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A cura como cuidado de si (cap 5, dunker)

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C A PÍT U LO 5 
A CU RA COM O CU ID AD O DE SI
Abandona a tua dor, antes de ser abandonado 
por ela.
Sêneca
5.1. CURASUI
CURA, AO ATRAVESSAR UM RIO, VIU UMA MASSA DE ARGILA E, mergulhada em seus pensamentos, apanhou-a e come­
çou a modelar a figura. Quando deliberava sobre o que fize­
ra, Júpiter apareceu. Cura pediu que ele lhe desse uma alma 
à figura que modelara, e facilmente conseguiu o que pediu.
Como Cura quisera de si própria, dar um nome à figura que
modelara, Júpiter proibiu e prescreveu que fosse dado o seu. 
Enquanto Cura e Júpiter discutiam, Terra apareceu e quis que 
fosse dado o seu nome a quem ela fornecera o corpo. Saturno 
foi escolhido como árbitro. E este equitativamente assim jul­
gou a questão:
Tu Júpiter, porque lhe deste a alma, tu a terás depois da 
morte. E tu, Terra, porque lhe deste este corpo, tu o rece- 
berás após a morte. Todavia, porque foi Cura quem pri­
meiramente modelou, que ela a tenha, enquanto a figura 
viver. Mas, uma^vez que existe entre vós uma controvérsia 
sobre o nome, que ela seja chamada Homem, porque feita 
de húmus’. (Rocha, 2000 [citação modificada])
A fábula acima foi compilada pelo poeta latino Higino 
(50-139 d.C.), no contexto da elaboração de um mito grego. 
Zeferino Rocha, que traduziu este trecho, escolheu o termo 
angústia para traduzir a expressão latina cura. Isso se justifica 
no contexto do comentário de Heidegger para quem angústia, 
cuidado e cura reúnem-se em uma disposição ou abertura pri­
vilegiada para o ser (.Dasein). Cura é de fato uma palavra que 
admite extensa conotação em latim. Em sentido próprio de­
signa cuidado, mas há tantas atividades, disposições e estados 
da alma envolvidos no cuidado que esta parece umá daquelas 
expressões que sabemos empregar melhor do que definir. Na 
língua administrativa cura indica encargo, incumbência ou ta­
refa. No vocabulário militar oü doméstico designa o guarda­
dor, vigia ou guarda. Na língua médica indica, como já vimos, 
tratamento ou cura. Na língua jurídica é a causa ou objeto de 
preocupação e inquietação. Também na linguagem amorosa 
designa o objeto amado e por extensão a própria atividade de 
amar. Usa-se também cura em latim para designar um livro ou 
uma obra literária. Um levantamento mais sistemático destas 
conotações da cura permite agrupar seu sentido em quatro 
dimensões (Muchail, 2007, pp. 26-27):
(1) atos de conhecimento regidos p elo olhar — nesta acepção 
cuidar liga-se ao olhar, por exemplo, quando dizemos “olhar a 
casa” ou “olhar as crianças”. Cuidar implica um determinado 
estado de atenção, concentrado e disperso. Daí a imagem de 
alguém que volta o olhar sobre si, como alguém que olha e 
se preocupa com sua própria casa. Daqui procedem tanto as 
técnicas cristas do auto-exame e da auto-observação quanto 
os métodos psicológicos baseados na introspecção. É preciso 
mencionar ainda os diferentes empreendimentos filosóficos 
baseados na auto-reflexão, na meditação e na especulação;
194
(2) movimento não só do olhar, mas da existência p o r inteira
— aqui encontramos o sentido da cura como recolhimento, re­
tirada ou orientação para si. Trata-se da acepção forte de con­
versão (refluir sobre si) como retorno a um lugar próprio. Daí 
o sentido heideggeriano da cura como temporalidade da con­
sistência e da inconsistência de si-mesmo (Heidegger, 1927, 
p. 127). Esta ek-stase das diferentes temporalidades de si, na 
disposição, ná decisão, na decadência, no poder-ser reúnem- 
se na cura como abertura para a existência como finitude. Na 
abertura do ser como ser-para-a-morte;
(3) atividades ou condutas particulares — aqui a cura designa 
um processo de tratamento da alma que pode ter uma conota­
ção médica, como na ideia de que uma escola de filosofia é um 
“hospital da alma” ou na metáfora jurídica de “fazer valer seus 
direitos”, “liberar-se”, “desobrigar-se”, e ainda na metáfora re­
ligiosa de “cultivar-se”, ou “retomar o respeito por si”. E nesta 
acepção que encontramos as diferentes combinações entre as 
estratégias clínicas e táticas psicoterapêuticas que estamos des­
crevendo neste livro. Sua matriz é a filosofia helenística desen­
volvida entre o apogeu do pensamento grego e a ascensão do 
império romano;
(4) tipo de relação perm anente consigo — neste caso incluem- 
se tanto a noção de soberania, tais como “ser senhor de si” 
quanto sensações consigo e percepções de si tais como “sentir 
prazer consigo” ou “alegrar-se consigo”. O herdeiro mais claro 
desta acepção da cura é Nietszche. Entendendo que a arte da 
cura (Heilkunst) passa pelo diagnóstico de sua época, domina­
da por esta patologia chamada ressentimento, Nietszche fará 
a crítica do tratamento moral baseado na assepsia da vontade 
e no retraimento das causas do sofrer na forma da culpa e 
da vítima. Tanto pela valorização da força terapêutica da arte 
quanto pela reformulação da noção de soberania, como von­
tade de potência e am orfa ti (amor ao destino), ele é um bom 
representante desta conotação política da ideia de cura (Cha­
ves, 2007, pp. 111-124).
Vimos que tanto ajtragédia quanto a retórica e ainda a clí­
nica de Empédocles ou Hipócrates situam-se como formações 
intermediárias entre o regime do mito (anterior ao século VIII 
a.C.) e a nascente filosofia socrático-platônica (posterior ao sé­
culo V a.C.). Após o grande apogeu da academia de Platão e do 
liceu de Aristóteles, vemos surgir, no período de transição para 
o nascente cristianismo, uma série de escolas próprias ao mun­
do helênico. Essa época de disseminação da cultura grega e de 
formação do império romano assistiu à aparição de inúmeros 
movimentos para os quais a filosofia não se situava, privilegia- 
damente, como a transmissão de um saber teórico, mas como 
uma prática de vida (Hadot, 1995). Durante muito tempo a 
filosofia helenística foi considerada um capítulo menor da his­
tória da filosofia. Entendida genericamente como momento 
de recuo das pretensões políticas e epistêmicas representadas 
por Platão e Aristóteles. Seu caráter menor se justificaria ainda 
pela interiorização da reflexão em pequenas escolas cuja maior 
preocupação seria praticar uma boa forma de vida. Reputava- 
se aos pensadores deste momento a falta de originalidade, o 
dogmatismo e a demasiada dependência para com os mestres 
fundadores de escolas (Erler & Graeser, 2005, p. 9). A partir 
da década de 1970 ocorre um movimento de retorno a estes 
pensadores e reavaliação crítica de suas contribuições.
Este movimento de retomada da filosofia helenística talvez 
tenha relação com as curiosas semelhanças entre o solo sócio 
cultural em que esta se desenvolveu e a nossa própria época. 
Tratava-se de um período de grande mistura entre populações 
e de intenso cosmopolitismo. A perda da independência das 
cidades gregas tendia a dissociar o homem do cidadão, o filo­
sófico do político, a teoria da prática. Pululam projetos reli­
giosos e técnicas de vida que procuram substituir a perda da 
liberdade exterior pelo incremento da salvação interior. Havia 
um crescente sentimento de nostalgia e decadência diante do 
aprofundamento da disciplina jurídico militar que dá luz ao 
Império Romano. Paralelamente emerge uma unidade comer­
196
ciai e econômica cuja extensão era sem precedentes. Diferen­
te das formas de dominação anteriores, a dominação romana 
interessava-se pela transformação dos subjulgados, pelo assu- 
jeitamento e eventual assimilação de suas culturas e línguas. 
Isso explica a formação do complexo sistema de controle e 
administração em torno do direito romano. O funcionamen­
to do Império, com sua lógica interna baseada na expansão 
indeterminada de fronteiras e aquisição de escravos estimula a 
cultura da sobrevivência. Nela a estetização da vida e a etifica­
ção da política tornam-se dispositivos se segurança e refúgio.
Esta desconfiguração da filosofia, que contribuiu para o des­
crédito do pensamento helenístico, pode ser atribuída ao deslo­
camento da atividade filosófica como atividade contemplativa. 
Verifica-seentre os helênicos uma desmontagem da metáfora 
ótica que domina o conhecer desde Platão. Para este conhecer 
é olhar, lembrar e reconhecer, mas olhar no sentido de olhar 
com a razão (logos), com a inteligência (nous) ou com os olhos 
do espírito. É uma metáfora que se apoia em sua expressão no 
mito de Er, ou do passeio das almas. Para os helênicos este olhar, 
sem deixar de ser o olhar da alma, é ainda um olhar empíri­
co, voltado para experiências materiais. O problema ontológi- 
co predominante entre os helênicos não é o da distinção entre 
alma e corpo. Com a exceção relevante dos neoplatônicos, para 
a maioria dos helênicos tratava-se de uma concepção materialis­
ta e de uma ontologia monista. Tudo o que existe é corpo, não 
obstante há ainda os incorporais (OE:1970e). Os incorporais 
não são fenômenos ideais, mas aspectos inusitados do funcio­
namento da linguagem, detectados primeiramente na filosofia 
megárica e estoica.
Portanto a forma de vida contemplativa era apenas uma en­
tre as formas de vida das quais o filósofo deveria se ocupar. Sua 
oposição com a vida ativa (vita activa), marcada pela ocupação, 
pelo desassossego e pela inquietude, não é imediata. É só após 
um conflito entre discursos que a experiência da liberdade se 
localizou na forma de vida teorética (Arendt, 1958, pp. 20-26).
197
O formato discursivo das práticas envolvidas na vida ativa 
não se caracterizava sempre pelo discurso sobre um objeto es­
pecífico de conhecimento, mas, às vezes, por um discurso com 
um sujeito que aspira uma transformação em sua vida. Essa 
prática que encontramos entre os estoicos, epicuristas, céticos 
e cínicos, com sistematizações diferentes e dispersas entre si, 
orienta-se para as relações entre o sujeito e a verdade. Não se 
trata da verdade sobre o céu e as estrelas, sobre a ordem do 
cosmos ou mesmo sobre a ética ou a religião em geral. O que 
está em causa aqui são condições pelas quais um sujeito pode 
enunciar e praticar uma forma de vida conforme a verdade 
que será produzida sobre si no espaço de sua relação com o 
outro. E o que Foucault (1981-82) examinou através da ex­
pressão “cuidado de si” - epimeleia beatoü, para os gregos, ou 
cura sui, para os latinos.
