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A Criança Ferida Como tratar os traumas de infância que refletem na sua vida adulta MARILENE COSTA Copyright © 2021 Marilene Costa Todos os direitos reservados. "Guerreiros são pessoas, tão fortes, tão frágeis. Guerreiros são meninos no fundo do peito. Precisam de um remanso, precisam de um descanso Precisam de um sonho Que os tornem perfeitos. É triste ver esse homem, guerreiro menino Com a carga do seu tempo por sobre seus Ombros Eu vejo que ele berra Eu vejo que ele sangra A dor que traz no peito..." (Gonzaguinha) AGRADECIMENTOS Agradeço a meus pais, pelo amor e dedicação, e por ter ensinado a seus três filhos como serem pessoas do bem. A meus irmãos, por serem as pessoas mais incríveis do mundo! Ao meu primo (praticamente irmão) Harley, por toda força e apoio na criação deste livro e em minha vida. A minha amiga Silvanges, por ter participado do processo de gestação desta obra. A meu amor Júlian, por ter me incentivado a publicá-lo. Ao meu filho de pelos Igor Augustos, por ter me mostrado o que é o amor incondicional. SOBRE A AUTORA A autora, Marilene Costa, é psiquiatra e psicoterapeuta com mais de 30 anos de experiência na área médica, onde iniciou na cirurgia e na medicina de família. Porém, sua paixão pelo estudo da mente humana, sequestrou sua atenção, levando-a para os caminhos da psi, onde se tornou expert em transtornos do humor, ou seja, depressão, ansiedade e transtorno bipolar, bem como em transtorno obsessivo-compulsivo, fobias e traumas que estão a eles intimamente relacionados. Em sua experiência profissional e de vida, observou que a maioria, senão, todos os problemas da humanidade, se resumem à necessidade de ser amado, admirado e aceito pelo outro, e que essa necessidade advém de uma carência profunda, a qual não poderia deixar de ter suas raízes nos primórdios da infância e nas relações da criança com seus cuidadores, em especial sua mãe, supostamente fonte de amor incondicional e nutrição. Ocorre que a própria carência e traumas faz com que o adulto não consiga ser o provedor emocional do qual a criança tanto necessita, gerando traumas e perpetuando o ciclo. Fascinada pelo ser humano e suas inter-relações, a autora, durante seus mais de 25 anos na psiquiatria, dedicou-se ao assunto e estudou a fundo várias teorias, dentre elas a psicanálise, a terapia cognitivo- comportamental e o psicodrama. Enfim, após tantos anos de estudo e trabalho, a autora sente que precisa devolver ao mundo um pouco do conhecimento com o qual foi agraciada. Afinal, o saber é um tesouro que não deve ser mantido em segredo! SUMÁRIO Prefácio do autor Apresentação.............................................11 1. Introdução............................................16 2. O Conceito De Criança Interior.................21 3. A Criança Ferida Que Existe Dentro De Nós......................................................35 4. Transtorno Da Personalidade Borderline....57 5. As Fases Do Desenvolvimento Infantil.......74 6. Como A Criança Ferida Se Manifesta.........95 7. Como Identificar Em Que Fase Sua Criança Interior Foi Ferida................................112 8. Como Resgatar E Tratar A Criança Interior Ferida.................................................131 9. Etapas Do Processo Terapêutico Da Criança Ferida.................................................156 10. Considerações Finais............................164 Outros modelos teóricos do desenvolvimento infantil....................................................170 Referências Bibliográficas PREFÁCIO DO AUTOR Esse livro traz uma característica ímpar: parte dos pontos de vista de dois grandes autores, os quais já escreveram sobre o tema da criança interior ferida: o norte americano Jonh Bradshaw, autor de livros, workshops e seriado de TV na década de 80, o qual divulgou o termo criança ferida, e a brasileira Rosa Cukier, psicóloga, psicodramatista e escritora, autora do livro “Sobrevivência emocional”, onde retrata os traumas emocionais que a criança carrega para sua vida adulta, segundo a visão de Jacob Levi Moreno, pai do Psicodrama. A partir dessas duas abordagens, a autora faz uma fusão entre as ideias de Bradshaw e Moreno mostrando como as teorias desses autores se complementam. A fim de melhor compreender o que é a criança interior e como se dá o trauma que irá repercutir em sua vida adulta, faz um passeio pelas principais teorias do desenvolvimento humano, ilustrando com suas próprias experiências pessoais e prática clínica, tornando o conhecimento algo lúdico e de fácil compreensão. Também interliga as diversas teorias e as utiliza como base para o tratamento psicodramático da criança interior ferida. De forma semelhante, faz uma viagem pelas teorias e técnicas do psicodrama, exemplificando com casos clínicos, a fim de abordar de maneira clara e agradável como se dá a cura da criança interior ferida. Assim, contribui para que as pessoas, por mais leigas que sejam na área da psique, tenham consciência de que existe uma criança ferida dentro delas, e que, possivelmente, é causadora da grande maioria dos conflitos vividos na vida adulta. Mas que esta criança pode se resgatada e tratada através do psicodrama. Além disso, fica também um legado para os estudiosos e terapeutas que, ao pesquisarem sobre o tema, encontrarão neste livro um resumo das teorias e experiências dos grandes teóricos do desenvolvimento humano e estudiosos dos traumas infantis, fusão esta jamais encontrada em outras obras. Foi adicionado um anexo chamado Outros Modelos Teóricos do Desenvolvimento Infantil, o qual a autora dedicou aos profissionais que trabalham especificamente com o desenvolvimento infantil. Por tratar-se de um capítulo mais técnico, sua leitura é dispensável para quem deseja usufruir dos conhecimentos de forma leve e lúdica. Assim, tal capítulo foi deixado no final do livro, em um capítulo à parte, como leitura complementar, apenas para os curiosos das teorias do desenvolvimento. A autora, médica psiquiatra e psicoterapeuta, possui experiência de mais vinte e cinco anos no tratamento de adultos feridos na infância nos mais variados Estados da nossa Federação, e inclusive em países como México, Portugal, e Estados Unidos. ilustra o livro com alguns casos de pacientes atendidos em seu consultório e em atendimentos online (telemedicina), tomando o cuidado de resguardar nomes e características, a fim de preservar a identidade dos pacientes. Através desses casos clínicos, os leitores podem se identificar com os pacientes e vislumbrar um caminho por onde resgatar e cuidar de sua criança ferida, levando-os a procurar ajuda. Portanto, esta obra alcançará tanto o público científico quanto o leigo. Em uma linguagem fácil e acessível, o leitor poderá identificar a fase em que foi ferido e constatar que sua criança ferida pode ser curada, passando assim a ter uma vida mais tranquila e feliz, sem que os problemas vivenciados outrora continuem interferindo e prejudicando o seu dia a dia. APRESENTAÇÃO De origem grega, o termo trauma significa ferida, sendo utilizado na medicina para identificar as consequências de uma violência externa. Freud transpôs o conceito de trauma para o plano psíquico, ressignificando como um choque violento, capaz de romper a barreira protetora do ego, podendo acarretar perturbações duradouras sobre a organização psíquica do indivíduo. O trauma pode se referir a um único acontecimento externo ou a um acúmulo deles. "Consideremos o caso de uma pessoa sujeita a um trauma, sem antes ter estado doente, e talvez, mesmo sem ter qualquer predisposição hereditária. O trauma deve satisfazer a certas condições. Deve ser grave - isto é, ser de uma espécie que envolva a ideia de perigo mortal, de uma ameaça à vida. Mas não deveser grave no sentido de pôr termo à atividade psíquica. De outra forma, não produziria o resultado que esperamos dele." S. Freud Freud formulou a hipótese de que o psiquismo seria estruturado a partir do patrimônio genético, e modelado pela primitiva relação do bebê com seus pais, constituindo-se no que chamou de "experiências infantis". Essas experiências desempenham um papel crucial, tanto na resolução das diferentes etapas de desenvolvimento, quanto na interpretação e elaboração dos traumas. Observamos também que o ser humano, apesar de um ser racional, na maioria das vezes baseia suas escolhas em seu emocional, inclusive suas escolhas profissionais e vitais. Até aqueles que apresentam um excelente funcionamento, desempenhando adequadamente seus papéis profissionais, tomam atitudes baseadas em julgamentos subjetivos quando seu núcleo emocional é ativado. Não é à toa que equipes de marketing no mundo inteiro trabalham apelando para o emocional das pessoas e não para o racional! Quando você vê uma propaganda de carros de luxo, logo aparece um homem ou um casal bem-vestido, com um belo sorriso no rosto, com ares de ser bem-sucedido e feliz. É essa a mensagem a ser transmitida! Não interessa as qualidades do carro, a potência do motor, seus itens de segurança ou de conforto. O consumidor não vai se encantar por essas questões práticas, racionais, e sim pela ideia de sucesso e felicidade, qualidades completamente subjetivas e emocionais. Até mesmo quem busca sucesso, dinheiro e poder, está tentando recuperar a autoestima perdida na infância. Sabemos inclusive que o “Complexo de Superioridade” nada mais é do que um “Complexo de Inferioridade” invertido. Ou seja, o indivíduo, a fim de camuflar seu sentimento de inferioridade, busca representar para o mundo uma imagem de superioridade, força e poder, chegando inclusive à arrogância. Assim, guardamos, no âmago de nosso Ser, fragmentos das experiências por que passamos em cada fase da nossa infância, e mesmo da vida adulta, e que nos fizeram ser quem somos. Mas não são fragmentos no sentido de memória racional, e sim nossas interpretações naqueles momentos dos fatos ocorridos É como se fosse o “print” de uma cena. Mas na imagem você não vê a cena tal qual ela é, e sim a distorção causada pelo prisma emocional da pessoa que a experienciou. As impressões da pessoa com relação ao fato. Por isso, em uma família, cada filho tem uma visão de sua infância diferente do outro. Pois as lembranças estão impregnadas pelas sensações de quem as lembra. É na infância que você constrói sua visão do mundo, do seu papel como ser social, bem como desenvolve suas competências, sua forma de reagir às situações, de resolver os problemas do dia a dia, os imprevistos ou mesmo as catástrofes que podem ocorrer ao longo da vida. A depender de como a criança é educada, bem como sua constituição genética e predisposições, ela irá desenvolver resiliência e capacidade de adaptação, ou rigidez e dificuldade em lidar com os desafios da vida. Enfim, como psiquiatra, psicoterapeuta e psicodramatista, apaixonei-me pelo assunto e decidi trazê-lo ao conhecimento de todos. Este livro passou 12 anos guardado, esperando pelo momento de sua publicação, porém seu tema está a cada dia mais atual, visto que felizmente estamos aos poucos desenvolvendo a capacidade de olhar para dentro de nós mesmos e cuidar de nossas feridas. E é essa a proposta. Gosto de pensar que este livro foi um parto após uma longa e difícil gestação, porém muito desejada. E seu fruto é puro ato de espontaneidade e criatividade! 