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FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Vila Velha 2 SUMÁRIO ENFOQUES E CONCEPÇÕES: IMPLICAÇÕES NA ALFABETIZAÇÃO................... 2 HISTÓRIA DOS MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL ................................ 4 ESCOLA E ALFABETIZAÇÃO ..................................................................................... 4 A QUESTÃO DOS MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO ................................................ 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 44 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 46 ENFOQUES E CONCEPÇÕES: IMPLICAÇÕES NA ALFABETIZAÇÃO Piffer coloca que no Brasil, no século XX, assistimos a mudanças conceituais na forma de conceber o processo de ensino aprendizagem da língua escrita na fase escolar. Nesse cenário, a alfabetização foi concebida por uma multiplicidade de enfoques e concepções que foram se tornando hegemônicas nas práticas e nos discursos teóricos. Em linhas gerais as implicações decorrentes desses enfoques no campo da alfabetização são: Os enfoques comportamentalista, a psicologia da gestalt e as teorias cognitivistas. O enfoque comportamentalista, também reconhecido por behaviorista, empirista ou associacionista, parte do pressuposto de que a aprendizagem da língua ocorre por meio do domínio mecânico das relações entre os sons e as letras, ou seja, por um processo de codificação e decodificação. Essa forma de conceber a alfabetização se evidencia nos métodos sintéticos, como o alfabético, o silábico e o fônico. 3 Contrapondo-se à ideia de que a aprendizagem da leitura e da escrita deveria ocorrer das partes para o todo, a partir de século XIX, começam a ser veiculados métodos de ensino que preconizam que a aprendizagem se efetiva do todo para as partes. Esse enfoque pode ser observado nos métodos analíticos de alfabetização, como os da palavração, da sentenciação e o historiado que se sustentam em uma abordagem global e ideovisual decorrente da Psicologia da Gestalt. De acordo com Braggio (2002), os pressupostos que fundamentam os métodos sintéticos e analíticos podem ser compreendidos sob 0 mesmo ponto de vista, pois ambos reduzem a aquisição da língua a uma experiência sensorial, fisicamente observável, na qual a linguagem é concebida como um sistema fechado, autônomo, constituído de elementos que não se relacionam entre si e que estabilizam os significados das palavras, isolando-as, conforme salienta Gontijo (2002), totalidade do fenómeno linguístico e do conteúdo sócio-histórico-cultural. Subjacente aos métodos de ensino da leitura e da escrita na fase inicial de alfabetização está o sujeito, entendido como um ser isolado da sociedade, passivo, acrítico, incapaz de mudar a si mesmo e a realidade social na qual está inserido. Uma virada epistemológica no campo da alfabetização ocorreu com a emergência do paradigma cognitivista, particularmente a partir dos estudos realizados no campo da Psicolinguística, por Avram Noam Chomsky e no campo da Psicologia Genética, por Jean Piaget (1896-1980). Esses estudos possibilitaram a articulação de pressupostos teóricos e metodológicos que orientaram a pesquisa experimental realizada por Emília Ferreiro e Ana Teberosky, em Buenos Aires, nos anos de 1974, 1975 e 1976. Assim, a partir do final dos anos 1980 e início dos anos de 1990, ocorreram mudanças significativas nas práticas de alfabetização. Essas mudanças tinham como principal foco a concepção de um sujeito ativo, ou seja, um sujeito que aprende, que elabora hipóteses e constrói o conhecimento a partir da interação com o objeto. 4 Nesse sentido, a corrente construtivista, como tem sido denominada, distinguese da empirista pelo fato de que, nessa nova abordagem, o conhecimento não ocorre por associações mecânicas, mas é resultado da atividade do sujeito e das relações que estabelece na interação com o objeto. Outra forma de conceber a alfabetização é postulada pela Psicologia Histórico Cultural. Essa concepção parte da premissa que as crianças nascem e vivem em meios onde se fazem usos da escrita em diversas situações sociais, muito antes de participarem de processos educativos institucionalizados. Portanto, considera a importância da escrita como uma forma especial de linguagem e, desse modo, a alfabetização como parte de um amplo processo de desenvolvimento da linguagem na criança, desenvolvimento esse que se inicia desde os primeiros anos de vida e se potencializa nas experiências sociais que são mediadas pela palavra e pelo outro. A linguagem, nessa perspectiva, constitui-senas relações sociais e, ao mesmo tempo, é uma atividade constitutiva dos seres humanos. HISTÓRIA DOS MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL ESCOLA E ALFABETIZAÇÃO Em nosso país, desde o final do século XIX, especialmente com a proclamação da República, a educação ganhou destaque como uma das utopias da modernidade. A escola, por sua vez, consolidou-se como lugar necessariamente institucionalizado para o preparo das novas gerações, com vistas a atender aos ideais do Estado republicano, pautado pela necessidade de instauração de uma nova ordem política e social; e a universalização da escola assumiu importante papel como instrumento de modernização e progresso do Estado-Nação, como principal propulsora do "esclarecimento das massas iletradas' 5 No âmbito desses ideais republicanos, saber ler e escrever se tornou instrumento privilegiado de aquisição de saber/esclarecimento e imperativo da modernização e desenvolvimento social. A leitura e a escrita — que até então eram práticas culturais cuja aprendizagem se encontrava restrita a poucos e ocorria por meio de transmissão assistemática de seus rudimentos no âmbito privado do lar, ou de maneira menos informal, mas ainda precária, nas poucas "escolas" do Império ("aulas régias") — tornaram-se fundamentos da escola obrigatória, leiga e gratuita e objeto de ensino e aprendizagem escolarizados. Caracterizando-se como tecnicamente ensináveis, as práticas de leitura e escrita passaram, assim, a ser submetidas a ensino organizado, sistemático e intencional, demandando, para isso, a preparação de profissionais especializados. Desse ponto de vista, os processos de ensinar e de aprender a leitura e a escrita na fase inicial de escolarização de crianças se apresentam como um momento de passagem para um mundo novo — para o Estado e para o cidadão — o mundo Público da cultura letrada, que instaura novas formas de relação dos sujeitos entre si, com a natureza, com a história e com o próprio Estado; um mundo novo que instaura, enfim, novos modos e conteúdos de pensar, sentir, querer e agir. No entanto, especialmente desde as últimas duas décadas, as evidências que sustentam originariamente essa associação entre escola e alfabetização vêm sendo questionadas, em decorrência das dificuldades de se concretizarem as promessas e os efeitos pretendidos com a ação da escola sobre o cidadão. Explicada como problema decorrente, ora do método de ensino, ora do aluno, ora do professor, ora do sistema escolar, ora das condições sociais, ora de políticas públicas, a recorrência dessas dificuldades de a escola dar conta de sua tarefa histórica fundamental não é, porém, exclusiva de nossa época. 6 Decorridos mais de cem anos desde a implantação, em nosso país, do modelo republicano de escola, podemos observar que, desde essa época, o que hoje denominamos "fracasso escolar na alfabetização" se vem impondo como problema estratégico a demandar soluções urgentes e vem mobilizando administradorespúblicos, legisladores do ensino, intelectuais de diferentes áreas de conhecimento, educadores e professores. Desde essa época, observam-se repetidos esforços de mudança, a partir da necessidade de superação daquilo que, em cada momento histórico, considerava-se tradicional nesse ensino e fator responsável pelo seu fracasso. Por quase um século, esses esforços se concentraram, sistemática e oficialmente, na questão dos métodos de ensino da leitura e escrita, e muitas foram as disputas entre os que se consideravam portadores de um novo e revolucionário método de alfabetização e aqueles que continuavam a defender os métodos considerados antigos e tradicionais. A partir das duas últimas décadas, a questão dos métodos passou a ser considerada tradicional e os antigos e persistentes problemas da alfabetização vêm sendo pensados e praticados predominantemente, no âmbito das políticas públicas, a partir de outros pontos de vista, em especial a compreensão do processo de aprendizagem da criança alfabetizanda, de acordo com a psicogênese da língua escrita. O que é esse "tradicional"? Quando e por que se engendra um tipo de ensino de leitura e escrita que hoje é acusado de "tradicional"? O que representava para a(s) época(s) em que ocorre seu engendramento? Qual sua relação com a tradição que lhe é anterior? Quanto desse "tradicional" subsiste nas práticas alfabetizadoras, mesmo nas dos professores que querem superá-las? Como se pode explicar sua insistente permanência? Como dialogam entre si a tradição e os repetidos esforços de mudança em alfabetização? 