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C A PÍT U LO 5 A CU RA COM O CU ID AD O DE SI Abandona a tua dor, antes de ser abandonado por ela. Sêneca 5.1. CURASUI CURA, AO ATRAVESSAR UM RIO, VIU UMA MASSA DE ARGILA E, mergulhada em seus pensamentos, apanhou-a e come çou a modelar a figura. Quando deliberava sobre o que fize ra, Júpiter apareceu. Cura pediu que ele lhe desse uma alma à figura que modelara, e facilmente conseguiu o que pediu. Como Cura quisera de si própria, dar um nome à figura que modelara, Júpiter proibiu e prescreveu que fosse dado o seu. Enquanto Cura e Júpiter discutiam, Terra apareceu e quis que fosse dado o seu nome a quem ela fornecera o corpo. Saturno foi escolhido como árbitro. E este equitativamente assim jul gou a questão: Tu Júpiter, porque lhe deste a alma, tu a terás depois da morte. E tu, Terra, porque lhe deste este corpo, tu o rece- berás após a morte. Todavia, porque foi Cura quem pri meiramente modelou, que ela a tenha, enquanto a figura viver. Mas, uma^vez que existe entre vós uma controvérsia sobre o nome, que ela seja chamada Homem, porque feita de húmus’. (Rocha, 2000 [citação modificada]) A fábula acima foi compilada pelo poeta latino Higino (50-139 d.C.), no contexto da elaboração de um mito grego. Zeferino Rocha, que traduziu este trecho, escolheu o termo angústia para traduzir a expressão latina cura. Isso se justifica no contexto do comentário de Heidegger para quem angústia, cuidado e cura reúnem-se em uma disposição ou abertura pri vilegiada para o ser (.Dasein). Cura é de fato uma palavra que admite extensa conotação em latim. Em sentido próprio de signa cuidado, mas há tantas atividades, disposições e estados da alma envolvidos no cuidado que esta parece umá daquelas expressões que sabemos empregar melhor do que definir. Na língua administrativa cura indica encargo, incumbência ou ta refa. No vocabulário militar oü doméstico designa o guarda dor, vigia ou guarda. Na língua médica indica, como já vimos, tratamento ou cura. Na língua jurídica é a causa ou objeto de preocupação e inquietação. Também na linguagem amorosa designa o objeto amado e por extensão a própria atividade de amar. Usa-se também cura em latim para designar um livro ou uma obra literária. Um levantamento mais sistemático destas conotações da cura permite agrupar seu sentido em quatro dimensões (Muchail, 2007, pp. 26-27): (1) atos de conhecimento regidos p elo olhar — nesta acepção cuidar liga-se ao olhar, por exemplo, quando dizemos “olhar a casa” ou “olhar as crianças”. Cuidar implica um determinado estado de atenção, concentrado e disperso. Daí a imagem de alguém que volta o olhar sobre si, como alguém que olha e se preocupa com sua própria casa. Daqui procedem tanto as técnicas cristas do auto-exame e da auto-observação quanto os métodos psicológicos baseados na introspecção. É preciso mencionar ainda os diferentes empreendimentos filosóficos baseados na auto-reflexão, na meditação e na especulação; 194 (2) movimento não só do olhar, mas da existência p o r inteira — aqui encontramos o sentido da cura como recolhimento, re tirada ou orientação para si. Trata-se da acepção forte de con versão (refluir sobre si) como retorno a um lugar próprio. Daí o sentido heideggeriano da cura como temporalidade da con sistência e da inconsistência de si-mesmo (Heidegger, 1927, p. 127). Esta ek-stase das diferentes temporalidades de si, na disposição, ná decisão, na decadência, no poder-ser reúnem- se na cura como abertura para a existência como finitude. Na abertura do ser como ser-para-a-morte; (3) atividades ou condutas particulares — aqui a cura designa um processo de tratamento da alma que pode ter uma conota ção médica, como na ideia de que uma escola de filosofia é um “hospital da alma” ou na metáfora jurídica de “fazer valer seus direitos”, “liberar-se”, “desobrigar-se”, e ainda na metáfora re ligiosa de “cultivar-se”, ou “retomar o respeito por si”. E nesta acepção que encontramos as diferentes combinações entre as estratégias clínicas e táticas psicoterapêuticas que estamos des crevendo neste livro. Sua matriz é a filosofia helenística desen volvida entre o apogeu do pensamento grego e a ascensão do império romano; (4) tipo de relação perm anente consigo — neste caso incluem- se tanto a noção de soberania, tais como “ser senhor de si” quanto sensações consigo e percepções de si tais como “sentir prazer consigo” ou “alegrar-se consigo”. O herdeiro mais claro desta acepção da cura é Nietszche. Entendendo que a arte da cura (Heilkunst) passa pelo diagnóstico de sua época, domina da por esta patologia chamada ressentimento, Nietszche fará a crítica do tratamento moral baseado na assepsia da vontade e no retraimento das causas do sofrer na forma da culpa e da vítima. Tanto pela valorização da força terapêutica da arte quanto pela reformulação da noção de soberania, como von tade de potência e am orfa ti (amor ao destino), ele é um bom representante desta conotação política da ideia de cura (Cha ves, 2007, pp. 111-124). Vimos que tanto ajtragédia quanto a retórica e ainda a clí nica de Empédocles ou Hipócrates situam-se como formações intermediárias entre o regime do mito (anterior ao século VIII a.C.) e a nascente filosofia socrático-platônica (posterior ao sé culo V a.C.). Após o grande apogeu da academia de Platão e do liceu de Aristóteles, vemos surgir, no período de transição para o nascente cristianismo, uma série de escolas próprias ao mun do helênico. Essa época de disseminação da cultura grega e de formação do império romano assistiu à aparição de inúmeros movimentos para os quais a filosofia não se situava, privilegia- damente, como a transmissão de um saber teórico, mas como uma prática de vida (Hadot, 1995). Durante muito tempo a filosofia helenística foi considerada um capítulo menor da his tória da filosofia. Entendida genericamente como momento de recuo das pretensões políticas e epistêmicas representadas por Platão e Aristóteles. Seu caráter menor se justificaria ainda pela interiorização da reflexão em pequenas escolas cuja maior preocupação seria praticar uma boa forma de vida. Reputava- se aos pensadores deste momento a falta de originalidade, o dogmatismo e a demasiada dependência para com os mestres fundadores de escolas (Erler & Graeser, 2005, p. 9). A partir da década de 1970 ocorre um movimento de retorno a estes pensadores e reavaliação crítica de suas contribuições. Este movimento de retomada da filosofia helenística talvez tenha relação com as curiosas semelhanças entre o solo sócio cultural em que esta se desenvolveu e a nossa própria época. Tratava-se de um período de grande mistura entre populações e de intenso cosmopolitismo. A perda da independência das cidades gregas tendia a dissociar o homem do cidadão, o filo sófico do político, a teoria da prática. Pululam projetos reli giosos e técnicas de vida que procuram substituir a perda da liberdade exterior pelo incremento da salvação interior. Havia um crescente sentimento de nostalgia e decadência diante do aprofundamento da disciplina jurídico militar que dá luz ao Império Romano. Paralelamente emerge uma unidade comer 196 ciai e econômica cuja extensão era sem precedentes. Diferen te das formas de dominação anteriores, a dominação romana interessava-se pela transformação dos subjulgados, pelo assu- jeitamento e eventual assimilação de suas culturas e línguas. Isso explica a formação do complexo sistema de controle e administração em torno do direito romano. O funcionamen to do Império, com sua lógica interna baseada na expansão indeterminada de fronteiras e aquisição de escravos estimula a cultura da sobrevivência. Nela a estetização da vida e a etifica ção da política tornam-se dispositivos se segurança e refúgio. Esta desconfiguração da filosofia, que contribuiu para o des crédito do pensamento helenístico, pode ser atribuída ao deslo camento da atividade filosófica como atividade contemplativa. Verifica-seentre os helênicos uma desmontagem da metáfora ótica que domina o conhecer desde Platão. Para este conhecer é olhar, lembrar e reconhecer, mas olhar no sentido de olhar com a razão (logos), com a inteligência (nous) ou com os olhos do espírito. É uma metáfora que se apoia em sua expressão no mito de Er, ou do passeio das almas. Para os helênicos este olhar, sem deixar de ser o olhar da alma, é ainda um olhar empíri co, voltado para experiências materiais. O problema ontológi- co predominante entre os helênicos não é o da distinção entre alma e corpo. Com a exceção relevante dos neoplatônicos, para a maioria dos helênicos tratava-se de uma concepção materialis ta e de uma ontologia monista. Tudo o que existe é corpo, não obstante há ainda os incorporais (OE:1970e). Os incorporais não são fenômenos ideais, mas aspectos inusitados do funcio namento da linguagem, detectados primeiramente na filosofia megárica e estoica. Portanto a forma de vida contemplativa era apenas uma en tre as formas de vida das quais o filósofo deveria se ocupar. Sua oposição com a vida ativa (vita activa), marcada pela ocupação, pelo desassossego e pela inquietude, não é imediata. É só após um conflito entre discursos que a experiência da liberdade se localizou na forma de vida teorética (Arendt, 1958, pp. 20-26). 