1. INTRODUÇÃO Freud afirmou que o trauma pode estruturar e organizar o ego, permitindo, através de eventos sucessivos, a repetição, a rememoração e a elaboração, ou bloquear o psiquismo, distorcendo o processo do pensar, levando em alguns casos à desorganização do ego. Ele ainda postulou que a relação primitiva do bebê com sua mãe se estabelece de forma inalterável, sendo o protótipo de todas as relações posteriores, e fundamentando o ego, que se constrói ao longo do desenvolvimento. Diante da ameaça de separação da mãe ou do cuidador, o bebê responde com ansiedade, e, perante sua perda real, com a dor do luto. Como podemos ver, há tempos temos o conhecimento de que traumas sofridos na infância podem gerar respostas não adaptativas na fase adulta, causando dor e sofrimento. No consultório isso fica mais evidente, pois até o paciente que em seu dia a dia se comporta de maneira resolutiva, sendo profissional de sucesso e com relações sociais e familiares bem estabelecidas, relata que em momentos de grande estresse emocional perde o controle sobre seus sentimentos e ações. No divã, ao falar sobre sua infância, mergulha em suas histórias, revivendo as cenas. Seus olhos, seus gestos, sua fala, não poucas vezes ganham uma entonação pueril, evidenciando o processo de regressão a períodos mais remotos de sua vida. O foco deste livro não é rememorar ou culpar/perdoar os adultos que cuidaram de você quando criança, mas, sobretudo, compreender como você interpretou suas experiências, e a que convicções e decisões chegou, como resultado do que vivenciou nas suas relações de dependência infantis. Bom lembrar que seus pais também são fruto do mesmo processo, também vivenciaram traumas na infância, alguns do quais não conseguiram elaborar de forma saudável. E devemos observar que na época deles, as dores da infância eram menos acolhidas ainda, pois não existia toda essa mobilização que vemos hoje em dia como temas contra o trabalho infantil, a prostituição infantil e outros tipos de abuso, até então ignorados em nossa sociedade. Ou seja, seus pais, assim como você, guardam dentro de si uma criança ferida que não foi cuidada a contento, e que sofre e se manifesta em momentos nos quais seus traumas são acionados no fundo do seu subconsciente. Essas atitudes, por serem desencadeadas por fortes emoções ativando lembranças emocionais da infância, surgem de maneira espontânea e reflexa, sem elaborações mentais e muitas vezes sem nenhum nexo com os acontecimentos atuais. Podem ser desencadeadas por palavras, cores, odores, objetos ou qualquer sensação que faça um “link” entre o acontecimento vivenciado e a reminiscência traumática. O objetivo deste livro é que você aprenda a reconhecer sua criança interior, e o que a levou a apresentar seu comportamento atual, compreendendo as distorções e o forte impacto das experiências precoces da infância em sua vida. Só daí poderá surgir a possibilidade de dialogar com essa criança sofrida, entendê-la, ampará-la e modificar algumas concepções que a levaram a tornar-se um adulto com problemas comportamentais e inter-relacionais. Neste livro buscamos mostrar como se dá a formação de nossa criança interior, como ocorrem seus traumas, e como podemos tratá-la para que deixe de nos causar tanto sofrimento. Como diria Moreno, criador do psicodrama, uma terapia baseada na interpretação da vida através de jogos de teatro: “é através dos jogos e brincadeiras da infância que aprendemos a nos relacionar”. E esse relacionar-se pode acontecer de forma saudável e construtiva, ou de forma neurótica e disfuncional. Impressionante constatar o quanto os primeiros seis anos de nossas vidas determinaram o adulto que somos hoje. Ou seja, da infância depende todo nosso sucesso ou fracasso emocional por toda a vida. Mas felizmente temos como mudar essa história! E o segredo está contido neste livro! 2. O CONCEITO DE CRIANÇA INTERIOR Todos temos uma criança dentro nós, que é responsável pela criatividade, espontaneidade e evolução. É a parte de nós que guarda os sentimentos e as lembranças vividas em uma fase de inocência e felicidade. Porém, não guardamos apenas as boas lembranças dessa fase da vida, mas carregamos conosco traumas que podem comprometer toda nossa existência adulta. Segundo Jeremiah Abrams, psicólogo Junguiano autor do livro O Reencontro da CriançaInterior, a criança interior “...é tanto um fato em desenvolvimento como uma possibilidade simbólica. É a alma da pessoa, criada dentro de nós através do experimento da vida e é a imagem primordial do Self, o cerne mesmo de nosso individual.” Portanto, no interior de cada pessoa adulta, existe tanto a criança que é portadora dos registros de nossa história pessoal, quanto a criança portadora de nossa energia vital que é a criança eterna, segundo Carl Jung, a que impulsiona para uma vida mais plena rumo à realização das potencialidades próprias, singulares de cada um. Essa criança está oculta em você e precisa continuamente de cuidado e atenção. O conceito de “criança interna” é bastante antigo na literatura e só na década de 80 tornou-se popular nos Estados Unidos. Na mitologia de muitas culturas, essa “parte infantil no adulto” representa a necessidade humana de recapturar a originalidade e a emoção da criança frente ao estresse e a extrema racionalidade do cotidiano. Isso, pois junto com o crescer, vem todos os problemas e responsabilidades da vida adulta. A criança interna feliz é um refúgio onde o adulto se protege e refaz suas energias e sua fé! Na visão chinesa, a força dessa criança provém de nosso Jing ou energia ancestral (Qi pré-celestial). John Bradshaw, em seu famoso livro intitulado Homecoming: Reclaiming and Healing Your Inner Child (Volta ao lar: resgatando e defendendo sua criança interior), fala da criança maravilhosa, e suas qualidades, as quais ele descreve em forma de ideograma com a palavra wonderful (maravilhosa): Wonder: maravilha Optimism: otimismo Naiveté: ingenuidade Dependence: dependência Emotions: emoções Resilience: resiliência Free Play: liberdade para brincar Uniqueness: originalidade Love: amor Segundo o autor, para essa criança maravilhosa, tudo é interessante e estimulante. Ela se maravilha com todos os seus sentidos; experimenta, explora, de um modo otimista, confiando no mundo exterior, o que a torna vulnerável, e a todos encanta e atrai com sua ingenuidade, sua inocência e orientação para o prazer. A criança maravilhosa é obrigatoriamente dependente. Suas emoções, choro, riso, raiva, são espontâneos e têm um valor especial de sobrevivência para o bebê humano, pois despertam nosso cuidado. Para a criança, bem como para o adulto, o choro não é necessariamente prenúncio de um trauma, mas de uma frustração, necessária ao aprendizado e desenvolvimento. O choro das crianças nos remete aos momentos de tristeza da criança ferida que existe dentro nós, fazendo com que intuitivamente busquemos ampará-la e trazer de volta sua alegria, como gostaríamos que algum adulto tivesse feito conosco em nossa tenra infância. Entretando, o choro é necessário como forma de expressão de uma frustração, e lidar com ele de forma madura não é necessariamente suprir a criança do que ela deseja, tampouco obrigá- la a “engolir o choro”, como muitos adultos costumam fazer. O ideal é que a criança possa exprimir seu sentimento de frustração, porém compreender que nem sempre suas vontades serão satisfeitas. Isto pois amadurecer e evoluir implica em saber receber um não de forma adaptativa. A criança tem um senso natural de liberdade, segurança e espontaneidade ao brincar e ao movimentar-se no mundo, o que para ela é uma atividade de puro prazer e encantamento. A criança maravilhosa é um ser único e sente essa unicidade, esse EU SOU. Ou seja, sente-se ligada e unificada dentro de si mesma, e esse sentimento de integração é o verdadeiro significado da perfeição. Nesse sentido toda criança é perfeita! A criança maravilhosa tem resiliência, ou seja, capacidade de reagir aos traumas e voltar ao seu estado normal. Você já observou que quando uma criança está brincando e cai ela rapidamente se levanta e continua a brincar, sem se importar com o machucado? É a capacidade de adaptação e recuperação. Os pais não devem impedir que a criança explore o mundo a seu redor, apenas devem tentar evitar os grandes traumas, e estar presentes com amor incondicional, a fim de cuidar dos ferimentos, quando essa criança se machuca. Mas sem “dramas” ou excesso de mimos, pois ela só começa a desenvolver “manha” quando os pais passam a supervalorizar esses