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VIEIRA, M V M COZINHOU DAQUELA VEZ COMO SE FOSSE A ÚLTIMA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS 
FACULDADE DE DIREITO 
 
 
 
 
 
 
MARCUS VINÍCIUS MELO VIEIRA 
 
 
 
 
 
 
COZINHOU DAQUELA VEZ COMO SE FOSSE A ÚLTIMA 
MasterChef Júnior: uma pitada de trabalho artístico infantil, uma colher de 
proteção integral 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Belo Horizonte 
2016
MARCUS VINÍCIUS MELO VIEIRA 
 
 
 
 
 
 
 
 
COZINHOU DAQUELA VEZ COMO SE FOSSE A ÚLTIMA 
MasterChef Júnior: uma pitada de trabalho artístico infantil, uma colher de 
proteção integral 
 
 
 
 
 
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado 
ao Colegiado do Curso de Graduação em 
Direito da Universidade Federal de Minas 
Gerais como requisito para a aprovação na 
disciplina Trabalho de Curso II, sob a 
orientação da Professora Doutora Adriana 
Goulart de Sena Orsini. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Belo Horizonte 
2016 
MARCUS VINÍCIUS MELO VIEIRA 
 
 
 
COZINHOU DAQUELA VEZ COMO SE FOSSE A ÚLTIMA 
MasterChef Júnior: uma pitada de trabalho artístico infantil, uma colher de 
proteção integral 
 
 
 
 
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Colegiado do Curso de Graduação em 
Direito da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito para a aprovação na 
disciplina Trabalho de Curso II. 
 
 
Belo Horizonte, 07 de dezembro de 2016 
 
 
 
 
 
Componentes da banca examinadora: 
 
___________________________________________________________ 
Professora Doutora Adriana Goulart de Sena Orsini (Orientadora) 
Universidade Federal de Minas Gerais 
 
___________________________________________________________ 
Professora Doutora Mônica Sette Lopes 
Universidade Federal de Minas Gerais 
 
___________________________________________________________ 
Hellen Matos Pereira 
Analista de Direito do Ministério Público do Estado de Minas Gerais 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A meus pais, Cecília e Waldonio, por todo o apoio e amor que me deram até aqui. 
AGRADECIMENTOS 
 
Agradeço à Professora Doutora Adriana Goulart de Sena Orsini por despertar em 
mim a necessidade de sempre procurar conhecer e compreender a realidade daqueles que 
poderão ser influenciados por minhas decisões, bem como pela valiosa orientação, não só no 
presente trabalho como durante toda minha vida acadêmica na UFMG. 
Agradeço, igualmente, ao RECAJ UFMG e a todos os seus membros. Foi 
extremamente gratificante encontrar um espaço acadêmico aberto à busca de um Direito 
verdadeiramente emancipador, um Direito que vê o sujeito como agente construtor de sua 
própria realidade. Minha formação teria sido totalmente distinta, e inferior, sem tudo que 
aprendi ali. 
Por fim, agradeço aos meus amigos que estiveram comigo até aqui. Sem vocês eu 
não teria conseguido superar todas as inseguranças e incertezas que me surgiram ao longo da 
graduação. Sem vocês, também, eu não teria tido alguns dos melhores momentos de minha 
vida. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Mama said, you’re a pretty girl 
What’s in your head it doesn’t matter 
Brush in your hair, fix your teeth 
What you wear is all that matters” 
 (Beyoncé) 
RESUMO 
 
VIEIRA, Marcus Vinícius Melo. Cozinhou daquela vez como se fosse a última. MasterChef 
Júnior: uma pitada de trabalho artístico infantil, uma colher de proteção integral. Trabalho de 
Conclusão do Curso de Direito. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2016. 
 
O trabalho infantil ainda é um problema social brasileiro: atividades vistas negativamente, 
como a prostituição e o tráfico de drogas, dividem espaço com outras ocupações mais aceitas 
socialmente, como o trabalho doméstico e o trabalho artístico. Com o início da exibição da 
atração televisiva MasterChef Júnior, marcado por polêmicas envolvendo pedofilia e 
homofobia, reacenderam-se os holofotes sobre a temática do trabalho artístico infantil. Assim, 
percebeu-se a necessidade de uma discussão sobre tal tema na área jurídica. Desta forma, o 
presente trabalho de conclusão de curso objetivou compreender se a participação das crianças 
e adolescentes no programa configurou o emprego de mão de obra infantil e se foi respeitada 
a proteção integral conferida às crianças e adolescentes. Como arcabouço teórico, efetuou-se 
uma breve revisão bibliográfica sobre as faces do trabalho infantil no Brasil e sobre a doutrina 
da proteção integral. Após, abordou-se as especifidades do trabalho artístico infantil, 
discutindo seus aspectos sociais, psicológicos e jurídicos. Por fim, foi feito um estudo de caso 
utilizando-se da primeira temporada da atração televisiva MasterChef Júnior como paradigma 
para verificar a eficácia da proteção integral conferida constitucionalmente à criança e ao 
adolescente quando da sua participação em atividades artísticas. 
 
Palavras-chave: Direito do Trabalho. Trabalho Infantil. Trabalho Artístico Infantil. Direito 
Infanto-Juvenil. Proteção Integral. 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
VIEIRA, Marcus Vinícius Melo. Cooked that time as if it were the last. Masterchef Junior: 
a pinch of artistic child labor, a spoon of integral protection. (Concluding undergraduate work 
in Law). Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2016. 
 
Child labor is still a social issue in Brazil: activities which are seen as negative, like 
prostitution and drug trafficking, exist along other, more socially acceptable occupations, such 
as domestic and artistic work. The beginning of the exhibition of the television show 
Masterchef Junior, marked by polemic discussions over pedophilia and homophobia, has 
brought to the forefront the subject of artistic child labor and it has sparked awareness of the 
need to discuss the juridical matter. Therefore, this concluding undergraduate work has aimed 
at comprehending whether the participation of children and adolescents in the show has 
configured the employment of child labor and whether the integral protection of children and 
adolescents has been respected. A literature review on the discussion of the facets of child 
labor in Brazil, as well as on the legal doctrine about integral protection, has been conducted. 
After this, the specificities of child artistic labor have been discussed, especially regarding its 
social, psychological and juridical aspects. Finally, the first season of the television show 
Materchef Junior has been taken as a paradigmatic case study in order to verify the efficiency 
of integral protection, which is granted constitutionally to children and adolescents when they 
participate in artistic activities. 
 
Key-words: Labor Law. Child Labor. Artistic Child Labor. Youth Law. Integral Protection. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
1 INTRODUÇÃO …......................................................................................................10 
2 DA ESCRAVIDÃO À PROIBIÇÃO PARCIAL: FACES DO TRABALHO 
INFANTIL NO BRASIL …..................................................................................... 12 
2.1 Movidos pela chibata .................................................................................................12 
2.2. Alinhados às engrenagens ......................................................................................... 13 
2.3. Os errantes de 1927 ................................................................................................... 15 
2.4. Tempos de Revolução ................................................................................................ 16 
2.5. Sob o manto constitucional ....................................................................................... 17 
2.6. Não fale em ditadura, trabalhe ................................................................................ 19 
3 A DOUTRINADA PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO 
ADOLESCENTE.................................................................................................... 21 
3.1 Breve contexto histórico internacional ................................................................... 21 
3.2 Diplomas legais vigentes no Brasil …..................................................................... 22 
3.3 Princípios da proteção integral …........................................................................... 24 
4 O TRABALHO ARTÍSTICO INFANTIL …......................................................... 28 
4.1 Aspectos sociais ........................................................................................................... 28 
4.1.1 Ei-lo: sucesso. Busque-o! .......................................................................................... 29 
4.2 Aspectos psicológicos ................................................................................................. 32 
4.2.1 Escalando o Olimpo ................................................................................................... 33 
4.2.2 Luz! Câmera! Ação! ................................................................................................... 34 
4.2.3 Corta! .......................................................................................................................... 36 
4.3. Aspectos jurídicos ...................................................................................................... 38 
4.3.1 Divergências jurisprudenciais .................................................................................. 39 
4.3.2 Requisitos legais ........................................................................................................ 42 
5 ESTUDO DE CASO …............................................................................................. 45 
5.1 Lista de ingredientes …............................................................................................ 45 
5.2 Mise en place .............................................................................................................. 45 
5.3 Chocolate com pimenta …....................................................................................... 50 
5.3 Maná ou fel? ….......................................................................................................... 52 
6 CONCLUSÃO …...................................................................................................... 57 
 REFERÊNCIAS …................................................................................................... 60 
 
