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Filipa Melo ESTE É O MEU CORPO «Hic locus est ubi mors gaudet succurrere vitae» «Este é o lugar onde a morte se regozija de ensinar aqueles que vivem» (inscrição patente numa sala de autópsias) 1 Quando o homem se aproximou da ponte, já o cão rodeava o corpo. Cheirava-o, roçando o focinho nas carnes, veias e ossos que pareciam triturados. Conservavam os contornos intactos. Estendiam-se em duas pernas, dois braços, um tronco e uma cabeça de borco entre o passeio e o alcatrão. Não havia nem olhos, nem cara, nem roupas. No meio da carne rosácea, os tendões desenhavam linhas brancas, cruzadas por músculos finos, tensos e escuros. A pele parecia ter sido sugada por um violento remoinho que a puxara para dentro, retorcida como um trapo velho, seca como um pergaminho. Com o nariz arrastado pelo cheiro do sangue quente, o cão deitou para fora uma língua enorme e soltou-a sobre os farrapos soltos daquela massa amarelecida à superfície. Recolheu-a como no impulso de fugir da picada de uma vespa, surpreendido pelo sabor ácido que lhe comia as papilas e o fazia salivar não de gula mas com gosto de aflição. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas confundidas com as gotas da chuva. Sugou-lhes o sal. Sentou-se nas patas traseiras. Coçou as orelhas com as dianteiras numa fúria de afastar pulgas e coisas que não se conseguem explicar. Ainda hesitou antes de se levantar com um impulso de perdigueiro que escutou o bater de asas de perdiz no meio do restolho. Soltou a correr para que a chuva lhe turvasse os olhos e o fizesse esquecer o caminho. Abriu a boca para largar um som. Mas o ar frio trouxe-lhe de novo o gosto ácido e enrolou-lhe a língua lá para trás, quase até ao vómito. Quando deu por si, a água envolvia-o todo. Por momentos, sentiu que chovia mais do que era costume, que o puxavam para o fundo daquela chuva que já não tinha nem sal nem fim e lhe sufocava a garganta com goladas doces, enjoativas, fazendo-lhe festas desde que deixasse de se mover e seguisse a corrente num embalo de olhos fechados e de sono morno. A última coisa que sentiu foi o corpo enrolado em volta do rabo, a cabeça leve. Só os dentes se encaixaram uns nos outros numa resistência sem forças. As águas do ribeiro levaram-no para longe. O homem tomara o caminho da velha estrada alcatroada porque, encharcado como estava, frio até aos ossos, no meio da chuva e do lamaçal que lhe empastara as solas das botas grossas, decidira não seguir pelo atalho do costume. Trazia ainda vestido o macacão de serviço da oficina, azul e desbotado. Nada fizera prever que o céu se fosse encher de nuvens. Quatro dias antes vira o neto recém-nascido no berçário do hospital da cidade. Lembra-se disso agora, enquanto com a mão direita sacode os pingos que da cara lhe escorrem para dentro das mangas. O toque da água recorda-lhe o desconforto dos corpos nos corredores do hospital, encostados às paredes revestidas de azulejos ou estendidos em macas desengonçadas, engelhados com as dores, o frio, a espera ou apenas abatidos com o choque que, na hora das visitas, se dá entre os cheiros da rua e os entranhados odores a doença. Caminhara serpenteando por entre portas de vidro fosco e olhara de relance os quartos cheios de camas e de olhos e de mãos debruçados sobre elas. Seguira as folhas de papel coladas nas paredes e uma só palavra escrita nelas, «Obstetrícia», acelerava-lhe o bater do coração. Pensava: «Este, sim, é um caminho para a luz. Caminho por entre corredores cinzentos e sinais da morte para ir ter com a vida, a vida do meu neto, do filho da minha filha.» Baixara os olhos às luzes brancas e pálidas que do tecto marcavam uma linha interminável. Atravessara enfermarias e gemidos de sofrimento e aguardara a chegada àquelas onde estes dariam lugar a exclamações de espanto e de alegria. E fora ensaiando um choro que faz desaparecer os olhos e os recolhe até ao centro da alma. Chorara ao ritmo dos passos, a mão esquerda no bolso a chorar também mas em suor quente, a direita a seguir o enxugar das lágrimas. Olhara os rostos que passavam e trouxera-lhe repulsa a curiosidade neles estampada. Como se todos estivessem a postos para gritar o peso da sua própria desgraça e fazê-la abater-se sobre a dos outros. Como se os deliciasse serem os mais doentes, os mais infelizes, os mais malafortunados, e assim pudessem esquecer-se dos seus defeitos e unir-se em pé de igualdade nos pedidos de misericórdia e compaixão. Odiava a doença e as faces dela e por isso caminhara mais depressa para ir ao encontro da vida, do calor, dos rostos felizes e limpos das famílias em visita às mães e aos recém-nascidos. Atravessara a porta verde e sentira de imediato os cheiros e os sons da ressaca das grandes emoções, dessas que se abatem como um vendaval inesperado e arrasam tudo antes de fazerem vingar a paz. Como o grito da parturiente na altura da expulsão e o do recém-nascido quando respira pela primeira vez. O ar a entrar nos pulmões e a vida já a explodir de lá de dentro envolta em golfadas de sangue e muco. E depois a calma por entre o choro. A atmosfera carregada dos grandes momentos. Tal qual como quando morre alguém. As expressões todas iguais, o mesmo espanto a percorrê-las. A vida que se interrompe por instantes para dar lugar ao início ou ao fim de uma outra. Íntimos momentos de passagem. Violentos. António Cernelha dos Santos perguntou onde era o berçário, deu uns passos em frente e, à esquerda, por detrás do vidro, olhou a fileira de camas de grades brancas, procurando seguir o dedo que apontava um ser como os outros pequeno e inchado debaixo dos cobertores, mas seu, o seu neto. — Abandonar uma coisinha destas… Não sei como é que alguém é capaz de abandonar uma coisinha destas… Ainda mais a mãe, que o pariu… A enfermeira retorcia a boca parecendo saborear cada palavra, cuspindo-a depois e puxando a cabeça para trás em ricochete. O homem não a ouvia. Concentrava-se nos movimentos dos dois braços que pareciam acenar-lhe lá ao fundo, por entre gritos e rostos vermelhos. — Quer pegar-lhe antes de ir preencher os papéis? Respondeu sem pensar: — Sim. — Espere ali, que já lho trago. António estacou em frente da porta indicada, como de castigo, esperando e escondendo a cara de quem passava. Não se lembra já de quanto tempo esperou. Pensou apenas que ninguém o podia ver assim afectado, que não devia ter dito que sim, que tudo aquilo era disparatado, desadequado. Mas depois sorriu e ficou sorrindo até sentir nos braços um ardor quente que respirava lentamente e que, por entre o cobertor branco, descobria dois olhos semicerrados. Procurou-o com os lábios. Cheirou-lhe a nuca e roçou nela a face, ao de leve, sentindo o afago da penugem do cabelo. Rodeou o pequeno corpo com os braços e suportou-o junto ao peito, acertando o bater dos corações. — Não lhe respire para cima. Não vê que a criança só tem dois dias?! Enche-a de micróbios… Como se não bastasse… A enfermeira arrancou-lhe o neto dos braços e voltou a colocá-lo no berço que havia estacionado entreportas. — A mãe mal quis olhar para ele. Já você parece que quer comê-lo. Vá lá à secretaria pôr tudo em ordem e volte cá amanhã. Tem alguém que lhe fique com o menino? Respondeu instintivamente: — Uma vizinha. — Então, traga-a cá amanhã consigo e podem levá-lo. — Como é que se chama? — Quem? Eu? Hesitou antes de responder: — Não. O meu neto. — Que eu saiba, a mãe não lhe pôs nome. Mas depois você logo vê isso. Agora ele já conheceu o avô e está na hora de voltar para dentro. Até amanhã. A enfermeira fechou a porta atrás de si. Ninguém costumava falar-lhe assim, obrigando-o a obedecer. Por estar demasiado perturbado, António não reparou logo nisso. Calou-se, acatou as indicações e partiu com um sorriso nos lábios. Só mais tarde, no regresso a casa na camioneta das cinco, se apercebeu de que a sua alma cedera por fim. E de que a novidade tomara conta do seu rosto. Enquanto olhava as luzes através do rectângulo embaciado do vidro, recordou os dias seguintes à morte da mulhere a mudança que, também nessa altura, havia chegado sem se fazer anunciar, com uma espécie de azia que lhe toldava a vontade e o enchia de raivas e dores que doíam no corpo todo. Os gestos haviam começado a sair-lhe desacertados. Como quando ainda não distinguimos o lado direito do esquerdo e dizemos é para ali e afinal queremos dizer que é para o outro lado e não temos palavras para o fazer. Julgava ser a mão que à noite o acordava em sobressalto, dura, sem pinga de sangue, ele a bater-lhe com a outra mão e ela sem responder, um peso morto a cair na almofada que mais parecia que ele se podia levantar e deixá-la ali, inerte, sem préstimo. E batia-lhe com mais força e lançava-a ao ar e ela respondia aos poucos com um exército de formigas a empurrá-la para a ponta dos dedos, ele a pensar: «Estarei a dormir ou acordado? Eu sou como esta mão que é minha mas deixou de o ser.» De manhã, empunhando a lâmina de barbear, contornava essa cara que entretanto se transformara numa máscara negra, dura de expressão, certa de que nada mudaria nunca. Percebia então que não passava de um conjunto de olhos, boca, nariz, sobrancelhas e orelhas que manobrava como um espelho que se vira para ver a parte de trás do penteado («Está bem assim ou quer que acerte mais um bocadinho?»). Uma cara com uma alma a recheá-la, tão escondida que nem se dá por ela, fica só um risco a fazer de lábios, suspenso no ar, preso por um fio a um nariz afilado e a dois olhos que nos parecem encher o rosto todo, mas que para os outros não são senão dois pontos escondidos debaixo das sobrancelhas. Não era bonito, sabia-o desde o dia em que pela primeira vez, andava aí pelos quinze anos, dissera: «Eu amo-te.» E então apertou-lhe com força os braços gordos nos seus, tenazes franzinas e descoradas a avançar à frente dos lábios espetados, o gesto a imitar a fotografia da caixa dos cromos de cinema na montra da papelaria do largo. E ela ficou parada, com o baton a desbotar e a transformar-se numa só