momentos de queda e dor, gerando a interpretação de que o fato foi mais traumático do que realmente ocorreu, e plantando no filho a semente da criança ferida. Portanto, se uma criança cai, ou se ela passa por algum pequeno trauma, apenas observe seu comportamento. Se ela pedir ajuda, acolha-a com amor, porém sem exageros. Assim ela aprenderá a reagir aos fatos da vida com tranquilidade. Do ponto de vista intrapsíquico o mesmo acontece. A criança maravilhosa não valoriza prolongadamente dores e perdas, pois ela tem a capacidade inata de continuar vivendo e se divertindo apesar de tudo isso. Excessão encontra-se nos grandes traumas, como por exemplo o da ausência dos seus cuidadores, o que Freud chamou de “perigo mortal” visto que ela sabe que não sobrevive sozinha. Como você pode perceber, as vivências da criança frente ao mundo são reativas, imediatas e os traumas ordinários são rapidamente superados e esquecidos. Pois essa criança maravilhosa não foca na dor, e sim no maravilhoso mundo novo à sua frente. Porém, ela aos poucos vai aprendendo a enxergar o mundo através dos olhos dos seus pais ou cuidadores. E, através desse prisma, os acontecimentos vão se tornando mais dramáticos. Pois, infelizmente, nós adultos tendemos a focar nos problemas que nos trazem sofrimento e não nas coisas maravilhosas ao nosso entorno, as quais, na maioria das vezes, superariam tais problemas. Esse enfoque no aspecto negativo de nossas vivências, os quais a criança passa a absorver, gera a maioria dos traumas que, de outra forma, seriam facilmente superáveis. É claro que existem grandes traumas, aos quais nem a espontaneidade, nem a ingenuidade, nem a resiliência da criança maravilhosa conseguem torná-la imune. Abusos dos mais variados tipos, por exemplo, ou grandes catástrofes, são de fato experiências que marcam negativamente o âmago da criança. Isto porque, para a criança, a sua única força protetora é o adulto, e qualquer tratamento abusivo que venha dele desconfirma sua fé e certeza de sobrevivência. Porém, a maioria dos traumas vivenciados não são desse porte, e, portanto, seriam mais facilmente superáveis. Atualmente podemos observar uma geração de adolescentes e jovens adultos hipersensíveis e vulneráveis a obstáculos que, para as gerações anteriores, seriam facilmente relevados. Isto porque, infelizmente, o medo de gerar traumas em seus filhos, alardeado por estudiosos da psicologia infantil nas décadas de 50 e 60, e que repercutiu em nosso País na década de 70, fez com que pais, preocupados em defender seus filhos, acabassem por “pecar por excesso” de cuidados, imprimindo no emocional dessas crianças a sensação de que todo evento negativo se constitui em um trauma insuperável. Isso em parte foi ocasionado pelo grande trauma da Segunda Guerra Mundial, que gerou uma leva de soldados e famílias sequelados, com transtornos mentais os mais diversos, e a sensação de que suas vidas foram sacrificadas inutilmente. Tal evento culminou com a geração hippie, com sua utópica reinvindicação de liberdade sem limites e sua ojeriza às guerras. Então, todos esses acontecimentos provêm de um contexto histórico pós-recessão e pós-guerra, e tudo isso é mais um fato a ser superado com as novas teorias do desenvolvimento infantil. Sabemos que precisamos defender nossas crianças, mas precisamos encontrar o “caminho do meio” ou do equilíbrio, como ensina a filosofia oriental. Eric Berne, médico psiquiatra canadense nascido em 1910 e criador da Análise transacional, um tipo de teoria psicológica, já apresentava ao público a noção de criança interna como um ego- criança que surge ao nascer repleto de criatividade e espontaneidade, características primárias do ser humano, as quais o adulto molda pela educação. Segundo Berne, o individuoé capaz de modificar seus sentimentos, pensamentos e escolhas através do autoconhecimento e desenvolvimento pessoal. Já a gestalterapia, uma teoria existencialista originada em 1951 baseada no “aqui-e-agora” criada por Robert e Mary Golding, discípulos de Berne, busca resgatar a criatividade, originalidade e espontaneidade da criança, através da terapia de redecisão, uma terapia intensiva voltada para grandes grupos, que objetiva o indivíduo a adquirir habilidades para lidar com seus sentimentos. Credita-se uma das utilizações mais recentes da conceituação de criança interior a Alice Miller, psicóloga polonesa pesquisadora da infância, que descreveu em seus trabalhos os maus tratos sofridos pela criança como causadores de prejuízos graves à personalidade adulta. Vale lembrar que na criança interior estão presentes lembranças ruins, mas também lembranças alegres, ambas posteriormente, refletindo em reações pueris, ou seja, as regressões nem sempre são para fatos negativos, uma vez que o adulto pode regredir para momentos ruins ou bons da infância. Por sorte, a criança é um ser resiliente, então, na maioria das vezes, supera os momentos ruins, não transformando-os memórias traumáticas internalizadas (no subconsciente). Mas lembre-se: isso só não é possível quando esses traumas são extremamente impactantes, ou quando o adulto reage exageradamente e a criança assimila aquilo como um alerta de que se trata de algo grave. O que é impactante para você, pode não ser para outra pessoa! Um exemplo claro disso é que enquanto uma pessoa tem medo de galinha por ter presenciado durante infância a mãe matando a ave no intuito de preparar a refeição da família, outra criança, que presenciou a mesma cena, pode tê-la apenas como uma vaga lembrança, não traumática. Portanto, muitos traumas somente se consolidam quando a criança já apresenta uma certa vulnerabilidade. Ou seja, quando o adulto imprimiu nela tal vulnerabilidade, ou quando há predisposição genética a algum transtorno psiquiátrico. Mas acredito que até os transtornos mentais nada mais são que “imprintings” genéticos. Isto porque segundo a epigenética, os traumas podem, ao longo das gerações, causar modificações genéticas que passarão a ser transmitidas para as próximas gerações. Portanto, segundo diversas teorias, todos possuem uma criança interior. Em algumas pessoas, essa criança se manifesta ao longo de toda a vida de forma bem evidente, em especial durante momentos negativamente ou mesmo positivamente críticos da vida, (as chamadas crises vitais) como nascimento ou morte de pessoas próximas, casamento, início ou perda de emprego, aposentadoria, etc. Porém, há pessoas nas quais essa criança interior parece nunca ter existido, nem mesmo quando ainda eram crianças. Geralmente isso ocorre quando a criança se vê em um lar inundado por conflitos e passa a se comportar de maneira precocemente adulta a fim de apoiar os pais Ainda assim, esta “não existência” é só aparente, pois, ao longo do desenvolvimento, a pessoa vai deixando dentro de si rastros dessa criança, correspondente a cada fase de sua vivência. Fico triste quando ouço mães se vangloriando de que seus pequenos filhos são seus confidentes e as apoiam e cuidam delas. Estas mães não percebem que aquela pobre criatura está petrificada com medo de perder a mãe, e com isso, ela própria não sobreviver, posto que a criança, por ser dependente, acredita que não sobreviverá sem seus cuidadores. A criança não é a “pequena mãe ou pai” da qual sua mãe adoecida se vangloria. Ela é só uma criança lutando desesperadamente para sobreviver, e sua única arma é reprimir seu medo a fim de “cuidar e tratar a ferida” de sua cuidadora. Esse é um dos piores traumas que uma criança pode sofrer! Quando essa criança interior sofre traumas profundos, sua psique não conseguirá lidar com esses traumas, a despeito de sua resiliência, e então formar-se-á o cerne da criança ferida. 3. A CRIANÇA FERIDA QUE EXISTE DENTRO DE NÓS Já sabemos que todos guardamos várias crianças em diferentes fases de desenvolvimento, as quais ficam congeladas, gravadas ou registradas (“imprinting”) dentro de nós nos momentos em que vivenciamos fortes emoções, que podem ser boas ou ruins. Quando essas emoções são negativas, geradoras de vergonha, medo, culpa, ou desconfirmadoras, tem-se congelada uma criança interior ferida. Costumo comparar o adulto com uma cebola, formado por camadas, sendo que no caso em questão as camadas mais primitivas (infantis) vão ficando internalizadas. Podemos representá-lo também pela Matrioshka, aquela bonequinha russa que você vai abrindo e encontrando uma bonequinha cada vez menor até que encontra um bebê. Possuímos dentro de nós várias crianças em fases diferentes, registradas em momentos de fortes emoções. Essas crianças vêm à tona quando nos comportamos de forma impulsiva, quando apresentamos comportamentos infantis, quando reagimos a uma situação, não pela nossa percepção atual, mas segundo nossas impressões guardadas no passado. Quando temos reações exageradas (overreacting) ou quando congelamos diante de situações-problema. Nós, seres humanos, somos pautados nas emoções. Vivemos o tempo todo envoltos em momentos ou lembranças que nos deixam consternados, emocionados, felizes ou infelizes. De acordo com diversos teóricos, se as necessidades fundamentais da infância não forem satisfeitas, o indivíduo tende a tornar-se um adulto com uma criança interior ferida. Essa ferida vem à tona quando o adulto ouve uma afirmação específica, a qual ele ouviu na infância, e que lhe deixou impressão profunda. Na terapia, observo que geralmente o paciente manifesta tristeza nos olhos ou mesmo chora, ao se reportar ao período em que foi ferido. Nesse sentido, a frustração do desejo de uma criança ser vista como uma pessoa e ter seu amor aceito, é o maior trauma que uma criança pode experimentar. Ou seja, o acolhimento e a confirmação dos sentimentos da criança, sem desvalorizar nem supervalorizar, mas observando o valor que a própria criança dá àquele sentimento e a duração de sua resposta adaptativa, é o que a criança realmente precisa para crescer saudável e feliz. Segundo Bradshaw, “Nenhum pai em