS, 2014, p. 228), 
mas não necessariamente no simples fato de trazê-la consigo. Óbvio que é uma linha tênue, mas ainda 
sim é demarcatória e inviabilizadora. 
É importante reafirmar que não há dúvidas de que o delito de porte ilegal de arma de uso 
restrito deve ser coibido pelo Estado. Uma pessoa que carrega uma arma de tamanha letalidade gera 
um enorme risco à coletividade pois parece estar preparada para qualquer ataque. No entanto, ainda 
que a chance de que esse indivíduo dispare contra alguém seja exorbitante, a agressão, propriamente, 
somente existe enquanto especulação, não se configurando objetivamente como iminente, muito 
menos como atual. Admitir a legítima defesa de agressão futura constitui um interpretação ampliativa 
inadmissível, refutada pelos mais importantes estudiosos do direito penal brasileiro, conforme se 
depreende da seguinte passagem do mestre Hungria: 
É de todo inaceitável este critério ampliativo. Não é concebível legítima defesa sem 
a certeza do perigo, e esta só existe, só pode existir em face de uma agressão 
imediata, isto é, quando o perigo se apresenta ictu oculi como realidade objetiva. O 
perigo de uma agressão futura, por mais verossímil, não passa de uma hipótese, com 
a qual não pode operar o instituto da legítima defesa. (HUNGRIA; FRAGOSO, 
1978, p. 291) 
Caso o mero fato de portar um fuzil fosse considerado como uma injusta agressão iminente, 
há ainda a necessidade de que a reação a essa conduta seja moderada. Esse uso moderado dos meios 
necessários significa dizer que “não pode haver uma desproporção muito grande entre a conduta 
defensiva e a do agressor, de maneira que a primeira cause um mal imensamente superior ao que teria 
produzido a agressão” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2015, p. 523). Nesse sentido, deve-se 
questionar se a conduta de abater uma pessoa que esteja apenas portando um fuzil pode ser 
considerada como proporcional. De um lado há um indivíduo que pode vir ou não a disparar contra 
alguém, enquanto que do outro está a morte certa. Logo, não parece que o “abatimento”, nessas 
circunstâncias, guarde qualquer proporcionalidade. Agora, se o portador do fuzil resolver praticar 
uma outra conduta que ultrapasse a mera ação de portar a arma de uso restrito, pretendendo utilizá-la 
em eventual confronto contra a polícia, aí sim poderia surgir a legítima defesa moderada por parte do 
agente policial, desde que presentes todos os requisitos legais desse instituto. 
Não sendo justificável o “abate”, a conduta do agente policial se torna ilícita, configurando-
se o injusto penal e produzindo efeitos na esfera cível. Se presente também o estrato da culpabilidade, 
a ação pode ser entendida como criminosa e o indivíduo que atirou estará incurso nas penas cominadas 
ao tipo penal do homicídio. 
As forças de segurança que abaterem um indivíduo que esteja portando um fuzil estão atuando 
à margem dos limites legais, aplicando extrajudicialmente uma pena de morte. Ainda que agentes 
estatais não reconheçam, a execução de “penas” de forma ilícita é algo amplamente comentado por 
estudiosos do direito penal, conforme se observa da seguinte passagem: 
[...] podemos dar-nos conta facilmente de que boa parte da função punitiva se realiza, 
ainda atualmente, fora do direito, apesar das conquistas alcançadas na história das 
constituições modernas, pelas teorias liberais da pena. Pense-se na gravidade do 
fenômeno da pena de morte extrajudicial, nas torturas, nas desaparições, nas ações 
ilegais da polícia, dos corpos militares e paramilitares, no excesso da função punitiva 
à margem legalidade, como temos visto em um passado recente sob a ditadura 
fascista na Europa e vemos todavia em alguns países da América Latina. 
(BARATTA, 2003, p. 6) 
 Somente o fato de não haver espaço na ordem jurídica vigente para essa medida de segurança 
pública já seria suficiente para rejeitar essa política. Contudo, cabe ainda verificar se esse 
“abatimento” é permitido pela Constituição Federal ou encontra nesta um obstáculo insuperável que 
lhe retire qualquer legitimidade. 
 
3. DIREITOS FUNDAMENTAIS E GARANTIA DA SEGURANÇA PELA POLÍTICA DE 
“ABATIMENTO” 
 
Após a morte da criança Ágatha Felix, de 8 anos, durante uma operação policial realizada no 
complexo do Alemão no final de setembro de 2019, o Ministério Público Federal emitiu uma nota 
questionando a política de segurança implementada no Rio de Janeiro. Segundo a entidade, 
“extermínio e abate são estimulados pelo discurso oficial que trata os moradores de comunidades, em 
sua maioria pobres e negros, como criminosos e inimigos a serem eliminados.”4. 