fileira de dentes, enorme, que se contorcia e soltava: «Vamos lá a tomar juízo… Olha já a formiga tem catarro! Paga lá mas é o que me deves e põe-te a andar, ó fedelho!» Nem bonito nem feio, nem burro nem inteligente, sobretudo comum. Banal, dessa banalidade que se espalha pelas multidões como um vírus e nos deixa gritar sozinhos como se fôssemos muitos ou fôssemos um só. Agora, limita-se a aceitar a imagem que todas as manhãs lhe é devolvida pelo espelho: barriga ligeiramente pronunciada, lábios finos, testa pequena tornada grande pelo cabelo ralo dos lados, inexistente no topo. Acompanha impotente a progressiva flacidez da pele, os sinais castanhos a invadirem a palidez cada vez maior do corpo e a sobressaírem como marcos, estandartes da passagem do tempo. A barba, parda, é o único ponto de exclamação no centro da cara. Deixa-a crescer durante uns dias, volta a cortá-la rente, gosta desse jogo de medição de forças, um dos poucos sinais que o corpo lhe dá de que está vivo e reage, apesar da sua fraca vontade. Seguro, seguro, sente-se na oficina, entre os motores dos carros, o óleo, os pneus, os fios e os carburadores. Gosta de se encarregar das lavagens. Perante os outros, assume o gesto como um capricho do qual ninguém o pode desviar, uma obrigação que toma para si como forma de poder e que o deixa cumprir um certo ritual com os clientes. «O seu carro está pronto, sim senhor. Limpinho.» Mas, no fundo, agrada-lhe passar o pano húmido pelos vidros da frente, ver a sujidade a cair, negra, na água do balde, ou a escorrer pelo chão até ao ralo, até que a água da mangueira caia branca, tão branca que lhe lava a alma e o faz imaginar-se a escorrer também, limpo, pelo ralo. Gosta de eliminar a sujidade dos outros, de lhes limpar um pedaço da vida e de impor uma ordem metódica nessa tarefa: primeiro aspirar o interior, depois enxaguar pela parte de cima, limpar as portas, as janelas, os pneus, o chassis e o vidro da frente, sempre por esta ordem, terminando com um jornal amachucado com que puxa brilho aos vidros e aos espelhos. Olha depois a obra, de longe, com a alma descansada. Faz tudo num ritmo apressado, contando os minutos que demora em cada etapa, competindo consigo próprio e, sobretudo, esforçando-se por dar a impressão de que executa a tarefa contrariado e de mau humor. Também gosta de fazer as revisões e de preencher as tabelas de serviço. Ajusta as matrículas, as horas e os nomes numa espécie de concerto genial de tarefas e vontades. Só então sente que possui algum ascendente sobre o mundo e sonha, embevecido consigo próprio, que nada jamais o voltará a surpreender e que ele estará preparado, sim, para qualquer hecatombe porque já a previu antes, já a anotou nas tabelas de serviço, nos mapas do mês, na rota do mundo que desenhou dentro de si. Desde a morte de Maria da Conceição que a sua vida se tornou uma interminável sucessão de cerimoniais. Faz questão disso. De deixar a cama feita e a louça do pequeno-almoço lavada antes de partir para a oficina. De pendurar o casaco no bengaleiro da entrada, mal chega ao fim do dia. De trancar a porta e pousar a chave sobre o naperon da mesinha em frente, ao lado do telefone. De avançar pelo corredor e dar corda ao relógio de cuco puxando as suas longas correntes de metal. De aquecer a sopa na panela de estanho branco e entretanto cortar o pão com a faca de gume rombo. De se sentar no banco mais pequeno depois de trazer o prato para a mesa redonda no centro da cozinha. De demorar as mãos dentro do alguidar de água quente da lavagem da louça. De vestir o pijama depois de tirar o bacio da mesa de cabeceira e de o colocar sobre o tapete. De olhar a imagem de Nossa Senhora de Fátima antes de apagar a luz do candeeiro. De não mover do sítio nenhuma das peças nas quais Maria da Conceição antes tocava. De respirar os cheiros que ela deixou para trás. De manter intocável mas vivo um mundo que sabe que já está morto. Quando tropeçou naquele corpo largado na estrada, António Cernelha dos Santos lembrou-se das galinhas degoladas pela sua avó e dos círculos frenéticos que desenhavam na poeira do quintal até caírem exaustas, exangues. Ficava então a olhá-las de longe, deliciado com a maldade partilhada com os adultos, espectador seguro de que a responsabilidade pelo crime nunca lhe haveria de ser imputada. Ele seria sempre o inocente que apenas assistia, que nada podia fazer para abreviar o sofrimento daqueles seres decapitados que teimavam em denunciar a mão criminosa e em procurá-la mesmo sem olhos. O cheiro azedo do cadáver misturava-se com o odor adocicado da terra molhada. António deixou-se cair na berma da estrada. Ficou sentado com as pernas estendidas, a boca aberta e o coração a galopar no peito. Estranhamente, sentiu-se acompanhado, em paz na companhia daquela massa ensanguentada, daquele corpo sem formas e sem rosto, mas que a chuva contornava com cordões de água limpa, como se o céu o abençoasse e lhe chorasse a morte com cuidado e com ternura. Olhou as nuvens escuras, esticou os braços na sua direcção até sentir os ossos dos ombros estalarem. Sentiu as gotas baterem-lhe nas palmas e correrem-lhe pelos braços. Pela primeira vez desde há muito tempo nem sequer pensou no ridículo do gesto em quem nunca pedira nada nem aos céus nem a ninguém. Julgou que desfalecia e deitou-se ao comprido imitando a forma do corpo inerte e agarrando-se à terra com as mãos. 2 Todas as mortes são violentas. Sobretudo para os que cá ficam. De repente, aquele corpo que conhecemos transforma-se noutra coisa que já não nos pertence, que não conseguimos atingir. A pele adquire uma estranha qualidade de transparência. Torna-se translúcida, como se tivesse sido lavada, esfregada, esticada até ao limite. Evitamos tocar-lhe para que o feitiço não se quebre e limitamo-nos a olhá-la de longe, com uma certa inveja daquela aura limpa que a envolve. Afinal, a morte é como as limpezas de Primavera ou de Outono: organizada e, sobretudo, purificadora. Morre-se e recomeça tudo. Fecha-se um ciclo, abre-se outro. Tal como acontececom os sapatos e as roupas que conservamos durante anos por vergonha de lhes decretar o óbito. Até que um dia ganhamos coragem e nos despedimos deles para na manhã seguinte já nem sequer nos lembrarmos de que alguma vez existiram. É assim também com os mortos. Um caso de gestão do espaço. Uma arrumação. Um alívio. Uma passagem. Há quinze anos que lido com mortos. Que os corto, que os peso, que os viro do avesso para desvendar o seu mistério. Vi corpos de velhos cobertos de crostas de sujo acumulado em anos de desmazelo. Com as unhas tão longas e rijas que pareciam de pedra, como garras que já não conseguiram usar para se defender. Vi corpos electrocutados dentro de banheiras. Corpos com a traqueia corroída por ácidos ou desviada pela força de uma corda. Corpos tão comidos pela água do mar e pelos caranguejos que, por vezes, só pelos dentes se conseguia identificar os seus donos. Vi corpos de crianças violadas com requintes de perversão. Corpos perfurados por balas, rasgados por facas, raspados, arrastados, espancados. Vi corpos, muitos corpos. E todos clamavam por justiça. Achava, antes de os ver com os meus próprios olhos e de os sentir com as minhas próprias mãos, que todos teriam a mesma face da morte que, para mim, era calma e pacífica. Mas não. Vi corpos cujos rostos gritavam o desespero e o sofrimento. Corpos espantados, perturbados, tensos, expectantes. Corpos que apontavam para os vivos e me pediam a mim que os puxasse até eles. Corpos-crisálidas, com as almas arrancadas em fúria. Hoje sei que quando os corto, os peso, os viro do avesso, são eles que me usam, e não o contrário. São eles que me chamam para falarem através de mim. É para isso que os mortos usam os corpos. Oferecem-mos, exibem-nos como prova. Deixam-nos ficar para trás para colocarem um ponto final na sua história. Para partirem vingados, limpos e em paz. Entre nós, costumamos dizer que o corpo já foi levantado pela PSP, pela PJ ou pela GNR. Levantaram-no. Puseram-no de novo entre os vivos, içaram-no da viagem para a morte para que olhasse de novo a vida na vertical, olhos nos olhos, de igual para igual. Somos nós quem os suporta a seguir. Uma mesa metálica, uma serra eléctrica, um bisturi, facas, tesouras, pinças, uma balança e um bloco de notas. Quanto basta. O suficiente para condensar uma vida. Uma autópsia é como um nascimento. Nunca se repete. Tal como nunca se descasca pela segunda vez uma laranja. É por isso que eu gosto disto. Do suor frio quando descubro a tal mancha, o tal rasto, a explicação, a causa. Porque um médico-legista é um caçador de verdades. Porque o corpo de um morto é como um bom romance policial. Vai-nos dando pistas, ocultando outras, sempre mantendo o suspense. Podemos ir direitos à última página, mas isso não vale de nada, o segredo está nas páginas do meio, no caminho por entre os dados, na costura que fazemos deles. Ainda gosto mais quando consigo passar a perna ao juiz, antecipar-me, lixar-lhe os planos, dizer com toda a certeza que não, que afinal não foi nada disso, a autópsia é categórica, o tipo já estava morto quando o arrastaram pelos pés para fora de casa. Não há coisa mais ridícula do que a formalidade da justiça dos vivos baralhada com a inconveniência dos rastos do mortos. Sou eu quem põe a mão na massa. Sei o que digo. É comigo que eles falam. — Fulano disseme que… É assim que começo os meus depoimentos em tribunal. — Os mortos falam? — pergunta o juiz, julgando-se mais esperto do que aquilo em que pensa que me estou a armar. — Falam sim, excelentíssimo senhor doutor juiz. E este disseme que… O sorriso cai-lhe rápido do rosto. Não se brinca com os recados dos mortos, e isso os juízes sabem de cor. Conhecem bem os seus efeitos. Sabem que a autópsia é uma intromissão da ciência na arbitrária justiça dos homens. Que é ela a prova dos nove. «Autós ópsis». Grego. Exame de si próprio. Ver por si mesmo, com os seus próprios olhos, sem intermediários. Ver, ouvir, cheirar, palpar. Usar todos os sentidos