Muitas vezes se tem evocado o preceito délfico do conhe­
ce-te a ti mesmo {gnôthi seauton) como máxima da situação 
terapêutica. Essa máxima, longe de apontar para uma busca 
interiorizada de si mesmo, era, originalmente, uma recomen­
dação de prudência com tripla significação: evitar o excesso 
{hybris), não se comprometer além do que se pode e examinar 
bem as questões propostas ao oráculo e à vida. Esse impera­
tivo de prudência (sophrosine) tem como pressuposto, na filo­
sofia socrática, uma recomendação mais genérica: cuida d e ti 
mesmo. Ou seja, antes de conhecer-se, é preciso cuidar de si, 
ocupar-se consigo. Cuidar ou ocupar correspondem ao verbo 
therapeúein, de onde vem terapia e significa tanto os cuidados 
médicos sobre a alma quanto o serviço que alguém presta a 
seu mestre, o cuidado que se tem com a casa e ainda o culto 
que se faz a uma divindade. Ao contrário da terapêutica como 
tratamento, que se refere a uma ação descontínua no tempo, 
exercida sempre que necessário e segundo uma demanda es­
pecífica, o cuidado exprime uma atitude de atenção contínua 
consigo, uma orientação permanente. Isso condiciona as ações 
pelas quais nos modificamos, nos transformamos e nos trans­
198
figuramos (Ibid., p. 15) para além de dificuldades pontuais 
dos encargos específicos da vida ativa. O cuidado de si toma 
por objeto o sujeito, mas seu fim é a cidade, as relações sociais 
e cotidianas com os outros. Aqui há, ainda, uma relação de 
precedência: cuidar de si é condição para cuidar dos outros:
... não procurar estabelecer o que se é a partir do sistema 
de direitos e obrigações, que nos diferenciam e nos situam 
em relação aos outros, mas interrogar-se sobre o que se é 
para daí inferir o que convém fazer, no geral ou numa ou 
outra circunstância, mas sempre segundo as funções que 
se tem que exercer. (Epicteto apud Ibid., p. 563)
A recomendação de Epicteto nos mostra esta espécie de 
inversão de perspectiva presente no cuidado de si. Não se trata 
do sujeito como uma instância retirada ou isolada do mundo, 
mas de uma ordenação que estabelece um ponto de partida 
para a ação ética, segundo suas funções, mas não inferidas do 
sistema de direitos e obrigações. É preciso separar o cuidado de 
si da noção mais genérica de cuidado amoroso (caritas), de­
senvolvida no interior do cristianismo. Esta última forma de 
cuidado implica um tipo de auto-observação cujo objetivo é 
decifrar a si mesmo. Ela emerge nos tratados político-teológi- 
cos como imagem fundamental para designar a analogia entre 
o governo dos homens por Deus e a caritas, aqui definitiva­
mente uma forma de amor pastoral, que o governante deve 
ter com relação a seus súditos (Campanella, 1973). Assim a 
caritas enfatiza o conhecer-se para dominar-se e o ser conhe­
cido para ser cuidado, terminando numa renúncia a si. A es­
pecificidade do cuidar helênico é inteiramente diversa, senão 
oposta. Ela se torna difícil de precisar quando se considera que 
seu horizonte é a verdade na esfera do ser do sujeito em sua 
imanência e atualidade, não na esfera do sujeito em geral e em 
sua transcendência. Trata-se do cuidado amoroso (eros) e do 
cuidado entre iguais (ágape).
199
O argumento dos,;helênicos é que o cuidado de si nao é 
uma atividade concernente ao mundo do trabalho; nao en­
volve a produção de um objeto nem as técnicas inerentes a 
ele. Também não é, necessariamente, atividade estética ou re­
ligiosa, e muito menos atividade contemplativa ou teórica, se 
bem que possa incluí-las, desde que sejam consideradas como 
atividades no mundo. Há quatro esferas que levam à proble- 
matização crítica do universo moral grego, quatro domínios 
nos quais a liberdade seria assim abordada: a saúde do corpo, a 
relação com a esposa, a relação com o mesmo sexo e a relação 
com o acesso à verdade (Fonseca, 2003, p. 105).
Historicamente, há três momentos na prática do cuida­
do de si: (1) o momento socrático-platônico, cuja referência 
maior é o diálogo Alcibíades, atribuído a Platão (V. a.C.); (2) 
o período helênico, em que o cuidado de si se expande numa 
cultura de si, à época da Roma imperial (II a.C. a III d.C.); e, 
finalmente, (3) os séculos IV e V d.C., nos quais tal prática é 
absorvida ao asceticismo cristão que termina por submeter o 
cuidado de si à primazia do conhecimento de si.
No diálogo platônico encontramos o personagem de Alci­
bíades, o mesmo que se encantara por Sócrates em O Banquete 
(Platão, 1973) e que Lacan (SVIII: 1960-61) usa para reler a 
estrutura da transferência em termos do amor ao saber e ao 
objeto que o indicia (agalma). Todavia, no diálogo intitula­
do Alcibíades (Platão, 2007) a situação é outra. Aqui o jovem 
guerreiro envelheceu, ingressando na idade crítica em que 
abandona os amores^de juventude, ambicionando agora a vida 
política. Alcibíades não está interessado apenas em usufruir 
suas relações e viver pacatamente em família ou entre outros 
cidadãos. Ele quer transformar seu status numa ação política 
de governo sobre outros. Diante desta demanda, Sócrates lhe 
responde que o exercício do poder deve ser antecedido pelo 
cuidado de si. Sem a experiência do cuidado de si, na qual Al­
cibíades se mostra ignorante, o poder se extrapola em excesso 
ou se corrompe em tirania. Antes de tudo é preciso tratar esta
200
demanda, e a estrutura desta demanda, como de toda deman­
da inconsciente é: “eu te peço que recuse o que te ofereço, 
porque não é isso”. Em acordo com isso a resposta de Sócra­
tes não é uma simples negativa, mas uma revelação de que 
Alcebíades não sabe o que pede. Nao que falte a Alcibíades 
formação {paideia), experiência política ou virtude (sabedoria, 
justiça, temperança e coragem); falta o cuidado de si. Como 
cuidar dos outros, no sentido de ser soberano de uma cidade, 
sem antes sabercomo cuidar de si? Alcebíades é levado pela 
ironia socrática a reconhecer sua ignorância face à questão: o 
que é isso, o próprio eu, do qual ele deve se ocupar? É a ig­
norância, reposta ao longo do percurso como uma espécie de 
paixão renitente, que guia o cuidado de si. Trata-se de um di­
álogo aporético. Nele, não se elucida propriamente a questão 
levantada, não sendo possível, portanto, uma medida exata do 
que significaria o cuidado de si para Platão. Certo é que ele 
inaugura um longo trajeto de absorção, redução e dominação 
do cuidado de si pelo conhecimento de si. O movimento con­
tingente aqui é a passagem da questão ética (como cuidar de 
si?) para a questão epistêmica (o que é o eu?).
O diálogo platônico começa pela observação de Sócrates. 
Este estivera acompanhando Alcibíades desde sua juventu­
de. Notara seu orgulho, sua vaidade, sua atitude diante dos 
amigos e, sobretudo, a vaidade que toma conta de Alcibíades 
tendo em vista suas vantagens. Daí a promessa socrática: “(...) 
espero provar-te que te sou indispensável, e de tal forma in­
dispensável que nem o teu tutor, nem teus parentes, nem nin­
guém mais encontra-se em condições de entregar-te em mãos 
o poder que tanto ambicionas” (Ibid., p. 236).
A prática maiêutica começa pela indagação da origem do 
saber sobre a guerra, a paz e os demais assuntos de estado e 
pelo reconhecimento de que é necessário adquirir a excelên­
cia (arete) neste campo. Neste assunto domina a controvér­
sia. Como aprender a distinguir o justo do injusto, o justo 
do vantajoso, o bom do belo, se nesta matéria não sabemos
201
o que aprendemos por nós mesmos e o que nos foi ensinado 
por outrem? Sócrates ̂ afirma tratar-se de um erro relativo à 
vida prática, onde, incorremos na ignorância de presumirmos 
saber o que nao sabemos. Daí a primeira interpretação: Al- 
cibíades atira-se rumo à política como parte de uma doença: 
a ignorância de si (Ibid., p. 258). E por isso também que ele 
não consegue transmitir seu saber político. Ou seja, falta-lhe 
preparo, falta-lhe uma experiência propedêutica que o habi­
lite a governar os outros. Assim também ele desfaz dos seus 
oponentes persas ou lacedomônios, por pura ignorância de si: 
“(...) não virias a tomar mais cuidado consigo mesmo, no caso 
de teres medo deles e de os considerares adversários temíveis, 
do que se pensasse o contrário?” (Ibid., p. 261).
E contra este destemor no qual se ampara a ignorância que 
Sócrates lembra pela primeira vez a divisa de Delfos: Conhece-te 
a ti mesmo (Ibid., p. 266). Ela não é, contudo, o fim necessário 
para a tarefa, mas apenas o lema maior pelo qual nos lembramos 
da importância de aperfeiçoar-se. Aqui são chamadas as artes 
com as quais a arte de governar pode ser comparada e distin- 
guida: a arte do remador, do piloto e do marinheiro. A elas se 
acrescem a arte do médico, da medida, do comércio e da con­
córdia. Termina-se o elenco com a evocação dos laços familiares 
e de amizade, no quais pratica-se o governo dos outros. O que 
todas estas práticas tem em comum e ao mesmo tempo o que 
está negado na prática maior na qual todas se incluem?
Então responde: que significa a expressão cuidar de si 
mesmo? Pois pode muito bem dar-se que não estejamos 
cuidando de nós, quando imaginamos fazê-lo. Quando 
é que o homem cuida de si mesmo? Ao cuidar de seus 
negócios cuidará de si mesmo? (Ibid., p. 273)
Cuidar ocorre quanto tratamos algo de tal forma que o dei­
xamos melhor do que o encontramos. Porém cuidar de si não 
eqüivale a cuidar de algo que nos pertence. Aqui o cuidado 
torna-se um conceito crítico da noção de posse e pertencimen-
202
to, pois a arte que se ocupa conosco não é a mesma que se ocupa 
com o que nos p erten ce (Ibid., p. 275). Vemos aqui a primeira 
sinonímia socrátiça: cuidar é fazer, cuidar é ocupar-se com.