197 O formato discursivo das práticas envolvidas na vida ativa não se caracterizava sempre pelo discurso sobre um objeto es pecífico de conhecimento, mas, às vezes, por um discurso com um sujeito que aspira uma transformação em sua vida. Essa prática que encontramos entre os estoicos, epicuristas, céticos e cínicos, com sistematizações diferentes e dispersas entre si, orienta-se para as relações entre o sujeito e a verdade. Não se trata da verdade sobre o céu e as estrelas, sobre a ordem do cosmos ou mesmo sobre a ética ou a religião em geral. O que está em causa aqui são condições pelas quais um sujeito pode enunciar e praticar uma forma de vida conforme a verdade que será produzida sobre si no espaço de sua relação com o outro. E o que Foucault (1981-82) examinou através da ex pressão “cuidado de si” - epimeleia beatoü, para os gregos, ou cura sui, para os latinos. Muitas vezes se tem evocado o preceito délfico do conhe ce-te a ti mesmo {gnôthi seauton) como máxima da situação terapêutica. Essa máxima, longe de apontar para uma busca interiorizada de si mesmo, era, originalmente, uma recomen dação de prudência com tripla significação: evitar o excesso {hybris), não se comprometer além do que se pode e examinar bem as questões propostas ao oráculo e à vida. Esse impera tivo de prudência (sophrosine) tem como pressuposto, na filo sofia socrática, uma recomendação mais genérica: cuida d e ti mesmo. Ou seja, antes de conhecer-se, é preciso cuidar de si, ocupar-se consigo. Cuidar ou ocupar correspondem ao verbo therapeúein, de onde vem terapia e significa tanto os cuidados médicos sobre a alma quanto o serviço que alguém presta a seu mestre, o cuidado que se tem com a casa e ainda o culto que se faz a uma divindade. Ao contrário da terapêutica como tratamento, que se refere a uma ação descontínua no tempo, exercida sempre que necessário e segundo uma demanda es pecífica, o cuidado exprime uma atitude de atenção contínua consigo, uma orientação permanente. Isso condiciona as ações pelas quais nos modificamos, nos transformamos e nos trans 198 figuramos (Ibid., p. 15) para além de dificuldades pontuais dos encargos específicos da vida ativa. O cuidado de si toma por objeto o sujeito, mas seu fim é a cidade, as relações sociais e cotidianas com os outros. Aqui há, ainda, uma relação de precedência: cuidar de si é condição para cuidar dos outros: ... não procurar estabelecer o que se é a partir do sistema de direitos e obrigações, que nos diferenciam e nos situam em relação aos outros, mas interrogar-se sobre o que se é para daí inferir o que convém fazer, no geral ou numa ou outra circunstância, mas sempre segundo as funções que se tem que exercer. (Epicteto apud Ibid., p. 563) A recomendação de Epicteto nos mostra esta espécie de inversão de perspectiva presente no cuidado de si. Não se trata do sujeito como uma instância retirada ou isolada do mundo, mas de uma ordenação que estabelece um ponto de partida para a ação ética, segundo suas funções, mas não inferidas do sistema de direitos e obrigações. É preciso separar o cuidado de si da noção mais genérica de cuidado amoroso (caritas), de senvolvida no interior do cristianismo. Esta última forma de cuidado implica um tipo de auto-observação cujo objetivo é decifrar a si mesmo. Ela emerge nos tratados político-teológi- cos como imagem fundamental para designar a analogia entre o governo dos homens por Deus e a caritas, aqui definitiva mente uma forma de amor pastoral, que o governante deve ter com relação a seus súditos (Campanella, 1973). Assim a caritas enfatiza o conhecer-se para dominar-se e o ser conhe cido para ser cuidado, terminando numa renúncia a si. A es pecificidade do cuidar helênico é inteiramente diversa, senão oposta. Ela se torna difícil de precisar quando se considera que seu horizonte é a verdade na esfera do ser do sujeito em sua imanência e atualidade, não na esfera do sujeito em geral e em sua transcendência. Trata-se do cuidado amoroso (eros) e do cuidado entre iguais (ágape). 199 O argumento dos,;helênicos é que o cuidado de si nao é uma atividade concernente ao mundo do trabalho; nao en volve a produção de um objeto nem as técnicas inerentes a ele. Também não é, necessariamente, atividade estética ou re ligiosa, e muito menos atividade contemplativa ou teórica, se bem que possa incluí-las, desde que sejam consideradas como atividades no mundo. Há quatro esferas que levam à proble- matização crítica do universo moral grego, quatro domínios nos quais a liberdade seria assim abordada: a saúde do corpo, a relação com a esposa, a relação com o mesmo sexo e a relação com o acesso à verdade (Fonseca, 2003, p. 105). Historicamente, há três momentos na prática do cuida do de si: (1) o momento socrático-platônico, cuja referência maior é o diálogo Alcibíades, atribuído a Platão (V. a.C.); (2) o período helênico, em que o cuidado de si se expande numa cultura de si, à época da Roma imperial (II a.C. a III d.C.); e, finalmente, (3) os séculos IV e V d.C., nos quais tal prática é absorvida ao asceticismo cristão que termina por submeter o cuidado de si à primazia do conhecimento de si. No diálogo platônico encontramos o personagem de Alci bíades, o mesmo que se encantara por Sócrates em O Banquete (Platão, 1973) e que Lacan (SVIII: 1960-61) usa para reler a estrutura da transferência em termos do amor ao saber e ao objeto que o indicia (agalma). Todavia, no diálogo intitula do Alcibíades (Platão, 2007) a situação é outra. Aqui o jovem guerreiro envelheceu, ingressando na idade crítica em que abandona os amores^de juventude, ambicionando agora a vida política. Alcibíades não está interessado apenas em usufruir suas relações e viver pacatamente em família ou entre outros cidadãos. Ele quer transformar seu status numa ação política de governo sobre outros. Diante desta demanda, Sócrates lhe responde que o exercício do poder deve ser antecedido pelo cuidado de si. Sem a experiência do cuidado de si, na qual Al cibíades se mostra ignorante, o poder se extrapola em excesso ou se corrompe em tirania. Antes de tudo é preciso tratar esta 200 demanda, e a estrutura desta demanda, como de toda deman da inconsciente é: “eu te peço que recuse o que te ofereço, porque não é isso”. Em acordo com isso a resposta de Sócra tes não é uma simples negativa, mas uma revelação de que Alcebíades não sabe o que pede. Nao que falte a Alcibíades formação {paideia), experiência política ou virtude (sabedoria, justiça, temperança e coragem); falta o cuidado de si. Como cuidar dos outros, no sentido de ser soberano de uma cidade, sem antes sabercomo cuidar de si? Alcebíades é levado pela ironia socrática a reconhecer sua ignorância face à questão: o que é isso, o próprio eu, do qual ele deve se ocupar? É a ig norância, reposta ao longo do percurso como uma espécie de paixão renitente, que guia o cuidado de si. Trata-se de um di álogo aporético. Nele, não se elucida propriamente a questão levantada, não sendo possível, portanto, uma medida exata do que significaria o cuidado de si para Platão. Certo é que ele inaugura um longo trajeto de absorção, redução e dominação do cuidado de si pelo conhecimento de si. O movimento con tingente aqui é a passagem da questão ética (como cuidar de si?) para a questão epistêmica (o que é o eu?). O diálogo platônico começa pela observação de Sócrates. Este estivera acompanhando Alcibíades desde sua juventu de. Notara seu orgulho, sua vaidade, sua atitude diante dos amigos e, sobretudo, a vaidade que toma conta de Alcibíades tendo em vista suas vantagens. Daí a promessa socrática: “(...) espero provar-te que te sou indispensável, e de tal forma in dispensável que nem o teu tutor, nem teus parentes, nem nin guém mais encontra-se em condições de entregar-te em mãos o poder que tanto ambicionas” (Ibid., p. 236). A prática maiêutica começa pela indagação da origem do saber sobre a guerra, a paz e os demais assuntos de estado e pelo reconhecimento de que é necessário adquirir a excelên cia (arete) neste campo. Neste assunto domina a controvér sia. Como aprender a distinguir o justo do injusto, o justo do vantajoso, o bom do belo, se nesta matéria não sabemos 201 o que aprendemos por nós mesmos e o que nos foi ensinado por outrem? Sócrates ̂ afirma tratar-se de um erro relativo à vida prática, onde, incorremos na ignorância de presumirmos saber o que nao sabemos. Daí a primeira interpretação: Al- cibíades atira-se rumo à política como parte de uma doença: a ignorância de si (Ibid., p. 258). E por isso também que ele não consegue transmitir seu saber político. Ou seja, falta-lhe preparo, falta-lhe uma experiência propedêutica que o habi lite a governar os outros. Assim também ele desfaz dos seus oponentes persas ou lacedomônios, por pura ignorância de si: “(...) não virias a tomar mais cuidado consigo mesmo, no caso de teres medo deles e de os considerares adversários temíveis, do que se pensasse o contrário?” (Ibid., p. 261). E contra este destemor no qual se ampara a ignorância que Sócrates lembra pela primeira vez a divisa de Delfos: Conhece-te a ti mesmo (Ibid., p. 266). Ela não é, contudo, o fim necessário para a tarefa, mas apenas o lema maior pelo qual nos lembramos da importância de aperfeiçoar-se. Aqui são chamadas as artes com as quais a arte de governar pode ser comparada e distin- guida: a arte do remador, do piloto e do marinheiro. A elas se acrescem a arte do médico, da medida, do comércio e da con córdia. Termina-se o elenco com a evocação dos laços familiares e de amizade, no quais pratica-se o governo dos outros. O que todas estas práticas tem em comum e ao mesmo tempo o que está negado na prática maior na qual todas se incluem? Então responde: que significa a expressão cuidar de si mesmo? Pois pode muito bem dar-se que não estejamos cuidando de nós, quando imaginamos fazê-lo. Quando é que o homem cuida de si mesmo? Ao cuidar de seus negócios cuidará de si mesmo? (Ibid., p. 273) Cuidar ocorre quanto tratamos algo de tal forma que o dei xamos melhor do que o encontramos. Porém cuidar de si não eqüivale a cuidar de algo que nos pertence. Aqui o cuidado torna-se um conceito crítico da noção de posse e pertencimen- 202 to, pois a arte que se ocupa conosco não é a mesma que se ocupa com o que nos p erten ce (Ibid., p. 275). Vemos aqui a primeira sinonímia socrátiça: cuidar é fazer, cuidar é ocupar-se com. Não é a arte por meio da qual deixamos melhor qualquer coisa que nos pertença, mas a que nos deixa melhores a nós mesmo. (...) o que é certo é que, conhecendo-nos