com um só fim. Autópsia: uma pequena amostra do julgamento final no qual os católicos continuam a acreditar e que os juízes ironicamente pensam interpretar em vida. A peçazinha na engrenagem, a intrometida verdade que vem ao de cima. O gato escondido com o rabo de fora. Não fica mais nada por contar. Não há como a morte para desbravar a intimidade de alguém. Não que eu seja bisbilhoteiro. Talvez não passe, sim, de um detective frustrado incapaz de solucionar os mistérios dos vivos, demasiado irrequietos, dúbios e incompletos. Eu gosto dos mortos. Dos meus mortos. Daqueles com quem converso enquanto os descasco e lhes peço que me contem as suas circunstâncias. Vou perguntando porquê, quem, onde, como, quando. E eles respondem, nunca se fazem rogados. Renascem à minha frente em peças separadas que eu peso com cuidado. Deixam-se abrir sem um lamento. A vida vai-lhes saindo aos pedaços do corpo e, quando se consuma, leva consigo a voragem da morte. Fica só uma paz que os envolve com suavidade. Uma paz-mortalha. Logo no primeiro dia do curso, deu-me para eles. Para os mortos. Nunca mais me esqueço do olhar de terror daquela outra quando, na praxe, lhe puseram um dedo de plástico no bolso da bata… Ficou branca, faltou-lhe o ar, a rapariga desmaiou logo ali e ficou apagada com toda a gente à volta a rir e a fazer caretas. No meio da confusão, fui eu quem agarrou na 'coisa', eu é que estava mortinho por lhe pegar. Não conhecia em mim essa atracção mórbida, estava à espera de um toque frio e rígido, já começava a sentir um lânguido calafrio na espinha. Fiquei antes com a boca aberta de desilusão quando senti a borracha quente e mole. Já no último ano do curso, fui sozinho até ao Instituto de Medicina Legal para assistir à minha primeira autópsia. Minha? Sim, minha, faz sentido. Porque desde então cada cadáver que vejo é como um espelho que me põem à frente, e que me lança, aos gritos, imobilizado na maca elevatória: «Olha a tua morte. Olha-a de frente porque a seguir és tu. Não tentes fugir. Esquece este sangue e este corpo. O que interessa sou eu. E eu não me esqueço de ninguém. Nem de ti quando chegar a tua hora.» E domino os gestos, calmos, seguros, venço o medo, dobrando-o com o braço de ferro que por vezes faço com o rigor mortis dos corpos. Como todos os medos, confundo-o com uma euforia paralisante que me percorre em vagas quentes da cabeça aos pés, e me excita, me arrasa. Mas no dia da minha estreia, um dia quente de Verão, a luz clara que entrava pelas grandes janelas com velhos caixilhos de madeira incidia sobre a maca tornando ainda mais branco o branco do lençol que envolvia a massa amorfa do cadáver. Eu colei as mãos ao banco corrido onde me sentara. À vista, só um tufo de cabelos numa extremidade. Da outra saem os pés, com uma etiqueta castanha a pender do dedo grande do pé esquerdo. O assistente de autópsias calça as luvas de borracha devagar, com tempo, e, na primeira fila, eu imagino-o como um ilusionista de circo prestes a esticar um pé para a frente, elevar a cartola preta bem alto e, com a outra mão, exibir o objecto impossível. Mas ele limita-se a desdobrar o lençol, a desembrulhar o corpo todo de um homem nos seus sessenta anos, os pés deformados por muitos apertos de mau calçado, a barriga descaída nos lados, as pernas descarnadas, os braços tesos e contraídos num ângulo de noventa graus, os punhos cerrados como os de um jogador de boxe em preliminar de ataque. O assistente segura com uma mão as coxas do cadáver, com a outra as costas, as duas elevam o corpo, empurram-no e fazem- no deslizar até à mesa de mármore. O corpo range como uma tábua velha. O assistente pega-lhe na mão direita e com ela puxa o braço ao longo do corpo, fazendo-o estalar como à casca de um fruto seco. Repete o gesto com a mão esquerda. O corpo cede e fica estendido em frente do médico. É então que eu imagino uma pequena gota de suor que descai da minha testa e transporto-a para a testa do médico e deixo-a cair na cara do morto, como água sobre fogo, vida sobre morte. Limpo-a como lenço. — Nem teve tempo de tirar a camisola interior. Este ficou-se pela hora da morte. O médico ri enquanto agarra no bloco de notas. A piada deve estar gasta, porque o assistente mal esboça um sorriso. Ou está mal disposto. Ou a pensar na vidinha dele. Deve ter tido uma noite má. Ainda não tomou o pequeno-almoço. A mulher deixou- o. Está cheio de dívidas… Agarro-me a todas as especulações idiotas que me ocorrem e tento fingir-me distraído enquanto o assistente corta a camisola branca com as alças repuxadas debaixo dos braços e o médico se debruça para fazer o mesmo com as cuecas amarelecidas na parte da frente. — Ora cá temos mais um… Acidente cardiovascular. Deu-lhe de repente uma dor no peito, tentou despir-se para se sentir melhor. Com certeza caiu redondo ao lado da cama. O que é que diz o relatório? — Provável envenenamento. — Pois, pois… Vamos lá a isto. Durante quinze, vinte, mais minutos, esqueço o que vejo. Concentro-me só no quadro onde vão sendo anotados números, o giz a raspar a ardósia e a manchar-se de vermelho. Um metro e sessenta e quatro. Oitenta quilos. Cérebro: 1250 gramas. Coração: 400. Pulmão esquerdo: 730. Pulmão direito: 650. Fígado: 500. Pâncreas: 100. Baço: 140. Penso só que nunca saberei quais são os meus valores. Que não vou querer que ninguém os conheça por mim. Vou ser cremado. Melhor, incinerado. Isto, se não morrer de morte violenta e não me trouxerem à força para uma sala destas. À força. Sorrio. Antes de o assistente fazer uma incisão na parte de trás da cabeça, de orelha a orelha, e de levantar a pele como uma máscara e de a poisar sobre ele, o rosto deste homem era a imagem da impassibilidade. Parecia morto não há dois dias, mas há anos, há séculos, desde sempre. Parecia já ter nascido assim: morto. Escuto o silêncio, interrompido pelo chiar abafado das botas de plástico, o raspar dos aventais, o tilintar dos instrumentos metálicos e o som da água que escorre agora tinta e espessa. Na mesa de apoio, o vermelho do coração sobre o branco metálico da bandeja e o castanho da madeira não desenha, afinal, senão uma massa de tecido sem formas, indistinta. É para ela que olho. Com um bisturi, o médico secciona-a em fatias finas. Como eu via a minha mãe fazer com as couves para o caldo verde ou com os repolhos ou com os cubos de sangue coagulado para cozinhar cabidela. A imagem dá-me vómitos. Cubro a boca e o nariz com o lenço. — Cá está. Tinha ou não tinha razão? No centro de uma das fatias, um pequeno aglomerado amarelo e cartilaginoso entope uma artéria. Sei-o depois. Bastam alguns milímetros numa destas veias vitais. A morte entra por ali e já não sai. Agarra-se ao coração. Como a mão que a vítima eleva até ele tentando apertá-lo quando a dor a surpreende. Uma dor maligna, mensageira. Saio sem olhar para trás. Não quero ver mais nada. Nem quando, à noite, fecho os olhos e imagino o meu corpo às fatias. Cortado aos pedaços. Da frente para trás. Dos lados. De cima para baixo. Levanto-me a transpirar. Enquanto tomo um duche, percorro o meu corpo, tacteando-o. Observo as veias grossas nas costas das mãos e imagino a vida a correr através delas. Admiro a cor da pele dos braços e os pêlos eriçados com o frio. Vivos. Pareço louco. Rio às gargalhadas e abraço-me. Adormeço a sentir em cada poro a aspereza dos lençóis, vencido pelo cansaço de contrair e descontrair os músculos do rosto. Até pegar a sério no bisturi, vivi durante um ano a exaltação da carne. Construi teses sobre a macroscopia da alma e a microscopia da textura dos tecidos. Passei a comer bifes mal passados. Comprei um coelho no mercado só para o dissecar no lavatório da casa de banho e depois me habituar ao cheiro da sua decomposição. Colei na parte interior das portas do guarda- fatos as imagens mais macabras dos manuais de Tanatologia. Passeei com as namoradas no cemitério e fui discursando sobre a paz dos mortos. Fui um perfeito idiota aterrorizado com a chegada do meu confronto com a morte. Com o tempo, deixei-me disso. A carne tornou-se banal. A minha e a dos mortos. E nessa banalidade habituei-me a distinguir com as pinças da ciência as marcas do desvio, da anormalidade, da falha. Hoje, olho para os meus mortos como mortos. É só. E olho o meu corpo como um caminho que se estreita até eles. Cada vez mais. Devagarinho. Ao ritmo do relógio que, em cima da cama, me embala os sonhos. Tic. Tac. Tic. Tac. Tic. Tac. A vida a esvair-se em compassos binários. Se me disserem que um dos meus mortos já teve uma vida antes, eu respondo que só me interessa aquela que ainda encontro quando o abro. Uma vida que não dura mais de três horas de cortes e sangue. Com poucas personagens e desfecho rápido. Morreu. Mataram-no. É verdade que com cada corpo que me passa pelas mãos tenho uma conversa diferente. Não há duas histórias iguais. Tal como não existem duas ramificações sanguíneas semelhantes. Ou dois cérebros. Ou dois corações. Ou dois sexos. Mas a uni- los descubro sempre a fina membrana que separa a fragilidade dos corpos da brutalidade dos sentimentos. Morremos todos de excesso ou de falta de amor. E morremos sozinhos, de regresso à nossa odiosa singularidade. Morremos todos do coração, acreditem. 