 
10 
 
1 INTRODUÇÃO 
 
O trabalho infantil ainda é um problema social brasileiro. Dentre as atividades laborais 
exercidas por crianças e adolescentes, algumas geram comoção e revolta, sendo uma 
constante na sociedade a sua repulsa, como por exemplo os trabalhos penosos no meio rural, 
no tráfico de drogas e na prostituição. Outras, por sua vez, apesar de proibidas, possuem certa 
“aceitabilidade social” maior, chegando por vezes a serem vistas como algo natural e não 
prejudicial ao menor. É o caso do trabalho exercido no domicílio de terceiros (serviço 
doméstico) e o exercido no comércio em geral. 
Por fim, o trabalho infantil chega a ser visto socialmente com certa 
“glamourização”, havendo uma cultura de plena aceitabilidade, em dois setores específicos: o 
trabalho infantil artístico e o trabalho desportivo. Na visão de Cavalcante (2012), manifesta 
em sua obra Trabalho Infantil Artístico: do deslumbramento à ilegalidade, o trabalho artístico 
infantil pode ser enquadrado como uma forma sofisticada e oportunista de exploração de mão 
de obra infantil. A autora aponta, inclusive, uma pressão familiar para os filhos optarem pela 
carreira artística. 
Com o início da exibição da primeira temporada da atração televisiva MasterChef 
Júnior1, um talent show que consiste numa disputa de provas culinárias entre vinte crianças e 
adolescentes, com idades entre nove e treze anos, pelo título de primeiro MasterChef Júnior 
do Brasil, além de outros prêmios2, a temática do trabalho infantil artístico voltou à pauta 
brasileira, em especial a midiática. 
Apesar de certa regulamentação legal sobre o tema, sobremodo após a vigência da 
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88) que adotou, expressamente, 
no parágrafo 3º do art. 2273, a doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente, 
acredita-se que a regulamentação sobre o tema no Brasil ainda é insuficiente. Um sistema que 
se limita, por vezes, a regular como se dá a prestação do trabalho em si, disciplinando 
 
1 Todos os dados sobre a atração televisiva foram retirados de seu sítio virtual, a saber < 
http://entretenimento.band.uol.com.br/masterchef/junior/2015/>. O acesso se deu em diversos dias alternados 
do mês de outubro de 2016, período no qual a presente monografia foi elaborada. 
2 O primeiro colocado da atração levará o troféu de primeiro MasterChef Júnior do Brasil, um curso de culinária 
com duração de três meses e uma viagem para um famoso parque de diversões no exterior com mais cinco 
acompanhantes e um vale compras no valor de R$1.000,00 mensais em uma conhecida rede de 
supermercados brasileira. 
3 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com 
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à 
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a 
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. [...]§ 3º O 
direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: [...] (sublinhas supridas) 
http://entretenimento.band.uol.com.br/masterchef/junior/2015/
11 
 
aspectos como duração do trabalho e necessidade do menor frequentar a escola, está fadado 
ao fracasso. 
Com o objetivo de averiguar a veracidade ou não dessa afirmação, buscar-se-á 
analisar as disposições legais acerca do trabalho artístico exercido pelas crianças e 
adolescentes que competiram na primeira edição do MasterChef Júnior e discutir se foram 
capazes de efetivar a proteção integral conferida aos menores. 
A fim de melhor desenvolver o objeto a ser estudado, o texto principal do trabalho 
foi dividido em quatro capítulos. O primeiro deles trará um breve histórico acerca da presença 
do trabalho infanto-juvenil no Brasil. O segundo abordará a doutrina da proteção integral, 
dispondo sobre seu contexto internacional e sobre as normas e princípios que a regulamentam 
no Brasil. 
O terceiro capítulo, por sua vez, trará disposições sobre o trabalho artístico infantil 
em seus aspectos legais, sociológicos e psicológicos. Por fim, no quarto e último capítulo será 
desenvolvido o estudo de caso sobre a atração televisiva MasterChef Júnior, visando 
averiguar se e como a doutrina da proteção integral materializou-se no decorrer da edição. 
 
 
12 
 
2 DA ESCRAVIDÃO À PROIBIÇÃO PARCIAL: FACES DO TRABALHO INFANTIL 
NO BRASIL 
 
Inicialmente, cumpre ressaltar que o objetivo desta breve remissão histórica se 
limita a apontar um panorama geral sobre o modo como ocorreu o trabalho infantil e as 
principais legislações existentes, ou que já existiram e que o regularam, de alguma forma, em 
terras brasileiras. Desta forma, o marco inicial escolhido foi o começo da colonização 
portuguesa. 
Nas naus portuguesas, inclusive, vieram ao Brasil várias crianças prestadoras de 
serviço. Eram os grumetes, aprendizes de marinheiros, 
 
[...] meninos com idade entre nove e quinze anos que, obrigados pelos próprios pais, 
trocaram a infância pela terrível vida no mar. Estima-se que 10% da frota de Cabral 
era formado por crianças.[...] trabalhavam como gente grande, ou melhor, como 
escravos. Limpavam o convés, faziam faxina nos porões e remendavam velas 
(PEREZ, 2008, p. 37 apud SENTO-SÉ, 2000, p. 62) 
 
 
2.1. Movidos pela chibata 
 
 
É sabido que durante o período colonial a mão de obra brasileira era baseada no 
sistema escravagista. Dentre os escravos, encontravam-se crianças e adolescentes. Teixeira 
(2010), aponta que houve importante participação da reprodução natural na 
manutenção/ampliação das escravarias em regiões voltadas ao mercado interno4. 
De acordo com a autora, a mão de obra escrava infantil era vantajosa devido ao 
valor inferior para aquisição e por serem menos propícios a insubordinações e desacatos. 
Segundo MOTT, 
 
[...] desde pequenas, [as crianças escravas] eram obrigadas a acompanharem suas 
mães ao campo e com elas compartilhavam vários trabalhos agrícolas: tiravam ervas 
daninhas, semeavam frutas, cuidavam dos animais domésticos. (1989, p. 88 apud 
TEIXEIRA, 2010, p. 85) 
 
Contrapondo-se à escravidão, o movimento abolicionista materializou-se, 
inicialmente, no Brasil, com a Lei do Ventre Livre (Lei nº 2.040, de 28 de Setembro de 1871). 
 