7 A QUESTÃO DOS MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO A fim de contribuir para a compreensão desse processo e para a busca de respostas às questões formuladas acima, tomemos como exemplo a situação paulista. Analisando, com base em fontes documentais, o ocorrido nessa província/estado em relação à questão dos métodos de ensino inicial da leitura e escrita, desde as décadas finais do século XIX, optei por dividir esse período em quatro momentos cruciais, cada um deles caracterizado pela disputa em torno de certas tematizações, normatizações e concretizações relacionadas com o ensino da leitura e escrita e consideradas novas e melhores, em relação ao que, em cada momento, era considerado antigo e tradicional nesse ensino. Em decorrência dessas disputas, têm-se, cada um desses momentos, a fundação de uma nova tradição relativa ao ensino inicial da leitura e escrita. Apresento a seguir cada um desses quatro momentos cruciais com as respectivas disputas pela hegemonia de determinados métodos de alfabetização e, dentre outros múltiplos aspectos neles observáveis, menciono o papel desempenhado pelas cartilhas, que, dada sua condição de instrumento privilegiado de concretização dos métodos e conteúdos de ensino, permanecem no tempo e permitem recuperar aspectos importantes dessa história, contribuindo significativamente para a criação de uma cultura escolar e para a transmissão da(s) tradição (ões). 1º momento- A metodização do ensino da leitura Até o final do Império brasileiro, o ensino carecia de organização, e as poucas escolas existentes eram, na verdade, salas adaptadas, que abrigavam alunos de todas as "séries" e funcionavam em prédios pouco apropriados para esse fim; eram as "aulas régias", já mencionadas. Em decorrência das precárias condições de funcionamento, nesse tipo de escola o ensino dependia muito mais do empenho de professor e alunos para subsistir. E o material de que se dispunha para o ensino da 8 leitura era também precário, embora, na segunda metade do século XIX, houvesse aqui algum material impresso sob a forma de livros para fins de ensino de leitura, editados ou produzidos na Europa. Habitualmente, porém, iniciava-se o ensino da leitura com as chamadas "cartas de ABC" e depois se liam e se copiavam documentos manuscritos. Para o ensino da leitura, utilizavam-se, nessa época, métodos de marcha sintética (da "parte" para o "todo"): da soletração (alfabético), partindo do nome das letras; fônico (partindo dos sons correspondentes às letras); e da silabação (emissão de sons), partindo das sílabas. Dever-se-ia, assim, iniciar o ensino da leitura com a apresentação das letras e seus nomes (método da soletração/alfabético), ou de seus sons (método fônico), ou das famílias silábicas (método da silabação), sempre de acordo com certa ordem crescente de dificuldade. CARTILHA ABC DA INFÂNCIA De autoria anônima, a primeira edição dessas "cartas de ABC" é de 1905. Há, entretanto, indícios de que essa publicação é a introdução do Livro da Infância de Augusto Emílio Zaluar, escritor português radicado no Rio de Janeiro. As "cartas de ABC" representam o método mais tradicional e antigo de alfabetização, conhecido como "método sintético": apresenta primeiro as letras do alfabeto (maiúsculas e minúsculas; de imprensa e manuscritas), depois apresenta segmentos de um, dois e três carcteres, em ordem alfabética (a-é-i-ó-u, ba-bé-bibó-bu, ai-ei-oi-ui, bai-bei- boibui, etc); e, por fim, palavras cujas sílabas são separadas por hífen (An-tão, A-na, 9 Andei, A-mar; Ben-to, Bri-tes, Bus-car, Ba-ter, etc. A sobrevivência desse livro até 1956 denota a sobrevivência desse modelo antigo de alfabetização. Posteriormente, reunidas as letras ou os sons em sílabas, ou conhecidas as famílias silábicas, ensinava-se a ler palavras formadas com essas letras elou sons elou sílabas e, por fim, ensinavam-se frases isoladas ou agrupadas. Quanto à escrita, esta se restringia à caligrafia e ortografia, e seu ensino, à cópia, ditados e formação de frases, enfatizando-se o desenho correto das letras. As primeiras cartilhas brasileiras, produzidas no final do século XIX, sobretudo por professores fluminenses e paulistas a partir de sua experiência didática, baseavam-se nos métodos de marcha sintética (de soletração, fônico e de silabação) e circularam em várias províncias/estados do país e por muitas décadas. Em 1876, data que elegi como marco inicial do primeiro momento crucial nessa história, foi publicada em Portugal a Cartilha Maternal ou Arte da Leitura, escrita pelo poeta português João de Deus. Cartilha Maternal A partir do início da década de 1880, o "Método João de Deus" contido nessa cartilha passou a ser divulgado sistemática e programaticamente principalmente nas 10 províncias de São Paulo e do Espírito Santo, por Antônio da Silva Jardim, positivista militante e professor de português da Escola Normal de São Paulo. A primeira edição da Cartilha Maternal é de 1876. O método de alfabetização de João de Deus foi introduzido na Escola Normal de São Paulo em 1883, pelo então professor Antônio da Silva Jardim, e registra que em 1897, o governo paulista importou vários exemplares da Cartilha Maternal de João de Deus para distribuir nas escolas do estado. Diferentemente dos métodos até então habituais, o "Método João de Deus" ou "método da palavração" baseava-se nos princípios da moderna linguística da época e consistia em iniciar o ensino da leitura pela palavra, para depois analisá-la a partir dos valores fonéticos das letras. Por essas razões, Silva Jardim considerava esse método como fase científica e definitiva no ensino da leitura e fator de progresso social. Esse 1º momento se estende até o início da década de 1890 e nele tem início uma disputa entre os defensores do "método João de Deus" e aqueles que continuavam a defender e utilizar os métodos sintéticos: da soletração, fônico e da silabação. Com essa disputa, funda-se uma nova tradição: o ensino da leitura envolve necessariamente uma questão de método, ou seja, enfatiza-se o como ensinar metodicamente, relacionado com o que ensinar, p ensino da leitura e escrita é tratado, então,como uma questão de ordem didática subordinada às questões de ordem linguística (da época). 2 º momento — A institucionalização do método analítico A partir de 1890, implementou-se a reforma da instrução pública no estado de São Paulo. Pretendendo servir de modelo para os demais estados, essa reforma se iniciou com a reorganização da Escola Normal de São Paulo e a criação da Escola Modelo Anexa; em 1896, foi criado o Jardim da Infância nessa escola. Do ponto de vista didático, a base da reforma estava nos novos métodos de ensino, em especial no então novo e revolucionário método analítico para o ensino da leitura, utilizado na Escola-Modelo Anexa (à Norma), onde os normalistas 11 desenvolviam atividades "práticas" e onde os professores dos grupos escolares (criados em 1893) da capital e do interior do estado deveriam buscar seu modelo de ensino. A partir dessa primeira década republicana, professores formados por essa escola normal passaram a defender programaticamente o método analítico para o ensino da leitura e disseminaram-no para outros estados brasileiros, por meio de "missões de professores" paulistas. Especialmente mediante a ocupação de cargos na administração da instrução pública paulista e a produção de instruções normativas, de cartilhas e de artigos em jornais e em revistas pedagógicas, esses professores contribuíram para a institucionalização do método analítico, tornando obrigatória sua utilização nas escolas públicas paulistas. Embora a maioria dos professores das escolas primárias reclamasse da lentidão de resultados desse método, a obrigatoriedade de sua utilização no estado de São Paulo perdurou até se fazerem sentir os efeitos da "autonomia didática" proposta na "Reforma Sampaio Dória" (Lei n º. 1750, de 1920). Diferentemente dos métodos de marcha sintética até então utilizados, o método analítico, sob forte influência da pedagogia norte-americana, baseava-se em princípios didáticos derivados de uma nova concepção de caráter biopsicofisiológico — da criança, cuja forma de apreensão do mundo era entendida como sincrética. A despeito das disputas sobre as diferentes formas de processuação do método analítico, o ponto em comum entre seus defensores consistia na necessidade de se adaptar o ensino da leitura a essa nova concepção de criança. 