3 — Sabes, cada vez gosto menos disto… — De quê? — Destes serviços de rua. Ainda por cima com uma chuva destas… — Isto está feio, está. Está o tempo e estás tu... Nunca mais tratas essa depressãozinha, não? — Que disparate. Estou só a dizer que não gosto de sair do Instituto. Só isso. — Hum… Hum… — A sério. Diz-me lá mas é onde vamos. — Várzea Pequena. Fica para aí a uns vinte quilómetros, mesmo à saída duma terriola chamada Vila d'Água. — Homicídio? — Não disseram. Parece que é um caso chato porque ainda não conseguiram identificar o cadáver. O Xavier estava um bocado aflito quando ligou. — Porquê? — A brigada tem um comandante novo, não sabias? — Não. E então? — Então parece que o tipo é bera e já os pôs todos em sentido. Não quer levantamentos sem nós lá estarmos. Acabou-se a brincadeira. — Mais trabalho, é o que é. Daqui a uns meses passa-lhe a fúria e dá-nos descanso. — Deus te ouça, filho, Deus te ouça. Há quem diga que com a prática, nós, médicos-legistas, adquirimos um olhar deformado do mundo. Tão desapaixonado como a visão invertida de um ginecologista. Tão frio como os corpos que manobramos. A Isabel é a prova categórica do contrário. A Isabel é a mulher mais terra-a-terra que conheço. A mais próxima de um todo-o-terreno. Basta olhar-lhe para o pescoço, largo como o de um touro, ou para as pernas, grossas como troncos, para se entender porque o digo. Não que ela não seja atraente. Nada disso. Possui a irresistível boa disposição dos gordos, que lhe torna a gargalhada fácil e o riso quase involuntário. O corpo, move-o em gestos amplos e elásticos, voluptuosos, tirando partido de cada centímetro da sua gordura roliça. Depois, tem cara de anjo. Os olhos azuis muito límpidos, a pele clara e rosada, uma boca perfeita e curvilínea. Até os caracóis transpiram bom humor. Sustenta-os num desses penteados içados a laca e que parecem acabados de sair do forno. Jamais se despenteia. O ridículo penteado rígido é nela uma antítese da personalidade solta e descomplexada. No dia em que cheguei ao Instituto, logo após a minha transferência, encontrei-a na sala de autópsias no momento em que transportava em bloco para a mesa de apoio todos os órgãos de um cadáver. A primeira imagem que me veio à cabeça foi a de uma cozinheira que se preparava para trinchar uma peça de carne para o jantar. Sorri com gosto em resposta ao seu aceno de boas-vindas. Da equipa, a Isabel continua a ser a única que dispensa os assistentes. Gosta de ser ela própria a cortar os corpos. Adora descascá-los como se fossem amendoins. «Hoje temos amendoins Rokitansky… Alguém é servido?», costuma ironizar, aludindo ao nome deste método de dissecação. Abre primeiro os cadáveres com os clássicos três cortes com a forma de um Y, de cada ombro até à base do externo, na boca do estômago, daí até à zona púbica, contornandoo umbigo. Mas depois de abertas as cavidades torácica e abdominal, retira com um gesto só todos os órgãos do tórax e do abdómen, que ficam assim unidos numa peça única semelhante à raiz de uma árvore ou a um gigantesco tubérculo. Transfere-os para a cuba de aço inoxidável colocada na mesa de apoio, onde antes havia colocado o encéfalo, e debruça-se sobre eles já livre do cadáver. Ao contrário de nós, que optamos pela retirada órgão a órgão, a Isabel não se importa de invadir um corpo e de lhe extrair o miolo de uma só vez. Os mortos dela são puzzles. Charadas de que se ocupa com as mangas da bata arregaçadas, os olhos percorrendo todos os pormenores, o nariz alerta, as pontas dos dedos a indicar o caminho. Enigmas-árvores com frutas que caem todas ao mesmo tempo. Com vísceras tão cheias de mistérios como aquelas nas quais os sacerdotes antigos liam o futuro. Poderíamos por isso pensar que ela é a mais insensível de todos nós. Mas não. A Isabel ainda é capaz de chorar ao olhar para um corpo torturado com especial violência — um homem a quem arrancaram os olhos ou uma mulher a quem cortaram os seios ou em cuja vagina enfiaram um pau. Nós não. Limitamo-nos a falar menos do que é o costume. O sofrimento dos outros não passa de uma ficção em cujo enredo participamos como personagens secundárias. Supomos que, se sofrermos também, violamos as regras da história. Mudamos- lhe o curso. Intrometemo-nos. A isto, a Isabel responderia apenas que são tolices, disparates de quem tem medo de enfrentar o que vê, «idiotices viris». E soltaria uma das suas gargalhadas, cheias no início, estaladas no fim. Há quase um ano que fazemos juntos o turno das noites de segunda-feira. Como habitualmente não há chamadas para o exterior e as autópsias se realizam entre as oito da manhã e as sete da tarde, costumamos passar o tempo a redigir os relatórios. Hoje, o telefone tocou logo às vinte. Se eu soubesse conduzir, com certeza teria vindo sozinho. Ou estaria agora a aturar o inspector da PJ responsável pelo caso. Acordo com um solavanco maior do carro, cujo balançar desde há uns minutos me embalava num sono leve. — Ainda bem que acordaste. Isto parece um circo. A Isabel estacionava já num terreno baldio à entrada de uma ponte iluminada pelos faróis de uma ambulância e de três carros-patrulha da Polícia. A chuva parara, mas a terra continuava ensopada. Notei-o mal saí do carro e enfiei o pé numa poça. — Merda. Ainda sacudia o sapato encharcado quando se aproximou o inspector Teixeira. Conhecia-o de outras andanças e não gostava nada do seu ar gelatinosamente prestável. Para mais, tinha um aperto de mão mole e escorregadio e eu acho que não há pior cartão de visita para uma pessoa. — Boa noite! Estávamos à vossa espera. Ainda bem que deram rapidamente com isto. — Inspector Teixeira. A doutora Isabel Moutinho. — Muito prazer. — É todo meu. — Onde está o corpo? — Ali à frente. Chamada anónima. Não temos testemunhas. — Hum… Hum… — comentou a Isabel, afastando-o do caminho, abrindo o guarda-chuva e avançando na direcção das luzes. Quatro agentes, dois inspectores e dois paramédicos. O caso deve ser mesmo feio. Deixo-me ficar para trás e acendo a lanterna que costumo trazer na pasta. O céu está tão nublado que mal se distingue a Lua, ainda bastante baixa, em quarto minguante. As árvores estão tão pesadas com a chuva que parecem querer deitar-se ao chão. No asfalto correm linhas de água que se abatem da ponte sobre o riacho em baixo. Isto é bonito. Não fora o frio que nos morde os ossos e a lama que se cola às solas dos sapatos e seria um bom sítio para se morrer. Afastado do mundo e bucólico q.b. A Isabel trouxe o gravador e eu vim munido com o meu bloco de notas e as minhas luvas de borracha. O cadáver está tapado com um plástico amarelo, metade sobre a berma de pedra do passeio, a outra sobre o alcatrão. É sempre assim que fazemos. Começamos pelo exame do hábito externo. Ou começaríamos. Porque, quando a Isabel se inclina e levanta o plástico, recuamos os dois com a surpresa. Embora mantenha a forma de um corpo humano, o que vemos iluminado pelos faróis dos carros não passa de uma estranha massa de órgãos, veias, músculos e ossos. Aproximamo-nos. Dir-se-ia que a pele foi rebatida. O rebatimento cutâneo é uma técnica que, em casos raros, usamos para «desenluvar» os corpos. Esfolá-los, em linguagem corrente. Nas zonas que vão ficar expostas no caixão, e se a família é especialmente picuinhas com o aspecto do cadáver, levantamos a pele como se fosse uma máscara, trabalhamos o interior e voltamos depois a cosê-la. Assim como os ovos que se esvaziam na Páscoa para depois encher com chocolate ou apenas decorar a casca. Ou como os coelhos presos pelas patas e de focinho para baixo quando se lhes arranca a pele com um só esticão. A Isabel calça as luvas e acocora-se ao lado do corpo. Não olha para mim. Com o gravador seguro na mão esquerda e quase colado à boca, começa o exame. — Não há vestígios de roupa. O cadáver está deitado de bruços, com a face para baixo, os braços estendidos, os pés atados um ao outro por quatro voltas de corda de nylon branca… Na nuca são perceptíveis vários tufos de fios de cabelo. Estes são compridos, o que faz supor tratar-se de um indivíduo do sexo feminino. É impossível determinar a idade ou o peso prováveis. Do nível das coxas até às omoplatas e nos braços, a pele terá sido arrancada com violência, talvez por efeito de tracção contra uma superfície dura, e apresenta-se agora em farrapos dispersos, ligados ao corpo por pequenos filamentos. São visíveis a coluna vertebral e os ossos do recto e da bacia, bem como os músculos posteriores do tronco, dos braços e das pernas. A exposição à água da chuva apagou os traços de sangue… Embora já tenha visto algumas vítimas de arrastamento, percorro o meu arquivo mental e não encontro nenhuma como esta. Não me espanta a inusitada extensão e profundidade das feridas ou sequer a violência que pressupõem. Percorre-me antes a insólita sensação de que há algo familiar em tudo isto. Demoro uns minutos a perceber. Que este corpo se parece com os outros, muitos, depois de me passarem pelas mãos. Que seria concebível imaginar que foi arrancado de uma mesa de autópsias antes de o trabalho estar terminado. Esventrado, devassado como os corpos aos quais rapamos primeiro o recheio e cosemos depois o invólucro para disfarçar a invasão. Por regra, evito assistir ao trabalho dos colegas. Porque sei que sou um desses espectadores ingénuos que só se identificam com o herói. E, numa autópsia, o herói é sempre o morto. E o médico o carrasco. Os mortos têm sempre razão. Quanto mais não seja porque têm a última palavra. É para lha extorquir que nós trabalhamos. Às vezes, não nos querem dizer nada. Não que se façam rogados, já o disse. São mais casmurros que outros, só isso. Mas nós temos os corpos deles e isso basta-nos. Escavamo-los até encontrarmos o que queremos. Pagamos-lhes com o mesmo cinismo. Não se encontra o projéctil e a máquina de raios X está ocupada? OK. Faz-se «picado» do cadáver. Fura-se, pica-se até dar com alguma coisa. Transformado num passador, não há morto que não deixe escapar um segredo. É por conhecer bem o lado de cá que eu não gosto de me pôr do lado de lá, no lugar do morto. Porque sei que depois só me resta enfiar a carapuça de carrasco. E ter pena dele e de mim próprio, em iguais proporções. Neste caso, adivinhamos o sofrimento. Está ali, latente como uma brisa que envolve este corpo largado na estrada com a pele arrancada e os órgãos à mostra. Virado do avesso. É a única expressão que me ocorre. Um corpo virado do avesso. Podia ter sido eu a deixá-lo neste estado. Podia ser eu o criminoso. A ideia não me sai da cabeça. Agrada-me o tremor que ela me traz às mãos. Este é um dos meus mortos. Eu pertenço a esta história. A Isabel carrega na tecla STOP do gravador e faz-me sinal para virarmos o cadáver. Calço as luvas, depois de guardar o bloco e a lanterna no bolso da gabardina. Antes, passo a mão pelo cabelo encharcado