ficaremos em condições de saber como cuidar de nós mesmos, o que não poderemos saber se nos desconhecermos. (Ibid., p. 275) Aqui fica clara a distinção entre conhecer a si mesmo e cuidar de si mesmo. Que o primeiro seja uma condição, uma condição para saber de si, para orientar-se para si. Ora, cumprindo-se a condição isso não necessariamente cumpre o que ela condi ciona. Surge a oposição subsequente entre conhecer e cuidar que encontrará uma longa história. Para Sócrates, na seqü ência deste diálogo, trata-se de descobrir a essência íntima do ser, no corpo, na alma e na reunião do corpo e da alma. Nesta relação o corpo é o dominado e a alma o governante. O Alcibí ades real é, antes de tudo, sua alma. Consequentemente, quem cuida do corpo não cuida de si mesmo, mas apenas do que lhe pertence, assim como só te ama quem amar sua alma. Também ao apaixonar-se pelo povo, a quem pretende governar, Alcibí ades perder-se-ia de si mesmo. O cuidado de si deve preceder ao governo dos outros. Ora, este cuidado começa pelo olhar, e mais precisamente, pelo olhar que toma o outro olhar como um espelho, refletin do assim a própria alma que pode ser contemplada a partir do espelho representado pelo outro. Alguém pode conhecer as coisas que lhe dizem respeito sem conhecer a si próprio, mas nesta condição jamais poderá reconhecer o outro para além das propriedades do outro ou daquilo que lhe pertence. Um homem nestas condições nunca exercerá a política, pois não terá atravessado em si mesmo os paradoxos do reconhecimen to. A única forma de impedir a tirania política é tratar a tirania de si, em outras palavras, é libertar-se de si mesmo. 203 É no quadro do cifidado de si que uma série de técnicas, práticas e dispositivos^ serão relidos e transformados, sempre tendo por referência uma relação dialogai e pessoal. O cuida do de si é uma atividade para toda a vida, mas que se inicia e se transmite privilegiadamente numa relação finita. A imagem que podemos ter desse processo é a de uma série de encontros de duração variável entre um mestre e um discípulo. Nestes encontros, se pratica o exame de situações pontualmente pro blemáticas: assumir ou não um posto ou um encargo, casar-se, comer um tipo de alimento, mudar-se de cidade, ser deserda do pelo pai, conduzir amizades e relações, lidar com a doença de um ente querido, manter relações sexuais, enfim, tudo o que pode ser fonte de bons e maus encontros durante a vida cotidiana. O cuidado de si é impossível sem a participação ativa e continuada do outro. O homem ama demais a si mes mo para libertar-se sozinho, afirma Galeno. E na esfera das relações humanas que emergem as dificuldades, não seria fora dela que estas se resolveriam. O outro, suporte e cond içã o para o estabelecimento do cuidado de si, possui um estatuto ambíguo, ora aproxima-se de um amigo, outras vezes de um conselheiro fixo e ainda de um mestre ou médico da alma. Entre as técnicas praticadas, incluem-se a purificação (catharsis), a concentração e dispersão da alma, o retiro e as provas. Há, ainda, a preparação e o exa me dos sonhos, o exercício da memória sobre os atos e circuns tâncias que compõe a vida, e o questionamento das decisões nela envolvidas. Há as técnicas que visam atrair a atenção e di minuir a curiosidade dispersiva, outras cujo objetivo é reduzir a atenção e fazê-la flutuar por novas paisagens. Há também as técnicas de memória que recuperam as pequenas escolhas do cotidiano, remetendo-as a um exame das representações que estas evocam no próprio sujeito. A atividade de separação e avaliação dos conhecimentos necessários para o cuidado de si inclui os saberes de nature za etopoiética, ou seja, aqueles que conduzem à autarqueia 204 (depender de si) e à contenti (contentamento). É importante separar tais práticas da enkrateia, ou seja, o domínio de si. Reconhecemos esse impulso e essa exigência de dominar a si mesmo na figura de Ulisses. Por exemplo, ele se faz amarrar ao mastro e ordenacolocar cera nos ouvidos dos marinheiros quando a embarcação passa perto dos rochedos onde habitam sereias. Uma bela metáfora da proporcionalidade entre o do mínio de si e o domínio do outro. Ocorre que, na esfera do cuidado de si, a preocupação excessiva com o autodomínio é interpretada como sintoma da ausência desse cuidado. Não que o domínio exclua o cuidado — é a relação de ganância, esforço e exercício de poder que denota a ausência da relação de cuidado, sugerindo que ele se desloca para uma relação de educação ou governo entre as pessoas. Vemos aqui duas expressões de natureza política emprega das para especificar o cuidado de si. A relação de poder a si é simétrica, mas não proporcional à relação de poder de si ao outro. Portanto, a relação pressuposta na dominação de si é ponto de partida para a dominação do outro ou da dominação pelo outro. Aqui se localiza uma das incidências dessa espécie de meta-hipótese dos trabalhos de Foucault — hipótese que in sere^ Hermenêutica do Sujeito (1981-82, p. 306), nosso texto de referência para a questão, num projeto mais vasto: “não há outro ponto, primeiro e último, de resistência ao poder polí tico senão na relação de si para consigo”. O interesse das es tratégias de poder nas técnicas de si não é, portanto, acessório ou complementar, mas constitutivo. Daí seus trabalhos sobre a história da sexualidade, sobre a história da loucura, sobre as formas jurídicas ou de governabilidade serem simultaneamen te textos de crítica histórica e fragmentos de uma genealogia da ontologia política da clínica psicanalítica. A alma, como sujeito, não como substância essencial, é agente de um tipo de cuidado que mantém uma relação me tafórica com outras formas de cuidado, a saber, o cuidado que um médico dedica a seu paciente, que o dono da casa tem 205 para com seu lar (ecoifomia, oikos) ou que o amante oferece à amada (eros). Diferentemente do médico, do pai de família ou do professor, o cuidador cuida do cuidado que alguém pode ter consigo. Isso não exclui a erótica, a dietética ou as relações sociais que alguém tem para com sua vida, mas a relação é indireta. O cuidado de si não implica descuido com os outros, pelo contrário: problematiza o cuidado com o outro a partir da forma de cuidado consigo. Vejamos um exemplo concreto (Ibid., p. 330). E a história de um pai de família que é tomado pelo desespero quando sua filha fica gravemente doente. Vendo que em tal estado ele seria de pouca ajuda, deixa-a aos cuidados da família e dirige-se para a Escola, onde consulta Epicteto. O filósofo aponta ao pai que, apesar do amor legítimo que sente pela filha, ele cometera um equívoco. Comovido pela doença, não suportando ver aquela triste cena, ele tivera, afinal, pouco cuidado consigo. Ao deixar de cuidar de si para cuidar da filha (no sentido de ser tomado pela pré-ocupação) o pai deixara de examinar as representações que lhe ocorriam ao espírito, impedindo-se de agir ativamente sobre a situação. E interessante notar que, aos nossos olhos, a conduta sugerida ao pai seria um pouco egoísta, ao passo que, para Epicteto, foi justamente por atentar pouco a si mesmo e tentar cuidar da filha antes de cuidar de si que ele não pode, efe tivamente, cuidar dela, ou melhor, ajudá-la a cuidar de si. Regra geral: é preciso cuidar de si para cuidar dos outros; começamos cuidando dos outros e tudo estará perdido. O destino do cuidado de si se divide claramente numa tradição que tentará incluí-lo e submetê-lo ao conhecimento de si como condição preliminar e propedêutica para o conhe cimento em geral, e outra tradição na qual o cuidado de si se separa da finalidade epistemológica para se tornar parte de uma técnica de vida: a busca do prazer para os epicuristas; a retidão moral da escolha para os estéticos; a dúvida cética; a comtemplação platônica; são práticas assimiladas ao cuidado de si, que possuem no interior de cada um destes sistemas filo 206 sóficos um sentido próprio e inoperante do cuidado de si. Para tanto, é preciso matizar o sentido da noção de técnica (technè). Neste caso, não se trata de uma atividade automática, repetiti va, anônima e transmissível na forma de um saber impessoal. As metáforas mais comuns para designar o cuidado de si são provenientes da arte da navegação, e remetem a uma forma de saber-fazer semelhante ao daquele que dirige uma embarcação. Na arte da pilotagem, é preciso saber sua própria posição, mas também converter o olhar para os sinais das circunstâncias, o vento, o movimento das marés, os rochedos e barrancas. Na experiência da pilotagem é necessário poder ficar só, separar- se de um conjunto de obrigações, prescrições e dívidas que compõe o cotidiano. Daí a ideia de que é uma prática que se aprende na própria experiência. A viagem impõe ainda a ideia de soberania sobre si, de autoapropriação reflexiva sobre os destinos e caminhos tomados. Há uma afinidade entre curar, dirigir e governar que atravessa a história do cuidado de si como uma metáfora fundamentalmente ligada ao tempo. O tempo envolvido no cuidado de si inclui o kayrós, o tempo em que palavra e ato convergem para o acontecimento, mas se desdobra também no tempo que os gregos chamam de hóra, ou seja, a estação da existência em que o cuidar de si torna-se não apenas desejável, como em qualquer época da vida, mas neces sário. E o tempo entre a pedagogia e a política, marcado pela reflexão sobre a velhice futura e pela lembrança (anamnésis) e desaprendizagem da infância: “... almejo-te um desprezo gene roso por todas as coisas que teus pais te almejaram em abundân cia” (Carta de Sêneca à Lucilio, apud Ibid., p. 118). Esta indicação de Sêneca mostra como na atividade de cui dar de si está em jogo uma espécie de liberdade tanto no que diz respeito ao passado quanto ao futuro. Como mencionei, a prática do cuidado de si se desenvolveu de forma heterogênea, não admitindo formato único. Na Escola (Stoa) de