4 Em contraposição, nas regiões voltadas ao mercado externo, naquela época agroexportador, a autora aponta a 
predominância da reprodução da escravidão através do tráfico de pessoas, uma vez que uma mão de obra 
masculina e adulta era mais propícia para as atividades ali desenvolvidas. 
13 
 
Tal lei garantiu a “condição livre”5 aos filhos das escravas e, ao menos em tese, o direito de 
não laborarem até atingirem oito anos. Até tal idade os senhores eram responsáveis por criá-
los e tratá-los. 
 Inteirados oito anos, os senhores podiam optar em utilizar-se da mão de obra do 
“escravo livre” até que esses atingissem vinte e um anos, como forma de indenização por sua 
criação e cuidados, sendo, entretanto, proibidos os castigos excessivos. 
Sobre o período escravagista, ainda, ressalta-se a diferença notória entre a vida 
das crianças escravas e a das crianças da elite branca. Enquanto a estas era reservada a 
aprendizagem de idiomas e conhecimentos gerais, para os meninos, e de bordados, costura, 
música, para as meninas, àquelas, independente do sexo, era reservada a chibata e a 
obediência. 
Vê-se, portanto, uma plena aceitabilidade – legal e social - do labor infanto-
juvenil durante todo o período escravagista, o que não causa espanto nesta concepção de mão 
de obra, visto que os escravos eram considerados bens de seus senhores. 
 
2.2. Alinhados às engrenagens 
 
Com a abolição da escravidão o cenário não sofreu grandes alterações. O processo 
de industrialização pelo qual passou o Brasil também foi impulsionado pelo labor de crianças 
e adolescentes. Neste período, buscava-se disciplinar as crianças ao ritmo mecânico das 
máquinas. 
Para dimensionar, reproduzem-se dados levantados pela OIT sobre a mão de obra 
no estado de São Paulo, na passagem do século XIX para o século XX. 
 
Em 1890, do total de empregados em estabelecimentos industriais, 15% era formado 
por crianças e adolescentes. Nesse mesmo ano o Departamento de Estatística e 
Arquivo do Estado de São Paulo registrava que ¼ da mão de obra empregada no 
 
5 “Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio desde a data desta lei, serão considerados de 
condição livre. 
 § 1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os quaes terão 
obrigação de crial-os e tratal-os até a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta 
idade, o senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos 
serviços do menor até a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe 
dará destino, em conformidade da presente lei. A indemnização pecuniaria acima fixada será paga em titulos 
de renda com o juro annual de 6%, os quaes se considerarão extinctos no fim de 30 annos. A declaração do 
senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor chegar á idade de oito annos e, se 
a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbitrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor. 
[...] 
§ 6º Cessa a prestação dos serviços dos filhos das escravas antes do prazo marcado no § 1°, se, por sentença do 
juizo criminal, reconhecer-se que os senhores das mãis os maltratam, infligindo-lhes castigos excessivos.” 
14 
 
setor têxtil da capital paulista era formada por crianças e adolescentes. Vinte anos 
depois, esse equivalente já era de 30%, segundo dados do Departamento Estadual do 
Trabalho. Já em 1919, segundo o mesmo órgão, 37% do total de trabalhadores do 
setor têxtil eram crianças e jovens; e, na capital paulista, esses índices chegavam a 
40%. Crianças operárias trabalhavam em vários setores da atividade fabril; além da 
têxtil, estavam também presentes nas indústrias alimentícias e de produtos químicos, 
por exemplo. (2001, p. 27) 
 
Ainda, de acordo com a OIT (2001), nas fábricas, às humilhações e aos castigos 
pela baixa produção somava-se a ocorrência de diversos acidentes de trabalho. Nas cidades, 
por sua vez, eram oferecidas às crianças várias oportunidades de trabalho informal, como o de 
jornaleiros, engraxates e vendedores ambulantes. 
Visando regularizar o trabalho infanto-juvenil, foi expedido o Decreto nº 1.313, de 
17 de janeiro de 1891, que instituiu a fiscalização permanente de todos os estabelecimentos 
fabris que empregassem menores. Tal decreto proibiu a admissão de crianças menores que 
doze anos em qualquer emprego fabril, exceto para as fábricas de tecido, que podiam 
contratar mão de obra, na condição de aprendizes, com idade entre oito e doze anos. O decreto 
ainda regulamentava a duração do trabalho do menor, verbis: 
 
Art. 4º Os menores do sexo feminino de 12 a 15 annos e os do sexo masculino de 12 
a 14 só poderão trabalhar no maximo sete horas por dia, não consecutivas, de modo 
que nunca exceda de quatro horas o trabalho continuo, e os do sexo masculino de 14 
a 15 annos até nove horas, nas mesmas condições. 
 Dos admittidos ao aprendizado nas fabricas de tecidos só poderão occupar-se 
durante tres horas os de 8 a 10 annos de idade, e durante quatro horas os de 10 a 12 
annos, devendo para ambas as classes ser o tempo de trabalho interrompido por meia 
hora no primeiro caso e por uma hora no segundo. 
 
Apesar da existência da referida legislação, a fiscalização era insuficiente. Na 
prática, era o próprio empresariado que determinava a jornada de trabalho. Havia, ainda, o 
discurso da classe empresária de que o trabalho era uma alternativa/solução aos problemas da 
vida nas ruas, além de “propiciar o aprendizado de habilidades para o exercício de profissão 
ou função” (OIT, 2001, p. 28). 
Antes da preocupação com o ensino visando a alfabetização, foram criadas, por 
meio do Decreto nº 7.566, de 23 de setembro de 1909, as Escolas de Aprendizes Artífices, 
para o ensino profissional primário e gratuito. Na justificativa, há a clara reprodução do 
discurso da classe empresária: 
 
Considerando: 
15 
 
Que o augmento constante da população das cidades exige que se facilite ás classes 
proletarias os meios de vencer as difficuldades sempre crescentes da lucta pela 
existencia; 
Que para isso se torna necessario, não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da 
fortuna com o indispensavel preparo techinico e intellectual, como fazel-os adquirir 
habitos de trabalho proficuo, que os afastará da ociosidade ignorante, escola do vicio 
e do crime; 
Que é um dos primeiros deveres do Governo da Republica formar cidadãos uteis á 
Nação [...] 
 
 Do exposto, tem-se que a saída do sistema escravagista não foi suficiente para 
alterar a visão do trabalho como alternativa de vida digna aosfilhos das classes menos 
favorecidas. Ressalta a OIT, em sua publicação “Combatendo o trabalho infantil: guia para 
educadores”, que “tal mentalidade, enraizada em nossa sociedade por quase quatro séculos, 
pode estar na raiz da aceitação como ‘natural’ do trabalho de crianças e adolescentes 
pobres” (2001, p. 26). 
 
2.3. Os errantes de 1927 
 
Não se pode afirmar precisamente se o Governo da República conseguiu cumprir 
com maestria seu dever, exposto na justificativa do Decreto nº 7.566 de 1909, de formar 
cidadãos úteis à nação. Entretanto, tem-se que outros cidadãos, talvez verdadeiramente mais 
uteis à nação que os formatados pelo ensino profissional, se uniram em movimentos 
contrários ao emprego da mão de obra de crianças e adolescentes, culminando, em 1927, na 
publicação do Código de Menores6. Tal código, em seu capítulo IX, dedicou-se a disciplinar o 
trabalho do menor. 
Reproduziu-se a proibição que estava vigente do trabalho dos menores de doze 
anos. Para os adolescentes com idade entre doze e quatorze anos, por sua vez, a conclusão da 
instrução primária era condição necessária para se habilitar ao trabalho, possível à época. A 
exceção dava-se quando o trabalho era indispensável à subsistência do menor ou dos pais. 
Proibia-se, ainda, a admissão de menores de onze anos em usinas, manufaturas, 
estaleiros, minas ou qualquer trabalho subterrâneo, pedreiras, oficinas e suas dependências, 
ainda que na condição de aprendizes. Ainda, era proibido aos menores de dezoito anos os 
trabalhos perigosos à saúde, à vida, à moralidade, excessivamente fatigantes ou que 
excedessem suas forças, bem como o trabalho noturno. 
 