uma família disfuncional pode dar a seus filhos o que ele precisa”. Por exemplo: uma criança cujos pais não conseguem estar presentes em situações nas quais ela necessita de apoio emocional, não validam suas conquistas, não a defendem contra agressões do mundo exterior, pode concluir que o mundo é um lugar muito perigoso, e que ela não deve confiar em pedir ajuda a ninguém, visto que seus próprios pais foram ausentes e incapazes de prestar-lhe socorro nos momentos mais simples, como elogiar um pequeno feito, aos mais complexos, como defendê-la de maus tratos. Não importa por que razão os pais foram ineficientes, se por trabalharem muito a fim de manter o padrão social da família, ou se por serem acometidos por transtornos físicos ou mentais que lhes roubaram a capacidade de serem cuidadores. O fato é quem essa criança pode tornar-se um adulto desconfiado, inseguro ou detentor de um falso senso de autoconfiança e autossuficiência, fazendo com que acredite que ela, e apenas ela, seja capaz de resolver seus próprios problemas. Essa pessoa então, terá enorme dificuldade em confiar nos outros ou pedir ajuda quando necessita. Os traumas trazidos da infância tornam-se evidentes quando os pacientes são convidados a dramatizarem as cenas. Nesse momento, suas dificuldades atuais aparecem geralmente decorrentes da lembrança de um fato ocorrido na primeira infância, mais especificamente por volta dos cinco a sete anos de idade (período do qual a maioria das pessoas já possui memória consciente). Porém, inusitadamente, há pessoas que relatam lembrarem-se de fatos relativos a períodos mais remotos, como 3 ou até 2 anos de idade. Não sabemos se são memórias reais ou geradas por relatos de familiares, mas o poder dessas memórias é igualmente real na vida da pessoa.São lembranças de uma criança apavorada, geralmente envolta com alguma forma de violência, onde ela nada pôde fazer para cessar o sofrimento, sendo sujeita à força e ao poder do adulto em questão. Exemplo frequentes são as brigas entre os pais. O sentimento é de medo e impotência. Geralmente o adulto, ao relembrar tais situações, treme, se encolhe, abaixa a cabeça, ou chora inconsolável. Ou simplesmente, vê-se uma nuvem cinza em seu olhar... Assim, como podemos ver, diante da submissão forçada, dos sentimentos de raiva e vergonha, da humilhação e inferioridade sofrida na infância, o individuo pode desenvolver alguns mecanismos de defesa. Um deles seria vir a tornar-se um adulto violento, passível de fazer os outros sofrerem o mesmo que ele sofreu, ainda que o faça de forma inconsciente, e com a desculpa de que está preparando seus filhos para o mundo, ou que, sendo tratado assim, tornou-se uma pessoa bem-sucedida. Inconscientemente esses pais desenvolveram o que Anna Freud chama de identificação com o agressor. Fazendo um aparte, o termo foi cunhado por seu contemporâneo Sandor Ferenczi e atualmente é mais conhecido como Síndrome de Estocolmo. Portanto, faz-se necessário dizer que os seres humanos exercem um enorme poder uns sobre os outros, um poder de vida ou morte! Desde que nascemos, somos dependentes do outro. Na primeira fase da vida, o que importa é atender às necessidades físicas (alimentação e higiene) e emocionais da criança, uma vez que esta encontra-se extremamente frágil e dependente do outro para absolutamente tudo. Nesse momento um pai presente cuidador é tudo o que a criança necessita. Vejo muitos pais dizerem que se sacrificam trabalhando de forma extenuante por mais de doze horas ao dia, a fim de prover conforto a seus filhos. Se fossem mais sinceros diriam que deixam seus filhos em segundo plano a fim de prover suas próprias expectativas de conforto. Aquilo que gostariam de possuir em sua infância. Desejo esse gerado por uma sociedade de consumo, voltada para o status material, e que esquece as necessidades primárias do ser humano: amor e cuidado! Isto porque a criança maravilhosa só precisa desse amor e cuidado. Nada mais! Ela não precisa de roupas de grife. Nem de brinquedos da moda. Na verdade, ela nem precisa de brinquedos! A criança maravilhosa é criativa e curiosa, e inventa suas próprias brincadeiras a partir de tudo que está a seu alcance! A primeira etapa da infância é pré-verbal, e tudo o que acontece depende da decodificação verbal e emocional ou leitura sobre o comportamento da mãe ou cuidador. Nessa fase a criança é muito intuitiva e parece adivinhar os sentimentos dos cuidadores. Isso porque sua sobrevivência depende de eles estarem bem a fim de suprir-lhe as necessidades. Sem alguém que possa espelhar nossas necessidades e emoções, não podemos saber quem somos. Por outro lado, a forma como essa pessoa decodifica nossas mensagens acaba constituindo aquilo que somos, e ela o faz de acordo com suas próprias vivências. A primeira pessoa a cuidar da criança exerce uma importante função em seu relacionamento com o mundo, pois esta funciona como uma espécie de ponte relacional entre a criança e o mundo, e ocupa, num primeiro momento, o lugar que o Eu da criança ocupará mais tarde. Daí a importância do papel de cuidador, normalmente exercido a princípio pelos pais, e posteriormente pelas pessoas mais próximas. Infelizmente, vemos muitos pais entregarem esse papel crucial a babás e motoristas, e se deixam no papel extremamente coadjuvante de provedores e administradores. Como já disse anteriormente, uma criança vive muito bem sem brinquedos, mas ela precisa da presença do adulto em quem ela se espelhará para o resto da sua vida! Esse adulto será você ou alguém contratado para tal papel? E lembre-se que esses cuidados são mais vitais na primeira infância, ou seja, até os 6 a 7 anos de idade. Pare e pense! Quem é/foi o cuidador dos seus filhos? Como a criança aprende a enxergar o mundo pelo olhar de seus cuidadores, isso significa que a criança só dará importância às coisas e até mesmo emoções que eles valorizam. Se seus cuidadores são pessoas leves, emocionalmente saudáveis, que sabem enfrentar os obstáculos da vida com bom humor, a criança enxergará com leveza a vida e as situações. Porém se forem preocupados, frustrados, irritados, pessimistas, inseguros, a criança precocemente desenvolverá as mesmas características e se tornará uma criança de difícil convívio social e com enorme sofrimento emocional. A criança é um ser dependente e tem consciência disso. Assim, a autoestima do indivíduo reflete como foram suas primeiras relações, e prevê como serão suas relações com o mundo e com as demais pessoas. Depender dos outros não configura uma situação confortável para nenhuma das partes. Quando ainda é criança, o individuo aceita com tranquilidade essa dependência. No entanto, a medida em que a criança vai amadurecendo, adquirindo noção do mundo que a cerca, vai sentindo necessidade de autossuficiência, e nessa fase é normal ficar incomodada com tal situação. Para entender melhor a necessidade de dependência básica do ser humano Cukier usa a descrição que Bradshaw faz das quatro características naturais da criança, que fazem dela um autêntico ser humano. São elas: 1. Valorabilidade. 2. Vulnerabilidade. 3. Imperfeição. 4. Pensamento radical. Baseado nestas qualidades, deduz que necessidade de dependência básica do ser humano significa poder contar com pais que: 1. façam ela se sentir preciosa, importante e providenciem o que necessita enquanto não for autônoma. 2. dediquem tempo e atenção para poder ajudá-la a definir seus próprios limites e a obter as informações que precisa para lidar com a realidade e com suas próprias necessidades. 3. permitam que a criança expresse seus impulsos agressivos e hostis sem as mesmas se destruírem e sem que os pais destruam a autoestima da criança. E, ao mesmo tempo, também se permitam a expressão de reações agressivas e hostis, respeitando a assimetria intrínseca do vínculo. 4. permitam que a criança seja criança, e, num segundo momento, permitam que ela cresça e ganhe autonomia. 5. sejam pessoas coerentes, consistentes, previsíveis, e que ensinem e ajam da mesma forma. 6. sejam seres falíveis, que admitam seus erros e peçam desculpas. Eu acrescentaria que, após pedirem desculpas, não fiquem relembrando o fato, a fim de não gerarem uma criança manipuladora, que utiliza o sentimento de culpa dos pais a fim de conseguir tudo que deseja. Quando os pais ou cuidadores oferecem à criança esse ambiente acolhedor, cuidador, coerente, leve e sincero, a criança pode crescer de forma saudável e desenvolver suas habilidades emocionais. Porém, quando a criança se encontra em um ambiente desprovido dessas qualidades, ela irá crescer física e socialmente, porém seu desenvolvimento emocional ficará seriamente comprometido, fazendo-a sentir-se ainda mais envergonhada e humilhada, tentando a qualquer preço esconder sua falhas e recuperar sua dignidade e autoestima, seu narcisismo ferido. Quanto ao abuso infantil, outrora ligado quase sempre a abuso sexual, sabemos que recebeu uma ampliação de seu conceito por parte dos estudos de Kreisman (Psiquiatra e escritor norte americano especialista em Transtorno de Personalidade Boderline) e Bradshaw (autor de livros e programas de tv sobre codependência). Então, atualmente existem três tipos de abuso infantil: abuso sexual, abuso físico e abuso emocional. Vale lembrar que o abuso sexual não se configura apenas no fato de um adulto manter relação física com a criança, mas também em algumas formas sutis como: - Intimidar sexualmente: criar situações, onde a criança vê ou ouve coisas que a envergonham. Como por exemplo, quando crianças que por "descuido" dos pais, ouvem ou observam suas relações sexuais, ou quando adultos observam sexualmente os filhos e/ou se desnudam de forma sexual na frente das crianças, ou ainda deixam expostas revistas de cunho sexual.