12 Cartilha de Francisco Viana A cartilha e os livros de leitura de Francisco Viana, formado na Escola Normal de São Paulo, foram muito populares nas escolas. A primeira edição é de 1895. De acordo com esse método analítico, o ensino da leitura deveria ser iniciado pelo "todo", para depois se proceder à análise de suas partes constitutivas. No entanto, diferentes se foram tornando os modos de processuação do método, dependendo do que seus defensores consideravam o "todo": a palavra, ou a sentença, ou a "historieta". O processo baseado na "historieta" foi institucionalizado em São Paulo, mediante a publicação do documento Instrucções praticas para o ensino da leitura pelo methodo analytico — modelos de lições. (Diretoria Geral da Instrução Pública/SP 1915). Nesse documento, priorizava-se a "historieta" (conjunto de frases relacionadas entre si por meio de nexos lógicos), como núcleo de sentido e ponto de partida para o ensino da leitura. 13 Cartilha Analítica A Cartilha Analítica foi editada pela primeira vez em 1909. O método analítico alfabetizava com palavras e sílabas, e se opunha ao antigo método sintético, que ensinava as letras, o bê-a-bá. As cartilhas produzidas no âmbito do 2º momento na história da alfabetização, especialmente no início do século XX, passaram a se basear programaticamente no método de marcha analítica (processos da palavração e sentenciação), buscando se adequar às instruções oficiais, no caso paulista. Iniciou-se, assim, uma acirrada disputa entre partidários do então novo e revolucionário método analítico para o ensino da leitura e os que continuavam a defender e utilizar os tradicionais métodos sintéticos, especialmente o da silabação. Concomitantemente a essa disputa, teve lugar uma outra relativa aos diferentes modos de processuação do método analítico, dentre as quais se destaca a travada entre os professores paulistas e o fluminense João Köpke. Nesse 2º momento, que se estende até aproximadamente meados dos anos de 1920, a ênfase da discussão sobre métodos continuou incidindo no ensino inicial da leitura, já que o ensino inicial da escrita era entendido como uma questão de 14 caligrafia (vertical ou horizontal) e de tipo de letra a ser usada (manuscrita ou de imprensa, maiúscula ou minúscula), o que demandava especialmente treino, mediante exercícios de cópia e ditado. Cartilha Infantil A primeira edição da Cartilha Infantil é de 1908. Gomes Cardim formou-se na Escola Normal de São Paulo e foi seu diretor em 1925, quando criou a primeira biblioteca pública infantil do Brasil, para as crianças do curso primário. Caderno e desenho (menino com o cão Fiel) datado de 1930, do Sr. Ernest Robert Mange, que estudou na Escola Modelo Caetano de Campos. O caderno e o desenho reproduzem uma lição da Cartilha Infantil. É também ao longo desse momento, já no final da década de 1910, que o termo "alfabetização" começa a ser utilizado para se referir ao ensino inicial da leitura e da escrita. As disputas ocorridas nesse 2º momento fundam uma outra nova tradição: no o ensino da leitura envolve enfaticamente questões didáticas, ou seja, o como ensinar, a partir da definição das habilidades visuais, auditivas e motoras da criança a quem ensinar, o ensino da leitura e escrita é tratado, então, 15 como uma questão de ordem didática subordinada às questões de ordem psicológica da criança. 3º momento — A alfabetização sob medida Em decorrência da "autonomia didática proposta pela "Reforma Sampaio Dória" e de novas urgências políticas e sociais, a partir de meados da década de 1920 aumentaram as resistências dos professores quanto à utilização do método analítico e começaram a se buscar novas propostas de solução para os problemas do ensino e aprendizagem iniciais da leitura e da escrita. Cartilha de Mariano de Oliveira Esta cartilha tentava conciliar dois métodos de alfabetização, o moderno e o antigo. De acordo com informações da editora Melhoramentos, foram produzidos 825.000 exemplares desde a primeira edição de 1916, até a última, a 1.189. edição de 1955. Os defensores do método analítico continuaram a utilizá-lo e a propagandear sua eficácia. No entanto, buscando conciliar os dois tipos básicos de métodos de ensino da leitura e escrita (sintéticos e analíticos), em várias tematizações e concretizações das décadas seguintes, passaram-se a utilizar: métodos mistos ou 16 ecléticos (analítico-sintético ou vice-versa), considerados mais rápidos e eficientes. A disputa entre os defensores dos métodos sintéticos e os defensores dos métodos analíticos não cessaram; mas o tom de combate e defesa acirrada que se viu nos momentos anteriores foi-se diluindo gradativamente, à medida que se acentuava a tendência de relativização da importância do método e, mais restritamente, a preferência, nesse âmbito, pelo método global (de contos), defendido mais enfaticamente em outros estados brasileiros. Essa tendência de relativização da importância do método decorreu especialmente da disseminação, repercussão e institucionalização das então novas e revolucionárias bases psicológicas da alfabetização contidas no livro Testes ABC para verificação a maturidade necessária ao aprendizado da leitura e escrita (1934), escrito por M. B. Lourenço Filho. Nesse livro, o autor apresenta resultadosde pesquisas com alunos de 10 grau (atual I a série do ensino fundamental), que realizou com o objetivo de buscar soluções para as dificuldades de nossas crianças no aprendizado da leitura e escrita. Propõe, então, as oito provas que compõem os testes ABC, como forma de medir o nível de maturidade necessária ao aprendizado da leitura e escrita, a fim de classificar os alfabetizandos, visando à organização de classes homogêneas e à racionalização e eficácia da alfabetização. 17 Cartilha do Povo A Cartilha do Povo teve ampla adoção nas escolas. 1a. edição, 1928 e última, a 2.204B edição, 1994, conforme dados da editora Melhoramentos, foram produzidos mais de 10 milhões de exemplares. Um fato curioso da Cartilha do Povo foi a omissão do nome de seu autor até a 115a. edição com o intuito de reforçar seu "caráter popular". Desse ponto de vista, a importância do método de alfabetização passou a ser relativizada, secundarizada e considerada tradicional. Observa-se, no entanto, embora com outras bases teóricas, a permanência da função instrumental do ensino e aprendizagem da leitura, enfatizando-se a simultaneidade do ensino de ambas, as quais eram entendidas como habilidades visuais, auditivas e motoras. Também a partir dessa época, aproximadamente, as cartilhas passaram a se basear predominantemente em métodos mistos ou ecléticos (analítico-sintético e viceversa) e começaram a se produzir os manuais do professor acompanhando as cartilhas, assim como se disseminou a ideia e a prática do "período preparatório". Vaise, assim, constituindo um ecletismo processual e conceitual em alfabetização, de acordo com o qual a alfabetização (aprendizado da leitura e escrita) envolve obrigatoriamente uma questão de "medida", e o método de ensino se subordina ao nível de maturidade das crianças em classes homogêneas. 18 A escrita continuou sendo entendida como uma questão de habilidade caligráfica e ortográfica, que devia ser ensinada simultaneamente à habilidade de leitura; o aprendizado de ambas demandava um "período preparatório", que consistia em exercícios de discriminação e coordenação viso-motora e auditivo- motora, posição de corpo e membros, dentre outros. Nesse 3º momento, que se estende até aproximadamente o final da década de 1970, funda-se uma outra nova tradição no ensino da leitura e da escrita: a alfabetização sob medida, de que resulta o como ensinar subordinado à maturidade da criança a quem se ensina; as questões de ordem didática, portanto, encontram-se subordinadas às de ordem psicológica. 19 Cartilha Caminho Suave A Cartilha Caminho Suave foi aprovado pela Comissão Nacional do Livro didático (Pareceres no. 398 e 431 de 1948) e sua primeira edição é de 1948. Foi um fenômeno de vendas no Brasil: calcula-se que todas as edições, até a década de 1990, venderam 40 milhões de exemplares. Há um exemplar de edição bem posterior, dos anos de 1980, quando a cartilha foi modificada e vários exercícios foram incluídos. 