6 Decreto nº 17.943-A, de 12 de Outubro de 1927 
16 
 
Merece destaque na análise do Código de Menores a positivação da proibição 
genérica ao trabalho artístico de menores de dezoito anos, salvo com autorização judicial. 
Veja-se: 
 
Art. 111. Os menores do sexo masculino de menos do 18 annos e os do Feminino de 
menos de 18, não podem ser empregados como actores, figurantes, ou de qualquer 
outro modo, nas representações publicas dadas em theatros e outras casas do 
divisões de qualquer genro, sob pena de muita do 1:000$ a 3:000$000. 
Tambem sob as mesmas penas, é interdicto a taes menores todo trabalho em 
estabelecimentos theatraes ou analogos, inclusive a venda de quaesquer objetos. 
§ 1º Todavia, a autoridade competente póde, exepcionalmente, autorizar o 
empregado de um ou vários menores nos theatros, para representação de 
determinadas peças. 
§ 2º Nos cafés-concertos e cabarats a prohibição vae até maioridade. 
 
Outro apontamento a ser feito, dado o objeto de estudo da presente monografia, é 
a perseguição, à época, às atividades circenses exercidas por menores. Foi estabelecida pena 
de multa e de prisão aos indivíduos que fizessem com que menores de dezesseis anos 
executassem exercícios de força, perigosos ou de deslocação. Os acrobatas, saltimbancos, 
ginastas, adestradores de animais, diretores de circo ou similares que utilizassem em suas 
apresentações menores de dezesseis anos também estavam sujeitos às mesmas penas. Caso 
tais profissionais fossem os pais das crianças, a idade mínima para poderem contar com os 
filhos em suas apresentações diminuía de dezesseis para doze anos. 
Analisando o Código de Menores, Perez aponta, em sua obra “Regulação do 
Trabalho do Adolescente” (2008), que o Código de Menores foi fruto de uma concepção que 
associava a pobreza à delinquência, gerando a denominada doutrina da “situação irregular”. 
Assim, apesar da expectativa pelo código, que se destinava a promover e garantir os direitos 
dos infantes, seus defensores acabaram por frustrar-se com a edição de um código voltado ao 
menor delinquente. 
Contrariando os ideais humanitaristas da época, via-se uma nítida intenção de 
retirar os menores “abandonados” do convívio social, utilizando-se, inclusive, do trabalho 
como ferramenta de adestração. 
 
2.4. Tempos de Revolução 
 
Em 1930, dada a pressão operária por melhores condições de vida e de trabalho, 
17 
 
deu-se a Revolução, que derrubou a primeira República e colocou Getúlio Vargas no poder. 
Com ela, iniciou-se o protecionismo7 e a maior intervenção do Estado na economia. 
O trabalho infantil também foi contemplado pelas mudanças, sendo elevada a 
idade mínima para admissão em fábricas de doze para quatorze anos, por meio da publicação 
do Decreto nº 22.042, de 19328. O Decreto, contuto, não trouxe grandes mudanças em relação 
aos trabalhos proibidos aos menores. 
Para que pudessem ser contratados, era necessário que os menores fossem 
alfabetizados, salvo se o trabalho fosse indispensável para a subsistência e não prejudicasse 
que fosse ministrada ao adolescente pelo menos a instrução primária. Ainda, aponta-se a 
inovação na obrigação dos estabelecimentos que contassem com mais de trinta trabalhadores 
com menos de dezoito anos em ministrar-lhes o ensino primário, caso não houvesse nenhuma 
escola no raio de um quilômetro9. 
Buscou conciliar-se o trabalho e o ensino. Entretanto, dadas as limitações do 
ensino primário, voltado mais à alfabetização que à real transmissão e problematização sobre 
o conhecimento, é questionável o escopo legal. Ainda, as dificuldades já apontadas de 
fiscalização podem ter sido um empecilho à efetivação da norma. 
 
2.5. Sob o manto constitucional 
 
Em 1934, foi promulgada a Constituição da República dos Estados Unidos do 
Brasil. Em seu título V, da Ordem Econômica e Social, foram disciplinadas as condições 
básicas do trabalho. Como inovação, foi estabelecida a proibição de diferença salarial por 
idade10. Desta forma, ao menos em tese, não persistiria a vantagem em contratar menores de 
idade por serem uma mão de obra mais barata. A idade mínima para o trabalho permaneceu 
em quatorze anos, entretanto, ao estar disposta na Constituição, ganhou maior proteção, uma 
 
7 O primeiro governo de Getúlio Vargas foi marcado pelo protecionismo econômico à indústria e ao capital 
nacional, desta forma as indústrias estrangeiras eram vistas como exploradoras dos recursos nacionais. 
8 Art. 1º É vedado na indústria, em geral, o trabalho de menores que não hajam completado a idade de 14 anos. 
9 Art. 16. Nos estabelecimentos situados em lugar onde houver escola primaria, dentro do raio de um quilometro, 
será concedido aos menores analfabetos o tempo necessário à frequência da escola. 
Parágrafo único: Os estabelecimentos situados em lugar onde a escola estiver a maior distância e que ocuparem, 
permanentemente, mais de trinta menores analfabetos, de 14 a 18 anos, serão obrigados a manter local 
apropriado em que lhes seja ministrada a educação primária. 
10 Art. 121. A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos 
campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País. 
§1º - A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as 
condições do trabalhador: 
a) proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado 
civil; 
18 
 
vez que não mais poderia ser alterada por lei infraconstitucional. Para o trabalho noturno, 
porém, foi estabelecida a idade mínima de dezesseis anos. 
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, não 
alterou as idades para o trabalho. Ressalta-se, entretanto, que a proteção básica ao trabalhador 
passou a figurar no capítulo destinado unicamente à Ordem Econômica. Uma inovação que 
pode ser apontada foi a criação das escolas vocacionais e pré-vocacionais, tratando a 
Constituição pela primeira vez do ensino técnico11. 
Ressalta Perez (2008) que a criação do ensino técnico não representou uma 
conquista para a população, senão o frutoda necessidade após a mecanização e a 
racionalização do trabalho, ligadas ao desenvolvimento da industrialização. Desta forma, a 
alfabetização tornou-se insuficiente no preparo do obreiro para o mercado de trabalho. 
Em 1943 foi aprovada a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)12, que 
compilou toda a legislação trabalhista vigente até então. Foi dedicado um capítulo à proteção 
do trabalho do menor, tendo sido vedada a prorrogação do trabalho, exceto em situações 
excepcionais13. 
Cita-se que o trabalho em teatros e circos continuou sendo considerado prejudicial 
à moralidade do menor (Art. 405, §1º). Entretanto, caso a representação tivesse caráter 
educativo ou não ofendesse a moralidade do menor ou fosse essencial a sua subsistência ou de 
sua família, poderia ser autorizada, pelo juiz de menores, a participação desses em teatros e 
circos (Art. 406). 
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, não 
trouxe nenhuma inovação no tema, mantendo o disposto na legislação vigente no que toca ao 
 
11 Art 129 - A infância e à juventude, a que faltarem os recursos necessários à educação em instituições 
particulares, é dever da Nação, dos Estados e dos Municípios assegurar, pela fundação de instituições públicas 
de ensino em todos os seus graus, a possibilidade de receber uma educação adequada às suas faculdades, 
aptidões e tendências vocacionais. 
 O ensino pré-vocacional profissional destinado às classes menos favorecidas é em matéria de educação o 
primeiro dever de Estado. Cumpre-lhe dar execução a esse dever, fundando institutos de ensino profissional e 
subsidiando os de iniciativa dos Estados, dos Municípios e dos indivíduos ou associações particulares e 
profissionais. 
 É dever das indústrias e dos sindicatos econômicos criar, na esfera da sua especialidade, escolas de 
aprendizes, destinadas aos filhos de seus operários ou de seus associados. A lei regulará o cumprimento desse 
dever e os poderes que caberão ao Estado, sobre essas escolas, bem como os auxílios, facilidades e subsídios a 
lhes serem concedidos pelo Poder Público. 
12 Ressalta-se que neste capítulo da presente monografia foi considerado o texto original da CLT. Nos próximos 
capítulos, por sua vez, será considerado o texto atualizado. 
13 Art. 413. É vedado prorrogar a duração normal do trabalho dos menores de 18 anos, salvo, excepcionalmente: 
a) quando, por motivo de força maior, que não possa ser impedido ou previsto, o trabalho do menor for 
imprescindível ao funcionamento normal do estabelecimento; 
b) quando, em circunstâncias particularmente graves, o interesse público o exigir; 
c) quando se tratar de prevenir a perda de matérias primas ou substâncias perecíveis. 
19 
 
trabalho do menor. 
 