Não é a arte por meio da qual deixamos melhor qualquer 
coisa que nos pertença, mas a que nos deixa melhores a nós 
mesmo. (...) o que é certo é que, conhecendo-nos ficaremos 
em condições de saber como cuidar de nós mesmos, o que 
não poderemos saber se nos desconhecermos. (Ibid., p. 275)
Aqui fica clara a distinção entre conhecer a si mesmo e cuidar 
de si mesmo. Que o primeiro seja uma condição, uma condição 
para saber de si, para orientar-se para si. Ora, cumprindo-se 
a condição isso não necessariamente cumpre o que ela condi­
ciona. Surge a oposição subsequente entre conhecer e cuidar 
que encontrará uma longa história. Para Sócrates, na seqü­
ência deste diálogo, trata-se de descobrir a essência íntima do 
ser, no corpo, na alma e na reunião do corpo e da alma. Nesta 
relação o corpo é o dominado e a alma o governante. O Alcibí­
ades real é, antes de tudo, sua alma. Consequentemente, quem 
cuida do corpo não cuida de si mesmo, mas apenas do que lhe 
pertence, assim como só te ama quem amar sua alma. Também 
ao apaixonar-se pelo povo, a quem pretende governar, Alcibí­
ades perder-se-ia de si mesmo. O cuidado de si deve preceder 
ao governo dos outros.
Ora, este cuidado começa pelo olhar, e mais precisamente, 
pelo olhar que toma o outro olhar como um espelho, refletin­
do assim a própria alma que pode ser contemplada a partir do 
espelho representado pelo outro. Alguém pode conhecer as 
coisas que lhe dizem respeito sem conhecer a si próprio, mas 
nesta condição jamais poderá reconhecer o outro para além 
das propriedades do outro ou daquilo que lhe pertence. Um 
homem nestas condições nunca exercerá a política, pois não 
terá atravessado em si mesmo os paradoxos do reconhecimen­
to. A única forma de impedir a tirania política é tratar a tirania 
de si, em outras palavras, é libertar-se de si mesmo.
203
É no quadro do cifidado de si que uma série de técnicas, 
práticas e dispositivos^ serão relidos e transformados, sempre 
tendo por referência uma relação dialogai e pessoal. O cuida­
do de si é uma atividade para toda a vida, mas que se inicia e 
se transmite privilegiadamente numa relação finita. A imagem 
que podemos ter desse processo é a de uma série de encontros 
de duração variável entre um mestre e um discípulo. Nestes 
encontros, se pratica o exame de situações pontualmente pro­
blemáticas: assumir ou não um posto ou um encargo, casar-se, 
comer um tipo de alimento, mudar-se de cidade, ser deserda­
do pelo pai, conduzir amizades e relações, lidar com a doença 
de um ente querido, manter relações sexuais, enfim, tudo o 
que pode ser fonte de bons e maus encontros durante a vida 
cotidiana. O cuidado de si é impossível sem a participação 
ativa e continuada do outro. O homem ama demais a si mes­
mo para libertar-se sozinho, afirma Galeno. E na esfera das 
relações humanas que emergem as dificuldades, não seria fora 
dela que estas se resolveriam.
O outro, suporte e cond içã o para o estabelecimento do 
cuidado de si, possui um estatuto ambíguo, ora aproxima-se 
de um amigo, outras vezes de um conselheiro fixo e ainda de 
um mestre ou médico da alma. Entre as técnicas praticadas, 
incluem-se a purificação (catharsis), a concentração e dispersão 
da alma, o retiro e as provas. Há, ainda, a preparação e o exa­
me dos sonhos, o exercício da memória sobre os atos e circuns­
tâncias que compõe a vida, e o questionamento das decisões 
nela envolvidas. Há as técnicas que visam atrair a atenção e di­
minuir a curiosidade dispersiva, outras cujo objetivo é reduzir 
a atenção e fazê-la flutuar por novas paisagens. Há também as 
técnicas de memória que recuperam as pequenas escolhas do 
cotidiano, remetendo-as a um exame das representações que 
estas evocam no próprio sujeito.
A atividade de separação e avaliação dos conhecimentos 
necessários para o cuidado de si inclui os saberes de nature­
za etopoiética, ou seja, aqueles que conduzem à autarqueia
204
(depender de si) e à contenti (contentamento). É importante 
separar tais práticas da enkrateia, ou seja, o domínio de si. 
Reconhecemos esse impulso e essa exigência de dominar a si 
mesmo na figura de Ulisses. Por exemplo, ele se faz amarrar 
ao mastro e ordenacolocar cera nos ouvidos dos marinheiros 
quando a embarcação passa perto dos rochedos onde habitam 
sereias. Uma bela metáfora da proporcionalidade entre o do­
mínio de si e o domínio do outro. Ocorre que, na esfera do 
cuidado de si, a preocupação excessiva com o autodomínio é 
interpretada como sintoma da ausência desse cuidado. Não 
que o domínio exclua o cuidado — é a relação de ganância, 
esforço e exercício de poder que denota a ausência da relação 
de cuidado, sugerindo que ele se desloca para uma relação de 
educação ou governo entre as pessoas.
Vemos aqui duas expressões de natureza política emprega­
das para especificar o cuidado de si. A relação de poder a si é 
simétrica, mas não proporcional à relação de poder de si ao 
outro. Portanto, a relação pressuposta na dominação de si é 
ponto de partida para a dominação do outro ou da dominação 
pelo outro. Aqui se localiza uma das incidências dessa espécie 
de meta-hipótese dos trabalhos de Foucault — hipótese que in­
sere^ Hermenêutica do Sujeito (1981-82, p. 306), nosso texto 
de referência para a questão, num projeto mais vasto: “não há 
outro ponto, primeiro e último, de resistência ao poder polí­
tico senão na relação de si para consigo”. O interesse das es­
tratégias de poder nas técnicas de si não é, portanto, acessório 
ou complementar, mas constitutivo. Daí seus trabalhos sobre 
a história da sexualidade, sobre a história da loucura, sobre as 
formas jurídicas ou de governabilidade serem simultaneamen­
te textos de crítica histórica e fragmentos de uma genealogia 
da ontologia política da clínica psicanalítica.
A alma, como sujeito, não como substância essencial, é 
agente de um tipo de cuidado que mantém uma relação me­
tafórica com outras formas de cuidado, a saber, o cuidado que 
um médico dedica a seu paciente, que o dono da casa tem
205
para com seu lar (ecoifomia, oikos) ou que o amante oferece à 
amada (eros). Diferentemente do médico, do pai de família ou 
do professor, o cuidador cuida do cuidado que alguém pode 
ter consigo. Isso não exclui a erótica, a dietética ou as relações 
sociais que alguém tem para com sua vida, mas a relação é 
indireta. O cuidado de si não implica descuido com os outros, 
pelo contrário: problematiza o cuidado com o outro a partir 
da forma de cuidado consigo.
Vejamos um exemplo concreto (Ibid., p. 330). E a história 
de um pai de família que é tomado pelo desespero quando sua 
filha fica gravemente doente. Vendo que em tal estado ele seria 
de pouca ajuda, deixa-a aos cuidados da família e dirige-se para 
a Escola, onde consulta Epicteto. O filósofo aponta ao pai que, 
apesar do amor legítimo que sente pela filha, ele cometera um 
equívoco. Comovido pela doença, não suportando ver aquela 
triste cena, ele tivera, afinal, pouco cuidado consigo. Ao deixar 
de cuidar de si para cuidar da filha (no sentido de ser tomado 
pela pré-ocupação) o pai deixara de examinar as representações 
que lhe ocorriam ao espírito, impedindo-se de agir ativamente 
sobre a situação. E interessante notar que, aos nossos olhos, a 
conduta sugerida ao pai seria um pouco egoísta, ao passo que, 
para Epicteto, foi justamente por atentar pouco a si mesmo e 
tentar cuidar da filha antes de cuidar de si que ele não pode, efe­
tivamente, cuidar dela, ou melhor, ajudá-la a cuidar de si. Regra 
geral: é preciso cuidar de si para cuidar dos outros; começamos 
cuidando dos outros e tudo estará perdido.
O destino do cuidado de si se divide claramente numa 
tradição que tentará incluí-lo e submetê-lo ao conhecimento 
de si como condição preliminar e propedêutica para o conhe­
cimento em geral, e outra tradição na qual o cuidado de si 
se separa da finalidade epistemológica para se tornar parte de 
uma técnica de vida: a busca do prazer para os epicuristas; a 
retidão moral da escolha para os estéticos; a dúvida cética; a 
comtemplação platônica; são práticas assimiladas ao cuidado 
de si, que possuem no interior de cada um destes sistemas filo­
206
sóficos um sentido próprio e inoperante do cuidado de si. Para 
tanto, é preciso matizar o sentido da noção de técnica (technè). 
Neste caso, não se trata de uma atividade automática, repetiti­
va, anônima e transmissível na forma de um saber impessoal. 
As metáforas mais comuns para designar o cuidado de si são 
provenientes da arte da navegação, e remetem a uma forma de 
saber-fazer semelhante ao daquele que dirige uma embarcação. 
Na arte da pilotagem, é preciso saber sua própria posição, mas 
também converter o olhar para os sinais das circunstâncias, o 
vento, o movimento das marés, os rochedos e barrancas. Na 
experiência da pilotagem é necessário poder ficar só, separar- 
se de um conjunto de obrigações, prescrições e dívidas que 
compõe o cotidiano. Daí a ideia de que é uma prática que se 
aprende na própria experiência. A viagem impõe ainda a ideia 
de soberania sobre si, de autoapropriação reflexiva sobre os 
destinos e caminhos tomados. Há uma afinidade entre curar, 
dirigir e governar que atravessa a história do cuidado de si 
como uma metáfora fundamentalmente ligada ao tempo.
O tempo envolvido no cuidado de si inclui o kayrós, o tempo 
em que palavra e ato convergem para o acontecimento, mas se 
desdobra também no tempo que os gregos chamam de hóra, ou 
seja, a estação da existência em que o cuidar de si torna-se não 
apenas desejável, como em qualquer época da vida, mas neces­
sário. E o tempo entre a pedagogia e a política, marcado pela 
reflexão sobre a velhice futura e pela lembrança (anamnésis) e 
desaprendizagem da infância: “... almejo-te um desprezo gene­
roso por todas as coisas que teus pais te almejaram em abundân­
cia” (Carta de Sêneca à Lucilio, apud Ibid., p. 118).
