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Resenha Descritiva - 'Arte ou artefato', por Els Lagrou

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS 
ESCOLA DE BELAS ARTES
CURSO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURAÇÃO DE BENS CULTURAIS MÓVEIS 
ARTES VISUAIS NO BRASIL I – Prof.ª RITA LAGES RODRIGUES
ALUNO: KERSON DE SOUSA ARAÚJO MACHADO 
Resenha Acadêmica Descritiva I
“Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas”, texto por Els Lagrou
Belo Horizonte
2020
Kerson de Sousa Araújo Machado
“Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas”, texto por Els Lagrou
Resenha Acadêmica Descritiva apresentada como requisito para a obtenção de nota parcial da disciplina de Artes Visuais no Brasil I, pelo curso de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis, da Universidade Federal de Minas Gerais, ministrada pela professora Rita Lages Rodrigues.
Belo Horizonte
2020
“Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas”
LAGROU, E. Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas. IN: Proa – Revista de Antropologia e Arte [on-line]. Ano 02, vol.01, n. 02, nov. 2010.
Els Lagrou é Professora Titular do Departamento de Antropologia do IFCS-UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA). Possui doutorado em Antropologia Social pela University of St. Andrews, sob orientação de Joanna Overing (1998) e pela Universidade de São Paulo (1998). Seus interesses de pesquisa incluem a etnologia ameríndia, seus regimes ontológicos, sociais e estéticos, assim como a antropologia das formas agentivas e expressivas; temas sobre os quais publicou muitos capítulos e artigos em livros e revistas nacionais e internacionais. Dentre suas publicações, pode-se citar “A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica” (Topbooks, 2007); “Artes indígenas no Brasil” (ComArte, 2009); e “No caminho da miçanga, um mundo que se faz de contas” (UNESCO/FUNAI, 2016), catálogo da exposição homônima da qual foi curadora. É membro, desde 2020, do projeto de pesquisa Environmental Justice, Belief Systems, and Aesthetic Experiences in Latin America and the Carribean, do Center for the Study of Social Difference (CSSD) e o Institute for Religion, Culture, and Public Life (IRCPL) com Ana Ochoa e Vicky Murilo.
Seu texto “Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas”, publicado em 2010, na Revista de Antropologia e Arte, propõe, em 26 páginas, uma discussão acerca dos possíveis desdobramentos teóricos de um olhar etnológico para as artes indígenas no Brasil. Para tal, são explicitados fatos sobre a história da arte na modernidade e na contemporaneidade, procurando, em seguida, encontrar semelhanças e diferenças com a arte ameríndia. São expostos exemplos de comportamentos, valores e tradições em diferentes comunidades, relacionando-os com a consequente produção de arte/artesanato por elas, bem como trazendo inferências acerca dos significados. Por fim, há uma tentativa de conceber aprendizados para com a arte indígena americana, pensando no futuro da cultura/arte em nossa sociedade.
A primeira parte do texto consiste em um compilado de informações gerais acerca daquilo que é conhecido como ‘arte indígena’, com um enfoque nas concepções teóricas mais recentes de seus significados e sua relevância. A ressalva inicial é referente ao fato desses povos [ameríndios] não partilharem da nossa mesma noção de arte, uma vez que não apresentam palavras ou conceitos equivalente aos de arte e estética (como em nossa tradição ocidental), nem tampouco parecem representar, nos seus modos de valorizar, saber e fazer, algo parecido com o fazer e pensar do Ocidente neste campo. Daí a importância de se adotar uma visão não etno ou eurocêntrica, que defende a universalidade da sensibilidade estética, nem, na posição contrária, de denúncia do ‘esteticismo’ como essencialmente valorativo, apreciativo e, portanto, discriminatório. Perpassa-se ainda, na discussão, pelo tradicional problema da distinção entre arte e artefato, bem como o papel da inovação nas produções artísticas dos grupos ameríndios. 