- Cuidados físicos como aplicar enemas, ou mesmo dar banho em crianças mais velhas, podem ser uma forma de abuso sexual disfarçado, mas que a criança, ainda que em uma fase posterior, percebe com estranheza como algo anormal. - Ausência de informação sexual adequada à idade: por exemplo, não falar a uma menina que ela irá menstruar, dizer que a masturbação causa lesões físicas, etc. O abuso físico caracteriza-se quando a criança sofre ou observa qualquer tipo de punição física com alguém da família, como por exemplo, um pai alcoolizado que chega em casa agredindo fisicamente a esposa na presença do filho. Isso para a criança é uma situação mortal. Pesquisas mostram que geralmente pais que agridem fisicamente seus filhos apanharam quando crianças. No entanto, em minha experiência, isso nem sempre se confirma. Em minha experiência clínica, pais que foram fisicamente abusados podem tornar-se condescendentes, não impondo aos filhos os limites necessários à formação de um “Ser Social”, a fim de não infringirem aos filhos o mesmo sofrimento pelo qual passaram na infância. O trauma costuma produzir reações extremas. Ou a pessoa se identifica extremamente com o abusador e age igual, ou repudia ao extremo suas atitudes e procura agir de forma oposta. Em ambos os casos, os resultados são catastróficos! Observo também que alguns pais que sofreram outros tipos de abuso (que não físico) podem tornar-se violentos fisicamente, projetando sua frustração nos filhos. O abuso emocional resulta de uma confusão de fronteiras dentro da família, e há uma reversão da ordem da natureza, quando são as crianças que cuidam de seus pais e não o contrário. Esse tipo de abuso não ocorre apenas em famílias desestruturadas, mas também em muitas das famílias ditas "normais". Muitas vezes, a criança assume o papel de auxiliar ou até cuidador da mãe ou do pai, que pede ajuda por ser ele mesmo frágil e/ou não conseguir se defender de alguma situação abusiva na família. Vale relembrar que a criança assume o papel de cuidador, não porque de fato queira, mas para ajudar os pais, dos quais depende, ou para não perder o amor deles, caso os contrarie. E isso pode causar sequelas na fase adulta, uma vez que a criança não teve suas necessidades infantis satisfeitas ou respeitadas. Essa criança pode, assim, tornar-se um adulto pseudo autossuficiente, visto que aprendeu apenas a cuidar e não ser cuidado quando precisou. Ou pode, por outro lado, assumir o papel de vulnerabilidade outrora exercido pelos pais, perpetuando o ciclo vítima/agressor (ou abusado/abusador). A falta de respeito à hierarquia da relação pais-filho atualmente é considerada também abuso, pois, agindo dessa maneira, os pais não protegem a criança e não a ajudam a se desenvolver. Pais que se sentem culpados por não poderem dar a atenção devida aos filhos por conta do trabalho, ou ainda inseguros quanto a forma adequada de educá-los, geralmente também rompem essa hierarquia e deixam que os filhos tenham total controle sobre eles, cedendo às suas vontades e não impondo limites. Seja qual for a forma de abuso, o fato é que deixa marcas profundas, e o adulto acaba por transmitir os traumas à criança pela qual será responsável mais tarde, perpetuando o ciclo a cada geração. Todavia, existem processos automáticos usados pelo ego, para a criança se autopreservar, toda vez que sofre um grave choque. Segundo Freud, as defesas do psiquismo ajudam a criança a separar o que é seu do que é do outro, além de proteger seu psiquismo de situações consideradas intoleráveis. Assim, alguns dos mecanismos de defesa como a negação, a dissociação a conversão etc., formam um sistema de defesa eficiente. Esse sistema é definido por Donald Woods Winnicot, pediatra e psicanalista inglês, como sistema do “Falso Self”, que está representado pela organização total da atitude social polida e amável, de não demonstrar abertamente seus sentimentos. Durante a terapia, demora muito até o indivíduo aceitar se desfazer do “falso Self” e da fantasia de onipotência, e assumir sua falibilidade. Importante lembrar que assumir sua fragilidade não significa se esconder atrás dela. O terapeuta precisa mostrar ao paciente que ele possui sim armas a fim de lutar e evoluir emocionalmente. E quando essas armas estão “enferrujadas”, ajuda- lo a torná-las mais eficazes. A criança cria uma forma alternativa de ser, uma espécie de máscara, negando ou substituindo as próprias emoções, na tentativa de esconder sua condição de abandono e falta de valor. Com isto, espera ser mais valorizada e aceita pelas pessoas de seu convívio, deixando de lado (camuflados) a vergonha e os defeitos antes sentidos. Segundo Winnicot, na patologia do falso self, há um grande leque de doenças, como as psicoses, os quadros borderline, a depressão e o comportamento suicida. Nas doenças, constatamos os aspectos menos autênticos (mais falsos) da personalidade, inclusive nas neuroses. Por isso muitos estudantes de psicologia ou psiquiatria inicialmente se identificam com todos os transtornos dos livros. Porque os transtornos nada mais são do que a exacerbação de traços normais. Porém, é importante destacar que nem todas as pessoas que apresentam falso self manifestam os transtornos graves mencionados por Winnicott. Nos dias atuais podemos identificar nas redes sociais pessoas com características do falso self, quando estas expõem uma vida perfeita, onde vivem em um mundo fantasioso, cercadas por festas, gente bonita e ostentação. Essas pessoas não postam frases introspectivas, momentos negativos ou de conflitos, mas apenas vendem a imagem de um ser feliz e realizado, ou seja, o que acham que os outros esperam delas. E, pior do que isso, é que muitas dessas pessoas com o tempo passam a acreditar na imagem que criaram. Se formos investigar mais a fundo, muitos desses adultos “perfeitos” possuem uma história na infância de sentimentos de fracasso e rejeição. Quando falo em sentimento, é porque mesmo que o adulto ame e valorize seu filho, se ele não conseguir demonstrar esses sentimentos, a criança pode crescer acreditando não ter sido amada. Cukier destaca como características do falso self sua rigidez, pois assim que este se estrutura, o verdadeiro self passa a ser esquecido, e, com o tempo, a pessoa perde a noção de quem realmente era, além da lembrança de que ela própria criou um personagem para si. E ainda, o falso self possui um sistema de auto-observação e vigilância permanente, já que é necessário ficar atento para que as partes rejeitadas não apareçam e façam ressurgir todo o sentimento de vergonha e inferioridade de antes. Outro transtorno gerado por um grande trauma é o Transtorno da Personalidade Borderline ou Emocionalmente Instável. Você já deve ter observado que existem pessoas que provocam raiva e até medo por seu comportamento instável, explosivo e beligerante. Muitas vezes apresentam acesso de fúria e reclamam das situações em que se encontram. Tal transtorno é tão emblemático como originado pela criança interior ferida que merece um capítulo à parte. 4. TRANSTORNO DA PERSONALIDADE BORDERLINE O Transtorno da Personalidade Borderline (TPB) pode ser caracterizado pela notável instabilidade em muitos, senão em todos os aspectos do funcionamento da pessoa, incluindo nos relacionamentos, autoimagem, afeto e comportamento. O termo borderline, que no português quer dizer fronteiriço ou limítrofe, foi usado pela primeira vez em 1938, por Adolf Stern, para descrever um grupo de pacientes que não era favorecido pela psicanálise clássica e, também, não se enquadrava como neurótico ou psicótico, possuindo características de ambos os transtornos. Atualmente considera-se que, além da predisposição genética, a etiologia desse transtorno está em grandes traumas sofridos na infância, os quais o indivíduo nunca conseguiu processar. Devido a essa estreita correlação com traumas de grande magnitude para a criança, é considerado por alguns pesquisadores um tipode Transtorno do Estresse Pós-traumático, pois ocorre quando a criança é submetida a um trauma violento, uma catástrofe à qual ela não consegue processar emocionalmente, temendo pela própria sobrevivência física ou emocional. Acredito que o outro extremo desse distúrbio seja o Transtorno de Personalidade Anti-social, mais conhecido como sociopatia ou psicopatia. Dentro dessa linha de pensamento, haveria duas reações extremas ao estresse intenso, o qual a criança não consegue processar de maneira saudável, gerando o Transtorno do estresse pós-traumático: 1. Na primeira reação, a criança pode perder sua “pele emocional” e tornar-se extremamente sensível e reativa ao mínimo fator de sofrimento, tornando-se um adulto borderline. 2. Na segunda reação, ela pode desenvolver uma “carapaça emocional” e daí tornar-se completamente insensível, principalmente ao sofrimento alheio, que vem a constituir a estrutura psíquica do sociopata e do psicopata. Então, segundo minha teoria, o psicopata e o borderline, dois transtornos de personalidade tão extremamente diferentes, seriam duas faces de uma mesma moeda. O diagnóstico do TPB não é dos mais fáceis, já que esse distúrbio é compatível com várias outras patologias, chegando a confundir-se com elas Judith Herman, psiquiatra norte americana, a partir de estudos realizados em sobreviventes de vários tipos de traumas, ao qual denominou de “Síndrome Complexa do Estresse Pós- traumático”, ratifica que o diagnóstico de “personalidade borderline” tem causado mais prejuízo do que benefício para o estudo dos distúrbios de personalidade. Isso pois, tal como o termo “histérico”, cuja conotação negativa e pejorativa acabou se tornando um jargão na psiquiatria, a palavra “borderline” passou a significar, nos últimos anos, manipulador e criador de casos. Isso fez com que os pacientes de TPB fossem vistos como pessoas manipuladoras, quando são verdadeiros heróis que sobreviveram a fortes traumas na infância, e cujas atitudes de manipulação são uma busca desesperada de amor, aceitação, e de aliviar sua dor interna. É muito comum no consultório observar que uma adolescente borderline possui uma mãe igualmente borderline, ainda que na maioria das vezes não diagnosticada. É mais uma vez o ciclo abusado/abusador do qual falei anteriormente. Os atos desesperados como as tentativas de suicídio e as crises de agressividade são gritos de socorro de alguém que se sente abandonado e perdido. Quando se encontram em situações-limite, esses pacientes, inconscientemente, tomam atitudes que ameaçam sua dignidade e segurança, tais como: dissociação, intrusão, irritabilidade, impulsividade, fortes mudanças de humor, automutilação, tentativas de suicídio etc. O lema interno do paciente borderline é: “Te odeio, por favor, não me abandone!”