Esta indicação de Sêneca mostra como na atividade de cui­
dar de si está em jogo uma espécie de liberdade tanto no que 
diz respeito ao passado quanto ao futuro. Como mencionei, a 
prática do cuidado de si se desenvolveu de forma heterogênea, 
não admitindo formato único. Na Escola (Stoa) de Epicteto, 
tratava-se de uma espécie de prestação de serviços que podia 
envolver uma estada mais ou menos longa com uma circula-
207
çao periódica e retornps. Para os cínicos, era prática pública, 
algo errática, realizada-por ocasião de encontros fortuitos nas 
festas e cerimônias, e também nas esquinas da cidade. Para o 
grupo dos terapeutas, organizado em torno de Filon de Ale­
xandria, tratava-se de uma experiência mais fechada, envol­
vendo restrições e obrigações ascéticas condizentes com um 
tipo de iniciação: Finalmente, para Sêneca, para os estoicos 
tardios e também para o epicurismo, era uma experiência rea­
lizada num tipo de sociabilidade próxima à da amizade, envol­
vendo encontros e também a troca de correspondência, além 
do incentivo para a escrita pessoal.
E consenso, no entanto, que, à medida que o cuidado de 
si se regulamenta, que seus critérios práticos se profissionali- 
zam e que suas escolas admitem formas de organização cada 
vez mais complexas, o cuidado de si tende a desaparecer ou 
se transformar em outra coisa. Isso se explica pela infiltração 
de uma forma de poder que corrompe a essência mesma do 
cuidado de si. Na medida em que o desequilíbrio da relação 
entre o poder a si e o poder ao outro admite um território de 
exceção, no qual cuidar do outro antecede o cuidar de si, ocor­
re uma autocontradição dissolutiva.
Nota-se aqui uma curiosa similitude entre essas formas he­
terogêneas de organização em torno do cuidado de si e as so­
luções, aparentemente homólogas, que nossa época encontrou 
para a transmissão da psicanálise: personalismo, grupalismo 
e institucionalismo. Isso deveria nos servir como advertência 
histórica. O cuidado de si transforma-se em outra coisa quan­
do se profissionaliza e quando aqueles encarregados de sua 
prática voltam-se primordialmente para a prática positiva de 
sua política associativa.
5.2. CRÍTICA DO PODER E EXPERIÊNCIA DE MAL-ESTAR
É importante distinguir a tradição da cura ou do cuidado de 
si de outras modalidades demedicina da alma e de terapias por
208
conversão, o que nem sempre foi enfatizado pelos historiadores 
da psicanálise (Jackson, 1999, p. 23). Estamos falando de três 
tradições intimamente relacionadas:
— A Prática Terapêutica (restabelecimento). Nesta vertente 
se enfatiza a recuperação do indivíduo pela via de sua 
reintegração narrativa. Seu pressuposto é a noção de re­
torno a um estado anterior, no sentido do restabeleci­
mento de uma condição prévia de harmonia ou de uma 
recomposição entre os elementos segundo uma ordem 
natural anterior. O critério de eficácia está baseado na 
redução do sofrimento na forma e linguagem em que é 
posto pelo paciente.
— A Clínica Médica Antiga (tratamento). Aqui nós encon­
tramos a combinação entre observação das doenças, os 
esforços para separá-las em grupos e agir sobre suas cau­
sas. Neste caso o critério de eficácia está baseado na ha­
bilidade de fazer prognósticos dos processos patológicos. 
Saúde e doença são considerados diferentes pontos em 
um processo cíclico de repetição. Nao há nada de novo a 
ser criado, nem nada de antigo a ser retirado.
— Cuidado de Si (cura, cuidado): Na tradição da cura sui 
trata-se da criação de um estado diferente da alma. De­
pois de curado o sujeito torna-se diferente do que era 
antes, o que pode habilitá-lo a tornar-se um xamã ou a 
contar sua história para sua comunidade de origem. A 
cura pode envolver tanto a transformação da pessoa (he- 
aling em inglês) quanto a remoção de uma doença (cure 
em inglês). É por isso que o cuidado de si forma uma 
experiência radicalmente nova. Esse estado anterior e, 
ao mesmo tempo novo, é uma espécie de ficção que 
se apoia, sobretudo, na experiência de apropriação. 
Os estoicos, por exemplo, procuram experimentar um 
estado tão próprio que ele possa ser percebido como 
se fizesse parte do sujeito desde sempre, assim como a 
infância ou um momento anterior da vida. Este assim
209
como designa u|na relação metafórica, não uma relação 
real. O cri tcrio - envolvi do aqui é a excelência entendida 
como um estado de ser, em acepção simétrica à de mal 
estar (Unbehagen), como em M al Estar na Civilização5.
Essa distinção é importante, pois nela se ampara uma rede 
de metáforas e alegorias, de referentes e referências, entre so­
frimento, mal estar e doença. A psicoterapia, como observou 
Lacan (OE: 1974a, p. 516), é um projeto impraticável se nela 
se quer realizar o ideal de cura médica, pois em uma vida não 
é possível “voltar a um estado anterior”: ela será sempre uma 
vida que inclui dentro de si a história e a experiência desse 
retorno. Portanto, a doença, no sentido médico, é concebida 
como metáfora do sofrimento (pathos) que se enfrenta na cura 
da alma. Isso não implica uma alegoria psicossomática gene­
ralizada nem uma dissociação anacrônica entre alma e corpo. 
Tratar a metáfora da doença não é tratar a doença. Não obs­
tante os sintomas abordados pelo cuidado de si serem reais, 
ocorre que sua estrutura é metafórica, o que só pode ser pensa­
do à luz de uma teoria materialista da metáfora, tal qual trazi­
da pela noção de incorporai na filosofia da linguagem estoica.
Essa metáfora do sofrimento como doença foi enriquecida 
pelas escolas helenísticas e seu esforço de distinção progressiva 
entre o mal-estar, como experiência de perda do lugar, como 
desterritorializaçao de si, o sofrimento, como ocupação com 
o outro e conseqüente passividade, subserviência e renúnica à 
liberdade e a dimensão própria do verdadeiro adoecimento, 
baseado em sintomas. A distinção, contudo não procede de
5. Além do problema para traduzir o termo K ultu r (Civilização ou Cultura), há a questão 
menos discutida acerca da expressão Unbehagen. Literalmente a palavra refere-se a um 
estado de ser ou estar. Bem-estar ou mal-estar, não apenas desconforto ou descontenta­
mento ((d iscom fort ou discon ten t) como Freud argumentou contra Strachey. E importante 
lembrar que o título originalmente imaginado por Freud para este trabalho era “Das Un- 
glück in d e r Kultur”, ou seja, a infelicidade ou a miséria (em sentido moral) na cultura.
210
uma natureza clínica, mas da atitude diferencial, que se verifi­
cada em cada caso, diante do poder. A relação de cura é uma 
experiência crítica com o poder. Seja ela a experiência real de 
redução do poder causada pelo adoecimento, seja ela a experi­
ência de alienação e de submissão ao médico, seja ela ainda a 
relação propriamente política em relação ao lugar e à posição 
que cabe a cada um diante do mundo e de seu destino. Tais 
escolas médico-filosóficas chegaram a descrever cinco momen­
tos desse complexo metafórico formado pelo sofrimento-mal- 
estar-doença (Foucault, 1981-82, p. 405): (1) a proclivias, ou 
constituição; (2) o pathos propriamente dito, marcado pelo 
aparecimento de uma perturbação (affectus); (3) a héxis, que 
corresponde a uma assimilação da perturbação a ponto de o 
sujeito pensar que, ao cuidar dessa perturbação, se ocupa de 
si mesmo; (4) a arróstema, uma espécie de estado permanente 
da doença em que a perturbação não é sentida mais como tal; 
e (5) a kákia, quando a paixão domina o sujeito por inteiro 
e passa a ser ativamente imposta aos que o circundam. Estes 
cinco momentos se distinguem conforme o cuidado se dirige 
à alma (therapeutike) ou ao corpo (iatrikè). Vemos por estas 
distinções como o pathos (mal-estar) pode fazer sofrer mais ou 
fazer sofrer menos, como ele pode ser concênctrico ou excên­
trico com relação ao sintoma real, mas principalmente como 
ele se exprime como um poder que se exerce sobre alguém.
Logo, a relação entre a medicina convencional de Hipócra- 
tes, Asclépio ou Empédocles não se confunde com a medicina 
filosófica do cuidado de si. Entre elas, a distribuição não se 
dá entre aqueles que se encarregam do corpo e aqueles que se 
dedicam à cura da alma, posto que, para as diferentes escolas, 
o cuidado de si incluía o cuidado do corpo. Aqui se trata do 
cuidado com a relação que o sujeito mantém com seu corpo, 
e não o cuidado direto com o corpo. Isso inclui tanto o corpo 
como agente de uma ação quanto o corpo que é paciente de 
uma afecção. Nem sempre é o corpo acometido pela doença, 
uma das circunstâncias possíveis, pode ser o corpo que enve­
211
lhece, que se cansa, que se ocupa com satisfações e restrições; o 
corpo como primeiro bem que pode dispor, usar ou emprestar 
ao outro. Ou seja, o corpo considerado segundo uma econo­
mia de gozo e uma ars erótica.
Outra distinção crucial diz respeito ao modo como alguém 
se engaja no cuidado de si. Esta não é uma obrigação univer­
sal, lei ética ou dever moral que todos devem se subtneter. 
Engajar-se no cuidado de si é e deve permanecer como escolha 
do sujeito. Não porque, em princípio, alguém seria excluí­
do do cuidado de si, mas porque praticamente são poucos os 
que efetivamente reúnem a coragem e a persistência que esta 
exige. Separa-se, assim, a soberania reconhecidamente perdida 
quando se trata de procurar um médico, ao qual devemos nos 
submeter, e a preservação desta soberania dentro do cuidado 
de si. Surge aqui a ideia fundamental de que o paciente pode 
ser também o agente da cura.
Isso fez do cuidado de si objeto de críticas, pois consistiria 
numa atividade que seria evidentemente um privilégio e um 
luxo destinado à elite. Um exame minucioso desmente esta 
ideia. É mais provável que o cuidado de si tenha se dissemina­
do, como uma espécie de ingrediente cultural extensivo, prin­
cipalmente nos séculos I e II d.C., também entre as camadas 
menos abastadas, em formações de compromisso com seitas e 
práticas religiosas. No outro extremo, o cuidado de si mantém 
sua associação social com a vida cultivada, com a investigação 
teórica e com o ócio criativo. Entre as camadas médias, tal 
prática se desenvolveu em estreita relação com as redes de ami­
zade que atravessavam as relações institucionais e familiares 
nesse período (Ibid., p. 142).