2.6. Não fale em ditadura, trabalhe 
 
Um golpe de estado, organizado pelas Forças Armadas, levou a cabo a democracia 
e instaurou a ditadura militar no país em 1964, levando à supressão de vários direitos 
individuais e a ingerências de um Estado totalitário na vida dos cidadãos. Naturalmente, tal 
regime influenciou nas relações laborais. 
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, sob a égide da ditadura 
militar, representou um retrocesso na proteção ao trabalho do menor. A idade mínima para o 
trabalho, então de quatorze anos, foi reduzida para doze anos (art. 158, X)14. 
Outro retrocesso é representado pela edição da Lei nº 5.274, de 196715, que 
escalonou o salário do trabalhador menor com base em sua idade ou grau de instrução. Ou 
seja, restaurou-se a vantagem ao empresariado de contratar menores de idade, uma vez que 
voltaram a ser uma mão de obra mais barata. Desta forma, ao menor poderia ser pago um 
valor entre metade e 75% do salário-mínimo então vigente, a saber: 
 
Art. 1º Para menores não portadores de curso completo de formação profissional, o 
salário-mínimo de que trata o Capítulo III do Título II da Consolidação das Leis do 
Trabalho, aprovada pelo Decreto-lei nº 5.452 de 1º de maio de 1943, respeitada a 
proporcionalidade com que vigorar para os trabalhadores adultos da região, será 
escalonado na base de 50% (cinqüenta por cento) para os menores entre 14 
(quatorze) e 16 (dezesseis) anos de idade e em 75% (setenta e cinco) por cento para 
os menores entre 16 (dezesseis) e 18 (dezoito) anos de idade. 
§ 1º Para os menores aprendizes assim considerados os menores de 18 (dezoito) 
anos e maiores de 14 (quatorze) anos de idade sujeitos a formação profissional 
metódica do oficio em que exerçam seu trabalho, o salário-mínimo poderá ser fixado 
em até metade do estatuído para os trabalhadores adultos da região. 
 
Ainda, editou-se um novo Código de Menores16, que, nos moldes do anterior, 
manteve a doutrina da “situação irregular”. Perez (2008) aponta que a visão do código era 
obter o controle social das crianças e adolescentes pobres, que eram enquadradas em uma das 
“patologias sociais” então positivadas. Comentando sobre o trabalho dos menores a autora diz 
que 
 
 
14 Ressalta-se que tal fato contrariou a Convenção 5 e 58 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), então 
vigentes no país. 
15 Tal lei vigorou por sete anos, até ser revogada pela Lei nº 6.086 de 1974. 
16 Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979 
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del5452.htm
20 
 
[...] não obstante previsão normativa proibitiva de seu ingresso no mercado de 
trabalho antes dos doze anos, como também em condições insalubres e perigosas 
antes dos dezoito anos, tal determinação não lograva êxito em seu cumprimento 
tendo em vista que a doutrina da situação irregular, claramente direcionada aos 
menores de dezoito anos pertencentes à classe econômica menos favorecida, lhes 
atribuía o peso do trabalho como forma de socialização. (p. 57). 
 
Apesar das represálias típicas de um regime ditatorial, a década de oitenta foi 
marcada pelos movimentos pela redemocratização do país. O maior deles foi o Diretas Já, que 
pleiteava a eleição direta para presidente da República, e que não teve sucesso. O primeiro 
presidente civil após a ditadura foi eleito por eleições indiretas, a saber, Tancredo Neves, que 
faleceu antes de sua posse. Ainda assim era um presidente civil, e, com isso, a ditadura militar 
chegou ao fim. 
José Sarney, o vice de Tancredo Neves, assumiu a Presidência da República, e foi 
convocada a Assembleia Constituinte de 1987. Perez (2008) aponta que houve uma grande 
mobilização para que a nova Carta Constitucional expressasse os direitos e garantias das 
crianças e dos adolescentes. 
De fato, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 pautou-se no 
princípio da dignidade da pessoa humana, erigindo-o como núcleo de todo o sistema jurídico. 
Em relação às crianças e aos adolescentes, foi adotado o princípio da proteção integral e do 
melhor interesse, que será melhor abordado no capítulo seguinte. 
Por fim, cita-se que o texto constitucional vigente reconheceu a proteção do 
trabalhador, incluindo o menor, como direito social. Anteriormente, tal proteção era tratada na 
disciplina da ordem econômica (CF/37) ou da ordem econômica e social (as demais). Como 
garantias ao trabalho do menor, foi constitucionalizada a idade mínima de quatorze anos para 
o trabalho e proibido o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de dezoito anos. 
 
 
 
21 
 
3 A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO 
ADOLESCENTE 
 
Ao romper com o regime ditatorial, a Constituição da República Federativa do 
Brasil de 1988 também trouxe em seu texto inúmeros direitos e garantias fundamentais. 
Machado, em sua obra A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos 
Humanos (2003), aponta que a CR/88 traz uma concepção unitária dos direitos humanos. 
Desta forma, haveria uma interdependência entre os “direitoscivis” e os “direitos sociais”, e 
só se alcançaria a efetividade plena de uma dessas “classes” quando a outra também estivesse 
satisfeita. 
Em relação às crianças e adolescentes, o texto constitucional vigente adotou 
expressamente, no parágrafo 3º do art. 227, a doutrina da proteção integral à criança e ao 
adolescente, podendo também ser encontrada em outras passagens do texto constitucional. 
Machado aponta que o núcleo desta proteção 
 
é a noção de que sem a efetivação dos chamados “direitos sociais” de crianças e 
adolescentes – especialmente educação, saúde, profissionalização, direito ao não-
trabalho no seu particular imbrincamento com direito à alimentação – não se logrará 
material proteção a seus direitos fundamentais. (2003, p. 136) 
 
3.1 Breve contexto histórico internacional 
 
Leciona José Afonso da Silva, em seu Curso de Direito Constitucional Positivo 
(2016), que as primeiras declarações de direitos humanos foram concebidas sob influência do 
Iluminismo, ainda no séc. XVIII, como a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia 
(Estados Unidos da América, 1776) e a Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão 
(França, 1789). Entretanto, tais declarações regionalizadas não tinham força internacional, 
uma vez que se possuíam validade limitada ao sistema jurídico no qual foram firmadas. 
Durante a Primeira Guerra Mundial, em 1919, com o Tratado de Versalhes, criou-
se a Liga das Nações, uma instituição internacional que buscava a paz entre as nações. De 
acordo com dados obtidos no sítio virtual da Organização das Nações Unidas (ONU) 17, a 
Liga das Nações deixou de existir por causa da impossibilidade de evitar a II Guerra Mundial. 
Após a Segunda Guerra Mundial, criou-se, em 24 de outubro de 1945, a 
 