pelachuva miudinha que voltou a cair desde há uns minutos. Sinto-me febril. Quente por dentro, gelado por fora. Desequilibro-me quanto tento agachar-me e poiso o joelho esquerdo no chão. A água atravessa a calça de ganga e empapa-a até aos sapatos. Não me importo. Sento-me de joelhos e com os braços agarro o corpo pelos ombros e pela nuca e viro-o de face voltada para mim. A Isabel ajuda com uma mão sob a cintura, outra sob as pernas. Quando terminamos o esforço, a parte superior do cadáver está no meu colo. Antes de depositar o corpo sobre o saco de plástico cinzento, observo o rosto. As sobrancelhas são o que resta da expressão. E digo, este é um rosto abandonado. Habito-o com estas duas linhas finas, negras e de arco quase perfeito e com as escuras cavidades destes olhos. Deixam-me imaginar o nariz, ligeiramente arrebitado, as maçãs do rosto salientes, a boca agora inchada, mas antes pequena e delicada. Conheço a forma dos ossos. — É uma mulher… A Isabel olha-me por detrás das lágrimas que lhe escondem os olhos. Seca-as com um gesto brusco e levanta-se. Caminha até aos outros, que entretanto se agruparam em volta de um dos carros-patrulha. A meio do trajecto, procura qualquer coisa no bolso, tira um maço de tabaco e o isqueiro, acende um cigarro e cobre a cabeça com o capuz da gabardina. — Aqui não há mais nada a fazer. Com esta chuva, o exame do local é praticamente inconclusivo. É melhor levarem o corpo já para o Instituto. O resto vê-se na autópsia. Boa noite. Corro o fecho-éclair do saco e fica nele guardado o corpo. Como num casulo. Sossega, renascerás amanhã, longe de tudo isto. Apanho o guarda-chuva que a Isabel deixou esquecido. O cabo é de madeira estriada. Agarro-o com força, moldo nele a minha mão. Vou enfiando a ponta de metal nos buracos entre as pedras do passeio ou com ele raspando o alcatrão, até chegar ao muro do lado oposto da ponte. Olho a água que corre em baixo e, no escuro da noite, vejo-a porque a oiço bater nas pedras das margens. Um som tranquilo. Como aquele rosto. Viro-me porque o Inspector Teixeira me toca no ombro com a mão. Agride-me a luz dos faróis dos dois carros-patrulha que agora se afastam. — Têm-no lá daqui a bocadinho. Termino o auto e deixo-o seguir. Vai ser um caso bicudo, digo-lho eu. A gente vai-se mantendo em contacto… Estou a ver que hoje não chegamos a lado nenhum. — Faz uma pausa curta, para deixar que o silêncio confirme ou desminta a afirmação. Desiste. — Segue com a sua colega ou quer boleia? — Não, não… Vou com ela, obrigado. — Então, até amanhã, se Deus quiser. — Boa noite. Até amanhã. Se Deus quiser. Ainda sorrio quando entro no carro e aperto o cinto, depois de arrumar na pasta a lanterna, o bloco de notas e as luvas. A Isabel sopra uma última nuvem de fumo na direcção da frincha da janela aberta e apaga mais um cigarro no cinzeiro. — Já está. Por hoje já está. Engata a mudança e entra na estrada. Seguimos calados. São vinte e três horas e quarenta e dois minutos. Vejo-o no relógio do tablier. A Isabel liga o rádio. «Rômântica Efi Émi… À istação du córáçãu…» Uma pausa de dois segundos. E a canção. «Eu não quiria máguá vôcê…» Começamos a descomprimir. A Isabel esboça um sorriso e ajeita o cabelo com a mão direita, como se o amparasse. Eu ajeito a minha pasta entre as pernas. O chauffage seca-me as calças. Seguimos concentrados no disparate das letras das músicas que se seguem umas às outras, sem interrupções. Voltou a chover com força e eu dedico-me a um exercício antigo: imaginar que um limpa pára-brisas persegue o outro para sujar aquilo que ele acabou de limpar. Um. Dois. Um. Dois. Uma luta incessante, extenuante. As gotas unem-se desesperadamente e, já grossas, fogem desorientadas. Não querem participar na batalha. Quando entramos no parque do Instituto, a Isabel desliga o rádio. Acende outro cigarro. E olha-me. — Preferia que a autópsia ficasse para ti. Importas-te? — Não, fica descansada. — Fez-me impressão o estado dela. — A mim também. — Não é teu hábito comoveres-te… Também tenho as minhas fraquezas. — Sorrio. — Ou se calhar estou só deprimido. — Deve ser. Ainda ficas? — É melhor ir-me deitar. Quero começar logo cedo. — Chamas um táxi? — Vou a pé. — E a chuva? — Só molha os parvos. — Que engraçadinho… Então, até amanhã. Descansa bem. — Obrigado. Sigo carregando a pasta, a outra mão no bolso das calças. Moro perto. Não levo mais de meia hora a estar na cama, com o pijama vestido, os dentes lavados e inspeccionados com o fio dental. Adormeço a especular se alguém pode ser belo e repugnante ao mesmo tempo. Belo de tão repugnante. Ou repugnante de tão belo? 4 Despe-se devagar diante do espelho. Deixa ficar só o colar de pérolas e a cinta. Com o tempo e o contacto com o suor do pescoço, as pérolas soltam lascas amarelas e mostram o interior de plástico transparente, contas pobres de brilho descascado. Servem bem para serem olhadas de longe e emoldurar os dois ossos das clavículas, bem à frente, os únicos de que verdadeiramente gosta, acariciando-os com o indicador enquanto puxa o colar com o polegar, sentindo-se elegante e desejada, dois dos muitos atributos que supõe jamais lhe pertencerem. É incapaz de sair à rua sem cinta, beige com pespontos brancos ou azul-escura, consoante as roupas que veste por cima. Sem cinta, sente-se nua, as carnes descaídas e devassadas pelo olhar dos outros, de repente capaz de ver à transparência e de lhe descobrir todos os pormenores errados das formas. O seu falecido pai gostava de dizer, enquanto ria e deitava a cabeça para trás com o impulso do riso: «Mulher sem cinta, navio sem leme!» E desde pequena ela acha que a expressão corresponde ao pior insulto que se pode dirigir a uma mulher, pior do que chamar-lhe vadia ou puta, ou vaca, ou cabra, ou filha da mãe, tudo nomes que não querem dizer nada porque são ocos, sem vida, sem movimento, enquanto é fácil imaginar um navio sem leme, à deriva, sem saber para onde ir, a parar em todos os portos e a deixar entrar e sair quem quiser, um pedaço de madeira a boiar na água e a apodrecer. Puxa a cinta para baixo agarrada às cuecas e deixa-as cair juntas no chão. Olha primeiro os pêlos, é tão raro ver-se assim. À noite, costuma despir-se sentada na borda da cama e depois é só preciso enfiar a camisola de dormir e partir para o bidé, onde a enrola à frente, tapando o sexo, enquanto o lava com a outra mão, a esquerda, e o limpa rapidamente. Esfrega os pés sentada no tampo da sanita e, às vezes, quando levanta um para não pingar o chão, trocando-o por outro debaixo da torneira, vê um pouco do tufo negro dos pêlos, mas são apenas uns segundos e faz por não pensar nisso. Desta vez, vê-o de frente no espelho longo da porta do guarda-fatos, a desenhar um triângulo ralo que parece diluir-se pouco abaixo da primeira linha de gordura, desse traço fino que se arredonda até ao umbigo. A medo, acaricia a orla do púbis e sente a rigidez dos pêlos e uma leve comichão, que faz na pele como que uma corrente a puxar os dedos mais para baixo. Sente-se corar, afogueada. Como se alguém a fosse apanhar a fazer uma asneira de criança. Recolhe a mão até ao ombro, escondendo o peito, e coloca outra sobre o sexo. Olha-se de novo e deixa escorregar a mão direita até ao umbigo. Vira-se de lado, observa os seios descaídos, riscados por traços vermelhos, os mamilos castanhos rodeados por uns quantos pêlos negros, compridos e encaracolados, a pele a tornar-se mais clara até ao pescoço e a cair em círculos debaixo dos braços, como um cortinado, macia de tão flácida. Por fim, observa-se de costas. As nádegas cavadas por pequenas covas, as coxas marcadas por veias azuis, grossas e latejantes. Anos e anos a pedalar nas máquinas de costura deformaram-lhe as barrigas das pernas, agora salientes e musculadas como se a ordem tivesse sido trocada e as coxas descido até aos tornozelos. Acaricia-as sentindo a macieza da mão contra a dureza do músculo. «Quanto trabalho está aqui neste pedaço de perna?!» Precisou de quarenta e oito anos para saber que temum corpo. Senti-lo, tê-lo, olhá-lo de frente. Quer acreditar que antes não teve tempo para nada disso, que havia sempre qualquer outra coisa que a prendia ou alguém cujos olhos recriminadores temia poderem atravessar até a porta da casa de banho. Cora ao lembrar-se do pedaço de papel higiénico que costuma enfiar no buraco da fechadura das casas de banho públicas, não vá alguém espreitar, não vá ter ela de enfrentar esse olho só, sem corpo, sem cara, a espiá-la, a julgá-la. Mas agora não, agora está sozinha como nunca antes o esteve. E a solidão tomou a forma do seu corpo. Está ali, entre os seus dedos, perante os seus olhos, e ela já não lhe consegue escapar. Caminha até à cómoda, abre a caixa de porcelana branca com a tampa de flores em relevo e tira um dos batons, o mais recente, «último grito da moda rosa choque». Inclinada sobre o espelho, contorna os lábios com firmeza e passa sobre eles a língua, apertando-os depois entre os dentes para espalhar o gosto a cera e esbater a cor demasiado evidente. Com as mãos largadas ao longo do tronco, fica a olhar-se em silêncio. Pensa que chora por dentro, apenas por dentro, porque as lágrimas não saem e ficam somente os cantos dos lábios a contorcer-se para baixo. Esconde-os com as duas mãos e agarra o grito. Um só. O único. Antes de voltar a abrir os olhos, horas depois, Alda enrolou-se no odor seco e enjoativo do tapete e um pouco mais sobre si própria. Havia dois meses que Jacinto partira. De repente, a despensa esvaziara-se. Os primeiros sinais da ausência do marido chegaram com a falta do pão fresco que todas as manhãs, antes de sair para a fábrica, ela comprava para acompanhar o café com leite dele, depois com a falta da manteiga que nos primeiros dias ela ainda passava sobre as bolachas Maria antes de se deitar. As hortaliças apodreceram nos andares inferiores do frigorífico, a fruta decompôs-se no cesto sobre a mesa da sala de jantar e uma multidão de pequenos insectos negros surgiu do nada em nuvens que se levantavam ao mais leve movimento