Epicteto, tratava-se de uma espécie de prestação de serviços que podia envolver uma estada mais ou menos longa com uma circula- 207 çao periódica e retornps. Para os cínicos, era prática pública, algo errática, realizada-por ocasião de encontros fortuitos nas festas e cerimônias, e também nas esquinas da cidade. Para o grupo dos terapeutas, organizado em torno de Filon de Ale xandria, tratava-se de uma experiência mais fechada, envol vendo restrições e obrigações ascéticas condizentes com um tipo de iniciação: Finalmente, para Sêneca, para os estoicos tardios e também para o epicurismo, era uma experiência rea lizada num tipo de sociabilidade próxima à da amizade, envol vendo encontros e também a troca de correspondência, além do incentivo para a escrita pessoal. E consenso, no entanto, que, à medida que o cuidado de si se regulamenta, que seus critérios práticos se profissionali- zam e que suas escolas admitem formas de organização cada vez mais complexas, o cuidado de si tende a desaparecer ou se transformar em outra coisa. Isso se explica pela infiltração de uma forma de poder que corrompe a essência mesma do cuidado de si. Na medida em que o desequilíbrio da relação entre o poder a si e o poder ao outro admite um território de exceção, no qual cuidar do outro antecede o cuidar de si, ocor re uma autocontradição dissolutiva. Nota-se aqui uma curiosa similitude entre essas formas he terogêneas de organização em torno do cuidado de si e as so luções, aparentemente homólogas, que nossa época encontrou para a transmissão da psicanálise: personalismo, grupalismo e institucionalismo. Isso deveria nos servir como advertência histórica. O cuidado de si transforma-se em outra coisa quan do se profissionaliza e quando aqueles encarregados de sua prática voltam-se primordialmente para a prática positiva de sua política associativa. 5.2. CRÍTICA DO PODER E EXPERIÊNCIA DE MAL-ESTAR É importante distinguir a tradição da cura ou do cuidado de si de outras modalidades demedicina da alma e de terapias por 208 conversão, o que nem sempre foi enfatizado pelos historiadores da psicanálise (Jackson, 1999, p. 23). Estamos falando de três tradições intimamente relacionadas: — A Prática Terapêutica (restabelecimento). Nesta vertente se enfatiza a recuperação do indivíduo pela via de sua reintegração narrativa. Seu pressuposto é a noção de re torno a um estado anterior, no sentido do restabeleci mento de uma condição prévia de harmonia ou de uma recomposição entre os elementos segundo uma ordem natural anterior. O critério de eficácia está baseado na redução do sofrimento na forma e linguagem em que é posto pelo paciente. — A Clínica Médica Antiga (tratamento). Aqui nós encon tramos a combinação entre observação das doenças, os esforços para separá-las em grupos e agir sobre suas cau sas. Neste caso o critério de eficácia está baseado na ha bilidade de fazer prognósticos dos processos patológicos. Saúde e doença são considerados diferentes pontos em um processo cíclico de repetição. Nao há nada de novo a ser criado, nem nada de antigo a ser retirado. — Cuidado de Si (cura, cuidado): Na tradição da cura sui trata-se da criação de um estado diferente da alma. De pois de curado o sujeito torna-se diferente do que era antes, o que pode habilitá-lo a tornar-se um xamã ou a contar sua história para sua comunidade de origem. A cura pode envolver tanto a transformação da pessoa (he- aling em inglês) quanto a remoção de uma doença (cure em inglês). É por isso que o cuidado de si forma uma experiência radicalmente nova. Esse estado anterior e, ao mesmo tempo novo, é uma espécie de ficção que se apoia, sobretudo, na experiência de apropriação. Os estoicos, por exemplo, procuram experimentar um estado tão próprio que ele possa ser percebido como se fizesse parte do sujeito desde sempre, assim como a infância ou um momento anterior da vida. Este assim 209 como designa u|na relação metafórica, não uma relação real. O cri tcrio - envolvi do aqui é a excelência entendida como um estado de ser, em acepção simétrica à de mal estar (Unbehagen), como em M al Estar na Civilização5. Essa distinção é importante, pois nela se ampara uma rede de metáforas e alegorias, de referentes e referências, entre so frimento, mal estar e doença. A psicoterapia, como observou Lacan (OE: 1974a, p. 516), é um projeto impraticável se nela se quer realizar o ideal de cura médica, pois em uma vida não é possível “voltar a um estado anterior”: ela será sempre uma vida que inclui dentro de si a história e a experiência desse retorno. Portanto, a doença, no sentido médico, é concebida como metáfora do sofrimento (pathos) que se enfrenta na cura da alma. Isso não implica uma alegoria psicossomática gene ralizada nem uma dissociação anacrônica entre alma e corpo. Tratar a metáfora da doença não é tratar a doença. Não obs tante os sintomas abordados pelo cuidado de si serem reais, ocorre que sua estrutura é metafórica, o que só pode ser pensa do à luz de uma teoria materialista da metáfora, tal qual trazi da pela noção de incorporai na filosofia da linguagem estoica. Essa metáfora do sofrimento como doença foi enriquecida pelas escolas helenísticas e seu esforço de distinção progressiva entre o mal-estar, como experiência de perda do lugar, como desterritorializaçao de si, o sofrimento, como ocupação com o outro e conseqüente passividade, subserviência e renúnica à liberdade e a dimensão própria do verdadeiro adoecimento, baseado em sintomas. A distinção, contudo não procede de 5. Além do problema para traduzir o termo K ultu r (Civilização ou Cultura), há a questão menos discutida acerca da expressão Unbehagen. Literalmente a palavra refere-se a um estado de ser ou estar. Bem-estar ou mal-estar, não apenas desconforto ou descontenta mento ((d iscom fort ou discon ten t) como Freud argumentou contra Strachey. E importante lembrar que o título originalmente imaginado por Freud para este trabalho era “Das Un- glück in d e r Kultur”, ou seja, a infelicidade ou a miséria (em sentido moral) na cultura. 210 uma natureza clínica, mas da atitude diferencial, que se verifi cada em cada caso, diante do poder. A relação de cura é uma experiência crítica com o poder. Seja ela a experiência real de redução do poder causada pelo adoecimento, seja ela a experi ência de alienação e de submissão ao médico, seja ela ainda a relação propriamente política em relação ao lugar e à posição que cabe a cada um diante do mundo e de seu destino. Tais escolas médico-filosóficas chegaram a descrever cinco momen tos desse complexo metafórico formado pelo sofrimento-mal- estar-doença (Foucault, 1981-82, p. 405): (1) a proclivias, ou constituição; (2) o pathos propriamente dito, marcado pelo aparecimento de uma perturbação (affectus); (3) a héxis, que corresponde a uma assimilação da perturbação a ponto de o sujeito pensar que, ao cuidar dessa perturbação, se ocupa de si mesmo; (4) a arróstema, uma espécie de estado permanente da doença em que a perturbação não é sentida mais como tal; e (5) a kákia, quando a paixão domina o sujeito por inteiro e passa a ser ativamente imposta aos que o circundam. Estes cinco momentos se distinguem conforme o cuidado se dirige à alma (therapeutike) ou ao corpo (iatrikè). Vemos por estas distinções como o pathos (mal-estar) pode fazer sofrer mais ou fazer sofrer menos, como ele pode ser concênctrico ou excên trico com relação ao sintoma real, mas principalmente como ele se exprime como um poder que se exerce sobre alguém. Logo, a relação entre a medicina convencional de Hipócra- tes, Asclépio ou Empédocles não se confunde com a medicina filosófica do cuidado de si. Entre elas, a distribuição não se dá entre aqueles que se encarregam do corpo e aqueles que se dedicam à cura da alma, posto que, para as diferentes escolas, o cuidado de si incluía o cuidado do corpo. Aqui se trata do cuidado com a relação que o sujeito mantém com seu corpo, e não o cuidado direto com o corpo. Isso inclui tanto o corpo como agente de uma ação quanto o corpo que é paciente de uma afecção. Nem sempre é o corpo acometido pela doença, uma das circunstâncias possíveis, pode ser o corpo que enve 211 lhece, que se cansa, que se ocupa com satisfações e restrições; o corpo como primeiro bem que pode dispor, usar ou emprestar ao outro. Ou seja, o corpo considerado segundo uma econo mia de gozo e uma ars erótica. Outra distinção crucial diz respeito ao modo como alguém se engaja no cuidado de si. Esta não é uma obrigação univer sal, lei ética ou dever moral que todos devem se subtneter. Engajar-se no cuidado de si é e deve permanecer como escolha do sujeito. Não porque, em princípio, alguém seria excluí do do cuidado de si, mas porque praticamente são poucos os que efetivamente reúnem a coragem e a persistência que esta exige. Separa-se, assim, a soberania reconhecidamente perdida quando se trata de procurar um médico, ao qual devemos nos submeter, e a preservação desta soberania dentro do cuidado de si. Surge aqui a ideia fundamental de que o paciente pode ser também o agente da cura. Isso fez do cuidado de si objeto de críticas, pois consistiria numa atividade que seria evidentemente um privilégio e um luxo destinado à elite. Um exame minucioso desmente esta ideia. É mais provável que o cuidado de si tenha se dissemina do, como uma espécie de ingrediente cultural extensivo, prin cipalmente nos séculos I e II d.C., também entre as camadas menos abastadas, em formações de compromisso com seitas e práticas religiosas. No outro extremo, o cuidado de si mantém sua associação social com a vida cultivada, com a investigação teórica e com o ócio criativo. Entre as camadas médias, tal prática se desenvolveu em estreita relação com as redes de ami zade que atravessavam as relações institucionais e familiares nesse período (Ibid., p. 142). Como vimos anteriormente, duas condições constituem critérios de exclusão,em longo