4º momento — Alfabetização: construtivismo e desmetodização A partir de então, verifica-se, por parte de autoridades educacionais e de pesquisadores acadêmicos, um esforço de convencimento dos alfabetizadores, mediante divulgação massivas de artigos, teses acadêmicas, livros e vídeos, cartilhas, sugestões metodológicas, relatos de experiências bem sucedidas e ações de formação continuada, visando a garantir a institucionalização, para a rede pública de ensino, de certa apropriação do construtivismo. Inicia-se, assim, uma disputa entre os partidários do construtivismo e os defensores quase nunca confessos", mas atuantes especialmente no nível das concretizações — dos tradicionais métodos (sobretudo o misto ou eclético), das tradicionais cartilhas e do tradicional diagnóstico do nível de maturidade com fins de classificação dos alfabetizandos, engendrando-se um novo tipo de ecletismo processual e conceitual em alfabetização. 20 O desenvolvimento da escrita na criança, segundo Emília Ferreiro Emília Ferreiro desenvolveu sua pesquisa no intuito de construir uma nova explicação sobre os processos e as formas pelas quais as crianças aprendem a ler e a escrever. Ancorada nos princípios teóricos de Piaget, procura demonstrar que as crianças percorrem diferentes estágios, seguindo uma forma linear e consecutiva. Para ela aprendizagem da leitura e da escrita ocorre quando a criança estabelece uma ação sobre o objeto a ser conhecido (no caso a escrita). A criança constrói as hipóteses que irão conduzir ao domínio da escrita alfabética, tidas não como meros sujeitos aprendizes, mas como sujeitos que sabem. Para adquirir conhecimentos sobre o sistema da escrita, as crianças tentam assimilar a informação proporcionada pelo meio, interpretam essas informações de acordo com seus esquemas de ação. Quanto aos métodos e cartilhas de alfabetização, os questionamentos de que foram alvo parecem ter sido satisfatoriamente assimilados, resultando: na produção de cartilhas "construtivistas" ou "sócio-construtivistas" ou "construtivistas- interacionistas"; na convivência destas com cartilhas tradicionais e, mais recentemente, com os livros de alfabetização, nas indicações oficiais e nas estantes dos professores, muitos dos quais alegam tê-las apenas para consulta quando da preparação de suas aulas; e no ensino e aprendizagem do modelo de leitura e escrita veiculado pelas cartilhas, mesmo quando os professores dizem seguir uma "linha construtivista" ou "interacionista" e seus alunos não utilizarem diretamente esse instrumento em sala de aula. De qualquer modo, nesse momento, tornam-se hegemônicos o discurso institucional sobre o construtivismo e as propostas de concretização decorrentes de certas apropriações da teoria construtivista. E tem-se, hoje, a institucionalização, em nível nacional, do construtivismo em alfabetização, verificável, por exemplo, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), dentre tantas outras iniciativas recentes. 21 Nesse 40 momento ainda em curso funda-se uma outra nova tradição: a desmetodização da alfabetização, decorrente da ênfase em quem aprende e o como aprende a língua escrita (lecto-escritura), tendo-se gerado, no nível de muitas das apropriações, um certo silenciamento a respeito das questões de ordem didática e, no limite, tendo-se criado um certo ilusório consenso de que a aprendizagem independe do ensino. É importante ressaltar, no entanto, que, também na década de 1980, observase a emergência do pensamento interacionista em alfabetização, que vai gradativamente ganhando destaque e gerando uma espécie de disputa entre seus defensores e os do construtivismo. Essa "nova" disputa, por sua vez, foi-se diluindo, à medida que certos aspectos de certa apropriação do interacionismo foram sendo conciliados. Assim como ocorreu com os métodos de ensino da leitura e escrita, evidentemente a publicação de novas cartilhas não impediu a continuidade de circulação das antigas, muitas das quais continuaram a ser utilizadas por várias décadas, após a publicação de suas primeiras edições, desde aquelas do final do século XIX. Com certa apropriação do construtivismo; essa conciliação, pelo que posso observar até o momento, foi subsumida no discurso institucional sobre alfabetização. 22 Os níveis de evolução da escrita na criança para Emilia Ferreiro I) Hipótese Pré-Silábica — Enfoca dois momentos: rabiscaçäo e uso das letras. Nessa fase, as crianças começam a estabelecer diferenças entre duas formas de representação: O desenho e a escrita. 2) Hipótese Silábica — Neste período, a criança percebe que as palavras são escritas com um determinadonúmero de letras. Esta fase divide-se em silábico sem valor sonoro e com valor sonoro. 3) Hipótese Silábico-Alfabética — Esta fase representa a transição entre a anterior, a silábica, e a posterior, a alfabética. 4) Hipótese Alfabética — Neste período, a criança além de perceber que cada letra corresponde a um determinado som, começa a entender que, para registrar os sons que emite cada vez que abre a boca para falar uma palavra, é preciso uma combinação de letras. 5) Hipótese Ortográfica — Nesta hipótese, a criança começa a escrever conforme a escrita convencional. E, dentre a multiplicidade de problemas que enfrentamos hoje a respeito do ensino inicial da leitura e escrita, as dificuldades decorrentes, em especial, da ausência de uma "didática construtivista" vêm abrindo espaço para a tentativa, por parte de alguns pesquisadores, de apresentar "novas" propostas de alfabetização baseadas em antigos métodos, como os de marcha sintética. Devo, ainda, mencionar, pelo menos, dentre essa multiplicidade de aspectos, as discussões e propostas em torno do letramento, entendido ora como complementar a alfabetização, ora como diferente desta e mais desejável, ora como excludentes entre si. A LINGUAGEM ESCRITA 23 O estudo sobre o desenvolvimento da linguagem da escrita remete, necessariamente, ao trabalho desenvolvido por Vigotski sobre o desenvolvimento dos conceitos científicos na criança em idade escolar. Segundo esse autor, essa questão é antes de tudo uma questão prática de suma importância, pois se refere às tarefas da escola na hora de ensinar às crianças o sistema de conhecimentos científicos. Além disso, aponta que [...] o desenvolvimento do conceito científico de caráter social se produz nas condições do processo de instrução, que constitui uma forma singular de cooperação sistemática do pedagogo com a criança. Durante o desenvolvimento dessa cooperação amadurecem as funções psíquicas superiores da criança com a ajuda e com a participação do adulto. Na tarefa que nos interessa, isso encontra sua expressão na crescente relatividade do pensamento causal e no fato de que o pensamento científico avança até alcançar um determinado nível de voluntariedade, nível que é produto das condições do ensino. A singular cooperação entre a criança e o adulto é o aspecto crucial do processo de instrução, junto com os conhecimentos que são transmitidos à criança segundo um determinado sistema (VIGOTSKI 1993, p. 183, tradução nossa). Desse modo, Vigotski define os vínculos entre o desenvolvimento dos conceitos científicos nas crianças, as condições de ensino, a cooperação entre o adulto e a criança que aprende e os conhecimentos que estão sendo apropriados. É importante enfatizar que, ao estabelecer esses vínculos, o autor acredita que os conhecimentos científicos têm uma história na criança. Nesse sentido, critica as versões da psicologia infantil que afirmam que o desenvolvimento dos conceitos científicos [...] carecem em geral de história interior própria, que não sofrem processo de desenvolvimento no sentido estrito da palavra. Simplesmente são assimilados, são 24 percebidos como algo acabado graças ao processo de compreensão, de assimilação e de atribuição de sentido (VIGOTSKI, 1993). Argumenta que esse ponto de vista carece de consistência teórica e prática. Teoricamente, considera que [...l, o conceito não é simplesmente um conjunto de conexões associativas que se assimila com a ajuda da memória, não é um hábito mental automático, mas um autêntico e complexo ato do pensamento" (VIGOTSKI 1993, p. 184, grifos do autor). Dessa forma, afirma que o conceito é um ato de generalização. Os resultados das suas investigações confirmam que os conceitos, representados psicologicamente como significados das palavras, evoluem, ou seja, possuem uma história na criança. No momento em que a criança assimila uma nova palavra, relacionada