nas proximidades. No lava-loiças, acumularam-se os pires e as facas, despojos das pequenas refeições que ela comia apenas para enganar as tonturas ou as picadas fundas que de vez em quando lhe atingiam o estômago: uma lata de atum, um pedaço de queijo seco, marmelada, bolachas, um ovo em gemada, leite, massa crua. Àquela hora, aos domingos e em tardes de Inverno como esta, a casa mergulhava numa luminosidade parda, como se uma aura de pó cinzento envolvesse os objectos e lhes dissolvesse os contornos. Sem se mexer, Alda mediu mentalmente cada compartimento, avaliou cada volume, cada forma, recuperando a paz que a invadia aos fins-de-semana quando, depois de lavar e limpar a loiça, se sentava no sofá com a manta aos quadrados azuis sobre as pernas e ficava a escutar os sons e os silêncios da casa e a deixar-se levar por uma dormência de abraço sonolento e apaziguador. Jacinto andaria então pelo café, em conversa com conhecidos de circunstância, ostentando o seu ar de superioridade ofendida ou de condescendência magnânime, tentando encontrar as deixas e as respostas mais inteligentes e definitivas. Alda conseguia vê-lo, puxando com vagar o fumo do cigarro preso entre os dedos da mão esquerda e elevando o olhar até um ponto distante. — O tempo o dirá... O tempo o dirá... — Jacinto gosta de responder quando se trata de especulações sobre o desenlace dos escândalos políticos ou financeiros da semana — Gente de bem é sempre gente de bem, não se confunde com gentinha. E os outros, calados, a remoerem complexos antigos e a suspeitarem verdades enigmáticas em frases que não entendem muito bem. Jacinto nasceu filho único dos caseiros da casa grande da Quinta da Estrela, vinte hectares a poucos quilómetros de Tomar, abandonados pela família Condes durante todo o ano à excepção do mês de Setembro quando chegavam para fugir dos últimos calores de Lisboa e assistir às vindimas. Habituou-se desde pequeno a fantasiar que era dono daquilo tudo, até mesmo dos quartos fechados à chave e dos seus enormes armários de madeiras nobres, a abarrotar de calças de montar, casacos com abas de grilo e vestidos de baile comidos pelas traças, sapatos de cetim cambados e caixas repletas de fotografias e velhas fitas para o cabelo. Deitado no pomar, a olhar o céu e os reflexos do sol através das ramadas, imaginava-se filho varão de família rica que os pais, por desvelo democrático, haviam optado por educar como um cidadão comum, deixando-o a cargo de um camponês bronco, de unhas sempre sujas e prontas a esconder atrás das costas quando se curvava perante o patrão («Então fizeram boa viagenzinha desde Lisboa?», «A casa está num brinquinho») e de uma pobre coitada com bom coração, mas cujo melhor petisco seriam sempre torresmos com migas. Jacinto aguentou tudo. As tareias de cinto por cuspir a nata do leite ou deixar na borda do prato as côdeas duras do pão ou os ossos mal roídos. Os castigos por fugir aos trabalhos no campo e antes se isolar na sala de fumo, sentado no cadeirão verde, com um cachimbo apagado na boca e a mão direita a pontuar discursos às massas. Aguentou tudo porque supôs que, um dia, lhe iriam contar a verdade sobre a sua ascendência e louvar-lhe a resistência aos hábitos mais rudes e a nobreza a toda a prova. Um dia, também ele seria sujeito ao teste dos colchões e da ervilha, e acordaria cheio de dores nas costas, para gaúdio geral e infinito alívio individual. Mas o tempo passou e, quando teve de deixar a escola no final do sexto ano («Doutores há muitos, mas não nascem batatas sem se pegar na enxada e ficar com os dedos cheios de bolhas, essa é que é essa. O meu filho não é para ser um maricas de caneta na mão e ar de parvo que tem a mania que sabe tudo e acha que já pode mandar vir com o pai…»), convenceu-se de vez de que, por mais democrática que fosse a sua verdadeira família, se ela existisse, de certeza não o faria passar por tamanha humilhação. A partir daí, preferiu imaginar-se órfão. Aos dezasseis anos, tomou a decisão: partir para Lisboa no comboio das sete da tarde com o fato azul completo que a mãe lhe comprara para servir à mesa no casamento do filho do patrão, que aconteceria no mês seguinte, lá na Quinta («Tomás, o menino não vê que as pessoas estão fartas de Lisboa, basta pedir à Estefânia que arranje umas mulheres para limparem isto, abre-se o salão, areiam-se as pratas, também não há-de ser assim tanta gente, a família da Amelinha é pequena, só devem vir as tias velhas do Norte, faz-se a festa aqui, que é uma piroseira estar a alugar um espaço em Cascais»). Jacinto nem olhou para trás quando passou o portão. «Nunca mais cá ponho os pés. E se puser, é para comprar isto tudo só pelo gostinho de o ver a cair aos bocados. Raios os partam...» Encheu a velha pasta de cabedal preta com o estojo das colheres de prata que há anos cobiçava na gaveta do fundo de uma das cristaleiras da cozinha, bem por detrás da toalha grande de renda de bilros amarelada pelo mofo e pela falta de uso. «É parte da minha herança, que eu bem a mereço. É até bom que dêem pela falta dele, para verem que eu sei aquilo a que tenho direito, não me contento com as raspas de um prato de arroz doce já encetado pelos senhores, ai não, hei-de comer uma terrina toda cheia dele e há-de ser com uma colher destas que até me vai saber a céu.» Enquanto descia a estrada até à estação, ia cheio de pena de àquela hora estarem todos a jantar e de ninguém o ver para depois contar aos outros como ele partira com ar decidido à conquista da fama e da fortuna merecidas. À chegada a Santa Apolónia, não hesitou em demorar-se no café da estação, em frente de um prato de caldo verde, depois de uma sanduiche de presunto bem aviada, tudo envolvido com um copo de vinho verde e rematado por umas moedas largadas sobre o balcão («Guarde o troco. Boas noites.») Só depois Jacinto olhou a solidão deserta das luzes da cidade e mergulhou nela com a pasta de cabedal por única bússola, as ruas a passarem por ele e ele sem as ver, ia cego de liberdadee só gritava para dentro: «Amanhã hei-de conquistar isto tudo, há-de ser tudo meu.» Parou à frente da tabuleta tombada da Pensão Rosália, Águas Correntes Quentes e Frias, entrou, pagou avançado ao velho de camisola interior e lábios tão gretados que pareciam de cortiça («Aqui, paga-se todos os dias até às nove da manhã se é para voltar a dormir à noite. Senão, vai tudo pela janela fora e chama-se a guarda que é uma beleza.»). E atirou-se sobre a cama de molas gastas, desmaiado pela excitação. Os dias seguintes passou-os à procura de emprego pelas portas das lojas da Baixa até ser atendido na Sapataria Moderna, «O Sr. Martins fala já consigo». E o outro a elogiar-lhe o sexto ano de escolaridade e ele a mentir, que sabia escrever à máquina, então não havia de saber, e «Passe por cá amanhã que eu levo-o até à Caixa que é capaz de haver lá trabalho para si». Depois, era só sentar-se à secretária e calcular pensões e reformas e dactilografá-las só com um dedo por baixo da chancela da Caixa de Abono de Família do Pessoal da Indústria do Calçado, o Costa a gabar-lhe o empenho sem saber que era só a ambição a disfarçar o mau jeito e a má vontade. O Costa a vaticinar junto dos colegas com ar de quem conhece os segredos do futuro: «Jeitoso de mais para auxiliar de escrita. O rapaz tem cabeça. Qualquer dia está a mandar em nós.» Alda recorda a história, repetidamente contada por ele, enquanto olha a fotografia do casamento pousada sobre a cómoda. Ela com um vestido longo com gola e punhos de renda, cingido na cintura, o véu a tapar-lhe metade do rosto, preso sobre a franja com três rosas de tecido. Ele com a ponta de um lenço branco a sair-lhe do bolso do peito do casaco, o braço direito suportando o braço dela, a mão esquerda no bolso das calças. Ela sorrindo. Ele com o rosto fechado, em pose altiva, os lábios finos cerrados, desenhando uma linha só, o azul muito claro dos olhos, frio, aguado, quase os apagando não fora o negro da pupila... Recorda também a surpresa dos seus pais quando Jacinto lhes comunicou que não pretendia convidar a família para a cerimónia ou para a boda, bastavam-lhe dois colegas da Tesouraria que poderiam, aliás, servir de testemunhas. Filha única, Alda faria vinte e dois anos no mês seguinte, era tímida e não especialmente bonita. Passava os dias em casa, ajudando a mãe nas costuras. Raramente saía à rua e, até mesmo nas noites quentes de Verão, quando o pai regressava mais tarde do campo e a mãe a incentivava a saírem juntas até ao largo e apanharem ar fresco, recusava, desculpando-se com a louça para lavar, a Modas e Bordados para ler ou a colcha de crochet para acabar. «Assim não há ninguém que te pegue, rapariga!», pressagiava a mãe, enquanto desfiava o rosário das mulheres da família que haviam ficado para tias. «Olha a prima Clementina… Morreu sozinha em casa e só quando cheirou mal é que as vizinhas deram por ela… E a Tinita? Já vai nos cinquenta e nunca soube o que era ter um homem em casa… Valha-te Deus, filha!» Foi por isso que, três meses antes do casamento, quando Jacinto foi lá a casa pedir a mão dela, o pai abriu a garrafa de aguardente velha que guardava religiosamente na prateleira de cima do aparador da sala e bebeu três cálices de seguida, estalando a língua e exclamando: «É desta que a moça desemburra!» Aos vinte e nove anos, Jacinto era já proposto a tesoureiro da Fazenda Pública, o que, numa vila pequena como aquela, onde ele fora colocado por concurso público, correspondia a um cargo e a um futuro de respeito. Não faltaria muito para que chegasse a chefe da Tesouraria, substituindo o quase-reformado senhor Ribeiro na cobrança das contribuições prediais e no contacto directo com os donos das propriedades que empregavam a maior parte da população. Passaria então a ser o senhor Ramos da Tesouraria, uma das figuras mais notáveis da terra. E seria também o genro do Manel Silva... Como Jacinto se enamorou de Alda foi coisa que a mãe dela nunca chegou a perceber. Pois se a moça mal saía de casa… Alda recorda o caminho até