prazo, para o sistema de trans missão da prática do cuidado de si: de um lado, o fechamen to em grupos impermeáveis e sectários, o que redundava em auto-segregação; de outro, o fechamento em uma posição de classe muito restritiva. A hetero-segregação verificada entre os 212 ricos também contribuía para o desaparecimento do cuidado de si. Essa oposição histórica entre o cuidado de si e a segre gação é um argumento adicional contra aqueles que associam tal prática com o desligamento do campo social (anacoreta) ou com um isolamento individualista. A identificação excessiva com um líder carismático, com um grupo ou com uma insti tuição são sinais claros de extravio no cuidado de si. Havia, sim, um tipo de mestria envolvido no cuidado de si que se apoiava no saber sobre a tradição (os heróis e suas epopeias), no saber da competência (saber-fazer) e no saber maiêutico da investigação e da descoberta praticada no diá logo (trágico-socrático). Esse complexo de saberes possuía a ignorância como condição. Isso é coerente, na medida em que cuidar de si é também libertar-se das formas de cuida do que os outros nos impingem. A mestria, assim concebida, funda-se na crítica sistemática e atualizada numa relação real, dos fundamentos de seu próprio poder. O mestre deve ativa mente ignorar qual saber positivo o discípulo deve empregar para cuidar de si. Assim, o cuidado de si leva o indivíduo da posição de não-sujeito (no sentido de objeto do cuidado dos outro) para o status de sujeito numa experiência que ele jamais conheceu em momento algum de sua existência e que tende a não encontrar espontaneamente. O mestre é um mediador na relação do indivíduo com sua constituição como sujeito (Ibid., p. 160). Antes dessa experi ência transformadora, o indivíduo deixado ao léu caracteriza- se, sobretudo, como um stultos. Literalmente, “aquele que não pensa”, o stultos é descrito como aquele que está à mercê das contingências, disperso no tempo e na pluralidade do mundo exterior; não pensa na velhice e, sobretudo, ignora a consu mação de sua própria vida pelos fins que ele mesmo poderia delimitar. Daí seu sentimento de não-pertencimento, segundo o adágio: “Para aquele que não sabe para onde vai, todos os ventos lhe parecem contrários”. Ele é portador de uma von tade não livre e sem memória: quer algo e, ao mesmo tempo, 213 o contrário; deseja a glpria, mas quando a alcança, se queixa da falta de tranqüilidade. Seu ser de sujeito não é capaz de se paração (discriminatio) porque entre o eu e a vontade há uma espécie de desconexão ou infidelidade. Ao examinar apenas um aspecto do objeto pretendido, ele se decepcionará quando o alcançar. O cuidado de si é uma forma de tratamento para esse estado, tratamento que tem por horizonte o querer livre, o querer absolutamente, o querer sempre (Ibid., p. 164). Ao stultos, como Alcebíades, não lhe falta saber, no sentido de que ele poderia ser educado (educare). Falta-lhe quem o tire para fora, que o faça sair de si (educere). Está ficando claro, por exclusão, que a função de mestria no cuidado de si deve ser exercida pelo filósofo, mas é importante lembrar, do filósofo como agente de uma prática direta com o outro, não do filósofo como professor agente de um discurso genérico ou universal sobre o conhecimento, a virtude ou a beleza. O cuidado de si d is ti n gue clara mente três atividades - governar, educar e curar - que se relacionam como práticas, externa e internamente, limitadas. Assim considerada, a figura do filósofo se aproxima do retórico e do médico, esse especia lista nos meios pelos quais se pode agir sobre o outro através do discurso ou da ação. Aproxima-se pelos meios, que são os da palavra, mas também pelos fins, que em ambos os casos estão abertos às circunstâncias do destinatário. A diferença crucial é que o cuidador, ao contrário da retórica educativa ou política, não deve exercer seu poder sobre o outro. As relações entre cuidado de si e retórica não admitem uma oposição tão polar. Na medida em que o cuidado se dá numa relação de fala e esta envolve uma dimensão de influência, será preciso especificar quais aspectos da retórica interessam ao seu ofício e de que forma eles serão empregados. Destacam-se, as sim, dois modos de discurso que o cuidador deve evitar: a lisonja, o discurso falso feito para agradar o outro e a cólera, o discurso inflamante e belicamente incitativo. Há, ainda, outro modo de discurso que o cuidador deve empregar sempre que possível: a parrhesia (falar franco). 214 Aparrhesia ocupa lugar fundamental na organização de to das as práticas envolvidas no cuidado de si. Ela é a arte de dizer livremente, a arte. da franqueza e da sinceridade. Este convite ao dizer-verdadeiro poderia ser confundido com a prática da confissão. Tal não é o caso. A confissão consiste numa obriga ção de dizer, e de dizer a verdade pela qual se alcança a salvação ou a clemência de deuses ou juizes. Dizer toda a verdade e nada mais que a verdade. No cuidado de si, trata-se mais de uma prova pela qual se ingressa voluntariamente e que não visa a verdade em sua generalidade e totalidade, muito menos a indulgência do outro, mas a exploração da capacidade de dizer a verdade sobre si, de tornar-se sujeito de uma verdade. Aqui encontramos uma terceira acepção de verdade, que não é nem aletheia nem emunah, antes examinadas. A veritas corres ponde à verdade como justo dizer — dizer preciso, que proce de do verum , ou seja, um relato exato, sem omissões e narrado com integridade. Assim como a aletheia liga-se ao presente e a emunah, ao futuro, a veritas liga-se ao passado e à narração (Hegenberg, 1975, p. 14). Daí sua ligação com a dimensão do testemunho. Ocorre que este testemunho não se refere à ordem dos fatos jurídicos, na qual também a encontraremos, mas à verdade que testemunha a conversação do sujeito para consigo e que estabelece um compromisso. Neste sentido, o cuidador é uma espécie de amigo da verdade, que inspira con fiança pessoal {emunah)-, uma espécie de professor, dedicado a uma relação fiel com a palavra {veritas) e uma espécie de mestre, às voltas com a descoberta ou invenção de uma nova forma de vida {aletheia). A libertas ou parrhesia é a qualidade moral exigida para tal empreendimento. Ela é facultada inicialmente ao cuidador, e não ao discípulo, que deve conquistá-la por seu empenho no cuidar de si. Ela não é empregada a toda hora. Constitui destreza e arte do cuidador fazer incidir temporalmente a pa lavra franca. Apesar da proximidade aparente, não devemos incorporar a parrhesia diretamente à noção psicanalítica de as- 215 sociaçao livre. Primeirp, porque ela é atributo inicial daquele que conduz o cuidado.de si, e não daquele que é sujeito desta experiência. Segundo, porque a associação livre inclui a atitu de intencional de sinceridade, mas também a possibilidade da mentira, da tapeação e do engano. A parrhesia combina mais com a atitude genérica que Freud sugere aos analistas na forma franca de abordar temas espinhosos, tais como a sexualidade, o dinheiro e o poder. A parrhesia deve evitar dois desvios que lhe são opostos: a lisonja e a cólera. A cólera evidencia o abuso do poder e a falta de soberania sobre si. Ela advém quando o sujeito se dá conta de que nao tem o poder que supunha possuir. A lisonja, como exato contrário, é o abuso do poder pelo inferior que faz crer ao superior que ele é mais poderoso do que na verdade é. Ambos mostram, pelo contraste com a parrhesia, que esta envolve a capacidade de estar só, o que falta ao colérico e ao emulador. O falar franco não incita a continuidade do dis curso do outro ou seu silêncio, como na lisonja ou na cólera, nem presume a dependência derivada dos laços econômicos, políticos ou familiares. É o compromisso com o cuidado de si e com o regime de verdade que lhe é próprio, que torna esse tipo de fala uma fala livre. Isso não significa que haja oposição irrestritaentre retórica e parrhesia. A retórica define-se pelo conteúdo tratado e pelo destinatário do discurso. Também no cuidado de si, trata-se de encontrar o tempo (kayrós) e o modo de dizer (léxis) no qual o sujeito poderá se reconhecer e, afinal, tomar para si algo do que foi dito. A parrhesia depende, portanto, do tempo oportu no em que a fala faz acontecimento. Encontramos aqui a raiz prática dos desenvolvimentos estoicos em filosofia da lingua gem em torno da noção de incorporai. E o segundo aspecto da linguagem, que os estoicos chamam de phásis, em oposição à lexis (SIX: 1961-62). Se, na retórica, é preciso encontrar o tempo correto para o assunto tratado, no cuidado de si trata-se de integrar tais condições, do tempo e do espaço, à forma do dizer e ao acon tecimento de linguagem. A parrhesia médica, assim como a filosófica, implica uma atitude de generosidade e benevolência por parte de quem a pratica. Isso se mostra no estilo simples e direto de dizer que deve, não obstante, induzir um trabalho ao lado do sujeito. Dizer o que se pensa e pensar o que se diz; mostrar as coisas mais que se mostrar; tender o discurso ao útil e eficaz mais que ao agradável; atenção à enunciação; obediência tática aos recursos da retórica, tais são as regras do franco-falar (Foucault, 1981-82, p. 488). Contra a fala embusteira, que pode caracterizar o uso re tórico da linguagem, há também a oposição levantada pelos cínicos. Eles não constituíam um grupo ou uma sociedade definida, mas congregavam pessoas errantes ou marginais que não possuíam uma posição social bem estabelecida, vínculos familiares estáveis nem inscrição sólida no sistema de produ ção. O ascetismo é uma condição da vida cínica, pois seu fim é interpelar e denunciar a inércia social pelo apontamento de sua hipocrisia. Esse repúdio passa pela crítica da imagem que caracteriza o filósofo profissional. Nada de barba bem-feita, asseio ou belas vestes, pelo contrário: é aos andrajos e à inade quação à vida civilizada que