com um significado, o desenvolvimento do significado da palavra não finaliza, mas só começa. A palavra é, a princípio, uma generalização do tipo mais elementar e unicamente à medida que se desenvolve, a criança passa da generalização elementar a formas cada vez mais elevadas de generalização, culminando esse processo com a formação de autênticos e verdadeiros conceitos (VIGOTSKI, 1993, p. 184-185, grifos do autor) Em termos práticos, argumenta que a experiência pedagógica ensina que a aprendizagem direta dos conceitos é impossível e pedagogicamente infrutífera. O ensino baseado nessa visão resultará em uma aprendizagem mecânica, portanto, na repetição e na memorização que não conduz à apropriação dos conceitos. Tendo em vista que os conceitos se desenvolvem, possuem uma história na criança, Vigotski aponta que os conceitos científicos não evoluem da mesma forma que os conceitos cotidianos. Em outras palavras, a apropriação dos conceitos científicos não repete os processos de formação nas crianças dos conceitos 25 cotidianos. Com relação à linguagem escrita, é possível compreender a interpretação de Vigotski, se analisarmos as comparações que estabeleceu entre a linguagem oral e a linguagem escrita. Para que a criança aprenda a falar, é suficiente que conviva com falantes de uma determinada língua. Dessa forma, essa aprendizagem não ocorre de modo natural e espontâneo, mas exige a participação em uma comunidade linguística. No entanto, para que a criança aprenda a ler e a escrever, não é suficiente a convivência com pessoas letradas. Tal convivência poderá ensinar muito sobre os usos sociais da escrita, mas não possibilitará que a criança passe a usar a escrita para se comunicar com as outras pessoas e registrar suas ideias e pensamentos. Escrever e ler exigem o domínio da capacidade de refletir sobre a linguagem, ou seja, requerem o domínio de capacidades metalinguísticas. A linguagem é uma atividade linguística primária, como assinala Donalson (apud DELFIOR, 1998). As atividades próprias da linguagem escrita, por sua vez, requerem que a criança tome consciência de determinados aspectos da linguagem não necessários à comunicação cotidiana. As crianças e os adultos, segundo Delfior, comunicam-se por meio da linguagem, sem refletirem sobre esses aspectos, sem ter consciência, por exemplo, de que estão usando palavras, que estas são compostas por unidades menores. Se a aprendizagem da linguagem escrita exige o desenvolvimento de capacidades metalinguísticas, dentre elas a capacidade de analisar as unidades menores constituintes da linguagem oral, essa aprendizagem produz o desenvolvimento da linguagem oral. 26 Dessa forma, Vigotski concluiu acertadamente que o desenvolvimento da linguagem escrita não reproduz os processos de desenvolvimento da linguagem oral, pois a linguagem escrita não é uma simples tradução da linguagem oral em signos escritos e nem o domínio da linguagem escrita se reduz a assimilar a técnica da escrita. Se a linguagem escrita se restringisse à tradução da linguagem oral em signos escritos, no momento em que a criança dominasse essa técnica, alcançaria o mesmo grau de desenvolvimento da linguagem oral A linguagem escrita, segundo o autor, "[...J, é uma função especial da linguagem, que se diferencia da linguagem oral como a linguagem interior se diferencia da exterior em sua estrutura e no seu modo de funcionamento" (VIGOTSKI, 1993, p. 229). Ao comparar a linguagem interior com a linguagem escrita, afirma que: a linguagem interior é reduzida ao máximo, taquigráfica. A linguagem escrita é desenvolvida ao máximo, formalmente mais refinada, inclusive em relação à linguagem oral. Nela não há elipses como na linguagem interior. Quanto à sua estruturação sintática,é quase exclusivamente predicativa. De modo semelhante, na linguagem oral, a sintaxe se converte em predicativa quando o sujeito e os componentes da oração que se referem a ela são conhecidos dos interlocutores (VIGOTSKI, 1993, p. 231-232, tradução nossa). 27 Assim, de acordo com as ideias desenvolvidas por Vigotski, a linguagem escrita tem uma história na criança; o seu desenvolvimento não repete o desenvolvimento da linguagem oral, mas possibilita que a criança passe a refletir conscientemente sobre os processos envolvidos na comunicação cotidiana, à medida que passa a refletir sobre aspectos da linguagem não necessários de serem compreendidos durante o uso desse tipo de comunicação. AS RELAÇÕES ENTRE O ORAL E O ESCRITO Vigotski (1989, p. 130-131), ao analisar os resultados da pesquisa de Luria sobre o desenvolvimento da escrita, diz que as primeiras escritas significativas: Constituem símbolos de primeira ordem, denotando diretamente objetos ou ações e que a criança terá ainda de evoluir no sentido do simbolismo de segunda ordem, que compreende a criação de sinais escritos representativos dos símbolos falados das palavras. O autor explica ainda que enquanto símbolos de segunda ordem, os símbolos escritos funcionam como designações de símbolos verbais" (VIGO T SKI, 1989, p. 131). Porém, escrever não se reduz à reprodução de sons e, por isso, as investigações realizadas demonstram que a escrita infantil evolui, novamente, para um simbolismo de primeira ordem A partir da ideia de que a escrita constitui um simbolismo de primeira ordem, diz que a aprendizagem da linguagem escrita exige um alto grau de abstração, pois se trata[...]de uma linguagem sem entonação, sem expressividade, sem nada do seu aspecto sonoro. É uma linguagem no pensamento, nas ideias, portanto, uma linguagem que carece da característica mais importante da linguagem oral: o som material (VIGOTSKI, 1989, p. 229). 28 Assim, mesmo que o aluno tenha alcançado, com a ajuda da linguagem oral, um grau relativamente alto de abstração com relação ao mundo dos objetos deve desprender-se do aspecto sensível da própria linguagem, deve passar à linguagem abstrata, a linguagem que não utiliza palavras, mas ideia de palavras" (VIGOTSKI 1989, (p. 229). Para Vigotski, é exatamente esse grau de abstração da linguagem escrita que constitui uma das grandes dificuldades com que se defronta o aprendiz da linguagem escrita. Acrescenta ainda que é uma linguagem sem interlocutor. Nas conversações, em que se usa a linguagem oral, o interlocutor está presente, exige respostas, posicionamentos, dá respostas e se posiciona. De certa maneira, a linguagem escrita é uma linguagem-monólogo, uma conversação com uma folha de papel em branco, com um interlocutor imaginário" (VIGOTSKI, 1989, p. 230), o que implica, conforme o autor, dupla abstração para o aprendiz: do interlocutor e, como mencionamos, do aspecto sonoro. Considerando que a linguagem escrita é um simbolismo de segunda ordem, pois a compreensão da linguagem é efetuada, por meio da linguagem falada, diz que [...] a criança, ao pronunciar qualquer palavra, não se dá conta conscientemente dos sons que pronuncia e não realiza nenhuma operação intencional ao pronunciar um som sozinho. Na linguagem escrita, pelo contrário, deve tomar consciência da estrutura fônica da palavra, desmembrá-la e reproduzi-la voluntariamente em signos (VIGOT SKI, 1993, p. 231, tradução nossa). Neste artigo, interessa-nos exatamente o surgimento das tentativas da criança em relacionar os símbolos escritos com unidades da linguagem oral. Acreditamos, 29 assim como Vigotski que a escrita não se reduz à reprodução dos sons, mas essa compreensão integra o desenvolvimento da linguagem escrita na criança e tem que se realizar. Em termos pedagógicos, a aprendizagem do aspecto sonoro da linguagem escrita deve ser organizada possibilitando a integração desse aspecto com os significados, pois, se isso não ocorrer, a aprendizagem será reduzida a um simples processo de associação entre letras e sons e vice-versa. É importante esclarecer que faremos um recorte de uma pesquisa de caráter semilongitudinal, que abordou integradamente aspectos importantes envolvidos na aprendizagem da escrita. Participaram da pesquisa 39 crianças que estavam matriculadas na primeira série do Ensino Fundamental, em uma escola da rede pública de ensino do interior do Estado de São Paulo. Os alunos foram estimulados a escrever textos produzidos oralmente e uma produção consistiu no registro de um poema previamente escolhido. Os temas dos textos estavam relacionados com o trabalho desenvolvido pela professora na sala de aula e as atividades de registro foram propostas em quatro momentos do ano letivo. Todas as atividades realizadas pelas crianças foram filmadas e transcritas para análise. A partir das análises do modo como as crianças registravam os textos (processo de registro) e dos registros produzidos (escrita), evidenciamos as relações que as crianças, na fase inicial de alfabetização, elaboravam entre o oral e o escrito. Ferreiro e Teberosky estudaram a evolução da escrita e verificaram as hipóteses construídas pelas crianças durante o período, denominado por Ferreiro (1995), de fonetização da escrita. 