Tais questões, contudo, para muito além de discussões internas e acadêmicas, não resultam em uma hipotética impossibilidade, em outras sociedades, da existência de uma percepção sensorial que gere certas apreciações qualitativas similares às que conhecemos, entre nós, como ‘fruição estética’. Não é porque a estética e os valores dos indígenas americanos não condizem aos nossos conceitos/moldes tradicionais, que esses povos não teriam formulado seus próprios termos e critérios para distinguir e produzir ‘beleza’, cuja motivação da busca pode variar enormemente, podendo não adquirir a mesma ‘aura de veneração’ do Ocidente pós-iluminista. A própria arte conceitual contemporânea (dominante atualmente), em sua maioria, pouco tem de remanescente da apreciação do ‘belo’ da origem da filosofia moderna sobre arte e estética no século XVIII. Em uma linha de raciocínio similar, a arte ameríndia pode estar, por vezes, mais intimamente ligada à provocação de processos cognitivos no espectador. Muitos artefatos e grafismos que marcam o estilo de diferentes grupos indígenas são materializações de complexas redes de interações socioculturais, supondo conjuntos de significados (condensam ações, relações, emoções e sentidos).
Já em um segundo momento, a autora se propõe a analisar o que poderíamos aprender com o conjunto de produções artísticas desses meios autônomos de produção, traduzindo-as para o contexto urbano atual (seguindo uma tendência internacional). A maior diferença citada por ela é que os povos indígenas não fazem uma separação entre a arte e o artefato (há sim coexistência e sobreposição), algo que ainda nem sequer os artistas conceituais modernos chegaram a questionar em nossa cultura, uma vez que essa distinção continua sendo crucial à definição/existência do próprio campo. Outra diferença apontada foi a da impossibilidade, nessas sociedades ameríndias, de se separar a vida em comunidade e a arte produzida por ela, bem diferente da modernidade urbana, na qual o artista é visto na figura de um indivíduo com ‘gênio’ que essencial e incessantemente cria e recria (inovador incessante). Ele, com inspiração e legitimidade próprias, livre das limitações do “senso comum”, é o agente primeiro nos processos de produção de suas obras, cujo propósito único é o de ser uma ‘obra de arte’ (“arte pela arte”). Primordialmente desse pensamento, provém a nossa dificuldade em conceber a autonomia pessoal e a criatividade individual fortemente associada à vida em sociedade. Segunda a autora, ao afirmarmos que na coletividade há poder de coerção (a princípio, inconveniente para a nossa produção artística), é natural que a capacidade de criatividade seja projetada para fora da vida social, assim, o artista perde a habilidade e a preocupação com a comunicação. Na maior parte das sociedades indígenas, o papel de artesão/artista não é uma especialização e não há tampouco uma possível desconexão entre seu fazer e as preocupações do grupo. Uma vez que uma técnica compete às pessoas de seu gênero ou determinado segmento social, cada membro da sociedade pode se tornar um especialista no seu desempenho. Aqueles que se sobressaem acabam por ser considerados ‘mestres’ [do seu ofício].
Na sequência, a autora traz a proposta de Lévi-Strauss para uma interpretação antropológica da diferença entre arte moderna (“acadêmica”) e “primitiva” (1989), na qual há três diferenças claramente distinguidas. A primeira delas concerne ao rompimento entre o indivíduo (artista) e a sociedade, em nossa cultura, como já citado anteriormente, que é inconcebível no ponto de vista dos índios. Já a segunda diferença trata do fato da arte “primitiva” pretender somente à significação, enquanto a arte ocidental permanece muito representativa e possessiva, mesmo após o confrontamento por parte dos cubistas, que recriavam e ressignificavam, ao invés de trabalhar com a imitação. Por fim, a terceira seria que a arte ocidental moderna tende a se prender sobre/acerca si mesma, algo que veio a ser desconstruído, primeiramente,
com as “pesquisas de campo” dos impressionistas. A primeira e essencial diferença, porém, continua sem superação para nós, e, assim, perpetuamos a separação da arte com seu público, uma vez que cada artista se sente no dever de inventar seus próprios estilos e linguagens, muitas vezes ininteligíveis.