os antigos ligam a figura do cíni co. Literalmente, cínico se refere a cão (kinos), ou seja, aquele que experimenta a liberdade da errância, mas também a de acolher e ser acolhido segundo uma fidelidade específica. Daí o fato de os cínicos serem considerados os primeiros antifiló- sofos. Atribui-se, tanto aos cínicos quanto aos epicuristas, a di fusão da poesia e da estatuária ligada ao deus Príapo. Colocado geralmente no jardim, entre a casa e a cidade, uma estátua de Príapo com seu descomunal membro fálico tinha a função de evocar o riso, ao denunciar a abundância e o excesso, e incitar à humildade (Oliva Neto, 2006). Entre os estoicos, o cultivo da fala franca servia para afastar aqueles que se aproximavam do cuidado de si com interes ses excessivamente definidos. Epicteto repudiava as demandas 217 utilitárias, afirmando ser um conselheiro de existência, nao um preceptor, um amigo ou um diretor de consciência. Tam bém para Sêneca, este que era conselheiro de inúmeras figuras ilustres, sua atividade no cuidado de si nao se confundia com seu ofício como filósofo profissional ou professor. No primei ro caso, predomina a fala franca; no segundo, admite-se o uso tático da lisonja e da arte de manipulação das impressões. Essa diferença diminui à medida que o serviço da alma se profissionaliza durante o período helênico romano. O declí nio da parrhesia como regra fundamental do cuidado de si liga-se ao desligamento progressivo entre catharsis e política. Se, para Platão, é preciso ocupar-se consigo para melhor ocu par-se com os outros e, assim, realizar a felicidade, no neopla- tonismo o cuidado de si se desenvolve numa catártica de si que esquece seu compromisso político e ambiciona a purificação individual. Vê-se, assim, como a ascensão da vertente psicote rapêutica do cuidado de si é correlata da evasão de um aspecto de sua vertente clínica. Os vínculos de finalidade, reciprocida de e reminiscência entre o plano político e o plano catártico são progressivamente dissolvidos numa autofinalização do eu que se expressa agora em duas práticas herdeiras do cuidado de si: a arte da existência e a técnica de vida (Foucault, 1981-82, p. 219). Nesse movimento, a curasui (cura de si) gradualmen te deixa de ser atividade permanente ligada à excelência e ao cuidado e passa a se concentrar em sua significação de objetivo ou produto do processo. A cultura de si, que se estabelece como condição de possi bilidade para a emergência do cristianismo, é um dos espaços em que o cuidado de si se profissionaliza, gerando um desloca mento e uma distribuição social das diferentes técnicas, antes unidas por um mesmo escopo ético baseado na relação entre o sujeito e a verdade. Por cultura de si deve ser entendido um conjunto hierarquizado de valores tidos como universais, mas de acesso restrito, segundo o grau de excelência do intérprete. Reencontramos aqui esse duplo movimento de hierarquização 218 do sentido (literal, moral, espiritual) e substituição da relação de fala pela exegese da escrita. A cultura de si de implanta ção latino-cristã prescreve valores articulados a um conjunto de regras e condutas, de esforços e sacrifícios que encontram sua justificação num sistema de saber socialmente válido, es tável e teoricamente transmissível (Ibid., p. 221). A aparição da cultura de si introduz elementos inicialmente estranhos ao cuidado de si — por exemplo, a noção de salvação e o problema da imortalidade da alma, pelo qual, por exemplo, a preparação torna-se a preparação para outra vida, não para esta. A con versão deixa de ser conversão a si (ocupar-se de si é retornar o olhar para si) e passa a ser conversão ao outro. Surge a noção de felicidade separada agora da noção de contentamento. A fe licidade, que se associa com a salvação, se realiza pelo caminho da ataraxia (ausência de perturbação) e da autarcia (domínio de si), retomando, assim, o tema grego original do autodomí nio (enkrateia). Conceitos antes ligados à conotação mútua de cuidado e de política se despolitizam. Neste espaço de desconexão entre o cuidado de si e a políti ca se instala a valorização progressiva de uma ética intermediá ria, a ética da amizade. O melhor espaço para cuidar de si não seria o do grupo fechado nem o da errância, mas o da amizade, entendida agora como suspensão e isolamento em relação à es fera dos interesses. A oposição, que nos parece tão natural, en tre cuidar de si e cuidar dos outros procede do entendimento que dissocia cuidado e política, ou ainda desejos e interesses. Um bom contra-exemplo disso encontra-se no modo como os estoicos entendiam a amizade: “Nem é amigo quem busca sempre utilidade nem quem nunca a associa à amizade, pois o primeiro faz o benefício do tráfico do que dá em troca, o outro rompe com a boa esperança para o futuro” (Epicuro Sentença Vaticana apud Ibid., p. 238). Isso decorre do fato de o cuidado de si assumir como tarefa a realização do sujeito como qualquer um. Ou seja, para cuidar de si é necessário tornar-se um entre outros, não alguém privi 219 legiado ou excessivamente instalado em seu próprio espaço, domínio ou posição social diferenciado. Tenha-se em mente que esse princípio foi proposto por Marco Aurélio e seguido por César, ambos imperadores romanos. E na amizade, mais que em qualquer outra forma de sociabilidade, que essa sin gularidade entre diferentes e essa diferença entre particulares pode ser melhor tratada. O trajeto do cuidado de si passa, como já indiquei rapi damente, pela experiência de conversão. Três conotações se cruzam nesta noção: a moral, a religiosa e a política. Para Platão, a conversão (epistrophè) implicava desviar-se das apa rências, retornar a si e engajar-se na reminiscência, processo de lembrança metódica das ideias essenciais, fonte e origem do conhecimento. Ora, para a tradição platônica, a conversão supõe outro mundo, independente de nós, ao qual é preciso submeter-se segundoos ditames da vida contemplativa (theo- ria). Para a filosofia helenística do cuidado de si, esse retorno, essa conversão, se dá rumo ao mundo em sua imanência e ao sujeito em sua vida ativa. Trata-se de uma libertação daquilo que não dominamos em nossas relações atuais. Sêneca conclama aquele que ingressa no cuidado de si a fazer um g iro em torno de si mesmo. Tal gesto, de girar sobre si, era realizado tradicionalmente no momento em que o mestre liberta seu escravo. Ele exprime, em seu simbolismo, um tipo de liberdade imanente e interna aos laços sociais. Se a conver são platônico-cristã estava marcada por um momento fulgu rante, no qual havia mutação do sujeito (trans-subjetivação) e ele ingressava em uma nova ordem, a conversão, para os helê nicos, implicava um processo longo de auto-subjetivação. O sujeito do cuidado de si muda de posição diante da vida; não inventa outra vida. A conversão cristã se caracteriza pelo arrependimento, pelo remorso e pela expiação (metanoia crista) . Ela é preparada por uma espécie de exegese de si, na qual o sujeito observa seus atos, pensamentos e depois os julga e pune. Destituída de seu 220 sentido político, ela favorece uma cultura da culpa interioriza da. A conversão ao cuidado de si, ao contrário, procura alcan çar uma espécie de renúncia ao remorso pela assunção dos atos da vida, induzindo uma cultura da vergonha. Ambas as formas de conversão concordam na importância do retorno do olhar a si, mas diferem na finalidade do que se segue a esse retorno. A diferença pode ser remetida à absorção de elementos míticos contidos no discurso platônico. O mito de Er, sobre o passeio das almas, descrito em A República, é exemplo disso. Para os helênicos, esse elemento mítico parece ausente ou não possui a mesma importância estratégica. É preciso ultrapassar tanto o temor aos deuses (e ao destino, por extensão) quanto o medo das contingências que definem a experiência humana, e da morte em particular. A conversão, no cuidado de si, assume posição intermediária entre platonismo e cristianismo; é uma conversão a si (Ibid., p. 289). O declínio do cuidado de si, quando de sua transformação numa cultura de si, reservará ainda outro destino para a con versão: a estetização. Fazer da vida uma obra sobretudo bela, cultivar a si mesmo como uma obra de arte, constitui um pro longamento do programa helenístico original. Isso pode ser atribuído, em parte, à valorização da velhice como momento de consumação máxima da vida, consumação que se expressa na forma de uma vida que vale a pena ser contada. Daí surge o impulso para o nascimento do gênero biográfico e autobiográ fico. Uma vida que sirva ao mesmo tempo de exemplo e que inclua em si a própria atividade de narrá-la. Isso é tributário do cultivo, principalmente entre os estoicos, da escrita de si. Diários, anotações pessoais, relatos epistolares formaram, as sim, um corpus de práticas e testemunhos pelo qual podemos entender o funcionamento tardio do cuidado de si. Os tipos de práticas envolvidas no cuidado de si, que discu tiremos à seguir, podem ser classificadas da seguinte maneira: 221 A. Ascese: (a) pxercícios do corpo (1) Dietética; (2) Erótica; (3) Ginástica. (b) Exercícios da alma (1) Disciplinas; (2) Atitudes. B. Meditação: (a) Premeditação dos males; (b) Meditação sobre a morte; (c) Exame de consciência; (d) Concentração e dilatação da alma; (e) Olhar de perto e olhar de longe. C. Memória: (a) Recordação; (b) Exame dos sonhos; (c) Consolação. D. Método: (a) Observação da natureza; (b) Exame do presente; (c) Ponderação sobre o futuro; (d) Avocatio (cálculo dos prazeres). 