Como vimos anteriormente, duas condições constituem 
critérios de exclusão,em longo prazo, para o sistema de trans­
missão da prática do cuidado de si: de um lado, o fechamen­
to em grupos impermeáveis e sectários, o que redundava em 
auto-segregação; de outro, o fechamento em uma posição de 
classe muito restritiva. A hetero-segregação verificada entre os
212
ricos também contribuía para o desaparecimento do cuidado 
de si. Essa oposição histórica entre o cuidado de si e a segre­
gação é um argumento adicional contra aqueles que associam 
tal prática com o desligamento do campo social (anacoreta) ou 
com um isolamento individualista. A identificação excessiva 
com um líder carismático, com um grupo ou com uma insti­
tuição são sinais claros de extravio no cuidado de si.
Havia, sim, um tipo de mestria envolvido no cuidado de 
si que se apoiava no saber sobre a tradição (os heróis e suas 
epopeias), no saber da competência (saber-fazer) e no saber 
maiêutico da investigação e da descoberta praticada no diá­
logo (trágico-socrático). Esse complexo de saberes possuía a 
ignorância como condição. Isso é coerente, na medida em 
que cuidar de si é também libertar-se das formas de cuida­
do que os outros nos impingem. A mestria, assim concebida, 
funda-se na crítica sistemática e atualizada numa relação real, 
dos fundamentos de seu próprio poder. O mestre deve ativa­
mente ignorar qual saber positivo o discípulo deve empregar 
para cuidar de si. Assim, o cuidado de si leva o indivíduo da 
posição de não-sujeito (no sentido de objeto do cuidado dos 
outro) para o status de sujeito numa experiência que ele jamais 
conheceu em momento algum de sua existência e que tende a 
não encontrar espontaneamente.
O mestre é um mediador na relação do indivíduo com sua 
constituição como sujeito (Ibid., p. 160). Antes dessa experi­
ência transformadora, o indivíduo deixado ao léu caracteriza- 
se, sobretudo, como um stultos. Literalmente, “aquele que não 
pensa”, o stultos é descrito como aquele que está à mercê das 
contingências, disperso no tempo e na pluralidade do mundo 
exterior; não pensa na velhice e, sobretudo, ignora a consu­
mação de sua própria vida pelos fins que ele mesmo poderia 
delimitar. Daí seu sentimento de não-pertencimento, segundo 
o adágio: “Para aquele que não sabe para onde vai, todos os 
ventos lhe parecem contrários”. Ele é portador de uma von­
tade não livre e sem memória: quer algo e, ao mesmo tempo,
213
o contrário; deseja a glpria, mas quando a alcança, se queixa 
da falta de tranqüilidade. Seu ser de sujeito não é capaz de se­
paração (discriminatio) porque entre o eu e a vontade há uma 
espécie de desconexão ou infidelidade. Ao examinar apenas 
um aspecto do objeto pretendido, ele se decepcionará quando 
o alcançar. O cuidado de si é uma forma de tratamento para 
esse estado, tratamento que tem por horizonte o querer livre, 
o querer absolutamente, o querer sempre (Ibid., p. 164). Ao 
stultos, como Alcebíades, não lhe falta saber, no sentido de que 
ele poderia ser educado (educare). Falta-lhe quem o tire para 
fora, que o faça sair de si (educere).
Está ficando claro, por exclusão, que a função de mestria no 
cuidado de si deve ser exercida pelo filósofo, mas é importante 
lembrar, do filósofo como agente de uma prática direta com o 
outro, não do filósofo como professor agente de um discurso 
genérico ou universal sobre o conhecimento, a virtude ou a 
beleza. O cuidado de si d is ti n gue clara mente três atividades - 
governar, educar e curar - que se relacionam como práticas, 
externa e internamente, limitadas. Assim considerada, a figura 
do filósofo se aproxima do retórico e do médico, esse especia­
lista nos meios pelos quais se pode agir sobre o outro através 
do discurso ou da ação. Aproxima-se pelos meios, que são os 
da palavra, mas também pelos fins, que em ambos os casos 
estão abertos às circunstâncias do destinatário. A diferença 
crucial é que o cuidador, ao contrário da retórica educativa ou 
política, não deve exercer seu poder sobre o outro.
As relações entre cuidado de si e retórica não admitem uma 
oposição tão polar. Na medida em que o cuidado se dá numa 
relação de fala e esta envolve uma dimensão de influência, será 
preciso especificar quais aspectos da retórica interessam ao seu 
ofício e de que forma eles serão empregados. Destacam-se, as­
sim, dois modos de discurso que o cuidador deve evitar: a 
lisonja, o discurso falso feito para agradar o outro e a cólera, o 
discurso inflamante e belicamente incitativo. Há, ainda, outro 
modo de discurso que o cuidador deve empregar sempre que 
possível: a parrhesia (falar franco).
214
Aparrhesia ocupa lugar fundamental na organização de to­
das as práticas envolvidas no cuidado de si. Ela é a arte de dizer 
livremente, a arte. da franqueza e da sinceridade. Este convite 
ao dizer-verdadeiro poderia ser confundido com a prática da 
confissão. Tal não é o caso. A confissão consiste numa obriga­
ção de dizer, e de dizer a verdade pela qual se alcança a salvação 
ou a clemência de deuses ou juizes. Dizer toda a verdade e 
nada mais que a verdade. No cuidado de si, trata-se mais de 
uma prova pela qual se ingressa voluntariamente e que não 
visa a verdade em sua generalidade e totalidade, muito menos 
a indulgência do outro, mas a exploração da capacidade de 
dizer a verdade sobre si, de tornar-se sujeito de uma verdade. 
Aqui encontramos uma terceira acepção de verdade, que não é 
nem aletheia nem emunah, antes examinadas. A veritas corres­
ponde à verdade como justo dizer — dizer preciso, que proce­
de do verum , ou seja, um relato exato, sem omissões e narrado 
com integridade. Assim como a aletheia liga-se ao presente e 
a emunah, ao futuro, a veritas liga-se ao passado e à narração 
(Hegenberg, 1975, p. 14). Daí sua ligação com a dimensão 
do testemunho. Ocorre que este testemunho não se refere à 
ordem dos fatos jurídicos, na qual também a encontraremos, 
mas à verdade que testemunha a conversação do sujeito para 
consigo e que estabelece um compromisso. Neste sentido, o 
cuidador é uma espécie de amigo da verdade, que inspira con­
fiança pessoal {emunah)-, uma espécie de professor, dedicado 
a uma relação fiel com a palavra {veritas) e uma espécie de 
mestre, às voltas com a descoberta ou invenção de uma nova 
forma de vida {aletheia).
A libertas ou parrhesia é a qualidade moral exigida para tal 
empreendimento. Ela é facultada inicialmente ao cuidador, 
e não ao discípulo, que deve conquistá-la por seu empenho 
no cuidar de si. Ela não é empregada a toda hora. Constitui 
destreza e arte do cuidador fazer incidir temporalmente a pa­
lavra franca. Apesar da proximidade aparente, não devemos 
incorporar a parrhesia diretamente à noção psicanalítica de as-
215
sociaçao livre. Primeirp, porque ela é atributo inicial daquele 
que conduz o cuidado.de si, e não daquele que é sujeito desta 
experiência. Segundo, porque a associação livre inclui a atitu­
de intencional de sinceridade, mas também a possibilidade da 
mentira, da tapeação e do engano. A parrhesia combina mais 
com a atitude genérica que Freud sugere aos analistas na forma 
franca de abordar temas espinhosos, tais como a sexualidade, 
o dinheiro e o poder.
A parrhesia deve evitar dois desvios que lhe são opostos: 
a lisonja e a cólera. A cólera evidencia o abuso do poder e a 
falta de soberania sobre si. Ela advém quando o sujeito se dá 
conta de que nao tem o poder que supunha possuir. A lisonja, 
como exato contrário, é o abuso do poder pelo inferior que 
faz crer ao superior que ele é mais poderoso do que na verdade 
é. Ambos mostram, pelo contraste com a parrhesia, que esta 
envolve a capacidade de estar só, o que falta ao colérico e ao 
emulador. O falar franco não incita a continuidade do dis­
curso do outro ou seu silêncio, como na lisonja ou na cólera, 
nem presume a dependência derivada dos laços econômicos, 
políticos ou familiares. É o compromisso com o cuidado de si 
e com o regime de verdade que lhe é próprio, que torna esse 
tipo de fala uma fala livre.
Isso não significa que haja oposição irrestritaentre retórica 
e parrhesia. A retórica define-se pelo conteúdo tratado e pelo 
destinatário do discurso. Também no cuidado de si, trata-se de 
encontrar o tempo (kayrós) e o modo de dizer (léxis) no qual 
o sujeito poderá se reconhecer e, afinal, tomar para si algo do 
que foi dito. A parrhesia depende, portanto, do tempo oportu­
no em que a fala faz acontecimento. Encontramos aqui a raiz 
prática dos desenvolvimentos estoicos em filosofia da lingua­
gem em torno da noção de incorporai. E o segundo aspecto 
da linguagem, que os estoicos chamam de phásis, em oposição 
à lexis (SIX: 1961-62).
Se, na retórica, é preciso encontrar o tempo correto para 
o assunto tratado, no cuidado de si trata-se de integrar tais
condições, do tempo e do espaço, à forma do dizer e ao acon­
tecimento de linguagem. A parrhesia médica, assim como a 
filosófica, implica uma atitude de generosidade e benevolência 
por parte de quem a pratica. Isso se mostra no estilo simples 
e direto de dizer que deve, não obstante, induzir um trabalho 
ao lado do sujeito. Dizer o que se pensa e pensar o que se 
diz; mostrar as coisas mais que se mostrar; tender o discurso 
ao útil e eficaz mais que ao agradável; atenção à enunciação; 
obediência tática aos recursos da retórica, tais são as regras do 
franco-falar (Foucault, 1981-82, p. 488).