17 < http://www.onu.org.br/> 
http://www.onu.org.br/
22 
 
Organização das Nações Unidas, uma organização mundial composta por países que se 
reuniram voluntariamente para trabalhar pela paz e pelo desenvolvimento mundial. 
Aduz Jose Afonso da Silva (2016) que a preocupação com os direitos 
fundamentais levou à criação, na ONU, de uma Comissão dos Direitos do Homem, 
responsável pela edição da “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, que erigiu a 
dignidade da pessoa humana como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. 
Ademais, em 1959, baseada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, a 
ONU promulgou a Declaração Universal dos Direitos da Criança, que pode ser considerada o 
precedente da doutrina da proteção integral. 
Em relação ao trabalho infantil propriamente dito, a proteção por meio de normas 
internacionais é anterior até mesmo às declarações de direitos. Com o fim da Primeira Guerra 
Mundial, em 1919, criou-se, como parte do Tratado de Versalhes, a Organização Internacional 
do Trabalho (OIT) 18, fundada sobre a convicção primordial de que a paz universal e 
permanente somente pode estar baseada em justiça social. 
Como exemplos de legislação internacional protetiva do trabalho do menor cita-se 
a Convenção nº 5, que trata da Idade Mínima de Admissão nos Trabalhos Industriais, e a 
Convenção nº 6, tratando do Trabalho Noturno dos Menores na Indústria. Ambas foram 
editadas pela OIT e aprovadas em 1919. 
Entretanto, a existência de tratados internacionais não foi o suficiente para efetivar 
a proteção ao menor. Perez aponta que 
 
o quadro de exploração da mão-de-obra dos pequenos ao redor do mundo, apesar da 
existência de vasto conteúdo normativo emanado pela Organização Internacional do 
Trabalho e das orientações políticas acerca da garantia dos direitos fundamentais do 
grupo, fez com que a ONU, no ano de 1989 – trinta anos após a proclamação da 
Declaração dos Direitos das Crianças – editasse a Convenção sobre os Direitos das 
Crianças, positivando em caráter universal as normas de tutela dos direitos humanos 
da comunidade. (2008, p. 69) 
 
3.2 Diplomas legais vigentes no Brasil 
 
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88) reconhece a 
 
18 A OIT é responsável pela formulação e aplicação das normas internacionais do trabalho (convenções e 
recomendações). As convenções, uma vez ratificadas por decisão soberana de um país, passam a fazer parte 
de seu ordenamento jurídico. O Brasil está entre os membros fundadores da OIT e participa da Conferência 
Internacional do Trabalho desde sua primeira reunião. Mais informações podem ser obtidas no sítio virtual do 
Escritório no Brasil da OIT, a saber <http://www.ilo.org/brasilia/lang--pt/index.htm> 
http://www.ilo.org/brasilia/lang--pt/index.htm
23 
 
condição da criança como indivíduo em formação, sendo dever do Estado, da família e da 
sociedade assegurar-lhes, com absoluta prioridade, as condições necessárias ao seu 
desenvolvimento, tais como saúde, educação, lazer, etc19. 
A proteção integral, por sua vez, encontra-se expressa nos diversos incisos do 
parágrafo terceiro do art. 207 da CR/88, a saber: 
 
§ 3º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: 
I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto 
no art. 7º, XXXIII; 
II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; 
III - garantia de acesso do trabalhador adolescente e jovem à escola; 
IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, 
igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo 
dispuser a legislação tutelar específica; 
V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição 
peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida 
privativa da liberdade; 
VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e 
subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou 
adolescente órfão ou abandonado; 
VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente 
e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins. 
 
Desta forma, ao colocar toda a sociedade e o próprio Estado, além da família, 
como responsáveis por fornecer condições que propiciem o desenvolvimento das crianças e 
adolescentes, a CR/88 estabelece diversos aspectos a serem observados no cumprimento desse 
ônus. 
Não é difícil concluir que tais direitos não são compatíveis com o Código de 
Menores de 1979, elaborado sob a égide da chamada “situação irregular”. E, ainda, conclui-se 
que, ao ser positivada na CR/88, a doutrina da proteção integral sai do campo meramente 
teórico, passando seu cumprimento a ser um imperativo legal que não mais poderia ser 
ignorado. 
Na esteira da CR/88, e dada a necessidade de um novo diploma legal que 
regulamentasse os aspectos ali elencados, foi promulgado, em 13 de julho de 1990, por meio 
 
19 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com 
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à 
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a 
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 
24 
 
da Lei nº 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que dispôs sobre a proteção 
integral à criança e ao adolescente. 
Aqui, cabe apontar o fato do ECA ter trazido dois conceitos distintos, o de 
criança, que é o indivíduo com até doze anos de idade, e o de adolescente, que é o indivíduo 
com idade entre doze anos completos até dezoito incompletos. 
 
3.3 Princípios da proteção integral 
 
Amin (2011), em capítulo intitulado “Princípios Orientadores do Direito da 
Criança e do Adolescente”, contido na obra “Curso de Direito da Criança e do Adolescente:aspectos teóricos e práticos”, aponta como materializadores da noção de proteção integral três 
princípios gerais: princípio da prioridade absoluta, princípio do melhor interesse e princípio 
da municipalização. Segundo a autora, o princípio da prioridade absoluta 
 
estabelece primazia absoluta em favor das crianças e dos adolescentes em todas as 
esferas de interesses. Seja no campo judicial, extrajudicial, administrativo, social ou 
familiar o interesse infanto-juvenil deve preponderar. Não comporta indagações ou 
ponderações sobre o interesse a tutelar em primeiro lugar, já que a escolha foi 
realizada pela nação através do legislador constituinte. (p. 22) 
 
Tal princípio, como já dito, encontra-se positivado na CR/88. Também se encontra 
de forma expressa no ECA, a saber: 
 
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público 
assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à 
saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à 
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. 
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: 
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; 
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; 
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; 
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a 
proteção à infância e à juventude. 
 
Mais adiante, o ECA traz uma norma interpretativa de como deve ser efetivada a 
prioridade conferida à criança e ao adolescente, dispondo que “a interpretação e aplicação de 
25 
 
toda e qualquer norma contida nesta Lei deve ser voltada à proteção integral e prioritária 
dos direitos de que crianças e adolescentes são titulares” (art. 100, parágrafo único, II). 
O Supremo Tribunal Federal (STF), em 2010, por decisão da lavra do Ministro 
Celso de Mello, afirmou que, embora a Administração Pública possua discricionariedade para 
atender normas programáticas, ela não pode se esquivar do cumprimento de tais normas 
quando estas estabelecem direitos de crianças e adolescentes. Afirma o STF que 
 
a ineficiência administrativa, o descaso governamental com direitos básicos da 
pessoa, a incapacidade de gerir os recursos públicos, a falta de visão política na justa 
percepção, pelo administrador, do enorme significado social de que se reveste a 
proteção à criança e ao adolescente, a inoperância funcional dos gestores públicos na 
concretização das imposições constitucionais não podem nem devem representar 
obstáculos à execução, pelo Poder Público, da norma inscrita no art. 227, “caput”, da 
Constituição da República, que traduz e impõe, ao Estado, um dever inafastável, sob 
pena de a ilegitimidade dessa inaceitável omissão governamental importar em grave 
vulneração a um direito fundamental e que é, no contexto ora examinado, a proteção 
integral da criança e do adolescente. (RE 482611/SC, julgado em 23/03/2010) 
 
Desta forma, é plenamente cabível o controle jurídico das atuações estatais 
negativas, como por exemplo a não realização de matrícula da criança ou adolescente em 
escola próxima à sua residência ou a negativa de determinado tratamento médico sob o 
argumento que ele não está disponível na rede pública de saúde. Assim, existem diversas 
decisões judiciais determinando, exatamente, tal matrícula, ou a disponibilização do 
tratamento médico, dentre outros exemplos que poderiam ser elencados. 
Sobre o princípio do melhor interesse, por sua vez, leciona Amin que: 
 