30 Os trabalhos dessas autoras foram corroborados por estudos realizados por pesquisadores brasileiros. De acordo com essas autoras, a evolução da escrita em crianças pré-escolares e em crianças matriculadas em uma escola pública; todas provenientes da classe baixa, que recebiam ensino sistemático em iguais condições, sob o ponto de vista dos aportes metodológicos" (FERREIRO; TEBEROSKY, 1989, p. 238) não possui "diferenças marcantes". Em outras palavras, não há distinção na evolução da escrita entre crianças pré-escolares e crianças iniciantes de um processo escolar de alfabetização. Conforme Quadro (FERREIRO; TEBEROSKY, 1989, p. 239) - Evolução da escrita nas crianças escolarizadas — apresentado pelas autoras, os 28 sujeitos da pesquisa escreviam, no início do ano escolar, de acordo com os níveis evolutivos observados nas crianças pré-escolares. Durante o ano, foram verificadas mudanças nos níveis apresentados no início do ano. Contudo, as crianças que tinham "como nível inicial condutas do tipo 1 e 2" não alcançaram condutas do nível 5. Explicando melhor, as crianças que, no início do ano escolar, identificavam "[...l, a escrita com a reprodução dos riscos típicos do tipo de escrita reconhecida como modelo [nível I]" (FERREIRO; TEBEROSKY, 1989, p. 239) não alcançaram o final da evolução — a escrita alfabética (nível 5). Por outro lado, as crianças que se situavam no nível 4 ou entre os níveis 4 e 5, ao final do ano, adquiriram o domínio do código alfabético. O nível 4 é caracterizado, pelas autoras, como Intermediário: a hipótese formulada pelas crianças se situa entre a silábica e a alfabética: [...] a criança abandona a hipótese silábica e descobre a necessidade de fazer uma análise que vá 'mais além' da sílaba pelo conflito entre a hipótese silábica e a exigência de quantidade mínima de grafias (ambas as exigências puramente internas, no sentido de serem hipóteses originais da criança) e o conflito entre as formas 31 gráficas que o meio lhe propõe e a leitura dessas formas em termos de hipótese silábica (conflito entre uma exigência interna e uma realidade exterior ao próprio sujeito) (FERREIRO; TEBEROSKY, 1989, p. 196 e 209, grifos das autoras). Dessa forma, de acordo com os resultados da pesquisa, as crianças matriculadas nas classes de alfabetização progrediram segundo os mesmos passos da conceitualização descritos pelas autoras para aevolução da escrita nas crianças pré-escolares. O período de fonetização da escrita, caracterizado pela tentativa, por parte das crianças, de atribuição de valores sonoros às letras anotadas, inicia-se pela hipótese silábica (Nível 3). Nessa situação, cada letra corresponde a uma sílaba. Ferreiro e Teborosky (1989, p. 193) consideram essa etapa qualitativamente importante, pois [...] a) se supera a etapa de uma correspondência global entre a forma escrita e a expressão oral atribuída, para passar a uma correspondência entre partes do texto (cada letra) e partes da expressão oral (recorte silábico do nome); mas, além disso, b) pela primeira vez a criança trabalha claramente com a hipótese de que a escrita representa partes sonoras da fala. No estudo que realizamos, observamos o surgimento da tentativa de as crianças atribuírem valores sonoros às letras anotadas. Entretanto, essas tentativas não seguiram o curso evolutivo descrito pelas autoras e nem se restringiram às relações propostas entre o oral e o escrito. Observamos, como apontado por Gontijo (2001a), que as crianças elaboravam no plano verbal a análise das unidades constituintes da linguagem oral e, dessa forma, manifestavam as relações que estabeleciam entre o oral e o escrito. Para evidenciar as tentativas de as crianças relacionarem o oral e o escrito, analisaremos, primeiramente, os registros produzidos pelo aluno Ricardo no início e 32 no final do ano letivo. O primeiro registro refere-se ao texto produzido oralmente sobre sua brincadeira preferida e o segundo corresponde ao texto produzido a partir de uma história em sequência. Em seguida, mostraremos como a criança produziu os registros. Esconde-esconde Um menino fica no poste. E os outros vão se esconder. Depois, correm e dizem: — Um, dois, três, salve eu! O telefone 33 Era uma vez uma bruxa que estava dormindo no sofá. Depois, tocou o telefone e ela atendeu. O gato pegou a varinha da bruxa escondido e fez o telefone sumir. O gato viu um lanche e comeu o lanche. A bruxa acordou e viu o gato. Comparativamente à escrita elaborada no início do ano escolar, há mudanças importantes nos registros produzidos por Ricardo ao final do ano. O domínio de um número maior de letras possibilitou variação das letras usadas para compor os registros. Essa variação ocorreu, também, no primeiro registro, mas, como dominava um número menor de letras (M, E, N, B, O, l, H, R, A, V), as diferenciações entre os registros são menos evidentes. As diferenciações nos registros, no entanto, não possibilitaram a emergência de escritas significativas e, dessa forma, não proporcionaram que a criança lembrasse o conteúdo que motivou os registros. Nos dois momentos, as letras grafadas correspondiam às unidades pronunciadas no plano verbal. Dessa forma, era possível observar como compreendia as relações entre o oral e o escrito. Vejamos como ele elaborava essas relações no início do ano escolar: P.. Escreva esconde-esconde. C.: Do jeito que eu sei? P.. Do jeito que você sabe. C. - Es (grafa a letra R) com (grafa as letras OA e, em seguida, as letras DV, sem expressar os segmentos correspondentes). P.: Um menino fica no poste. C.: Um (grafa a letra O) me ni (grafa a letra E) me ni (grafa a letra l) ni no (grafa as letras MO) pos te (grafa as letras BDN) te. P.: E os outros vão se esconder. C.: E os (grafa a letra O) outros (grafa a letra E) vão (grafa a letra l) se (grafa a letra N) com (grafa a letra O) der (grafa a letra M). Assim, a criança elaborava a análise das unidades da linguagem oral no plano verbal; as letras anotadas não eram aleatórias: correspondiam às unidades pronunciadas. Para registrar as sílabas, anotou duas e uma letra. Para registrar a palavra "outros", escreveu apenas uma letra. Ao anotar duas letras não usou 34 somente o padrão consoante-vogal. Registrou consoante-consoante, vogal-vogal e, ao grafar uma letra, utilizou as vogais e consoantes. No final do ano letivo, escreveu o texto da seguinte maneira: P.: O telefone. C.: O (grafa a letra O) te, e (grafa as letras EO) fo (registra a letra O) ne (registra as letras VICI). P.: Era uma vez uma bruxa que estava dormindo no sofá. C.: E (grafa a letra R) u (grafa a letra E) ma (grafa a letra A) vez (grafa a letra E) u (grafa a letra O) ma (grafa a letra U) bruxa (grafa a letra l) que (grafa a letra C) ta (grafa a letra TA) dor (grafa a letra O) min (grafa a letra I) no (grafa a letra U) so (grafa a letra T) fa (grafa a letra O). Como pode se visto, a criança registrou, para a sílaba, uma, duas e quatro letras; escreveu uma letra para a palavra "bruxa". Desse modo, as relações entre o oral e o escrito não foram construídas, apenas, a partir dos fonemas e das sílabas. Em certos momentos, a análise incide sobre a palavra. Além disso, o número de letras usado para registrar as sílabas é variável. O fato de as crianças registrarem duas letras para as sílabas não implica, conforme nosso entendimento, compreensão do caráter alfabético da escrita. Provavelmente, a experiência escolar, baseada no registro de sílabas com duas letras (consoante-voga ), influenciou o registro de duas letras para as sílabas analisadas. Por outro lado, é importante evidenciar que a criança, desde o início do ano escolar, tentava relacionar o oral com o escrito. No primeiro momento, registrou as vogais pertencentes às sílabas analisadas; no segundo, fez esse mesmo tipo de registro, escreveu corretamente a sílaba "ta" e registrou a sílaba "te" com duas vogais. Nesse sentido, podemos observar que, para uma mesma unidade analisada, os registros correspondentes são variados. Além disso, a análise incidiu sobre as unidades palavra e sílaba. 