Em um terceiro momento, o texto aborda vários exemplos de povos indígenas brasileiros e sua relação com a produção de artes/artefatos. Para os Kaxinawa (Acre), o japim, pássaro que tece ninhos longos e elaborados, por entre os galhos das árvores, serve de metáfora para indicar a excelência na [arte da] tecelagem, bem como em outras funções delegadas às mulheres. A mestre (liderança feminina da aldeia) na arte da tecelagem, chamada de ainbu keneya (‘mulher com desenho’) ou ainda de txana ibu ainbu (‘dona dos japins’), é responsável pela organização do trabalho coletivo do preparo do algodão, e este mesmo título é atribuído às mulheres que lideram o canto feminino durante a performance ritual. O pássaro, que consegue imitar o canto de outros animais, também serve de referência aos homens, dentro de sua esfera específica de produtividade (valor ‘produtivo’ costuma importar mais que o ‘representativo’), na caça. O líder de canto masculino leva igualmente o nome de txana ibu (‘dono dos japins’). Tecer e cantar acabam sendo duas formas de atividade produtiva, presentes no cotidiano dos Kaxinawa, a partir de uma estética [na arte] própria do modo de vida deles. O japim, portanto, serve como o modelo de artista a ser alcançado, porque, além das suas capacidades, têm o hábito da vida em comunidade (considerado a condição primária para quaisquer outras habilidades), assemelhando-se aos humanos. Já no grupo Bororo, do Brasil Central, a produção artística é bastante distinta, não derivando do “aperfeiçoamento das capacidades produtivas acessíveis a cada gênero, respectivamente. Entre os Bororo a fabricação dos diferentes enfeites plumários, das braçadeiras aos cocares, se organiza de acordo com uma lógica clânica, reservando a utilização de determinados ingredientes (tipos de penas de aves específicas e de determinadas cores) e a produção de certos objetos a determinados grupos rituais” (DORTA, 1986; CAIUBY NOVAES, 2006).
Para os Kayapó-Gorotire, o nome da pessoa é a condição para o direito/privilégio de uso de determinados enfeites e desempenho de certas tarefas, apesar dessa divisão não corresponder à ideia comumente associada, entre nós, de especialização (artesanal ou profissional), uma vez que todos os membros, de todos os grupos dessa comunidade, podem [e devem] produzir algum dos tipos de enfeite ou artefato. A depender da arte em questão, as variáveis responsáveis pelo êxito do trabalho variam. Por exemplo, quando o que predomina é a dificuldade técnica; concentração, habilidade, perfeição formal e disciplina do mestre, são os fatores considerados. Diferentemente, quando o que predomina é a expressividade, há quase sempre a atribuição desta a seres não-humanos [ou divindades], os quais aparecem em visões e/ou sonhos, e são os responsabilizados pela ‘criatividade’ nas criações (como música, dança e fabricação de imagens palpáveis). O artista (quase sempre coincidindo com a figura do xamã), para o qual as capacidades de diálogo, percepção e interação são primordiais, apenas capta, traduz e transmite as mensagens (como é exemplificado no caso dos índios Araweté). 
Entre os Wayana, é inconfundível a necessidade de se manter o ‘modelo’, derivado da tradição de seu povo. A inovação por si só é perigosa, uma vez que seria uma contestação clara aos ‘demiurgos dos tempos da criação’, que pré-estabeleceram o modo correto de produção artefatual. Como consequência, a tradução do ser em artefato pode chegar a ser tão completa que ele ganha vida própria e poder de agir. Tal conservadorismo estilístico remete a um outro grupo, os Wauja (Alto Xingu), que, ao produzirem suas máscaras rituais, precisam estar atentos à arriscada empreitada de se copiar o ‘modelo’, uma vez que o erro pode induzir uma vingança daquele que se tentava reproduzir no artefato. No caso Pirahã, porém, essa concepção é um tanto distinta, os humanos não fariam outra coisa que tentar imitar a perfeição tecnológica do deus criador através do experimento (conceito importante à sua cultura), que produz o evento. A partir dos diferentes experimentos, produzindo efeitos sempre novos, mas que remetem ao ‘modelo’, eles conseguem construir uma imagética altamente estética, com precisão e detalhamento. Os atos e os eventos, sempre únicos e diferentes aos anteriores, refletem um mundo em constante mudança, inacabado, resultando em uma visão imperfeita tanto da criação quanto da imitação da natureza.