. Isto porque o indivíduo sente um imenso vazio interior que não consegue suprir, um sentimento de rejeição e solidão, que o fazem agir de forma dita “manipuladora”, instável e desesperada, sensível aos mínimos sinais do que pensa ser rejeição, agredindo as pessoas que ama a fim de provar sua ideia de que será abandonado. E obviamente tais atitudes acabam por amedrontar e afastar as pessoas, confirmando sua teoria. Quanto á etiologia, o TPB, pode ser causado por fatores constitucionais e fatores socioculturais. Quanto aos fatores constitucionais que levam ao TPB, não há nada consistente na literatura. Podem estar associados á hereditariedade, pois é bastante significativa a presença de pais que sofrem do transtorno no histórico do paciente. Porém não há como determinar se realmente seria uma herança biológica ou psicológica (comportamento aprendido), visto que pais que sofreram grandes traumas na infância e são emocionalmente instáveis podem vir a infringir involuntariamente traumas semelhantes em seus filhos, mormente os primogênitos, época em que esses pais ainda são inexperientes e inseguros na educação infantil. Pais que sofreram grandes traumas na infância e são emocionalmente instáveis costumam infringir involuntariamente traumas semelhantes em seus filhos. A medicação utilizada pelos pacientes boderline no tratamento dos sintomas depressivos, apesar do efeito de alívio, não provoca nenhuma mudança em sua personalidade. As terapias têm resultados erráticos, geralmente com pouca melhora do quadro. E o abandono do tratamento, tanto medicamentoso quanto psicoterapeutico é muito comum. Segundo pesquisas, a TCC (Terapia Cognitiva Comportamental) é a que apresenta melhores resultados. Aos fatores socioculturais, estão relacionados, entre outras coisas, a falta de uma família estruturada e sólida, uma vez que os pais atualmente passam cada vez menos tempo cuidando de suas crianças. Outrora, o pai saía para trabalhar e a mãe ficava em casa cuidando dos filhos. Contudo, as mudanças no comportamento feminino levaram a mãe ao mercado de trabalho, sem a contrapartida da redução da carga horária para ambos os pais, fazendo com que, cada vez mais, o cuidado das crianças fique ao encargo de outras pessoas, frequentemente pouco preparadas para lidar com as demandas emocionais da infância, e trazendo elas mesma suas feridas emocionais. Portanto, esses fatores contribuem para o TPB, que pode levar o indivíduo a agir com agressividade verbal ou até mesmo física contra si e contra as pessoas a sua volta, em determinadas situações. Essa atitude agressiva nada mais é do que autodefesa, pois quando o border se identifica com o agressor, ele tende a antecipar os atos de agressão, disparando contra o mesmo o que ele acredita que certamente sofreria. É a estratégia de atacar/agredir antes de ser atacado. Anna Freud ilustra esse mecanismo de defesa com o seguinte caso: “Um menino de 5 anos, normalmente tímido e inibido, tornou-se completamente agressivo quando pressentiu que a analista ia tocar no assunto de masturbação. Então ele levantou-se e, de punho com uma vara e um canivete que sempre trazia consigo, começou a rugir como leão e atacar a analista. Esta tornara-se uma atitude frequente do menino, que já tentara agredir a mãe e a avó em casa. E também já mexia nas facas da cozinha, acenando em atitude ameaçadora. A análise mostrou que, na verdade, o menino sofria de angústia e, ao pensar que seria obrigado a confessar todas as suas fantasias e atividades sexuais, imaginou que seria punido. Daí ele introjetava uma autodefesa, pois sabia que crianças que faziam tais práticas eram severamente castigadas pelos adultos, que além de gritar, desferiam bofetões ou batiam com uma vara, restando ainda a possibilidade de cortarem alguma parte do corpo (daí o canivete). Portanto, quando o pequeno paciente assumiu o papel de leão feroz e ameaçou a terapeuta com uma vara e um canivete, estava dramatizando, colocando-se no papel do agressor e antecipando a tão temida punição.” Os pacientes acometidos por TPB despertaram-nos a curiosidade científica e a vontade de poder ajudá-los através do estudo mais aprofundado da origem de seus problemas. Entretando, o tratamento desse transtorno é extremamente complexo, exigindo dos profissionais envolvidos uma expertise específica. Nesta patologia, os progressos terapêuticos geralmente são pouco significativos e lentos. Os pacientes geralmente passam por uma infinidade de médicos sem que tenham algum progresso, o que pode deixar a família sem esperança de conseguir uma ajuda concreta. Conquanto a psicóloga norte-americana Marsha Linehan tenha desenvolvido a Terapia Comportamental Dialética, a partir de seu treinamento em Terapia Comportamental e Terapia Cognitivo- Comportamental, sendo por pesquisadores considerado padrão-ouro no tratamento de pessoas com TPB. Ainda assim, a abordagem causa extremo sofrimento ao paciente que acaba por apresentar muita resistência a ele, com altas taxas de abandono do tratamento. É exatamente aqui que podemos observar o diferencial do psicodrama em relação às demais terapias, pois trabalhando com elementos lúdicos, pode-se retornar à infância de forma espontânea,rematrizando os traumas vivenciados, sem que o paciente perceba exatamente pelo que está passando. Desse modo, a pessoa não se dá conta de que através de jogos e brincadeiras está se despindo e interpretando suas dores, traumas e anseios, em direção à cura. Falar de seus traumas causa um sofrimento dilacerante, por isso os pacientes com TPB fogem das demais terapias. Vivenciar esses traumas através do psicodrama torna-se, portanto, uma abordagem mais leve, menos dolorosa, onde o paciente sente-se protegido pelo aspecto lúdico da terapia, com menor taxa de abandono e melhor participação, tornando-se dessa forma curativo. Um caso clínico que ilustra bem o sucesso do psicodrama é o da paciente Lúcia, nome que lhe atribuímos a fim de resguardar sua identidade. Essa paciente possuía traços de personalidade borderline, mas era uma profissional bem-sucedida até vivenciar um forte trauma e ser afastada do seu trabalho, o que desencadeou uma depressão profunda. Veja o caso: Lúcia chega ao consultório, como de forma habitual, apresentando soluços e suspiros involuntários, tremores em todo o corpo, e a expressão corporal encurvada com os braços semiflexionados na frágil aparência de um bichinho assustado ou um bebê desejando retornar ao útero. Conta que seu marido chegou em casa e, vendo sobre a mesa um cartão de crédito ainda bloqueado que havia acabado de chegar no nome dela, esbravejou dizendo que a mesma já estava com a intenção de iniciar novos gastos e que ele não iria permitir. Nesse ponto a paciente começa a chorar convulsivamente e repetir: “Eu jamais faria isso com ele, eu confiava nele, eu sempre dizia que assinaria um cheque em branco pra ele. Como ele foi cruel e ninguém me defendeu!” A terapeuta (T) pediu gentilmente que começasse a caminhar lentamente pela sala e fez uma breve entrevista: T: “O que você está sentindo?” E ela respondeu: “Medo... medo e solidão”. T: ”Consegue identificar em que parte de seu corpo está esse medo?” E ela: “Aqui e aqui”, aponta o peito e a garganta. T: “Que forma tem esse medo? E ela: “Parece uma bola cheia de espinhos me espetando”. T: “Lembra quando foi a primeira vez que sentiu esse medo e solidão?. Essa bola de espinho?” A paciente pára de caminhar, olha ao longe e diz: “Quando meu pai saiu de casa. E quando meu padrasto faleceu. Por que ele me abandonou?” diz referindo-se ao padrasto e começa a chorar se encurvando quase ao chão. T pergunta se quer conversar em pé ou se prefere ficar em uma posição mais confortável. Ela se deita sobre as almofadas quase em posição fetal e continua: “Se ele estivesse vivo ele teria me defendido. “João não teria feito isso comigo”. Nesse momento, a terapeuta coloca a mão em suas costas, transmitindo-lhe apoio e acolhimento, o que aos poucos diminui seu choro. Pergunta se ela quer encenar o momento do seu primeiro conflito com João, seu marido, três anos antes, quando ele bloqueou sua conta no banco, seu acesso à empresa onde ambos trabalhavam como sócios, e passou a deixá-la praticamente restrita à casa, sem dinheiro nem para um táxi. Acena a cabeça que não, mas quer conversar com o padrasto a quem chama de pai. T pede que monte a cena do local em que está com seu “pai” e ela inicia colocando uma almofada em sua frente e pedindo-lhe que relate a longa história do abuso que estava sofrendo por parte do marido. Então T coloca-se no lugar da almofada e, substituindo-a, repete a última frase: “Pai, ele não tinha o direito de fazer isso comigo. Ele não é o João que eu conhecia”. E ela responde no papel de pai: “Filhinha, pode deixar que eu vou falar sério com ele. Isso não vai ficar assim!”