à retrosaria do senhor Capelo, o coração aos pinotes dentro do peito, quase a explodir quando lá chegava e, à porta, antes de entrar, lançava um olhar furtivo para a janela do prédio em frente, o da Tesouraria, de onde Jacinto a observava. Poderia a mãe desconfiar da repentina necessidade de mais colchetes, presilhas, fitas de nastro e agulhas! Durante a boda, na Casa dos Leitões, Jacinto segurou-lhe na mão e beijou-a outra vez na boca, um beijo leve que a fez corar. À noite, no escuro, ela guardou os olhos abertos quando o peso do corpo dele se abateu sobre o seu. Agarrou com as duas mãos o lençol de linho e susteve a respiração. Não queria que nem um som se soltasse da boca, que nem um gesto o impedisse de tomar conta do que era agora dele. Entregou-lhe sem um grito esse ponto distante dentro de si, até aí desconhecido, um fogo que ardia e lhe mordia a carne, e que ia e vinha em ondas fundas, alfinetadas de dor, e que, depois, se contraiu, húmido, alagado, e, de novo, se tornou distante, incerto, confundindo-se com o ardor que lhe tomou o peito e o fez arquejar sem som. Para Alda, Jacinto passou a ser também esse ponto distante que, à noite, de tempos em tempos, se acendia no escuro, para em seguida se apagar ao seu lado, com a respiração ruidosa e ofegante. Um ano depois do casamento, Alda confessou à mãe que já ia para dois meses que não lhe vinham as regras. O médico do hospital da cidade confirmou a notícia que, no dia seguinte, Jacinto recebeu com um orgulho e uma euforia disfarçados pela indiferença com que habitualmente escutava a mulher. Naquele ano, o Verão chegara especialmente quente e abafado. A barriga ia crescendo. Alda amparava-lhe o peso com um andar pesado e passava a maior parte dos dias sentada a preparar o enxoval. Jacinto tocava nela, à noite, supondo que Alda estava já adormecida. No quarto mês, os enjoos tornaram-se mais fortes e uma moinha aguçada instalou-se-lhe no ventre, apertando-o e torturando- o. Nisso Jacinto não reparou. Alda revê-se agora diante da mãe, a frase cortada por soluços: «Acordámos os dois alagados em sangue, com uma bola aos pés.» Jacinto olhou-a com desprezo quando ela explicou o que entendera das palavras do médico: «Foi uma gravidez fora do vaso, Jacinto. O doutor disse que não havia nada a fazer. Eu não tive culpa.» O enxoval regressou à arca, para não mais voltar a sair de lá. Alda esperou quase um ano até as regras voltarem a manchar as toalhas que ela escondia de Jacinto, esfregando-as com lixívia. As noites passaram a ser só escuras. Após ascender à categoria de tesoureiro, Jacinto pediu transferência para uma das Tesourarias da cidade. A mudança, assim como a chegada do 25 de Abril e consequente reorganização da função pública, fizeram-no perder o estatuto social e financeiro que sonhara atingir. Por isso, Jacinto não se opôs quando Alda decidiu empregar-se numa fábrica de pronto-a- vestir. A vida dos dois rapidamente se transformou numa monótona rotina de papéis timbrados, presilhas e fechos de correr. Vinte e seis anos de casamento. Alda rememora cada momento e sente a solidão a invadi-la. Um ardor novo ocupa o seu corpo. Esvazia-o. Ela preenche-o com a memória do corpo de Jacinto, deitado na cama, junto do seu, mas mais distante do que nunca. 5 «Este é o corpo de um indivíduo branco do sexo feminino, bem constituído, um metro e setenta de altura e o peso aproximado de sessenta e cinco quilos. Está nu.» Costumo passar pela padaria antes de vir para o Instituto. Gosto de trazer comigo o cheiro das carcaças quentes e da farinha. Gosto também de comprar uma argola polvilhada de açúcar e envolta em papel pardo de merceeiro e de a comer a meio da manhã. Quase às escondidas. Lembra-me as manhãs da minha infância. Gosto do aconchego do açúcar e da macieza da massa a dissolver-se na boca. Prefiro manter quase secreto o meu hábito. Tão clandestino como as minhas viagens à cozinha na hora da sesta, noutros tempos e com outra idade. Temo que alguém me destrua estefarrapo de memória com um comentário despropositado. Eu sei que as memórias são cristais frágeis que mantemos durante toda a vida em equilíbrio instável. Como se suspeitássemos o deslize final, quando tropeçamos nelas e somos obrigados a apanhar os cacos. Guardamos as verdadeiras memórias de uma situação, de um rosto, de um corpo, de um tique, de uma expressão, de um gesto, de um sabor, de uma frase. Por quanto tempo? O que ainda lembramos mistura-se lentamente com aquilo que supomos lembrar. Transformamos as memórias em ficções. Deformamo-las, limando com cuidado os seus contornos. Fica só um rasto da realidade que completamos com a imaginação. E sentimo-nos satisfeitos, felizes, pacificados. Até ao momento em que, por um acaso, somos obrigados a abrir as gavetas que supúnhamos arrumadas com zelo. A desempoeirar as prateleiras. E nada está onde julgávamos ir encontrá-lo. Que inocência! Acreditávamos mesmo ter guardado ali um sentimento, aqui uma sensação, ali uma impressão. E nada está no seu sítio. É por isso que mantenho e acarinho o meu gosto pela argola polvilhada de açúcar que como quase todas as manhãs. Porque o seu sabor se mantém igual, imperturbável com o passar dos anos. Aquele sabor é um valor seguro, uma cotação da verdade na minha história. E isso não tem preço. Acharão com certeza ridículo que um homem feito mantenha hábitos de criança. Pois seja. Há muito que aprendi que é em pequenos gestos repartidos por cada dia que nos mantemos inteiros. Que evitamos desfazer-nos em pedaços, estraçalharmo- nos, dissolvermo-nos em enganos. E aprendemos a amar os vivos. Já bem me basta de mortos. Preciso de sentir que estou vivo. Vivo-vivo. Não vivo-morto como vejo muitos à minha volta. Gente que já morreu e nem sequer deu por isso. Que se deixou morrer aos poucos, bocadinho por bocadinho. Que se esvaziou de vontade e de esperança. E que, hoje, olha o futuro como uma sucessão do presente, sem sobressaltos, contínua. Alimentada apenas por farrapos de memórias. Farrapos-ficções. A esses respeito-os menos do que aos meus mortos, que me passam pelas mãos já sem ilusões. A esses só uma autópsia realizada em vida os poderia salvar. E essas eu não faço. Alguém me disse uma vez que a morte é um parto de si mesmo. Uma consumação, uma onda que nos varre até ao cabo de nós mesmos, ao fundo da nossa história, ali onde encerrámos os mistérios. Se não formos nós a cumprir a tarefa, encarregam-se os outros dela. Não há como fugir. Agrada-me pensar que, em parte, essa é também a minha função. Servir de obstetra para que os meus mortos se transformem de matéria em espírito. Ajudá-los a libertarem-se e a nascerem de novo. Com as memórias definitivamente empacotadas. Caso encerrado. Desta vez, começo assim: «Este é o corpo de um indivíduo branco do sexo feminino, bem constituído, um metro e setenta de altura e o peso aproximado de sessenta e cinco quilos. Está nu.» Deixei o saco com a argola no meu cacifo. A noite passada dormi mal. A mim, as noites mal dormidas deixam-me como as ressacas: nublado. Para começar a carburar, preciso de dois cafés tirados na máquina da entrada. O dia vai ser longo. Às nove horas e quinze minutos, entro na sala de autópsias. Carlos, o assistente, tem o corpo já preparado, em decúbito dorsal, a cabeça levantada por meio de um suporte duro colocado sob a nuca. Diz: — Nunca vi nada assim. Parece que lhe passou um tractor por cima… Não me apetece ouvi-lo. Dispenso as suas especulações. Este corpo é meu. Apetecia-me dizer-lhe isto. Mas contenho-me e digo: — Tudo bem, Carlos. Prepare a câmara, por favor. Vamos gravar e sou eu quem corta. Olha-me com surpresa. — Vai fazer tudo sozinho? — Vou, Carlos. Preciso de si só para virar o corpo. Quero ver como estão as regiões posteriores. — No início ou no fim? — No fim. Já tem a ficha? — Já, mas está quase em branco. «Desconhecido encontrado morto na via pública às dezanove horas do dia 11 de Janeiro de 1999. Chamada anónima. Exame no local efectuado por perito do Instituto de Medicina Legal.» Foi o doutor? — Fui. Diz mais alguma coisa? Insisto no tom formal e distante. Este corpo é meu. Tu és um intruso entre nós. Vai-te embora. — «Morte violenta resultante de provável homicídio com presumível intenção de matar. Objectos encontrados no local: corda de nylon branca com três metros e quarenta e dois centímetros de comprimento. Inquérito em curso.» Coisa pouca, não? — Parece que sim. Pode ir, Carlos. Chamo-o quando precisar. — Não quer que fique?! — Não, Carlos, obrigado. Hoje prefiro ficar sozinho. — Okay… Enquanto visto o avental de oleado sobre a bata de pano e calço as luvas de borracha e, contrariado, o Carlos programa o vídeo («Ponha para três horas de gravação, por favor»), pergunto-me por que razão o inspector Teixeira não terá querido estar presente. O normal teria sido plantar-se aqui logo às oito da manhã, a empestar a entrada com os seus Português Suave («Para os tipos não me cravarem, está a ver?»). Afinal, este parece ser um daqueles casos cinco estrelas por que se pelam os inspectores em meio de carreira. Um corpo violentamente agredido, mas sem qualquer tipo de identificação. Nenhumas referências, nenhumas pistas. Traduzido por miúdos: alguns meses de investigação exclusiva, sem o superior à perna. Muito mistério, muita especulação, total liberdade de acção. No fim, um desfecho inconclusivo ou, na melhor das hipóteses, uma resolução que rima com promoção imediata. Um petisco. Concentro-me. Dirijo o foco de luz para o rosto. O tempo começou a sua acção. A prolongada exposição à água acelerou o processo. Este corpo há muito que se preparou para partir. — Espera. Conta-me. Quem te deformou a expressão? Percorre-me a mesma combinação de estranheza e familiaridade que ontem me perturbou o sono. Repulsa e atracção. Continuo debruçado e sussurro: — As próximas horas são só nossas. Não tenhas medo. Fala comigo. Preciso da rigidez da técnica para manter a concentração. Primeiro, o exame externo. Não temos pressa. Retiro uma pinça que encontro pousada na mesa de apoio. Descanso