Contra a fala embusteira, que pode caracterizar o uso re­
tórico da linguagem, há também a oposição levantada pelos 
cínicos. Eles não constituíam um grupo ou uma sociedade 
definida, mas congregavam pessoas errantes ou marginais que 
não possuíam uma posição social bem estabelecida, vínculos 
familiares estáveis nem inscrição sólida no sistema de produ­
ção. O ascetismo é uma condição da vida cínica, pois seu fim 
é interpelar e denunciar a inércia social pelo apontamento de 
sua hipocrisia. Esse repúdio passa pela crítica da imagem que 
caracteriza o filósofo profissional. Nada de barba bem-feita, 
asseio ou belas vestes, pelo contrário: é aos andrajos e à inade­
quação à vida civilizada que os antigos ligam a figura do cíni­
co. Literalmente, cínico se refere a cão (kinos), ou seja, aquele 
que experimenta a liberdade da errância, mas também a de 
acolher e ser acolhido segundo uma fidelidade específica. Daí 
o fato de os cínicos serem considerados os primeiros antifiló- 
sofos. Atribui-se, tanto aos cínicos quanto aos epicuristas, a di­
fusão da poesia e da estatuária ligada ao deus Príapo. Colocado 
geralmente no jardim, entre a casa e a cidade, uma estátua de 
Príapo com seu descomunal membro fálico tinha a função de 
evocar o riso, ao denunciar a abundância e o excesso, e incitar 
à humildade (Oliva Neto, 2006).
Entre os estoicos, o cultivo da fala franca servia para afastar 
aqueles que se aproximavam do cuidado de si com interes­
ses excessivamente definidos. Epicteto repudiava as demandas
217
utilitárias, afirmando ser um conselheiro de existência, nao 
um preceptor, um amigo ou um diretor de consciência. Tam­
bém para Sêneca, este que era conselheiro de inúmeras figuras 
ilustres, sua atividade no cuidado de si nao se confundia com 
seu ofício como filósofo profissional ou professor. No primei­
ro caso, predomina a fala franca; no segundo, admite-se o uso 
tático da lisonja e da arte de manipulação das impressões.
Essa diferença diminui à medida que o serviço da alma se 
profissionaliza durante o período helênico romano. O declí­
nio da parrhesia como regra fundamental do cuidado de si 
liga-se ao desligamento progressivo entre catharsis e política. 
Se, para Platão, é preciso ocupar-se consigo para melhor ocu­
par-se com os outros e, assim, realizar a felicidade, no neopla- 
tonismo o cuidado de si se desenvolve numa catártica de si que 
esquece seu compromisso político e ambiciona a purificação 
individual. Vê-se, assim, como a ascensão da vertente psicote­
rapêutica do cuidado de si é correlata da evasão de um aspecto 
de sua vertente clínica. Os vínculos de finalidade, reciprocida­
de e reminiscência entre o plano político e o plano catártico 
são progressivamente dissolvidos numa autofinalização do eu 
que se expressa agora em duas práticas herdeiras do cuidado de 
si: a arte da existência e a técnica de vida (Foucault, 1981-82, 
p. 219). Nesse movimento, a curasui (cura de si) gradualmen­
te deixa de ser atividade permanente ligada à excelência e ao 
cuidado e passa a se concentrar em sua significação de objetivo 
ou produto do processo.
A cultura de si, que se estabelece como condição de possi­
bilidade para a emergência do cristianismo, é um dos espaços 
em que o cuidado de si se profissionaliza, gerando um desloca­
mento e uma distribuição social das diferentes técnicas, antes 
unidas por um mesmo escopo ético baseado na relação entre 
o sujeito e a verdade. Por cultura de si deve ser entendido um 
conjunto hierarquizado de valores tidos como universais, mas 
de acesso restrito, segundo o grau de excelência do intérprete. 
Reencontramos aqui esse duplo movimento de hierarquização
218
do sentido (literal, moral, espiritual) e substituição da relação 
de fala pela exegese da escrita. A cultura de si de implanta­
ção latino-cristã prescreve valores articulados a um conjunto 
de regras e condutas, de esforços e sacrifícios que encontram 
sua justificação num sistema de saber socialmente válido, es­
tável e teoricamente transmissível (Ibid., p. 221). A aparição 
da cultura de si introduz elementos inicialmente estranhos ao 
cuidado de si — por exemplo, a noção de salvação e o problema 
da imortalidade da alma, pelo qual, por exemplo, a preparação 
torna-se a preparação para outra vida, não para esta. A con­
versão deixa de ser conversão a si (ocupar-se de si é retornar o 
olhar para si) e passa a ser conversão ao outro. Surge a noção 
de felicidade separada agora da noção de contentamento. A fe­
licidade, que se associa com a salvação, se realiza pelo caminho 
da ataraxia (ausência de perturbação) e da autarcia (domínio 
de si), retomando, assim, o tema grego original do autodomí­
nio (enkrateia). Conceitos antes ligados à conotação mútua de 
cuidado e de política se despolitizam.
Neste espaço de desconexão entre o cuidado de si e a políti­
ca se instala a valorização progressiva de uma ética intermediá­
ria, a ética da amizade. O melhor espaço para cuidar de si não 
seria o do grupo fechado nem o da errância, mas o da amizade, 
entendida agora como suspensão e isolamento em relação à es­
fera dos interesses. A oposição, que nos parece tão natural, en­
tre cuidar de si e cuidar dos outros procede do entendimento 
que dissocia cuidado e política, ou ainda desejos e interesses. 
Um bom contra-exemplo disso encontra-se no modo como 
os estoicos entendiam a amizade: “Nem é amigo quem busca 
sempre utilidade nem quem nunca a associa à amizade, pois o 
primeiro faz o benefício do tráfico do que dá em troca, o outro 
rompe com a boa esperança para o futuro” (Epicuro Sentença 
Vaticana apud Ibid., p. 238).
Isso decorre do fato de o cuidado de si assumir como tarefa 
a realização do sujeito como qualquer um. Ou seja, para cuidar 
de si é necessário tornar-se um entre outros, não alguém privi­
219
legiado ou excessivamente instalado em seu próprio espaço, 
domínio ou posição social diferenciado. Tenha-se em mente 
que esse princípio foi proposto por Marco Aurélio e seguido 
por César, ambos imperadores romanos. E na amizade, mais 
que em qualquer outra forma de sociabilidade, que essa sin­
gularidade entre diferentes e essa diferença entre particulares 
pode ser melhor tratada.
O trajeto do cuidado de si passa, como já indiquei rapi­
damente, pela experiência de conversão. Três conotações se 
cruzam nesta noção: a moral, a religiosa e a política. Para 
Platão, a conversão (epistrophè) implicava desviar-se das apa­
rências, retornar a si e engajar-se na reminiscência, processo 
de lembrança metódica das ideias essenciais, fonte e origem 
do conhecimento. Ora, para a tradição platônica, a conversão 
supõe outro mundo, independente de nós, ao qual é preciso 
submeter-se segundoos ditames da vida contemplativa (theo- 
ria). Para a filosofia helenística do cuidado de si, esse retorno, 
essa conversão, se dá rumo ao mundo em sua imanência e ao 
sujeito em sua vida ativa. Trata-se de uma libertação daquilo 
que não dominamos em nossas relações atuais.
Sêneca conclama aquele que ingressa no cuidado de si a 
fazer um g iro em torno de si mesmo. Tal gesto, de girar sobre si, 
era realizado tradicionalmente no momento em que o mestre 
liberta seu escravo. Ele exprime, em seu simbolismo, um tipo 
de liberdade imanente e interna aos laços sociais. Se a conver­
são platônico-cristã estava marcada por um momento fulgu­
rante, no qual havia mutação do sujeito (trans-subjetivação) e 
ele ingressava em uma nova ordem, a conversão, para os helê­
nicos, implicava um processo longo de auto-subjetivação. O 
sujeito do cuidado de si muda de posição diante da vida; não 
inventa outra vida.
A conversão cristã se caracteriza pelo arrependimento, pelo 
remorso e pela expiação (metanoia crista) . Ela é preparada por 
uma espécie de exegese de si, na qual o sujeito observa seus 
atos, pensamentos e depois os julga e pune. Destituída de seu
220
sentido político, ela favorece uma cultura da culpa interioriza­
da. A conversão ao cuidado de si, ao contrário, procura alcan­
çar uma espécie de renúncia ao remorso pela assunção dos atos 
da vida, induzindo uma cultura da vergonha. Ambas as formas 
de conversão concordam na importância do retorno do olhar 
a si, mas diferem na finalidade do que se segue a esse retorno. 
A diferença pode ser remetida à absorção de elementos míticos 
contidos no discurso platônico. O mito de Er, sobre o passeio 
das almas, descrito em A República, é exemplo disso. Para os 
helênicos, esse elemento mítico parece ausente ou não possui 
a mesma importância estratégica. É preciso ultrapassar tanto o 
temor aos deuses (e ao destino, por extensão) quanto o medo 
das contingências que definem a experiência humana, e da 
morte em particular. A conversão, no cuidado de si, assume 
posição intermediária entre platonismo e cristianismo; é uma 
conversão a si (Ibid., p. 289).
O declínio do cuidado de si, quando de sua transformação 
numa cultura de si, reservará ainda outro destino para a con­
versão: a estetização. Fazer da vida uma obra sobretudo bela, 
cultivar a si mesmo como uma obra de arte, constitui um pro­
longamento do programa helenístico original. Isso pode ser 
atribuído, em parte, à valorização da velhice como momento 
de consumação máxima da vida, consumação que se expressa 
na forma de uma vida que vale a pena ser contada. Daí surge o 
impulso para o nascimento do gênero biográfico e autobiográ­
fico. Uma vida que sirva ao mesmo tempo de exemplo e que 
inclua em si a própria atividade de narrá-la. Isso é tributário 
do cultivo, principalmente entre os estoicos, da escrita de si. 
Diários, anotações pessoais, relatos epistolares formaram, as­
sim, um corpus de práticas e testemunhos pelo qual podemos 
entender o funcionamento tardio do cuidado de si.
Os tipos de práticas envolvidas no cuidado de si, que discu­
tiremos à seguir, podem ser classificadas da seguinte maneira:
221
A. Ascese: (a) pxercícios do corpo
(1) Dietética;
(2) Erótica;
(3) Ginástica.
(b) Exercícios da alma
(1) Disciplinas;
(2) Atitudes.
B. Meditação: (a) Premeditação dos males;
(b) Meditação sobre a morte;
(c) Exame de consciência;
(d) Concentração e dilatação da alma;
(e) Olhar de perto e olhar de longe.
C. Memória: (a) Recordação;
(b) Exame dos sonhos;
(c) Consolação.
D. Método: (a) Observação da natureza;
(b) Exame do presente;
(c) Ponderação sobre o futuro;
(d) Avocatio (cálculo dos prazeres).