Um caso ilustrativo da política de “abatimento”, e de como ela é apresentada enquanto 
proposta de solução para a crise da segurança pública no Rio de Janeiro, foi o que ocorreu na ponte 
Rio-Niterói, dia 20 de agosto de 2019. Um rapaz teria feito reféns alguns passageiros de um ônibus 
da Viação Galo Branco, na ponte Rio-Niterói, na manhã da terça-feira, 20 de agosto. O suposto 
sequestro, que teria começado por volta das 5h30, durou cerca de quatro horas. A arma utilizada era 
de brinquedo. Nenhum dos 37 passageiros que teriam sido feitos reféns ficou ferido (GOMES; 
JANSEN; NIEDERAUER, 2019). 
 O rapaz ao qual foi associada a autoria do crime de sequestro, foi identificado como William 
Augusto da Silva, de 20 anos de idade. Após ser “abatido” por um sniper do Batalhão de Operações 
Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), Willian chegou ao 
Municipal Souza Aguiar com parada cardiorrespiratória e foi constatado o óbito pela equipe médica. 
 O governador Wilson Witzel chegou à Ponte Rio-Niterói de helicóptero, após a morte de 
Willian, e cumprimentou os policiais, vibrando com a ação dos agentes de segurança. O presidente 
Jair Bolsonaro, afirmou na ocasião que “não tem que ter pena de sequestrador”. E ressaltou: 
“Criminoso neutralizado e nenhum refém ferido. Hoje não chora a família de um inocente" (GOMES; 
JANSEN; NIEDERAUER, 2019). 
 Nesse contexto, Wilson Witzel afirmou: "Primeiro,eu quero agradecer a Deus. Não foi a 
melhor solução possível, o ideal era que todos saíssem com vida, mas tomamos a decisão de salvar 
os reféns". Witzel ressaltou também: "Tomamos a decisão de solucionar o problema rapidamente, foi 
um trabalho muito técnico da polícia, que usou atiradores de elite. Eu fiquei monitorando o tempo 
todo" (GOMES; JANSEN; NIEDERAUER, 2019). 
 Segundo o governador: "Foi um trabalho de excelência. Se a PM não tivesse abatido o 
criminoso, muitas vidas não teriam sido poupadas. E é isso que está acontecendo nas comunidades: 
se a polícia puder abater quem está de fuzil, muitas vidas serão poupadas". Ele afirma ainda: "Fizemos 
 
4 Nota pública da 7ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, emitida em 25 de setembro de 2019. 
Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/nota-publica-considera-politica-de-seguranca-do-rj-
incompativel-com-o-estado-democratico-de-direito>. Acesso em: 28 jun. 2020. 
a oração do Pai Nosso junto com as vítimas e oramos pelo criminoso que morreu" (GOMES; 
JANSEN; NIEDERAUER, 2019). 
Diante de tudo o que vem sendo exposto neste trabalho, compreende-se a inconveniência da 
política de “abatimento” como política de segurança pública, uma vez que a lógica de “abater” um 
criminoso que esteja portando fuzil se insere em um contexto de políticas públicas desprovidas de 
respaldo jurídico, a pretexto de combater a violência, mas não de preveni-la. Ademais, segurança 
pública, para muito além da dissuasão transgressiva, envolve um planejamento a curto, médio e longo 
prazo, a fim de que o problema da mitigação ao direito social à segurança seja enfrentado com vistas 
a garantir uma segurança pública mais eficiente às gerações futuras. 
É preciso retomar o famigerado princípio fundamental da dignidade humana e questionar 
quem tem sido considerado como pessoa humana dentro da escolha do fazer/não fazer e até mesmo 
do matar/não matar das políticas de segurança pública brasileiras, e especialmente, as do Rio de 
Janeiro. 
A eleição de um vocábulo que nem mesmo nos dicionários se aplica diretamente no sentido 
de execução de vidas humanas (o “abater” seria mais propriamente utilizado para árvores ou bestas) 
é representativo da colisão dessa política de “abatimento” com o núcleo essencial de dignidade que é 
comum a nós todos, pessoas humanas, portanto, portadoras de direitos inerentes, sem distinção de 
qualquer natureza. 