5.3. ASCESE Examinados os princípios gerais do cuidado de si, suas oposições e compromissos com a medicina da alma, com a retórica, com o discurso filosófico e religioso, passemos agora ao detalhamento de suas práticas específicas. Elas se dividem em dois grandes grupos: a ascese (askésis) e o cuidado (melete) (Hadot, 1991). A ascese se subdivide entre a prática de exercícios corporais igymnazein), como abstinências, prescrições dietéticas e eróti cas, e a prática de certos experimentos mentais, atitudinais e disciplinares. A ascese compõe, gradualmente, uma espécie de 222 acervo de experiências, discursos e convicções cuja principal característica é a de estarem facilmente disponíveis à memória para que sejam úteis diante dos acontecimentos. Este acervo deve ser uma espécie de equipamento incorporado e sempre disponível, de tal forma que advenha espontaneamente à me mória. Há ainda sentidos diferentes de ascese: a platônica (re núncia aos prazeres dos sentidos), a cínica (suportar a fome, as injúrias para conquistar independência e praticar a denúncia), a estoica (retificar os juízos para nao se prender aos objetos), a pirrônica (indiferença diante das coisas) e a epicurista (limitar o desejo como meio para alcançar o prazer puro). A ascese pitagórica reunia uma série de práticas restritivas, de natureza dietética, erotológica e concernentes ao uso da pa lavra. A ascese crista, por outro lado, enfatiza a formação de um código estrito de obediência e renúncia comportamental e atitudinal. Para os estoicos, cínicos e epicuristas, a ascese tem estatuto inteiramente distinto, uma vez que uma de suas ques tões centrais é saber até que ponto e sob qual fundamento alguém deve se submeter à lei. A obediência deve ser exami nada como qualquer outra atitude servil. A ascese, neste caso, implica uma série de exercícios cujo fim é preparar e advertir o sujeito para a importância da contingência na vida humana e, ao mesmo tempo, afirmar sua soberania sobre ela. A ascese helenística se desenvolve em uma série de práticas ligadas à noção de purificação e elevação. Isso se traduz em disciplinas envolvendo a escuta, a leitura, a escrita e a fala. E neste contexto, por exemplo, que se forma uma tradição de exame dos sonhos e de atenção quanto à forma do sono, como práticas específicas de exame de consciência. Confere-se particular ênfase à maneira de dizer ou ler as coisas (léxis), em contraste com o exame de como as coisas são (phasis). Não se trata de uma técnica, como na medicina ou na oratória, que também se dedicam ao modo de dizer e escutar o paciente ou a audiência. O objetivo da ascese, como disciplina da escuta e da atenção, é alcançar uma espécie de equilíbrio entre dois 223 aspectos da escuta: a dfsposiçao ponderada (sophrosyne) para o pensamento lógico ilogos) e a capacidade de ser afetado pelas palavras (pathetikós). Na prática da escuta recomenda-se, em especial, o domínio do silêncio, ou seja, nao converter imedia tamente o que se ouviu em discurso, nao discutir cada ponto do que foi dito, guardando uma atitude corporal de sereni dade. Trata-se de construir um silêncio ativo e significativo. Nasce aqui a regra de que a competência para falar depende da capacidade de escutar. Outro aspecto da ascese da escuta é a arte de dominar a distribuição da atenção. Saber separar o que é rigorosamente dito da retórica e da erotização induzida pela mestria ou pela autoridade de quem fala. Tais exercícios conduzem a um tipo de memória pela qual se retém o valor das palavras proferidas, ao mesmo tempo em que se distancia de seu efeito de dispersão na conversação. Parece justo dizer que as práticas de ascese formam uma superfície psicoterapêutica. Observe-se que nela há uma es pecial atenção à corporeidade e, particularmente, ao encontro sexual. Neste tema, os pontos centrais são a frequência e o momento, não as qualidades específicas do objeto ou do tipo de intercurso. Isso ocorre porque é na intensidade que se loca liza o problema da relação entre o domínio a si e o cuidado de si (Foucault, 1984c, pp. 88-110). A distinção entre exercícios corporais e exercícios atitudinais é muito menos importante do que a ênfase na interiorização do conflito e na auto-obser- vação. Surge, assim, uma curiosa aproximação entre a ascese e a disciplinada escuta, que se encontrará tematizada em mui tas formas da prática psicanalítica. Esta aproximação soa mais intrigante ainda quando lembramos que a ascese é, no fundo, herdeira da antiga tradição catártica. 5.4. MEDITAÇÃO O segundo grupo de práticas envolvidas no cuidado de si gira em torno da noção de meditação, e conecta o cuidado de si 22 4 à tradição clínica. A meditação é uma experiência ou um exer cício com o tempo ou com o espaço. A inserção do sujeito no passado, no futuro ou no presente, assim como sua aproxima ção ou distanciamento do mundo são o fulcro deste exercio; ao tomar uma posição outra, ou ainda, colocar-se em outro lugar, há uma transformação regrada de si. Será importante reter, ten do em vista considerações vindouras, que no campo da cura e do cuidado o método é originalmente uma prática entre ou tras, e não a ideia matriz de toda e qualquer prática. O método refere-se a uma espécie de disciplina envolvendo prognóstico do futuro, ordenamento de previsões e compromisso na forma de proceder. Há, portanto, uma oposição relativa entre o método e outras práticas, posto serem espécies do mesmo gênero. Entre essas três grandes modalidades do pensamento reflexivo ociden tal, memória, método e meditação, podemos alinhar diferentes acepções de verdade antes examinadas, respectivamente: a ve ntas (memória), a aletheia (meditação) e a emunah (método). Para os estoicos a meditação tinha por centro o exame da consciência a partir da pergunta: “Agiste em conformidade com teu desejo?”. É exatamente a mesma formulação que Lacan (SVII: 1959-60, pp. 373-390) escolhe para indexar a ética da psicanálise e separá-la das éticas utilitaristas, trans cendentais ou naturalistas. Geralmente, a ética estoica é com preendida como ética da impassividade, que ensina a desejar menos para sofrer menos. Mas se nos detemos no cuidado de si, vemos que ao lado desta direção há ainda um convite à subjetivação incondicional do desejo. A principal forma de meditação é conhecida como medita ção sobre a morte. Pensada como modelo para enfrentar a pior das servidões, a servidão a si mesmo, a meditação sobre a mor te convida o sujeito a assumir, experimentalmente, a situação de finitude. A partir disso, ele pode redimensionar sua posição no sistema de obrigações-recompensas ou de dívidas para con sigo. Assim como a contemplação da natureza (outro gênero de meditação), a meditação sobre a morte nos faz ver as coisas 225 “desde o alto” e as relações humanas como um espetáculo: “Quero me fazer levar pelas nuvens, do alto eu veria homens errando ao acaso e tremendo, por falta de razão, ante a ideia da morte” (Ovídio, 1986, p. 123). Surge aqui uma oposição que marcará profundamente a cena da cura até o século XIX, ou seja, os três lugares para digmáticos nos quais o restabelecimento (Heilung) deve se desenvolver: o contato com a natureza, a viagem e o teatro. Na forma do jardim, do átrio ou do passeio, presume-se que o deixar-se em contato com a natureza possui propriedades curativas, pois faz o sujeito sentir-se em si. Daí que elas devam ser alternadas com experiências de separação de si, de estar fora-de-si, como se realiza por meio do teatro e da viagem (Foucault, 1973-74, pp. 25-48). Ver desde o alto inclui localizar-se no mundo, relativizando nossas pequenas paixões, nossos vícios e nossas virtudes em face do caráter indissociável que preside a ligação entre os esplen dores do mundo e sua miséria. Portanto, nao se trata de pensar sobre a morte como tema especulativo, mas de um exercício que coloca o sujeito no instante infinitamente pequeno que consti tui o presente, antes do qual nada mais existe e após o qual tudo é incerto, como se nos imaginássemos no lugar de alguém que está morrendo ou que vive seus últimos dias. Uma variante da meditação sobre a morte é a premeditação dos males, ou seja, colocar-se na posição em que os piores in fortúnios que alguém poderia imaginar se dêem por realizados; trazer para o presente imediato o que de pior pode ser conce bido. Trata-se de uma modalidade de prova pela qual alguém se depara com o “tudo menos isso” que comanda sua vida. A premeditação dos males é uma espécie de prova ou confronta ção com o pesadelo, de tal forma que ele possa ser olhado de frente e atravessado. Novamente o cuidado de si não introduz uma técnica que já não seja exagero ou diminuição controlada da própria atividade do indivíduo. O estado de temor difuso e de apreensão com relação ao futuro, assim como o estado de 226 antecipação do pior, já faz parte regular da vida do sujeito ator mentado. Ocorre que isso se dá sem a suficiente radicalidade, conduzindo a uma espécie de jogo de sombras pelo qual uma forma de temor impede de ver bem outra, e assim por diante. Uma variação importante da meditação, que será aprofun dada posteriormente pelo cristianismo, é o exume de consciência. O objetivo desta prática é criar auto-distanciamento. Envolvido pela rotina cotidiana e pelas demandas do mundo, a pessoa es- quece-se de si mesmo como experiência do presente. Isso signi fica um extravio da consciência em preocupações sobre o futuro ou remorsos do passado. O exame de consciência não consiste apenas em dirigir a consciência para as ideias e sensações que ocorrem ao eu, mas na expectativa de apreender a posição, a par tir da qual, a consciência apreende tais ocorrências. A imagem recorrente aqui é a do homem tão preocupado com a direção na qual está indo e com o lugar de onde veio que se esquece de per guntar onde ele está. Se a meditação sobre a morte traz a alma de volta ao presente, em uma estratégia de auto-aproximação, o exame de consciência introduz uma distância de si a si que é usualmente imperceptível para a alma. Se Sêneca é uma referência para a meditação sobre a morte, que atua por distanciamento e aproximação da alma, Marco Aurélio desenvolverá uma prática inversa: a concentração e a dispersão da alma. Aqui se trata de ver de perto, deter-se sobre os