5.3. ASCESE
Examinados os princípios gerais do cuidado de si, suas 
oposições e compromissos com a medicina da alma, com a 
retórica, com o discurso filosófico e religioso, passemos agora 
ao detalhamento de suas práticas específicas. Elas se dividem 
em dois grandes grupos: a ascese (askésis) e o cuidado (melete) 
(Hadot, 1991).
A ascese se subdivide entre a prática de exercícios corporais 
igymnazein), como abstinências, prescrições dietéticas e eróti­
cas, e a prática de certos experimentos mentais, atitudinais e 
disciplinares. A ascese compõe, gradualmente, uma espécie de
222
acervo de experiências, discursos e convicções cuja principal 
característica é a de estarem facilmente disponíveis à memória 
para que sejam úteis diante dos acontecimentos. Este acervo 
deve ser uma espécie de equipamento incorporado e sempre 
disponível, de tal forma que advenha espontaneamente à me­
mória. Há ainda sentidos diferentes de ascese: a platônica (re­
núncia aos prazeres dos sentidos), a cínica (suportar a fome, as 
injúrias para conquistar independência e praticar a denúncia), 
a estoica (retificar os juízos para nao se prender aos objetos), a 
pirrônica (indiferença diante das coisas) e a epicurista (limitar 
o desejo como meio para alcançar o prazer puro).
A ascese pitagórica reunia uma série de práticas restritivas, 
de natureza dietética, erotológica e concernentes ao uso da pa­
lavra. A ascese crista, por outro lado, enfatiza a formação de 
um código estrito de obediência e renúncia comportamental e 
atitudinal. Para os estoicos, cínicos e epicuristas, a ascese tem 
estatuto inteiramente distinto, uma vez que uma de suas ques­
tões centrais é saber até que ponto e sob qual fundamento 
alguém deve se submeter à lei. A obediência deve ser exami­
nada como qualquer outra atitude servil. A ascese, neste caso, 
implica uma série de exercícios cujo fim é preparar e advertir o 
sujeito para a importância da contingência na vida humana e, 
ao mesmo tempo, afirmar sua soberania sobre ela.
A ascese helenística se desenvolve em uma série de práticas 
ligadas à noção de purificação e elevação. Isso se traduz em 
disciplinas envolvendo a escuta, a leitura, a escrita e a fala. 
E neste contexto, por exemplo, que se forma uma tradição 
de exame dos sonhos e de atenção quanto à forma do sono, 
como práticas específicas de exame de consciência. Confere-se 
particular ênfase à maneira de dizer ou ler as coisas (léxis), em 
contraste com o exame de como as coisas são (phasis). Não se 
trata de uma técnica, como na medicina ou na oratória, que 
também se dedicam ao modo de dizer e escutar o paciente ou 
a audiência. O objetivo da ascese, como disciplina da escuta 
e da atenção, é alcançar uma espécie de equilíbrio entre dois
223
aspectos da escuta: a dfsposiçao ponderada (sophrosyne) para o 
pensamento lógico ilogos) e a capacidade de ser afetado pelas 
palavras (pathetikós). Na prática da escuta recomenda-se, em 
especial, o domínio do silêncio, ou seja, nao converter imedia­
tamente o que se ouviu em discurso, nao discutir cada ponto 
do que foi dito, guardando uma atitude corporal de sereni­
dade. Trata-se de construir um silêncio ativo e significativo. 
Nasce aqui a regra de que a competência para falar depende 
da capacidade de escutar. Outro aspecto da ascese da escuta é 
a arte de dominar a distribuição da atenção. Saber separar o 
que é rigorosamente dito da retórica e da erotização induzida 
pela mestria ou pela autoridade de quem fala. Tais exercícios 
conduzem a um tipo de memória pela qual se retém o valor 
das palavras proferidas, ao mesmo tempo em que se distancia 
de seu efeito de dispersão na conversação.
Parece justo dizer que as práticas de ascese formam uma 
superfície psicoterapêutica. Observe-se que nela há uma es­
pecial atenção à corporeidade e, particularmente, ao encontro 
sexual. Neste tema, os pontos centrais são a frequência e o 
momento, não as qualidades específicas do objeto ou do tipo 
de intercurso. Isso ocorre porque é na intensidade que se loca­
liza o problema da relação entre o domínio a si e o cuidado de 
si (Foucault, 1984c, pp. 88-110). A distinção entre exercícios 
corporais e exercícios atitudinais é muito menos importante 
do que a ênfase na interiorização do conflito e na auto-obser- 
vação. Surge, assim, uma curiosa aproximação entre a ascese e 
a disciplinada escuta, que se encontrará tematizada em mui­
tas formas da prática psicanalítica. Esta aproximação soa mais 
intrigante ainda quando lembramos que a ascese é, no fundo, 
herdeira da antiga tradição catártica.
5.4. MEDITAÇÃO
O segundo grupo de práticas envolvidas no cuidado de si 
gira em torno da noção de meditação, e conecta o cuidado de si
22 4
à tradição clínica. A meditação é uma experiência ou um exer­
cício com o tempo ou com o espaço. A inserção do sujeito no 
passado, no futuro ou no presente, assim como sua aproxima­
ção ou distanciamento do mundo são o fulcro deste exercio; ao 
tomar uma posição outra, ou ainda, colocar-se em outro lugar, 
há uma transformação regrada de si. Será importante reter, ten­
do em vista considerações vindouras, que no campo da cura e 
do cuidado o método é originalmente uma prática entre ou­
tras, e não a ideia matriz de toda e qualquer prática. O método 
refere-se a uma espécie de disciplina envolvendo prognóstico do 
futuro, ordenamento de previsões e compromisso na forma de 
proceder. Há, portanto, uma oposição relativa entre o método 
e outras práticas, posto serem espécies do mesmo gênero. Entre 
essas três grandes modalidades do pensamento reflexivo ociden­
tal, memória, método e meditação, podemos alinhar diferentes 
acepções de verdade antes examinadas, respectivamente: a ve­
ntas (memória), a aletheia (meditação) e a emunah (método).
Para os estoicos a meditação tinha por centro o exame da 
consciência a partir da pergunta: “Agiste em conformidade 
com teu desejo?”. É exatamente a mesma formulação que 
Lacan (SVII: 1959-60, pp. 373-390) escolhe para indexar a 
ética da psicanálise e separá-la das éticas utilitaristas, trans­
cendentais ou naturalistas. Geralmente, a ética estoica é com­
preendida como ética da impassividade, que ensina a desejar 
menos para sofrer menos. Mas se nos detemos no cuidado 
de si, vemos que ao lado desta direção há ainda um convite à 
subjetivação incondicional do desejo.
A principal forma de meditação é conhecida como medita­
ção sobre a morte. Pensada como modelo para enfrentar a pior 
das servidões, a servidão a si mesmo, a meditação sobre a mor­
te convida o sujeito a assumir, experimentalmente, a situação 
de finitude. A partir disso, ele pode redimensionar sua posição 
no sistema de obrigações-recompensas ou de dívidas para con­
sigo. Assim como a contemplação da natureza (outro gênero 
de meditação), a meditação sobre a morte nos faz ver as coisas
225
“desde o alto” e as relações humanas como um espetáculo: 
“Quero me fazer levar pelas nuvens, do alto eu veria homens 
errando ao acaso e tremendo, por falta de razão, ante a ideia 
da morte” (Ovídio, 1986, p. 123).
Surge aqui uma oposição que marcará profundamente a 
cena da cura até o século XIX, ou seja, os três lugares para­
digmáticos nos quais o restabelecimento (Heilung) deve se 
desenvolver: o contato com a natureza, a viagem e o teatro. 
Na forma do jardim, do átrio ou do passeio, presume-se que 
o deixar-se em contato com a natureza possui propriedades 
curativas, pois faz o sujeito sentir-se em si. Daí que elas devam 
ser alternadas com experiências de separação de si, de estar 
fora-de-si, como se realiza por meio do teatro e da viagem 
(Foucault, 1973-74, pp. 25-48).
Ver desde o alto inclui localizar-se no mundo, relativizando 
nossas pequenas paixões, nossos vícios e nossas virtudes em face 
do caráter indissociável que preside a ligação entre os esplen­
dores do mundo e sua miséria. Portanto, nao se trata de pensar 
sobre a morte como tema especulativo, mas de um exercício que 
coloca o sujeito no instante infinitamente pequeno que consti­
tui o presente, antes do qual nada mais existe e após o qual tudo 
é incerto, como se nos imaginássemos no lugar de alguém que 
está morrendo ou que vive seus últimos dias.
Uma variante da meditação sobre a morte é a premeditação 
dos males, ou seja, colocar-se na posição em que os piores in­
fortúnios que alguém poderia imaginar se dêem por realizados; 
trazer para o presente imediato o que de pior pode ser conce­
bido. Trata-se de uma modalidade de prova pela qual alguém 
se depara com o “tudo menos isso” que comanda sua vida. A 
premeditação dos males é uma espécie de prova ou confronta­
ção com o pesadelo, de tal forma que ele possa ser olhado de 
frente e atravessado. Novamente o cuidado de si não introduz 
uma técnica que já não seja exagero ou diminuição controlada 
da própria atividade do indivíduo. O estado de temor difuso e 
de apreensão com relação ao futuro, assim como o estado de
226
antecipação do pior, já faz parte regular da vida do sujeito ator­
mentado. Ocorre que isso se dá sem a suficiente radicalidade, 
conduzindo a uma espécie de jogo de sombras pelo qual uma 
forma de temor impede de ver bem outra, e assim por diante.
Uma variação importante da meditação, que será aprofun­
dada posteriormente pelo cristianismo, é o exume de consciência. 
O objetivo desta prática é criar auto-distanciamento. Envolvido 
pela rotina cotidiana e pelas demandas do mundo, a pessoa es- 
quece-se de si mesmo como experiência do presente. Isso signi­
fica um extravio da consciência em preocupações sobre o futuro 
ou remorsos do passado. O exame de consciência não consiste 
apenas em dirigir a consciência para as ideias e sensações que 
ocorrem ao eu, mas na expectativa de apreender a posição, a par­
tir da qual, a consciência apreende tais ocorrências. A imagem 
recorrente aqui é a do homem tão preocupado com a direção na 
qual está indo e com o lugar de onde veio que se esquece de per­
guntar onde ele está. Se a meditação sobre a morte traz a alma 
de volta ao presente, em uma estratégia de auto-aproximação, 
o exame de consciência introduz uma distância de si a si que é 
usualmente imperceptível para a alma.