É importante destacar que o sistema punitivo possui uma dimensão bifronte, composta por 
uma fase preventiva e uma fase executiva. Na fase preventiva, o estado busca evitar o cometimento 
de um ato lesivo, enquanto que na fase executiva o objetivo é cessar uma lesão em curso realizada 
por terceiros ou tão somente manter a ordem (RAIZMAN, 2019, p. 49). Ocorre que a atuação policial 
nos moldes dessa política de “abatimento” age de forma repressiva, priorizando a fase executiva, 
buscando apenas a garantia da ordem pública em detrimento do direito constitucional à vida que, 
neste caso, não cabe relativização. 
Outrossim, a opção pela utilização mais intensa da fase preventiva ou da executiva decorre do 
grau de reconhecimento de um indivíduo enquanto uma pessoa que possa ter a sua dignidade 
preservada. Quanto menos alguém é visto pelo sistema punitivo como pessoa, maior será a fase 
executiva que atuará reduzindo o indivíduo a uma coisa descartável, conforme se extrai do seguinte 
trecho: 
Deve ser observado, também, que a opção em favor de uma ou outra fase e, depois, 
o seu grau de realização dependerá, por sua vez, do reconhecimento da pessoa e sua 
dignidade. Assim, quando o reconhecimento é pleno ou em proporção relevante o 
sistema se apresenta na sua fase preventiva, mas, quando não reconhecem de forma 
significativa ou, simplesmente, se desconhecem essas qualidades no agente, sua fase 
é executiva. Do exposto se segue que o sistema se desenvolve segundo a 
decodificação que faz dos indivíduos, isto é, reconhecendo-os como pessoas, com a 
sua consequente dignidade, que lhes atribui a qualidade de cidadão com diversos 
graus de realização, ou como elementos carentes dessas qualidades que os tornam 
até prescindíveis ou matáveis [...] Assim, para as pessoas que são vistas com maior 
dignidade são reconhecidos maiores direitos e consequentemente o estado maximiza 
sua dimensão preventiva, permitindo o exercício desses maiores direitos, reduzindo 
contra esta a sua função executiva. Com relação às pessoas vistas com menor 
dignidade, são reconhecidos menores direitos, de forma tal que sua dimensão 
preventiva é reduzida ao tempo em que é ampliada a sua fase executória 
(RAIZMAN, 2019, p. 49-50). 
 Através da análise dessa dimensão bifronte do processo de criminalização é possível perceber 
as variações na atuação policial que vai oscilar a depender dos locais onde uma operação é realizada. 
Na Zona Sul do Rio de Janeiro a polícia possui uma postura distinta da que é demonstrada nas 
comunidades da periferia. Além disso, “os agentes a cargo do exercício do poder punitivo se 
relacionam de maneira cordial com os ‘cidadãos’ e de forma diversa, por vezes agressivamente com 
o resto, extremando-se com aquele que se ajusta ao estereótipo de criminoso” (RAIZMAN, 2019, p. 
50). 
Em um plano mais pragmático, em termos de segurança pública, o estado de normalidade que 
a caracteriza, não é um fim em si mesmo, mas visa o cumprimento de deveres e a fruição de direitos 
pelos cidadãos. Dito de outro modo, o direito social à segurança (artigo 6º, Constituição da República 
Federativa do Brasil, 1988) deve estar em consonância com a garantia de direitos fundamentais, sem 
os quais, a segurança pública isoladamente não terá sentido de ser: direito à vida (art. 5º caput, CRFB, 
1988), direito à liberdade de locomoção (art. 5º, XV, CRFB, 1988), direito à incolumidade física e 
mental (art. 5º, III, CRFB, 1988), dentre outros (BRASIL, 1988). 
Portanto, casos como o de Ágatha e de Willian, retratados no início deste breve capítulo, 
exemplificativos da falibilidade de políticas de segurança pública que, todavia, permanecem sem 
oferecer soluções para a crise da segurança pública no estado do Rio de Janeiro, podem ser 
enxergados sob o prisma dos direitos e garantias fundamentais, em perspectiva com o direito social à 
segurança. Afinal, se o cidadão considerado como “cidadão de bem”, e até mesmo uma criança, digna 
de uma maior proteção estatal, não têm esse direito social assegurado, a quem se destina o direito à 
segurança que políticas de segurança pública, como a política de “abatimento”, pretendem assegurar? 
Como sustentar o “abatimento” quando quem chora é a família de um(a) inocente? 