. Nesse momento, T repete a cena e no papel do pai abraça a paciente, dando o acolhimento necessário. Em seguida, T pede que monte a cena do local em que o pai se encontra com João. Lúcia escolhe sala de sua casa, João sentado e o pai em pé, em atitude de autoridade. Ao assumir o lugar do pai, conversa pacificamente com João, dizendo que o mesmo não deveria ter feito isso com sua filha. Repete-se a cena, desta vez ela como João e a terapeuta na posição de seu pai. João responde que teve seus motivos para agir assim. Inverte-se novamente a cena e a paciente no lugar do pai responde:” Nada justifica uma atitude dessas”. E retira-se da sala. A paciente é entrevistada no papel de pai e questionada se o mesmo não deveria ser mais agressivo com João, dado todo o mal que o mesmo causou a sua filha. Nesse momento, a paciente sai do papel e responde:”Não. Ele não era agressivo. Ele só conversaria”. Pede-se que volte ao papel de pai e converse com a almofada representando Lúcia. A paciente mostra-se firme ao falar: “Filhinha, seu pai vai estar sempre ao seu lado. Se quiser, pode vir morar conosco. Você não precisa passar por isso se não quiser”. Repete-se a cena, desta vez com a terapeuta no papel de pai. A paciente se emociona, chora aliviada e abraça seu “pai”. Após esse momento de catarse, a terapeuta faz um gesto de entrega e diz: “Toma Lúcia, coloca esse pai dentro de você. Na verdade, ele nunca saiu daí. Ele sempre esteve cuidando de você. Você é que não o estava sentindo. E agora? Você pode senti-lo?” E ela responde: “Sim. Eu sinto meu pai comigo. Na verdade, ele sempre esteve aqui (coloca as mãos no peito). Mas agora eu posso sentir”. A partir desse momento seu rosto passou a irradiar uma luz especial, de alegria e leveza, e abriu um sorriso. Seus ombros se ergueram, seus soluços e suspiros cederam, ela se reaproximou da mãe e das irmãs, começou a sair de casa, caminhar na praia, dirigir e inclusive planejar abrir um restaurante com o apoio financeiro da mãe. João, a princípio resistiu a essas mudanças, mas acabou por respeitar, tornou-se mais carinhoso e maleável, apesar de não a apoiar financeiramente, porém Lúcia aprendeu que não precisava mais contar só com ele. Os pacientes com TPB são geralmente inteligentes e talentosos, porém, devido ao transtorno, muitas vezes não conseguem se desenvolver e apresentam dificuldades em concluir os estudos. Por isso, não costumam trabalhar e, quando o fazem, ocupam funções muito abaixo de suas capacidades. Esses pacientes costumam apresentar crises relacionais, alguns até causam ferimentos em si mesmos e abusam de medicamentos. É o caso da paciente Luísa: Luísa (nome fictício), médica cirurgiã, 35 anos mãe de 3 meninas, etilismo pesado (ingere diariamente cerveja ou qualquer bebida alcoólica até “apagar”). Também faz uso diário de cocaína a fim de se concentrar no trabalho e maconha a fim de dormir. Chegou ao consultório após uma tentativa de suicídio. Relatou que sua vida estava se destruindo, que não conseguia mais pagar as contas, organizar as finanças, nem mesmo ir aos plantões, os quais estava repassando para colegas. Também cancelava com frequência as consultas e cirurgias de sua clínica privada, o que estava afastando os pacientes. Acreditava ainda estar cuidando adequadamente das filhas pois, segundo a mesma, as meninas não percebiam seu estado de consciência alterada pelas drogas, e elas conversavam e brincavam normalmente até, como disse, “apagar”. Na primeira consulta relatou que teria um curso, nos Estados Unidos, de uma semana no mês seguinte e que iria cancelar, apesar de já estar aguardando há mais de um ano ansiosamente, por ser de uma Escola Acadêmica renomada. Pedi que não cancelasse de imediato, pois juntas tentaríamos melhorar seu quadro a tempo. Com a medicação, a dieta e a terapia, em 3 semanas a paciente estava, segundo a mesma, “90% melhor!”. Havia por recomendação tirado “férias” de seus trabalhos, visto que por não ser funcionária não teria direito a licença, e estava se preparando para o tão sonhado curso! Bom lembrar que normalmente casos de tentativa de suicídio são mantidos em observação por algum tempo, mas, nesse, em específico, os motivadores sociais me deram a tranquilidade de que a paciente não faria uma nova tentativa, portanto me senti à vontade para liberá-la, desde que viajasse acompanhada pela genitora. O TPB é o exemplo mais marcante de como as feridasna infância podem prejudicar a vida adulta. Tal transtorno ocorre em 2% da população mundial, sendo 75% mulheres. Um número expressivamente maior de indivíduos sofre traumas de menores proporções e/ou processa melhor esses traumas, o que gera transtornos menos incapacitantes ou mais adaptativos. É importante ter em mente que, somente identificando a origem do trauma, o médico ou terapeuta poderá abordá-lo e tratá-lo adequadamente. 5. AS FASES DO DESENVOLVIMENTO INFANTIL Os primeiros anos de vida de uma pessoa são marcados por grandes transformações e descobertas. Aos poucos, a criança começa a entender o mundo em que vive e aprende a lidar consigo mesma e com aqueles que a cercam. O psiquiatra infantil Fábio Barbirato descreveu com maestria essas fases do desenvolvimento. Segundo Barbirato, o bebê passa por várias transformações desde seu nascimento. De 1 a 4 meses essas transformações são bastante significativas. Portanto, é importante que os pais saibam perceber os sinais de satisfação e insatisfação, e não devem se preocupar se o bebê passa horas olhando as mãos e observando seus próprios movimentos. Também costuma ficar horas observando e ouvindo os movimentos das pessoas ao seu redor, pois começa a entender que são elas que irão atender às suas necessidades, e a presença dessas pessoas se torna reconfortante. Nessa fase, o choro tem vários significados e é um forte aliado para ter seus desejos satisfeitos. Segundo o autor: “O choro é a primeira forma de comunicação do bebê com o mundo. É o modo mais poderoso e eficaz de conseguir chamar a atenção dos outros, não apenas porque está com fome ou dor. Cada bebê reage de um modo, mas o choro sempre significa alguma necessidade: fome, cólica, estar sujo ou molhado, com roupa desconfortável, sono, frio ou calor e excesso de estímulo são as opções mais prováveis”. Há uma grande necessidade de estabelecimento de contato e de laços emocionais entre o bebê e a figura materna, o que figura como um fenômeno biologicamente determinado. A comunicação afetiva que se estabelece entre mãe e filho é de grande relevância no desenvolvimento infantil, no que diz respeito a aprendizagem. Essa comunicação, no começo da vida, influencia a forma como a criança (e, futuramente, o adolescente e o adulto) se relaciona com as pessoas, tornando-a mais confiante e capaz de ver o mundo com confiança e otimismo, ou, ao contrário, tornando-a insegura e propensa à desconfiança e ao pessimismo. Diante disto, pode-se afirmar que a relação entre mãe e filho terá grande significância no processo do desenvolvimento infantil (personalidade, autoestima, aprendizagem). Na verdade, mesmo crianças que, por algum motivo, perderam suas mães, são capazes de gerar grande empatia em seus cuidadores despertando o que costumamos chamar de “instinto maternal”, o que, do ponto de vista antropológico, continua sendo um belíssimo mecanismo de sobrevivência do bebê, pois consegue despertar até em estranhos o instinto de cuidado e proteção. Tal instinto ocorre até mesmo entre animais de diferentes espécies como entre homo sapiens, canis familiaris, felis catus, chipanzés ou outros animais. O crescimento cerebral é estimulado até os três meses de idade. Para isso são necessários cuidados como: 1. Não deixar de consultar o pediatra. 2. Favorecer contato físico para que o bebê se sinta seguro. 3. Contar histórias para o bebê. 4. Disponibilizar objetos coloridos no quarto da criança (não precisa ser brinquedos). 5. Aprender a decifrar seus gestos, e demonstrar amor e carinho pelo bebê. É aqui que você vai aprender a cuidar de sua criança interior. Sabe aquele momento em que você se sente desconfortável? É porque certamente seu bebê interior está sentindo alguma necessidade básica: fome, sede, atenção... Geralmente não damos importância a esse desconforto. Para cuidar de nossa criança interior, é necessário valorizar os sinais de desconforto e dialogar com nosso bebê, a fim de confortá-lo. No período entre 4 e 7 meses o bebê está aprendendo a combinar as habilidades perceptivas com a capacidade motora. Lá pelos 5 meses ele começa a perceber o mundo em sua volta e seus limites corporais. Também passa a se comunicar através de sorrisos e perceber o princípio da causa e efeito. Para estimular o crescimento cerebral do bebê nesse período, é importante que: 1. Tenha contato fisico para ele sentir-se amado e protegido. 2. A mãe leia historinhas, onde ele a observará e gostará de ser observado. 3. Faça movimentos rítmicos para ele. 4. Deixe-o perto de outros bebês. 5. Dê-lhe jogos de encaixar. Se você tiver uma criança interior ferida nessa fase você deverá amá-la e protegê-la, brincando com ela através de jogos, música, dança, esportes, ajudá-la a fazer amigos... Pois é o que os adultos fazem intuitivamente quando vão a festas e participam de atividades esportivas. Dos 8 meses a 1 ano o bebê já se movimenta sozinho. Começa a engatinhar aos 8 meses, adquirindo habilidade necessária para uma separação física da mãe. Por outro lado, nessa fase, o bebê fica mais angustiado e pode apresentar dificuldades para dormir e falta de apetite, entre outras coisas. Essa angústia explica-se pelo fato dele ainda não estar preparado para uma separação por não ter gravado a imagem da mãe. Daí, sente sua ausência quando esta se afasta. Porém, à medida que o bebê cresce e amadurece, consegue gravar a imagem da mãe, o que lhe garante uma maior estabilidade emocional. Se sua criança foi ferida nessa fase, você apresentará dependência emocional, com dificuldade em superar perdas. Trate-a através da rematrização, ou seja, seu EU adulto precisará cuidar de sua criança interior ferida, mostrando que sempre estará ao seu lado e nunca a abandonará. Mas também a ajude a tornar-se autossuficiente e fazer amigos. Para estimular o crescimento cerebral da criança até os 12 meses, é importante que a mãe desenvolva algumas ações como: 1. Ler todos os dias. 2. Conversarcom ela. 3. Fazer brincadeiras que estimulem a memória e as habilidades motoras finas. 