Trata-se de princípio orientador tanto para o legislador como para o aplicador, 
determinando a primazia das necessidades da criança e do adolescente como critério 
à interpretação da lei, deslinde de conflitos, ou mesmo para elaboração de futuras 
regras. 
Assim, na análise do caso concreto, acima de todas as circunstâncias fáticas e 
jurídicas, deve pairar o princípio do melhor interesse, como garantidor do respeito 
aos direitos fundamentais titularizados por crianças e jovens. (2011, p. 34) 
 
Tal princípio já se encontrava positivado no antigo Código de Menores de 1979, 
encontrando-se também presente no ECA. A diferença é que, enquanto naquele destinava-se 
apenas ao menor em situação irregular, neste destina-se a todo o público infanto-juvenil. 
Sua maior aplicação no campo jurisprudencial dá-se nos litígios envolvendo 
interesses familiares, uma vez que, nesses casos, para além das circunstâncias fáticas, deve-se 
analisar o melhor interesse da criança. Por exemplo, na hipótese de uma separação judicial 
26 
 
decorrente de traição, o fato de um cônjuge trair o outro não significa que ele não é um bom 
genitor, não devendo ser determinante na escolha da guarda da criança, que, via de regra, é a 
compartilhada. 
Outra interessante aplicação do princípio do melhor interesse é seu uso na 
fundamentação de decisões de habeas corpus de mães lactantes, concedendo a essas o direito 
à prisão domiciliar. Cita-se, por exemplo, a seguinte ementa de decisão: 
 
Habeas Corpus. 2. Tráfico ilícito de entorpecentes. Conversão da prisão em 
flagrante em preventiva. 3. Segregação cautelar mantida com base, apenas, na 
gravidade abstrata do crime. 4. Ausência de fundamentação idônea. Decisão 
contrária à jurisprudência dominante desta Corte. Constrangimento ilegal 
configurado. 5. Decisão do STJ que indeferiu liminarmente habeas corpus sem 
adentrar no mérito. Supressão de instância. Superação. 6. Paciente lactante. Garantia 
aos princípios da proteção à maternidade, à infância e do melhor interesse do menor. 
7. Ordem concedida para revogar o decreto prisional expedido em desfavor da 
paciente, sem prejuízo da análise da aplicação de medidas cautelares previstas no 
art. 319 do CPP. 
(HC 130685, julgado em 03/11/2015, Rel. Min. Gilmar Mendes) 
 
Por fim, cita-se acórdão do TJ/SC demonstrando que, mesmo em frente aos 
interesses familiares conflitantes e em situações delicadas, a prevalência deve ser sempre do 
melhor interesse do menor, ainda que aplicar tal princípio signifique retirar a criança da 
convivência familiar. 
 
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ADOÇÃO. ASSASSINATO DA GENITORA 
PELO MARIDO. PRETENSA ADOÇÃO DA FILHA DO CASAL DE TRÊS ANOS 
DE IDADE PELOS TIOS MATERNOS. INEXISTÊNCIA DE VANTAGENS. 
ANIMOSIDADE ENTRE AS FAMÍLIAS MATERNA E PATERNA EM RAZÃO 
DO CRIME OCORRIDO. ESTUDO SOCIAL DESFAVORÁVEL. PREVALÊNCIA 
DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. SENTENÇA DE 
IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. A adoção somente 
será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando, caso contrário, 
demonstrado que a família substituta não pode oferecer um ambiente familiar 
adequado, o indeferimento do pedido é medida que se impõe. (TJ-SC - Apelação 
Cível AC 110748 SC 2009.011074-8 (TJ-SC) Data de publicação: 27/07/2009) 
 
O princípio da municipalidade, por sua vez, trata da atuação concorrente dos entes 
federativos visando garantir a proteção integral. A despeito de sua importância, dada as 
especifidades do objeto de estudo, não se faz necessária a análise pormenorizada. 
Apesar da persistência de descumprimentos esporádicos, a doutrina da proteção 
http://tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6548216/apelacao-civel-ac-110748-sc-2009011074-8
http://tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6548216/apelacao-civel-ac-110748-sc-2009011074-8
27 
 
integral ganhou força em terras brasileiras. Conforme demonstrado pelas jurisprudências 
citadas, é recorrente seu uso na fundamentação de decisões judiciais. Tal fato mostra que, em 
caso de descumprimento, as portas do judiciário estão abertas para garantir sua efetivação. 
 
 
28 
 
4 O TRABALHO ARTÍSTICO INFANTIL 
 
Conforme previsão do ECA, a criança e o adolescente têm direito ao acesso à 
cultura. Porém, não se pode confundir as atividades artísticasrealizadas com escopo 
meramente educativo e/ou recreativo com aquelas em que há uma finalidade lucrativa e 
comercial. 
Para fins desde trabalho adotou-se o conceito de trabalho artístico apresentado por 
Sandra Regina Cavalgante, em sua obra “Trabalho Infantil Artístico: do deslumbramento à 
ilegalidade” (2012), qual seja: “é trabalho infantil artístico quando o desempenho da criança 
ou adolescente será explorado comercialmente por terceiros” (p. 46). Complementa a autora 
ainda que “[...] não importa se houve contrapartida econômica ao artista mirim pelo seu 
trabalho” (p. 46). 
 
4.1. Aspectos sociais 
 
Apesar da regulamentação narrada nos capítulos anteriores, o trabalho infantil é, e 
sempre foi, um problema social brasileiro. O Relatório Final da Comissão Parlamentar de 
Inquérito destinada a apurar a exploração do trabalho infantil no Brasil (CPI do Trabalho 
Infantil), de dezembro de 2014, traz dados do Censo de 2010 mostrando que, das 3,6 milhões 
de crianças e adolescentes entre 10 e 15 anos que exerciam atividade laboral, 58% laboravam 
em atividades de lavoura e pecuária. Tais atividades oferecem inúmeros riscos aos obreiros, 
como exposição ao calor solar, contato com agentes químicos (como pesticidas), contato com 
itens perfuro cortantes (foices, facões, etc), em suma, podem vir a ser caracterizadas como 
insalubres e/ou perigosas. 
Campos (2012), em sua obra “Proposições jurídicas: fontes de proteção social ao 
trabalho infantil”, por sua vez, aponta que o trabalho é, por vezes, visto pela criança e pelo 
adolescente como forma de conseguir recursos financeiros, ainda que isso possa prejudicar 
sua integridade e perverter a sua efetiva profissionalização. Assim, por mais que o trabalho 
infantil traga diversas consequências negativas, como dificuldade de crescimento, problemas 
de saúde e exclusão educacional, ele ainda é visto como alternativa de geração de renda pelo 
menor e por sua família. 
Tal fato não causa espanto, uma vez que a matriz cultural do Brasil remonta a isso. 
Na escravidão, era plenamente aceitável e comum o trabalho dos filhos dos escravos. Após, ao 
29 
 
final do século XIX e início do século XX, era também aceitável o trabalho de crianças para 
ajudar na composição da renda familiar. E, ainda, vigeu no Brasil dois Códigos de Menores 
que exaltavam o trabalho como forma de engrandecimento pessoal e fuga da vida na 
delinquência. 
Como já dito, diferentemente das atividades que geram comoção e revolta quando 
empregam menores, ou daquelas mais aceitas socialmente, o trabalho infantil é visto 
socialmente com certa “glamourização”, havendo uma cultura de plena aceitabilidade, em 
dois setores específicos: o trabalho infantil artístico e o trabalho desportivo. O Relatório Final 
da CPI do Trabalho Infantil informa que, nesses casos: 
 
As próprias famílias estimulam o trabalho infantil artístico e desportivo; muitas 
retiram do mercado de trabalho um de seus membros para acompanhar a criança e o 
adolescente que se destaca nesses campos. O jovem trabalhador passa ser, assim, a 
principal fonte de renda da família e o seu principal veículo de ascensão social. 
(BRASIL, 2014, p. 23) 
 