Se Sêneca é uma referência para a meditação sobre a morte, 
que atua por distanciamento e aproximação da alma, Marco 
Aurélio desenvolverá uma prática inversa: a concentração e a 
dispersão da alma. Aqui se trata de ver de perto, deter-se sobre 
os detalhes, examinar o impacto e o valor dos acontecimen­
tos de magnitude infinitesimal que povoam nossa experiência. 
Examinar os pensamentos que ocorrem espontaneamente ao 
espírito, examinar o estranhamento com pequenas percepções 
e sensações, nomear as coisas que nos passam despercebidas, 
deixar evocar as memórias que tais impressões causam. Tudo 
isso serviria para “dilatar a alma”, libertando, assim, o sujeito 
de sua servidão ao ponto de vista médio. A dilatação da alma 
deveria ser empregada em alternância com práticas de concen­
tração da alma, por exemplo: decompor um objeto numa série 
temporal, redescrever um acontecimento tendo em vista seus
227
elementos componentes ou relatar de forma desqualificante 
ou irônica os eventos aos quais atribuímos excessivo valor. O 
objetivo nesta série é realizar uma decomposição da identidade 
das representações que nos afligem ou nos fascinam. Compri­
mir e dilatar a alma são experiências complementares que fazem 
alternar o sujeito como razão e o sujeito como ponto, desmem­
brando e decompondo a unidade de sentido que nos domina ou 
que queremos dominar. No fundo, o stultos quer dominar o que 
não pode e, com isso, deixa-se dominar pelo que pode.
Como uma contrapartida à concentração e distensão da alma 
temos a estratégia oposta, que consiste em instalar variações de 
contra-foco sobre a experiência. Por exemplo, tomemos uma si­
tuação problemática que alguém enfrente em sua vida e que o 
torne obsessivamente ocupado com a questão. A solução para 
este tipo de perda de si (alienação) consiste em considerar a si­
tuação do ponto de vista da eternidade, ou ver de cima ou de 
olhar de longe. Olhemos para esta situação de cima, do céu como 
diriam os estoicos. Esta mudança de perspectiva tende a revelar 
outros aspectos da situação, eventualmente piores, que cercam 
o indivíduo em sua vida pessoal. A estratégia inversa a esta é 
chamada de “olhar de perto”. Aqui, por exemplo, temos um 
problemamenor, porém persistente, que não é suficientemente 
importante para atrair nossa atenção de forma concentrada. A 
consciência dispersa não investe a atenção de forma dirigida. A 
ideia de olhar de perto é como focar lentes na situação de forma 
a ver os detalhes que tornem a solução possível.
As variantes da meditação correspondem à combinatória das 
possibilidades geométrica de relações entre o olhar e a visão. A 
alma funcionaria como uma espécie de espelho, e a visão como 
a função que localiza neste espelho os objetos, ou situações pro­
blemáticas. O espelho pode se afastar ou se aproximar do objeto, 
permitindo assim ver e deixar de ver novos aspectos da imagem 
formada. A alma pode ser ainda um espelho de maior ou menor 
extensão, permitindo ver com maior ou menor amplitude. Fi­
nalmente, a alma pode ser um espelho que muda seu ângulo de 
incidência sobre o objeto, deformando sua imagem.
228
5.5. MEMÓRIA
O terceiro grupo de práticas do cuidado de si reúne as 
experiências com a memória (recordação, exame dos sonhos e 
consolação). A reflexão sobre a memória é, ao mesmo tempo, 
uma atitude diante do porvir e uma crítica do estado de ocu­
pação entendido como perda ou extravio de si. Concentrar-se 
no presente, como enfatizam estoicos e epicuristas, é também 
desligar-se de si no passado e no futuro. Inversamente, a re­
cordação é um caminho para reencontrar o presente e, a partir 
dele, encarar o futuro. Segundo a afirmação de Epicuro: “Se 
por eternidade não se entende a duração temporal infinita, 
mas a atemporalidade, então vive eternamente quem vive no 
presente” (apud Wittgenstein, 1921).
Uma variante da prática da memória é o exame dos sonhos. 
Aqui a convergência com a psicanálise encontra um raro pon­
to de apoio direto em Freud. A primeira parte da Interpretação 
dos Sonhos (1900a) é um sumário fiel das questões levantadas 
pelo cuidado de si em relação a esse tópico: a relação do so­
nho com a vida de vigília (a interpretação não deve ser pela 
totalidade, mas por fragmentos); as relações entre o sonho e a 
memória (incluindo a ideia de que o sonho é uma espécie de 
memória profética); os estímulos internos e externos do sonho 
(para os helênicos, havia numerosas formas de incitar um so­
nho); o lugar da corporeidade (incluindo o valor erótico dos 
sonhos); o esquecimento dos sonhos (os helênicos desenvolve­
ram técnicas de lembrança dos sonhos); e, finalmente, o valor 
clínico dos sonhos em sua relação com as afecções mentais. 
Em suma, a ideia de que o sonho tem um sentido, de que este 
sentido pode ser decifrado e que ele se refere à vida atual do 
sonhador, mesmo que este não consiga reconhecer isso ime­
diatamente (daí o exame de consciência), toda esta série é uma 
descoberta realizada no seio da experiência do cuidado de si. 
Contudo, em suas referências à concepção sobre os sonhos na 
antiguidade, e mesmo em sua admiração por Artemidoro de
229
Daldis, Freud mostra desconhecer completamente o lugar que 
a prática do exame dos sonhos tinha dentro do sistema de cura 
representado pelo cuidado de si (Lobo, 2004, p. 131).
A última variante dos exercícios da memória dá origem 
a um gênero narrativo bastante cultivado na Idade Média: a 
consolação. Boécio, expoente desse gênero, narra em A Con­
solação da Filosofia (1998) os últimos momentos de um con­
denado à morte. As agruras e temores diante da morte são 
dissolvidos à medida que a figura onírica de uma mulher, ini­
cialmente vestida e imponente, designada como A Visitante, 
revela-se ao fim uma grande alegoria da verdade. Quando Bo­
écio pode contemplá-la, encontra também “a face de seu ver­
dadeiro médico”. A consolação narra essa situação, que Lacan 
(SVII: 1959-60, pp. 327-341) chamou de entre duas mortes’, 
na qual aquele que fora professor de filosofia, injustamente 
condenado, tem todas as suas demandas inapelavelmente sus­
pensas. Sua técnica consiste em intervenções que desequili­
brem as duas atitudes básicas diante da calamidade: a indife­
rença e a afetação exagerada (Jackson, 1999, p. 169). Ou seja, 
diante da indiferença, convidar ao afetar-se; diante do afetar- 
se, convidar à indiferença; e assim sucessivamente até que a 
calamidade seja, ao mesmo tempo, profundamente sentida e 
indiferente. A consolação se inclui entre as práticas que visam 
um tensionamento máximo entre duas acepções de sujeito: 
o sujeito como razão indeterminada e o sujeito como ponto 
ou posição. O sujeito como razão instala-se na penumbra do 
mundo, opera num espaço de distanciamento no qual todo 
o tempo lhe é dado, e justamente por isso, a escolha se torna 
impossível. O sujeito como ponto, ao contrário, funciona na 
temporalidade de um instante irreversível no qual se deve es­
colher ou apostar.
Mostramos-lhe o mundo não para que possa escolher,
como as almas de Platão podiam escolher seu destino.
Mostramos-lhe o mundo para que se compreenda que não
230
tem escolha, e que nada se pode escolher se não se escolhe 
o resto, que há somente um mundo, um único mundo 
possível, e que é a ele que estamos ligados. (...) A única 
escolha não é: que vida tu vais escolher, que caráter tu vais 
atribuir-te, queres tu ser bom ou mal. O único momento 
de escolha que é dado à alma, no momento em que no 
limiar da vida, nascerá neste mundo, é: delibera se queres 
entrar ou sair, ou seja, se queres ou não viver. (Foucault,
1981-82, p. 347)
Na Consolação a Márcia (Sêneca, 2007, pp. 156-181), de- 
senvolve-se o discurso da consolação dirigido a uma mãe que 
perdera seu filho. A estratégia de Sêneca é apresentar dois per­
cursos sobre o luto. No primeiro narra-se a atitude de Octavia, 
que ao perder seu filho Marcelo permanece toda a vida no 
mesmo estado do dia do funeral. Rejeita seu outro filho, traja 
luto e passa o resto de sua existência devotada à memória cris­
talizada do filho perdido. Lívia, em semelhante situação age 
de forma inversa. Parece enterrar seu filho Drusos e ao mesmo 
tempo o sofrimento por sua perda. Ela jamais deixou de pro­
nunciar o nome do filho perdido e convive pública e priva­
damente com sua memória. Vê-se assim como Sêneca parece 
antecipar a diferença entre o luto patológico e a melancolia 
(Octavia) do luto suposto normal (Lívia) (Silva, 2007). Sua 
estratégia narrativa difere tanto da linhagem judaico-cristã, 
quanto do gênero tipicamente grego. Em vez de designar os­
tensivamente qual deve ser a atitude a ser adotada por Márcia 
ele lhe indica, cuidadosamente, que se trata de um momento 
de escolha. A escolha deve ser feita, mesmo nesta circunstância 
a qual o mais cruel destino cai sobre um sujeito.
5.6. MÉTODO
A quarta e última família de práticas ligadas ao cuidado 
de si é composta pelo método. O método tem que ver com a 
elaboração necessária da certeza e da decisão, duas dimensões
231
que compõem o horizofite da verdade, sobre o qual se estende 
toda a experiência do cuidado de si. O método corresponde 
à eleição de um ponto fixo, ao qual se poderá retornar e do 
qual se pode projetar uma sistematização de si. Assim como a 
meditação sobre a morte se opõe à distensão-concentração da 
alma, o método se opõe às experiências de memória e exame de 
consciência. O método pretende estabelecer um ordenamento 
do futuro, tecendo compromissos e considerações sobre suas 
contingências. Inclui-se aqui o tema dos acontecimentos im­
previsíveis, da brusca surpresa e também da avocatio, a fixação 
de prazeres futuros, praticada pelo epicurismo. Esta fixação 
não corresponde a uma espécie de plano de metas, mas a um 
exercício de convivência e extração de prazer no trajeto que 
leva ao prazer. É a distensão do prazer em trabalho, espera e 
elaboração que o qualificam e o intensificam.
A forma reflexiva representada pelo método ganha impulso 
na medida em que se torna cada vez mais importante pensar 
o cuidado de si como método de educação individual. Com a 
diluição do cuidado de si em cultura de si, o método torna-se 
uma prática cada vez mais valorizada. Sua importância cres­
ce na medida em que a

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