O que se percebe, ainda, é que o discurso de combate à corrupção, que em tese estaria por trás 
da política de “abatimento”, na prática, se volta mais para o que seria o paradigma da periculosidade 
(o que pode ser visto, por exemplo, nessa proposta de “abater” o criminoso que “coloque em risco” a 
sociedade), quando na verdade, o combate à corrupção passaria pelo paradigma da lesividade. Isto 
significa dizer que é preciso não só indignar-se contra o que ataca o interesse público do bem comum 
(o que seria melhor representado por crimes como ocultação patrimonial, evasão de divisas, corrupção 
passiva, por exemplo, do que por crimes como homicídio, roubo, sequestro, furto, etc.), como também 
é preciso estimular, através da educação, cultura, e dos direitos sociais, o fortalecimento dos laços 
sociais que levam os indivíduos a cooperarem para aquilo que realmente é do interesse de todos, 
inclusive, para a manutenção da ordem e, consequentemente, da segurança pública. 
Esse fortalecimento dos laços sociais, por sua vez, passa pela compreensão de que a 
obediência dos cidadãos às normas estatais, muito mais do que os problemas de autoridade e coerção, 
envolve também “umdado essencialmente ético, fundado no reconhecimento da mutualidade nas 
prestações entre o Estado e a sociedade negociadas no espaço democrático” (ARRUDA JÚNIOR; 
GONÇALVES, p. 35). Pois, no mundo moderno, para além dos aspectos conviviais, a ética abrange 
uma obrigação que pode ser vista como uma obrigação política “de submissão ao Estado como 
representante da ordem pública, à qual devemos atender mediante certas contrapartidas que, entre 
outras coisas, assegurem a subsistência dos indivíduos como seres livres para o exercício da diferença 
e iguais em dignidade e nas condições práticas dessa mesma liberdade” (ARRUDA JÚNIOR; 
GONÇALVES, ibidem). 
 Desse modo pode-se afirmar que, só há de fato uma sociedade, quando esta oferece aos seus 
membros, possibilidades reais de se desenvolverem moralmente, tendo esses membros condições de 
atenderem materialmente às expectativas que lhe são direcionadas como deveres, obrigações, ou até 
mesmo promessas empenhadas. Dentro dessa perspectiva, é possível então vislumbrar o cumprimento 
de deveres e o sacrifício das abstenções pelos cidadãos como tendo uma contrapartida estatal, sendo 
esta, inclusive, uma estratégia de efetivação do que pode ser chamado mínimo ético, ou, dito de outra 
forma, um mínimo social que repudia a exclusão social, sobretudo aquela que é posta em nome do 
Direito. 
Nesse sentido, vislumbra-se uma alternativa não somente à crise da segurança pública como 
também ao problema da eficácia jurídica no controle comportamental: “A efetivação do mínimo ético 
torna-se imprescindível a uma estratégia de possibilitação do direito nos Estados de modernidade 
periférica, especialmente quando passa a viger o consenso de que o dever de obediência ao poder 
instituído há de estar baseado no reconhecimento e não na pura força” (ARRUDA JÚNIOR; 
GONÇALVES, p. 36). 
 
CONCLUSÃO 
 
 A “política de abatimento” não se apresenta como uma medida adequada para solucionar, nem 
mesmo reduzir, o problema da segurança pública no Rio de Janeiro. A lógica de combate em guerra 
não encontra correspondência no território carioca, tornando irracional a operacionalização policial 
de forma similar à missão de paz da ONU no Haiti. 
 Além disso, o disparo letal contra pessoas portando armas de fogo de uso restrito não parece 
encontrar respaldo no ordenamento jurídico brasileiro, ensejando a possibilidade de que o agente 
policial venha a responder pelo crime de homicídio previsto art. 121 do Código Penal. A presunção 
de que o “abate” se enquadra na hipótese legal da legítima defesa não se apresenta como uma 
suposição verdadeira, haja vista não se obedecer aos requisitos legais do instituto. 
 Por derradeiro, a garantia da ordem pública deve ser feita de forma inteligente, não podendo 
servir como justificativa para a perpetuação de práticas autoritárias e violadoras de direitos humanos. 
O Brasil é, ou ao mesmo pretende ser, um Estado Democrático de Direito, cujo fundamento se alicerça 
no respeito à dignidade da pessoa humana. Logo, o poder estatal não deve agir como um homicida, 
muito menos defender medidas de segurança pública que promovam o extermínio, em regra, da 
população mais suscetível às incursões do aparelho repressivo do Estado. 
O crime de corrupção passiva é muito mais nocivo à sociedade por atentar contra o bem 
comum e muito mais reprovável pela lei por possuir uma pena máxima em abstrato 6 anos maior do 
que a estabelecida para o porte de armas de uso restrito. Mesmo assim, o “abatimento” de um político 
flagrado com dinheiro na cueca oriundo do uso indevido do cargo seria uma postura inadmissível 
perante a ordem jurídica vigente. A escolha pela eliminação de um e não de outro demonstra a 
irracionalidade da política que, por todo o exposto, não merece prosperar. 
 
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