detalhes, examinar o impacto e o valor dos acontecimen tos de magnitude infinitesimal que povoam nossa experiência. Examinar os pensamentos que ocorrem espontaneamente ao espírito, examinar o estranhamento com pequenas percepções e sensações, nomear as coisas que nos passam despercebidas, deixar evocar as memórias que tais impressões causam. Tudo isso serviria para “dilatar a alma”, libertando, assim, o sujeito de sua servidão ao ponto de vista médio. A dilatação da alma deveria ser empregada em alternância com práticas de concen tração da alma, por exemplo: decompor um objeto numa série temporal, redescrever um acontecimento tendo em vista seus 227 elementos componentes ou relatar de forma desqualificante ou irônica os eventos aos quais atribuímos excessivo valor. O objetivo nesta série é realizar uma decomposição da identidade das representações que nos afligem ou nos fascinam. Compri mir e dilatar a alma são experiências complementares que fazem alternar o sujeito como razão e o sujeito como ponto, desmem brando e decompondo a unidade de sentido que nos domina ou que queremos dominar. No fundo, o stultos quer dominar o que não pode e, com isso, deixa-se dominar pelo que pode. Como uma contrapartida à concentração e distensão da alma temos a estratégia oposta, que consiste em instalar variações de contra-foco sobre a experiência. Por exemplo, tomemos uma si tuação problemática que alguém enfrente em sua vida e que o torne obsessivamente ocupado com a questão. A solução para este tipo de perda de si (alienação) consiste em considerar a si tuação do ponto de vista da eternidade, ou ver de cima ou de olhar de longe. Olhemos para esta situação de cima, do céu como diriam os estoicos. Esta mudança de perspectiva tende a revelar outros aspectos da situação, eventualmente piores, que cercam o indivíduo em sua vida pessoal. A estratégia inversa a esta é chamada de “olhar de perto”. Aqui, por exemplo, temos um problemamenor, porém persistente, que não é suficientemente importante para atrair nossa atenção de forma concentrada. A consciência dispersa não investe a atenção de forma dirigida. A ideia de olhar de perto é como focar lentes na situação de forma a ver os detalhes que tornem a solução possível. As variantes da meditação correspondem à combinatória das possibilidades geométrica de relações entre o olhar e a visão. A alma funcionaria como uma espécie de espelho, e a visão como a função que localiza neste espelho os objetos, ou situações pro blemáticas. O espelho pode se afastar ou se aproximar do objeto, permitindo assim ver e deixar de ver novos aspectos da imagem formada. A alma pode ser ainda um espelho de maior ou menor extensão, permitindo ver com maior ou menor amplitude. Fi nalmente, a alma pode ser um espelho que muda seu ângulo de incidência sobre o objeto, deformando sua imagem. 228 5.5. MEMÓRIA O terceiro grupo de práticas do cuidado de si reúne as experiências com a memória (recordação, exame dos sonhos e consolação). A reflexão sobre a memória é, ao mesmo tempo, uma atitude diante do porvir e uma crítica do estado de ocu pação entendido como perda ou extravio de si. Concentrar-se no presente, como enfatizam estoicos e epicuristas, é também desligar-se de si no passado e no futuro. Inversamente, a re cordação é um caminho para reencontrar o presente e, a partir dele, encarar o futuro. Segundo a afirmação de Epicuro: “Se por eternidade não se entende a duração temporal infinita, mas a atemporalidade, então vive eternamente quem vive no presente” (apud Wittgenstein, 1921). Uma variante da prática da memória é o exame dos sonhos. Aqui a convergência com a psicanálise encontra um raro pon to de apoio direto em Freud. A primeira parte da Interpretação dos Sonhos (1900a) é um sumário fiel das questões levantadas pelo cuidado de si em relação a esse tópico: a relação do so nho com a vida de vigília (a interpretação não deve ser pela totalidade, mas por fragmentos); as relações entre o sonho e a memória (incluindo a ideia de que o sonho é uma espécie de memória profética); os estímulos internos e externos do sonho (para os helênicos, havia numerosas formas de incitar um so nho); o lugar da corporeidade (incluindo o valor erótico dos sonhos); o esquecimento dos sonhos (os helênicos desenvolve ram técnicas de lembrança dos sonhos); e, finalmente, o valor clínico dos sonhos em sua relação com as afecções mentais. Em suma, a ideia de que o sonho tem um sentido, de que este sentido pode ser decifrado e que ele se refere à vida atual do sonhador, mesmo que este não consiga reconhecer isso ime diatamente (daí o exame de consciência), toda esta série é uma descoberta realizada no seio da experiência do cuidado de si. Contudo, em suas referências à concepção sobre os sonhos na antiguidade, e mesmo em sua admiração por Artemidoro de 229 Daldis, Freud mostra desconhecer completamente o lugar que a prática do exame dos sonhos tinha dentro do sistema de cura representado pelo cuidado de si (Lobo, 2004, p. 131). A última variante dos exercícios da memória dá origem a um gênero narrativo bastante cultivado na Idade Média: a consolação. Boécio, expoente desse gênero, narra em A Con solação da Filosofia (1998) os últimos momentos de um con denado à morte. As agruras e temores diante da morte são dissolvidos à medida que a figura onírica de uma mulher, ini cialmente vestida e imponente, designada como A Visitante, revela-se ao fim uma grande alegoria da verdade. Quando Bo écio pode contemplá-la, encontra também “a face de seu ver dadeiro médico”. A consolação narra essa situação, que Lacan (SVII: 1959-60, pp. 327-341) chamou de entre duas mortes’, na qual aquele que fora professor de filosofia, injustamente condenado, tem todas as suas demandas inapelavelmente sus pensas. Sua técnica consiste em intervenções que desequili brem as duas atitudes básicas diante da calamidade: a indife rença e a afetação exagerada (Jackson, 1999, p. 169). Ou seja, diante da indiferença, convidar ao afetar-se; diante do afetar- se, convidar à indiferença; e assim sucessivamente até que a calamidade seja, ao mesmo tempo, profundamente sentida e indiferente. A consolação se inclui entre as práticas que visam um tensionamento máximo entre duas acepções de sujeito: o sujeito como razão indeterminada e o sujeito como ponto ou posição. O sujeito como razão instala-se na penumbra do mundo, opera num espaço de distanciamento no qual todo o tempo lhe é dado, e justamente por isso, a escolha se torna impossível. O sujeito como ponto, ao contrário, funciona na temporalidade de um instante irreversível no qual se deve es colher ou apostar. Mostramos-lhe o mundo não para que possa escolher, como as almas de Platão podiam escolher seu destino. Mostramos-lhe o mundo para que se compreenda que não 230 tem escolha, e que nada se pode escolher se não se escolhe o resto, que há somente um mundo, um único mundo possível, e que é a ele que estamos ligados. (...) A única escolha não é: que vida tu vais escolher, que caráter tu vais atribuir-te, queres tu ser bom ou mal. O único momento de escolha que é dado à alma, no momento em que no limiar da vida, nascerá neste mundo, é: delibera se queres entrar ou sair, ou seja, se queres ou não viver. (Foucault, 1981-82, p. 347) Na Consolação a Márcia (Sêneca, 2007, pp. 156-181), de- senvolve-se o discurso da consolação dirigido a uma mãe que perdera seu filho. A estratégia de Sêneca é apresentar dois per cursos sobre o luto. No primeiro narra-se a atitude de Octavia, que ao perder seu filho Marcelo permanece toda a vida no mesmo estado do dia do funeral. Rejeita seu outro filho, traja luto e passa o resto de sua existência devotada à memória cris talizada do filho perdido. Lívia, em semelhante situação age de forma inversa. Parece enterrar seu filho Drusos e ao mesmo tempo o sofrimento por sua perda. Ela jamais deixou de pro nunciar o nome do filho perdido e convive pública e priva damente com sua memória. Vê-se assim como Sêneca parece antecipar a diferença entre o luto patológico e a melancolia (Octavia) do luto suposto normal (Lívia) (Silva, 2007). Sua estratégia narrativa difere tanto da linhagem judaico-cristã, quanto do gênero tipicamente grego. Em vez de designar os tensivamente qual deve ser a atitude a ser adotada por Márcia ele lhe indica, cuidadosamente, que se trata de um momento de escolha. A escolha deve ser feita, mesmo nesta circunstância a qual o mais cruel destino cai sobre um sujeito. 5.6. MÉTODO A quarta e última família de práticas ligadas ao cuidado de si é composta pelo método. O método tem que ver com a elaboração necessária da certeza e da decisão, duas dimensões 231 que compõem o horizofite da verdade, sobre o qual se estende toda a experiência do cuidado de si. O método corresponde à eleição de um ponto fixo, ao qual se poderá retornar e do qual se pode projetar uma sistematização de si. Assim como a meditação sobre a morte se opõe à distensão-concentração da alma, o método se opõe às experiências de memória e exame de consciência. O método pretende estabelecer um ordenamento do futuro, tecendo compromissos e considerações sobre suas contingências. Inclui-se aqui o tema dos acontecimentos im previsíveis, da brusca surpresa e também da avocatio, a fixação de prazeres futuros, praticada pelo epicurismo. Esta fixação não corresponde a uma espécie de plano de metas, mas a um exercício de convivência e extração de prazer no trajeto que leva ao prazer. É a distensão do prazer em trabalho, espera e elaboração que o qualificam e o intensificam. A forma reflexiva representada pelo método ganha impulso na medida em que se torna cada vez mais importante pensar o cuidado de si como método de educação individual. Com a diluição do cuidado de si em cultura de si, o método torna-se uma prática cada vez mais valorizada. Sua importância cres ce na medida em que a
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