35 Os exemplos são interessantes e evidenciam que coexistem, na mesma criança, diferentes maneiras de registrar uma mesma unidade (sílaba) e que a análise pode incidir sobre diferentes unidades (palavra ou sílaba). Com referência à primeira constatação, podemos dizer que não há novidade em relação à hipótese silábica observada por Ferreiro & Teberosky (1989). A novidade reside no fato de a criança registrar quantidades distintas de letras para as sílabas (4, 2 e I letra) e no fato de a análise incidir, também, sobre a palavra. Analisaremos o registro elaborado por Nilton e o modo como foi produzido para destacar a relação construída pelo aluno entre o oral e o escrito. Marcelo, marmelo, martelo Marcelo era um menino que queria outro nome. Ele queria que o seu nome fosse marmelo. A sua mãe disse que marmelo é nome de fruta. Ele queria que o seu nome fosse martelo e a sua mãe disse que martelo era nome de ferramenta. A escrita produzida pelo aluno não é legível. Entretanto, é interessante observar que utilizou os mesmos segmentos de letras, em dois contextos, para escrever as palavras "Marcelo e martelo". Ele registrou "mão e Mnto", respectivamente, para as palavras. Pode-se observar, então, que compreendeu que não há distinções nas grafias usadas para escrever a mesma palavra. Gontijo (2001b) e Gontijo e Leite (2002) discutiram essa questão e evidenciaram, a partir da análise dos textos produzidos pelas crianças, que as indistinções na escrita possibilitam a emergência de escritas significativas, ou seja, proporcionam que as crianças passem a se relacionar com a escrita para lembrar os significados anotados. 36 Observemos, portanto, como a criança escreveu o texto: P.: Vamos escrever o título da história: Marcelo, marmelo martelo. C.: Marcelo (registra as letras MAO), Marcelo, marmelo (registra as letras ETRO MNTO). P.: Pode falar em voz alta para te ajudar a escrever. Marcelo era um menino que queria outro nome. C.: Marmelo. P.: Marcelo eraum menino que queria outro nome. C.: Marcelo, Marcelo (registra M) era (registra a letra A) um (registra a letra O) menino (registra a letra E) que (registra a letra O) queria (registra a letra R) o (registra as letras OC) tro nome (registra a letra A) mar. P.: Você disse, então: Ele queria que o seu nome fosse marmelo. C.: Ele (registra a letra E) que, queria (registra a letra D) que o (registra as letras TO) seu nome (registra a letra I) fosse (registra a letra CO) martelo, né? P.: Você falou marmelo. C.: Mar (copia as letras MNTO do título) martelo. P.: A sua mãe disse. C.: A. Pode escrever aqui? (Aponta a outra linha). P.: pode. C.: A (registra a letra A) sua (registra a letra M) mãe (registra a letra O) disse que (registra a letra T) martelo. P.: Marmelo. C.: É. Marmelo (registra a letra M). É borracha isso daqui? (apaga a letra M). Marmelo, né? O modo como Nilton escreveu o texto produzido oralmente é muito interessante. Por meio da fala, presente durante o registro, verificamos que grafava cada letra a partir da análise da unidade palavra. Para registrá-la, utilizava uma e duas letras (registrava com maior frequência uma letra). Em uma situação, a análise incidiu sobre a sílaba e registrou duas letras correspondentes. Se compararmos os 37 registros produzidos por Ricardo e Nilton, veremos que Ricardo se detinha mais intensamente na análise das sílabas. No caso de Nilton, ocorreu exatamente o contrário, a análise incidiu quase exclusivamente sobre as palavras e no registro de correspondentes gráficos para essa unidade. Dessa forma, as tentativas de atribuir valores sonoros às letras anotadas não começam ou não se restringem à análise da sílaba, como demonstraram Ferreiro e Teberosky (1989) em seus estudos. Em algumas situações, as crianças analisam a palavra e registram letras correspondentes a essa unidade. Além disso, ao anotar essa unidade, utilizam um número variado de letras. O mesmo ocorre com as sílabas. O que tornou possível a verificação do registro correspondente à unidade analisada e a identificação de quais unidades eram analisadas foi à presença da linguagem durante o registro dos textos. Como mostram os exemplos anteriores, as crianças elaboravam, no plano verbal a análise das unidades da linguagem oral e registravam grafias correspondentes às unidades analisadas. Assim sendo, consideramos que o exame da linguagem, presente durante os registros, é fundamental para o entendimento de como as crianças compreendem as relações entre o oral e o escrito durante o processo de alfabetização. Mostraremos o registro de Natália e como foi elaborado. O exemplo possibilitará a análise da linguagem presente durante o registro. Batata quente Pegar uma bolinha. Uma criança tem que ficar de pé para dizer: 38 — Batata quente, quente, quente, quente. Depois, aquele que queimar vai falar batata quente no lugar do outro. Como podem ser observadas, na escrita produzida pela aluna, algumas palavras podem ser interpretadas. Ela explicou a brincadeira Batata quente. Usou as letras ce" para escrever a sílaba "quen" da palavra quente. O primeiro enunciado "pega uma bola" pode ser lido integralmente, mesmo tendo dito, durante a produção oral, "pegar uma bolinha". Nas outras partes do texto, podemos observar registros para as palavras que não possibilitam a sua leitura e a utilização do mesmo segmento de letras — "batatacete" para as palavras batata quente, nos três contextos em que foram escritas. Vejamos como ocorreu o registro da brincadeira. 39 P.: O nome da brincadeira é batata quente. C.: Ba (grafa a silaba BA) bata (registra a sílaba TA) ta, é o t e o a de novo (registra a sílaba TA) quen, ca, que, ca, que (registra as letras CE) batata quente, te, ta, batata quente (registra a sílaba TE). P.' Pegar uma bolinha. C.. Pe, pa, pe. Separado, não é? P.: Pode escrever na outra linha. C: (Registra a sílaba PE). P.: Pegar uma bolinha. Você já escreveu o PE. C.: (Apaga e escreve a letra P novamente). Pe, gar. É o ga de gato? P.: É o ga de gato. C.: Gart pegar (registra a sílaba GA) pegar. P.: Uma. C.: É o u e O m de macaco? P.. É. (Registra as letras UM). P.. Uma bolinha. Bo, ba, be, bi, bo (registra a palavra BOLA). P.: Muito bem! Aí você disse o seguinte: uma criança tem que ficar de pé C.. Uma cri, cra, cre, cri, ca, que, qui, uma cri, cri, cra, cre, cri, é o "K" eo "i", né? P.: Isso. C : (Registra as letras CI). Uma cri, an, an. Como é o an? P.. C.: Ah! O "n" de Natália? P.. Isso o "n" de Natália. C.: (Registra as letras NA). Uma cri, an, ça, uma cri, an, ça tem uma cri, an, an, ça, ça, se, si. É o "sa" de sapo, com o quê? P.: Com o "a", não é isso? C.: (Registra a sílaba SA). 40 P.: Uma criança. C.: Tem P.: Tem C : Te, tem (sussurra a família silábica) te, te. É o "t" e o "i", né? P.: É o "t", isso! C : (Registra as letras TU). P.: Tem que. Que, ca, que, qui, co. Pera aí Ca, que. É o e O P.: Tem que.. C.: Separado? P.: Separado. C.: (Registra as letras CE). P.. Ficar. C . Fi, fa, fe, fi (registra a sílaba FI apaga e acerta a letra F) ficar é o "K" e o "a" P.: De pé. C : Pé, é "p" e o P.: (Confirma). C : Separado (registra a palavra PÉ). Pé. P.: Você escreveu o quê? C : Pé. Tem que ficar de pé P.: E aí não está faltando nada? (a criança não escreveu a palavra "de") C.: Aqui, né (aponta entre as palavras fica e pé). P.: O que está faltando aí? C : É de ficar [...] tem que ficar de, da, de (escreve as letras DE) é o "d" separar aqui (apaga e escreve a palavra pé separada)... Não continuaremos a descrever o processo de registro, pois, com o que foi escrito, é possível perceber todo o esforço da criança para elaborar a escrita. A linguagem estava presente durante toda a atividade. Podemos dizer que havia dois tipos de linguagem: uma direcionada para a pesquisadora, para receber confirmação sobre como deveria registrar uma sílaba e sobre onde deveria colocar os espaços em branco na escrita; e a outra visava a encontrar, por meio da repetição oral das famílias silábicas, as letras correspondentes à sílaba que era pronunciada. 