Então, em um quarto e último momento, a autora descreve a história por trás do estudo da arte ‘primitiva’ no ocidente, partindo da prática do colecionismo (‘gabinetes de curiosidade’), tanto associado à uma motivação educativa, quanto à manutenção de uma estrutura de poder sobre outras culturas (consideradas ‘primitivas’). Na modernidade, o fenômeno artístico foi associado ao ‘extraordinário’ e ao ‘sublime’ (dando ênfase quase unicamente às modalidades representativas e figurativas), sendo sua primeira referência a arte greco-romana clássica, que havia se desenvolvido em um grandioso contexto imperialista. Os colecionadores de arte ‘primitiva’ muitas vezes só escolhiam as peças tidas como ‘incomuns’ para incluir em suas coleções de arte não-ocidental, enquanto desconheciam o fato de que a maior parte das produções artísticas indígenas eram as de uso cotidiano, que talvez trouxessem consigo mais ensinamentos do que os objetos ‘diferentes’, e que não havia, para esses povos, a nossa mesma lógica de apreciação valorativa do ‘incomum’. Para os ameríndios, a ‘eficácia da arte’ depende diretamente da sua capacidade agentiva (ajuda a fabricar o mundo em que vivem), não sendo necessário, portanto, que a forma seja ‘bela’ ou que imite a realidade. Entender isso permitiu que nos esquivássemos do segundo dos pressupostos que definem a discussão no campo das artes no Ocidente. 
Arthur Danto (1989), importante filósofo de arte, definiria a arte como um objeto que foi produzido consonantemente em diálogo com a história da arte. Para que aquela se diferenciasse de um simples artefato cotidiano e utilitário, deveria se tornar obra de reflexão. Mesmo no que diz respeito ao contexto nativo, no qual os objetos podem possuir ambas as dimensões de arte e artefato, afirma ser possível uma certa distinção. Alfred Gell viria a criticar a forma como Danto definia interpretativamente a arte (2001), uma vez que mostrou a possibilidade de instrumentalidade e arte não serem mutuamente excludentes, e, sim, complementares. Sendo assim, um objeto utilitário do cotidiano, analisado em seu contexto, poderia representar, melhor que aquele considerado ‘arte’, a cultura daquele que os produziu. A eficácia, tanto instrumental, quanto possivelmente sobrenatural, reside na relação complexa entre intencionalidades diversas, interconectadas através do artefato. Essa forma de entender a arte indígena superava a clássica oposição excludente entre arte e artefato, incluindo agência e eficácia onde a definição clássica só permitia ‘mera’ contemplação. A separação entre capacidade produtiva e reflexiva, proposta anteriormente por Danto, para salvar a ‘noção de arte’ e protegê-la do conceito de artefato, não tem lugar no mundo indígena. Também, no universo ameríndio, a cópia da natureza na arte se dá muitas vezes por meio de métodos e materiais semelhantes ao seu correspondente original, adquirindo uma mesma ‘natureza’ que o modelo, diferenciando-se da arte ocidental, na qual o objeto pretende somente invocar ou representar uma imagem. Assim, os artefatos e os corpos se associam de uma forma conceitual densa.
Um olhar etnológico específico para a arte (sendo ela estética, interpretativa ou institucional) exige que não haja inferências a partir de preconceitos. Entender a estrutura sociocultural dos ameríndios
depende de uma inversão de perspectiva, na qual compreendemos sua sociedade enquanto uma construção histórica particular/única, de construção de mundos. Pois, ao tentar entendê-la pela nossa ótica, só chegaríamos a um cenário em que há ‘falta’: falta de complexidade, falta de técnica produtiva, falta de capacidade etc.; paradigma esse que já foi superado filosofia da arte. 
O texto é direcionado, majoritariamente, ao público acadêmico, uma vez que traz inúmeras referências acadêmicas (requer conhecimento prévio), as expõe nos moldes de uma revista especializada em que foi publicada (linguagem pouco acessível) e fala diretamente com os estudantes, professores e pesquisadores, estudiosos e conhecedores (connoisseurs), como a própria autora escreveu.
Kerson de Sousa Araújo Machado, acadêmico do curso de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis, da Universidade Federal de Minas Gerais.

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