na ordem exacta da disposição dos intrumentos. Olho a câmara, colocada sobre o centro da mesa de inox onde repousa o corpo. Antes de me debruçar de novo. Nos raros sítios onde mantém a pele, este é um rosto apergaminhado. Rasgado em escoriações e feridas incisas, dilacerado. Uma máscara da qual foi libertada a dor, sobrepondo-lhe uma acentuação trágica, mas serena. Como as imagens a preto e branco. Com leves contrastes de cinzentos e a violência do negro a pontuar o retrato. Com a pinça, recolho pedaços de areias, partículas de alcatrão e de pedras, restos mínimos de folhas. Acondiciono-os numa caixa compartimentada. Com o bisturi, corto, disseco pedaços de epiderme. Não existem derrames sanguíneos, nem equimoses, nem hematomas. Tudo indica que os ferimentos são posteriores à morte. Mas não quero pensar nisso ainda. Recolho fios de cabelo. Pretos e compridos. Regresso ao teu rosto. As sobrancelhas são o que resta da expressão. E, repito, este é um rosto abandonado. Habito-o com estas duas linhas finas, negras e de arco quase perfeito e com as escuras cavidades destes olhos. Deixam-me imaginar o nariz, ligeiramente arrebitado, as maçãs do rosto salientes, a boca inchada, mas antes pequena e delicada… Examino os teus dentes. Os caninos pontiagudos e estreitos confirmam o teu sexo. Os dentes dos homens são normalmente mais largos, os incisivos superiores e centrais maiores. A existência do terceiro molar não me deixa dúvidas. «Idade pouco superior a trinta anos.» Puxo a máquina de raios X e registo a ortopantomografia: o retrato dos teus dentes. Observo as orelhas, furadas. O pescoço e o peito. Os braços. Não existe rigidez. A morte surpreendeu-te há cerca de trinta e seis horas. Não encontro livores nas extensões de pele que se mantiveram intactas. Nem marcas de agressões ante mortem. As mãos e os dedos, longos. As unhas, roídas. Os onicófagos são mais frequentes do que possas pensar. Pertences a um grupo extenso de roedoresde si próprios. Comedores de si mesmos. Nunca fui tentado a roer as unhas, não sei por que estranho impulso tu o fazias. Desejos autofágicos. Nervoso miudinho. O hábito, geralmente iniciado na infância, se não é rejeitado na adolescência, costuma manter-se durante toda a vida. As unhas, como os pêlos e os cabelos, crescem diariamente alguns milímetros. O repasto está sempre à disposição. Sorrio. Os onicófagos possuem gestos particulares. Fogem a mostrar as unhas. Escondem-nas cruzando os braços e enfiando as mãos debaixo das axilas. Assentam o cotovelo e colocam uma das mãos, ou as duas, sobre o rosto, com os punhos fechados, as unhas apoiadas nas palmas. Enterram as mãos nos cabelos, escondem-nas nos bolsos. Seguram as canetas com os dedos contraídos. Será que também tu o fazias? Agarro a tua mão direita com a minha. Raspo o pouco que resta das tuas unhas, destaco pedaços de fibras e matérias que não consigo identificar a olho nu. Recolho-as em lamelas para observação no laboratório. Talvez aqui esteja uma das chaves. Observo agora as polpas dos dedos. A pele está enrugada em consequência do contacto prolongado com a água. Injecto glicerina na polpa do dedo indicador direito, em quantidade suficiente para elevar o que resta da pele. Aplico sobre ela um soluto de formol. Desidrato-a com álcool absoluto e, por fim, molho-a com terebentina e unto-a com tinta de impressão. Estas linhas de impressões digitais são também o teu retrato. Quem és tu? O ventre. Dilatado. Prefiro não imaginar a causa. O sexo. Os pêlos púbicos foram rapados recentemente. Porquê? A parte interior das coxas mantém-se intacta, sem sinais de violência. As pernas. Os pés. Compridos como os de um homem, musculados. Nos tornozelos permanecem as marcas fundas das quatro voltas da corda de nylon. Também aqui não existem outros sinais de violência. Termino o exame externo. Observo pela última vez o que resta do teu rosto. — Prepara-te. Vou entrar dentro de ti. 6 Miguel morde o lápis enquanto olha o lugar dela, vazio. Com os dentes, vai soltando pedaços da madeira e da tinta que a cobre, cuspindo-os aos pedacinhos. Não pensa no que está a fazer. Pensa só que ela está de baixa há quatro meses e que é preciso limpar o pó que entretanto cobriu a mesa dela. Um pó pegajoso que entrou pela janela voltada para a rua, um pó sujo que penetra nas reentrâncias do teclado do computador e que ela vai ter uma carga de trabalhos a tirar de lá. É urgente limpar o pó. É absolutamente necessário. Pousa o lápis e levanta-se. Caminha pelo corredor até à casa de banho. Rasga um pedaço longo de papel higiénico e regressa à sala. Aproxima-se do lugar de Eduarda. É urgente limpar o pó. Com a mão direita, amachuca o papel higiénico. Afasta a cadeira e debruça-se sobre a mesa. Pára. Antes, é preciso arrumar os papéis que estão por ali espalhados. É urgente arrumar os papéis porque é urgente limpar o pó. É absolutamente necessário. Primeiro, o correio, sobre as pastas pretas de arquivo, do lado direito. Vários ofícios da Direcção Regional de Agricultura do Ribatejo e Oeste, outros da Direcção Regional de Veterinária. Sobrescritos com o remetente em letra tremida e insegura, com certeza cartas de agricultores com dúvidas sobre legalização de explorações de suínos, acerca de engorda de novilhos, prazos para vacinação ou inspecção, assuntos correntes. Três cartas do banco. Faxes de laboratórios e, de novo, vários de agricultores e criadores, das Direcções… Correio sem história. Pilhas e pilhas de letras endereçadas para, por este meio, solicitar que, atenciosamente, com os melhores cumprimentos… Nem um rasto da vida pessoal. Apenas formalidades. Questões inadiáveis que adiam a vida para mais logo, no final do expediente, fora dali, quando, às cinco da tarde, Eduarda desligava o computador, arrumava os papéis nas gavetas à sua esquerda e, enquanto dobrava o braço para apanhar a mala pendurada nas costas da cadeira, dizia, sempre com o mesmo tom de voz, quase cantado: «Até amanhã.» Ele ficava a olhá-la já de costas, a sumir-se no corredor. Ouvia depois o silvo inconfundível do alarme do carro dela, os roncos do motor a aquecer e o raspar dos pneus na estrada, que ele seguia com esforço enquanto se afastavam até se perderem nos outros barulhos da rua. Eram esses os sons que o separavam do resto da vida dela e ele sabia-o. Aprendera a respeitá-los como um sinal de que, até ao dia seguinte, teria de imaginar que ela não existia. Esse intervalo de tempo seria como um desses sonos profundos que nos deixam adormecer num segundo para acordarmos no segundo seguinte, sem memória das horas que passaram entretanto. Por vezes, surpreendia-lhe silêncios e olhares parados que supunha serem também marcas da sua outra vida, relâmpagos de tristeza que contrastavam com a habitual exuberância dos seus gestos. Apareciam normalmente enquanto, com os lábios apertados em volta dos cigarros que fumava sem parar, ela puxava mais uma nuvem de fumo e a expirava no sentido da janela aberta sobre a rua. Ou quando, com um dos cotovelos assente sobre a mesa, contorcia os dedos da mão correspondente e observava as unhas encolhidas sobre a palma ou apoiadas no polegar, escolhendo o alvo, que mordia em seguida, explorando- o com os dentes. Sempre o fascinaram aquelas mãos brancas e de dedos finos, compridos e um pouco tortos, pintalgadas por pequenas manchas de pigmentação castanha, quase imperceptíveis. Começara a desejar o corpo dela a partir daquelas mãos. Havia sete anos. Então, vira-a, pela primeira vez, entre os vários candidatos à única vaga disponível para o posto de médico veterinário de segunda classe na terceira das cinco Divisões de Intervenção Veterinária dependentes da Direcção Regional de Agricultura do Ribatejo e Oeste. Nesse dia, acotovelavam-se à porta do gabinete do chefe de divisão. Tal como ela, a maioria acabara de concluir a licenciatura e trazia ainda o entusiasmo de quem inicia o exercício de uma profissão, com a fé ingénua de que tal corresponde ao verdadeiro começo da própria vida. Notara o cabelo negro dela, preso na nuca por um gancho largo a imitar casca de tartaruga. Com um desleixo calculado, soltavam-se farripas finas sobre a testa. Ela deixava-as cair sobre os olhos enquanto voltava a cabeça com movimentos rápidos. Parecia um animal nervoso e alerta. Um coelho. Desde que se conhece, ele tem a profunda convicção de que cada pessoa encerra um outro animal dentro de si. E de que, por vezes, o animal invade também o rosto. Por isso, acredita, há pessoas com cara de cavalo, de porco, de formiga, de leão, de elefante, de escaravelho. As mais frequentes são aquelas que, com o tempo, absorvem a expressão facial dos seus cães. Essa foi aliás uma das razões por que ele não quis exercer clínica privada para animais de pequeno porte. Os consultórios veterinários estão cheios de pessoas com a mesma cara dos seus queridos melhores amigos. Homens com os olhos, as bochechas e a boca descaídos como os dos bulldogs. Mulheres com os olhos, o nariz e a boca concentrados no meio da cara miúda, exactamente como os yorkshire terriers. Narizes empinados à king charles spaniel. Olhos dilatados que parecem saltar das órbitas como os dos boston terriers. Expressões desalentadas como as dos bassets ou surpresas como as dos caniches. Gente com cara de cão e cães com cara de gente. Uma promiscuidade. Para mais, os espécimes mais interessantes e originais da raça canina, os rafeiros, não costumam pôr as patas nos consultórios. São seres livres, sem dono a quem ocupar o rosto, e, mesmo que o tenham, capazes de respeitar a mútua integridade facial. A fusão mais importante, defende Miguel, não é sequer aquela que acontece ao nível do rosto. Dá-se antes quando o espírito do animal ocupante absorve parte do espírito do animal ocupado. De tal forma ele acredita nisto que, sabendo-se um ouriço- cacheiro, sempre se quis transformar numa raposa. Ouriços-cacheiros e raposas. É nessas duas categorias que costuma dividir as pessoas. Recolheu a teoria num livro qualquer
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