41 Desse modo, podemos dizer que a primeira era comunicativa, pois estava direcionada para uma outra pessoa, e a segunda era egocêntrica, porque a criança não se dirigia a nenhum interlocutor em particular. Ambas, no entanto, estavam orientadas para a resolução da atividade proposta: registrar o texto produzido oralmente Para Vigotski (1993), os dois tipos de linguagem têm origens sociais, mas possuem funções diferentes. A linguagem comunicativa tem a função de estabelecer contato social, comunicação com as outras pessoas, obter resposta a uma pergunta ou intervir sobre os outros. No caso de Natália, para receber confirmação sobre as letras que deveriam ser escritas e sobre onde deveria colocar os espaços em branco. Assim, ao mesmo tempo em que a linguagem atuava sobre a outra pessoa, exigindolhe um posicionamento, exercia uma ação sobre a própria criança que, ao receber a confirmação, concluía a atividade A linguagem atuava ainda como recurso que lhe permitia encontrar as letras adequadas à sílaba que desejava escrever. É possível dizer que atuava como signo, tal qual quando as crianças contam nos dedos para lembrar a grafia de um numeral. Nesse sentido, a recordação da letra adequada à sílaba não se estabeleceu por meio de um processo associativo direto entre as sílabas (unidades sonoras analisadas) e letras, mas foi mediada pela linguagem. A atividade de escrita tornou-se demorada e penosa para a menina que tinha que recitar as famílias silábicas até encontrar as letras que desejava escrever. Isso fazia também com queesquecesse o conteúdo da frase que deveria ser escrita e, por isso, tivemos que repetir as palavras de cada frase. Vigotski analisou as investigações de Piaget destinadas a explorar as funções da linguagem na criança. Piaget, a partir de suas investigações, concluiu que a linguagem infantil pode ser dividida em egocêntrica e socializada. Para esse autor, a linguagem é egocêntrica, porque a criança ao pronunciar as frases do primeiro grupo [...] não se preocupa em saber a quem fala nem se é escutada. Ela fala seja a si 42 mesma, seja pelo prazer de associar qualquer um a sua ação imediata (VIGOTSKI, 1986, p. 7). Dessa forma, a linguagem egocêntrica se distingue da linguagem socializada em sua função. Por meio da linguagem socializada, a criança tenta estabelecer trocas com os outros "[...J seja informando o interlocutor de qualquer coisa que possa interessar a ele e influir sobre sua conduta, seja havendo troca verdadeira, discussão, ou mesmo colaboração em busca de um objetivo comum" (VIGOT SKI, 1986, p. 7). Vigotski aprecia o valor da descoberta de Piaget e, a partir de um exame detalhado das investigações e conclusões desse autor, conclui que, para Piaget, "a linguagem da criança pequena é, em sua maior parte, egocêntrica. Não serve aos fins nem às funções de comunicação, serve somente para acompanhar a atividade e as sensações da criança" (VIGOTSKI 1993, p. 49). Então, a linguagem egocêntrica não desempenha nenhuma função importante na atividade infantil. Ela aparece, segundo Vigotski (1 993, p. 49, tradução nossa): [...] nas descrições de Piaget como acessório da atividade infantil, como um reflexo da natureza egocêntrica do seu pensamento. É uma linguagem para si mesmo, para sua própria satisfação; poderia não se manifestar, e sua ausência não modificaria em nada a atividade infantil. Poder-se-ia dizer que essa linguagem infantil, subordinada completamente aos motivos egocêntricos, é quase incompreensível para as pessoas que cercam a criança, é algo como um sonho verbal; produto de sua mente, mais próxima à lógica das ilusões e dos sonhos que do pensamento realista. Diretamente ligada à afirmação de que a linguagem egocêntrica não desempenha função importante na atividade infantil, Piaget crê que "atrofia e desaparece na idade escolar". Vigotski acredita, contrariamente, que a linguagem egocêntrica assume, desde a mais tenra idade, uma função importante e definida na atividade infantil; se converte em um instrumento para pensar no sentido estrito, ou seja, começa a exercer a função de planejar a resolução da tarefa surgida no 43 curso de sua atividade [grifo nosso]" (VIGOTSKI, 1993, p. 51). A atividade realizada por Natália evidencia que a linguagem egocêntrica, presente durante o registro, converteu-se, efetivamente, em um instrumento para pensar as letras que serviam para escrever as sílabas. Verificamos que, em certo momento do processo do desenvolvimento da escrita, essa linguagem deixa de se manifestar. Poderíamos pensar, de acordo com as pressuposições de Piaget, que ela se atrofiou e desapareceu. Entretanto, não cremos que isso aconteça. Segundo a interpretação de Vigotski (1993, p. 52), a linguagem egocêntrica é considerada uma etapa transitória na evolução da linguagem externa à interna". Essa conclusão advém do fato de a linguagem egocêntrica e a linguagem interior possuírem semelhanças na estrutura e quanto à função. A linguagem egocêntrica, assim como a linguagem interior, isolada do contexto em que foi produzida, pode se tornar incompreensível para os outros, pois é condensada, tende à omissão e à abreviação e não tem por finalidade estabelecer comunicação com as outras pessoas. Desse modo, acreditar que a linguagem egocêntrica atrofia e desaparece é imaginar que as crianças deixam de pensar quais letras servem para anotar as sílabas ou as palavras quando deixam de pronunciá-las em voz alta. A consolidação da aprendizagem das letras correspondentes aos sons e vice-versa possibilita que a escrita evolua para um simbolismo de primeira ordem, ou seja, torna-se direta, sem precisar que a criança elabore tão detidamente a análise das unidades sonoras para registrar seus correspondentes gráficos. Assim, os nossos estudos sobre a linguagem escrita e, portanto, a observação da linguagem presente durante os registros dos textos evidencia a sua natureza social e aponta principalmente que a verdadeira direção do desenvolvimento do pensamento da criança não vai do individual ao socializado, mas do social ao individual" (VIGOTSKI, 1993, p. 59). A criança começa, por meio da linguagem, a 44 construir as relações entre o oral e o escrito elaboradas socialmente. Essa descoberta é fundamental para as crianças como foi para os homens ao longo da sua história social. Ainda é importante ressaltar que a análise desenvolvida por Natália incidia sobre as sílabas. Para cada sílaba analisada, eram registradas duas letras, observando sempre o padrão consoante-vogal. As sílabas simples, organizadas a partir desse padrão, eram privilegiadas pela professora no início da alfabetização e, por isso, Natália as usava sempre; mesmo quando teve, por exemplo, que registrar a sílaba "an" da palavra "criança' CONSIDERAÇÕES FINAIS Vigotski (1993) diz que as expressões egocêntricas da criança, à medida que a atividade evolui ditam a atividade, assumindo a função de planificação e direção. Acreditamos que, efetivamente, isso ocorre, tendo em vista que a criança, ao tentar escrever como os adultos, usando letras, inicialmente, reproduz as características externas/aspectos formais de um texto escrito. Ao elaborar a análise das unidades da linguagem oral no plano verbal, a criança deixa de reproduzir essas características e passa a organizar a escrita com base nessa análise. Desse modo, a quantidade de letras anotadas passa a ser ditada pela linguagem, pois, para cada unidade pronunciada, são definidas quantas e quais letras devem ser anotadas. Ao definir que a linguagem egocêntrica representa uma fase prévia ao desenvolvimento da linguagem interna" (1993, p. 30), Vigotski forneceu um método de investigação para o entendimento de como as crianças passam a elaborar para si os conhecimentos construídos socialmente. Em outras palavras, a análise da linguagem egocêntrica e por meio dela é evidenciada a transição das funções interpsíquicas (que se constituem no plano social, entre as pessoas) para as funções individuais (para o próprio indivíduo). Assim, por meio da linguagem egocêntrica, é 45 possível observar como as crianças começam a elaborar para si mesmas as relações entre o oral e o escrito e como esse processo se desenvolve. Finalmente, é importante reiterar que a compreensão do aspecto sonoro da linguagem escrita integra o processo da apropriação da escrita pelas crianças. Entretanto, essa compreensão não deve ocorrer desintegrada do aspecto semântico, pois, conforme aponta o próprio Vigotski, palavras sem significados são sons vazios. Nesse sentido, em termos pedagógicos, o bom ensino será aquele que consegue integrar essas e outras facetas (usando a terminologia de SOARES, 1995) da linguagem escrita. 46 REFERÊNCIAS BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. DEFIOR, S. Conocimento fonológico y lectura: el paso de Ias representaciones inconscientes a Ia conscientes. Revista Portuguesa de Pedagogia Leitura, Universidade de Colômbia, Faculdade de Psicologia de Ciências da Educação, ano 32, p. 5-27, 1998. FERREIRO, Emília. Desenvolvimento da alfabetização: psicogênese. In: GOODMAN, Y. (Org.). Como as crianças constroem a leitura e a escrita. Porto Alegre:Artes Médicas, 1995. Reflexões sobre alfabetização. 16. ed. São Paulo: Autores Associados, 1990. FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. 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