4. Permitir que ela brinque com outras crianças e conheça novos adultos, além dos familiares. De 1 a 2 anos a criança, depois de engatinhar, começa a caminhar e a falar, ganhando cada vez mais independência. É quando passa a conhecer seus próprios limites e a testar o dos pais. Esse momento se repete na adolescência e por isso o modo de tratar sua criança nessas duas fases guarda bastante semelhanças. Nesta fase, a criança é curiosa e está pronta para conhecer muitas coisas do mundo através da exploração do meio que a cerca, da imitação e de muita imaginação. O desenvolvimento cerebral e a coordenação fina dos seus movimentos ocorrem através da estimulação da fala, dos movimentos e das descobertas que a criança faz nessa fase, o que a levará a comportar-se de maneira confiante. Emocionalmente, a criança de 1 a 2 anos apresenta-se bastante desenvolvida, pois já percebe os estados emocionais de quem está próximo a ela, sobretudo os pais, mesmo que não os compreenda. Nessa fase, os pais devem agir de forma mais severa (sem deixar de ser amorosos) para impor limites quando a criança insistir em não obedecer. Porém, jamais fazer uso de violência física ou verbal. Um tom de voz mais firme, ou uma expressão facial, são o suficiente pra criança perceber que é hora de ceder. E, mais do que nunca, é necessário que os pais sejam coerentes em seu comportamento. Quando advertida da forma adequada, a criança reage naturalmente e entende o limite ou a crítica que está sendo imposto, bem como compreende que a crítica é à sua atitude, não à sua pessoa. Porém, se essa advertência vier junto a algum tipo de violência física ou verbal, provavelmente se desencadeará um trauma pois a criança se sentirá envergonhada, desvalorizada, defeituosa e inadequada, e, portanto, seu adulto ficará emocionalmente instável sempre que imaginar-se criticado. Caso sua criança tenha sido ferida nessa fase, converse com ela carinhosamente,fazendo-a entender que a punição é apenas pela sua atitude, mas que ela é perfeita, e apenas está aprendendo novas formas de comportamento. Mas seja firme e coerente. Aos 3 anos de idade a criança já se encontra emocionalmente mais segura e até ajuda os pais a estabelecer limites. É a fase chamada estágio de dependência volitiva, onde as crianças são capazes de controlar suas necessidades. Essa fase de limites é importante e deve ser seguida com firmeza, pois se os pais não o fizerem, a criança poderá se tornrar um adulto com dificuldades de limites. Muitos pais fracassam nessa tarefa por carregarem consigo seus próprios problemas relacionados a limites, quando vivem e revivem a forma como estes lhes foram passados. Nessa fase da vida, elas costumam provocar os adultos, que deverão saber controlar sua agressividade sem ceder às suas birras. Elas agem agressivamente quando são contrariadas, e fazem isso porque ainda não têm o autocontrole do impulso agressivo, cabendo aos pais instruí-las a controlar e soltar tais impulsos na hora adequada. Ou seja, você deve mostrar que compreende que a criança tem o direito de ficar agressiva em determinados momentos, porém nem sempre tal comportamento fará com que consiga obter o desejado. Existem dois comportamentos igualmente destrutivos por parte dos pais: 1. Agredir a criança e puni-la por sua birra, desvalorizando o sentimento dela. 2. Ceder à sua birra, oferecendo a ela o que deseja a fim de acalmá-la. Os pais devem permanecer ao lado da criança, conversar calmamente com ela, mostrar que entendem sua raiva, mas que ela precisa aprender a controlar sua agressividade, pois com essa reação ela não conseguirá o que tanto deseja. Se sua criança foi ferida nessa idade, converse carinhosamente, diga que ela tem o direito de se irritar, mas precisa aprender a se acalmar pois não irá conseguir o que deseja com agressividade. Dos 3 aos 6 anos a criança passa por uma explosão de descobertas! Deixa as fraldas, começa o período pré-escolar, os padrões socioculturais de comportamento se solidificam aos poucos, e o desenvolvimento físico, motor e intelectual tem um grande progresso! A criança já é capaz e ir e vir de acordo com sua vontade, de se expressar usando símbolos e até gostar ou não das pessoas. Essa é a fase dos “por quês”. A criança quer conhecer tudo, descobrir tudo, pois existe muita coisa no mundo a ser descoberta. Essa curiosidade espontânea só é possível porque a criança sente-se bem-vinda, confia no mundo e acredita que todas as suas necessidades serão acolhidas e respeitadas. Ela busca entender quem é, e o que deseja fazer da sua vida. A criança até então era egocêntrica, não egoísta, ou seja, incapaz de entender o mundo segundo o ponto de vista da outra pessoa. Não conseguia ficar no papel do outro. Aqui há pais que irão argumentar: “Mas meu filho de 3 anos sente quando eu estou triste ou com raiva”. Sim, ele percebe suas emoções, mas não consegue se colocar no seu lugar. Quando ele as acolhe é à fim de preservar sua própria necessidade de segurança, amor e conforto. É somente nesta fase dos 3 aos 6 anos que a criança começa a aprender a se colocar no papel do outro, entender a sua dor, e passa a interagir verdadeiramente, no sentido de reciprocidade. Se a criança for ferida nessa fase, ela se tornará tímida e insegura, ou não empática, pois não aprenderá a se colocar no lugar do outro. Mostre à sua criança ferida que ela é amada e tem muito valor. Que ela precisa aprender a reconhecer e cuidar de seus sentimentos. Assim, com o tempo, aprenderá a desenvolver empatia. Como pode-se observar, a fase compreendida entre o nascimento e os seis anos mostra-se de grande importância para a formação da personalidade da criança. Nesse período, todas as experiências serão decisivas e poderão ocasionar sequelas no equilíbrio, coordenação e organização de ideias, caso suas necessidades não sejam supridas adequadamente. E por adequadamente, devemos entender, sem excesso e de maneira coerente. Esta é a principal fase da vida de uma pessoa, pois o que acontece nesse período fica guardado para sempre. E os comportamentos disfuncionais adquiridos se repetem instintivamente para o resto de sua vida, como um disco arranhado. Portanto, se vivenciar boas experiências, boa alimentação, carinho e estimulação sem excessos, com certeza a criança tornar-se- á futuramente um adulto mais ajustado e coerente, preservando e aprendendo a adequar sua criatividade e sua espontaneidade. Quando a criança nasce, ela rompe uma barreira, passando da matriz materna para um universo novo e diferente, o qual Moreno denominou Matriz de Identidade, onde é oferecida à criança uma nova placenta, constituída pelos vínculos com os pais ou cuidadores e pelas pessoas e coisas significativas que a cercam. Assim, Matriz de Identidade é o conjunto de condições psicológicas e sociais no qual a criança é inserida ao nascer, e a partir da qual se desenvolve dos pontos de vista psíquico e social. É a placenta social, onde o recém-nascido implanta-se no grupo social do qual depende para suas necessidades fisiológicas, psicológicas e sociais do mesmo modo que o ovo, o embrião e, posteriormente, o feto se implantam na placenta e dela se nutrem e dependem. A criança já possui um papel antes mesmo de nascer, ou seja, ela já tem um lugar na matriz a que pertence. A partir do nascimento ela receberá toda a herança cultural de sua matriz (grupo familiar), transmitida de forma a prepará-la para ser inserida no meio social. Ao longo de seu desenvolvimento emocional e construção de sua identidade, a criança passa por cinco fases, assim descritas por Moreno: Indiferenciação: é o momento evolutivo em que a criança ainda não se diferencia das pessoas com quem interage e não consegue distinguir o que é dela e o que é do outro. É a busca da identidade. Reconhecimento do eu: aqui a criança está focada em si, nos contornos de seu corpo e no reconhecimento de sua imagem no espelho. Ela passa a se concentrar e explorar o reconhecimento de suas fronteiras ao perceber que seu corpo está separado da mãe, das pessoas, dos objetos. Aqui, o Tu serve apenas como instrumento no processo de reconhecimento do eu. Reconhecimento do tu: nessa fase a criança já consegue diferenciar o outro de si, e passa a explorar o que é diferente do eu, fortalecendo sua identidade. É a fase da exploração do mundo, do diferente, da descoberta de que o outro tem comportamento diferenciado do dela. É quando a criança passa verdadeiramente a diferenciar o Tu. Pré-inversão: é a fase em que a criança começa a experimentar se colocar no lugar do outro, porém não consegue ver outra pessoa em seu lugar. É a fase da imitação, do faz-de-conta, uma espécie de ensaio e preparação para uma futura inversão, quando será possível uma reciprocidade. Nessa fase a criança gosta de imitar, mas detesta ser imitada. Inversão de papéis: essa fase indica o amadurecimento emocional da criança, onde ela não apenas consegue se ver separada do outro como também compreender suas diferenças. Aqui acontece a inversão de papéis, ou seja, o indivíduo joga o papel do outro e o outro joga seu papel, com empatia, possibilitando as condições necessárias para que se realize um verdadeiro encontro, uma experiência produtora de crescimento e fortalecedora do vínculo para as duas partes. Esse conhecimento que a criança vai adquirindo de si própria, diferenciando-se do grupo, vai proporcionar-lhe sua percepção enquanto indivíduo no grupo familiar e mais tarde no social. Portanto, se essas fases não se desenvolverem satisfatoriamente, o indivíduo terá dificuldade em cultivar sua espontaneidade e criatividade no grupo, encontrando empecilhos em sua vivência no mundo. Quando a criança atinge o último estágio na Matriz de Identidade, desenvolve mais dois tipos de papéis: os papéis sociais e os papéis psicodramáticos. O primeiro corresponde à dimensão da interação social, que assume fundamentalmente a função de realidade e forma o eu parcial
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