O trabalho artístico infantil pode ser enquadrado como uma forma sofisticada e 
oportunista do labor de menores, uma vez que, além de ser incentivado pela família, a vida do 
artista é tida pela sociedade como ideal a ser atingido, conforme será mostrado adiante. 
Cavalcante comenta com maestria tal cenário: 
 
não é a vida do cientista ou do artista plástico que é repetidamente exposta em 
revistas populares e na própria mídia televisiva, mas sim a vida “deslumbrante” e 
bem remunerada da atriz, modelo, cantor ou jogador, que é tomada como único ideal 
de futuro bem-sucedido para crianças e adolescentes, bem como por seus pais. 
(2012, p. 47) 
 
4.1.1 Ei-lo: sucesso. Busque-o! 
 
Soma-se a isso os exemplos “de sucesso”, frequentes na sociedade e na mídia 
brasileira. Um deles é o de Maísa Silva20, descoberta em uma atração televisiva quando ainda 
tinha três anos de idade e, posteriormente, contratada por uma emissora nacional para 
apresentar programas infantis. Atualmente, aos quinze anos, a adolescente é atriz e 
apresentadora, além de atuar em diversas campanhas publicitárias. 
Devido a um incidente ocorrido nas gravações de uma cena de um programa 
dominical, as condições do trabalho artístico exercido por ela chamaram a atenção do 
 
20 Informações obtidas no sítio virtual da adolescente, a saber < https://maisasilva.com.br/>. 
https://maisasilva.com.br/
30 
 
Ministério Público do Trabalho, que ajuizou ação civil pública21 visando que a emissora para 
a qual a menina prestava serviços não contratasse mais crianças e adolescentes com menos de 
16 anos, salvo como aprendiz. Almejou-se também a proibição desses menores atuarem em 
programas artísticos, e de serem expostos a situações vexaminosas, humilhantes ou 
psicologicamente perturbadoras, como a ocorrida com a apresentadora Maísa. 
O Parquet laboral não conseguiu sucesso em sua demanda. Da decisão do juízo 
de primeiro grau, destaca-se: 
 
Em resumo, não seria jurídico nem tampouco justo no presente caso que, por conta 
de uma violação pontual praticada pela ré, já devidamente coibida pelo juízo 
competente, este juízo impedisse que esta contratasse menores devidamente 
autorizados para participar de seus programas, o que implicaria inclusive em ceifar a 
carreira de diversos menores que, por seu talento pessoal, estão tendo condições 
melhores de vida pessoal e financeira, para si e seus familiares. A ré é empresa que 
atua no segmento artístico à (sic) décadas, já promoveu diversos artistas mirins e os 
viu passar da infância para a juventude e da juventude para a idade adulta, sem que 
tivesse sua conduta questionada, pelo que não pode por um ato pontual ter todo seu 
trabalho desmerecido. Tem seus defeitos? Seguramente que sim. Tem suas virtudes? 
Isso também é inegável (sublinhas supridas) 
 
Ou seja, a visão social de que o trabalho infantil pode proporcionar uma vida 
melhor foi reconhecida judicialmente e utilizada como motivação para continuar permitindo 
tal prática. Tal argumento prevaleceu, uma vez que a decisão não foi reformada nas instâncias 
superiores. 
No campo musical, um grande exemplo são os funkeiros mirins: crianças e 
adolescentes que, com a mais tenra idade, despontaram em uma carreira com composições e 
videoclipes, via de regra, com conteúdo inadequado para sua idade. 
Cita-se o caso do MC Pedrinho, que, com apenas doze anos fez sucesso com o hit 
“Dom, dom, dom”, composição musical com forte apelo sexual. Aos treze anos, o MC foi 
proibido judicialmente de fazer shows, sob o argumento da Promotoria de Justiça de Santana, 
em São Paulo, de que os shows do adolescente 
 
 
21 AIRR - 98000-62.2009.5.02.0382. Narra o MPT que “segundo notícia pinçada na internet, apresentadora 
Maisa, após se deparar com outra criança caracterizada como um monstro, correu chorando e gritando 
desesperadamente pelo palco, além de ser vítima de gracejos e comentários inadequados proferidos pelo 
apresentador Sílvio Santos (doc. 19). E sem embargo do susto e do pavor causado à criança, a infeliz 
brincadeira levou a menina Maisa a bater com a cabeça em uma das câmeras instaladas no palco do 
Programa, tendo, ainda, sua mãe, negado-lhe amparo. (doc. 20).” Disponível em 
<http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&nu
meroTst=98000&digitoTst=62&anoTst=2009&orgaoTst=5&tribunalTst=02&varaTst=0382> Acesso em 
04/10/2016. 
http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=98000&digitoTst=62&anoTst=2009&orgaoTst=5&tribunalTst=02&varaTst=0382
http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=98000&digitoTst=62&anoTst=2009&orgaoTst=5&tribunalTst=02&varaTst=038231 
 
violam a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Convenção na 
ONU sobre os direitos da criança, notadamente pelo conteúdo das canções que interpreta, 
com alto teor de erotismo, pornografia, e palavras baixo calão, incompatíveis com a 
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento22. 
 
Posteriormente, os pais do adolescente realizaram acordo com o Ministério Público 
para que os shows fossem retomados, com a condição de que o adolescente não poderia realizar 
apresentações noturnas e para o público adulto. Os shows para o público infanto-juvenil, por sua 
vez, deveriam ser diurnos e em locais com classificação própria para a faixa etária. Ainda, a 
frequência do MC à escola deveria ser comprovada judicialmente. 
Após o acordo, comprovando a tese de que o trabalho artístico infantil é visto como 
forma de ascensão social, a primeira composição lançada pelo MC relata exatamente a música 
sendo vista por Pedrinho como forma de gerar uma melhor condição de vida à sua família. 
Destaca-se o trecho: 
 
Acordei relembrei dos passados meus 
E de um grande sonho de um menino que aconteceu 
Mas era uma vez, um menino sonhador 
Orava toda noite, pedindo para o senhor 
 
Queria dar à minha família o melhor de mim 
Ter fé e esperança pra um dia ser MC 
Dar a casa pra minha coroa é o que eu to querendo 
Ver meus irmãos feliz e não ver eles sofrendo23 
 
Maísa e Pedrinho, que aqui representam inúmeros outros, para além de 
demonstrarem e comprovarem que a carreira artística efetivamente pode trazer um resultado 
positivo para os menores, ao menos do ponto de vista financeiro, materializam tal resultado, 
sendo vistos como exemplos a serem seguidos. 
Ocorre que nem só de glória é composta a exposição artística. Assim, o sucesso 
atingido nem sempre representa o melhor interesse da criança e do adolescente, e, por vezes, 
as crianças e adolescentes não conseguem compreender o motivo de tal atividade não serem o 
melhor para elas no momento. Buscando elucidar melhor tal questão, será mostrada uma visão 
da psicologia sobre a temática. 
 
22 Devido ao sigilo processual em autos que tenham por partes crianças e adolescentes, as informações 
apresentadas sobre o MC Pedrinho foram retiradas do veículo midiático G1 <www.g1.globo.com >. Destaca-
se que, no caso da Maísa, onde obteve-se acesso ao conteúdo do processo, os autos tramitaram na Justiça do 
Trabalho, e a adolescente não era parte no processo. Tratava-se de uma ação civil pública movida pelo 
Ministério Público do Trabalho da 2ª Região em face da TV SBT Canal 4 De São Paulo S.A. 
23 Disponível em <https://www.letras.mus.br/mc-pedrinho/menino-sonhador/> 
http://www.g1.globo.com/
https://www.letras.mus.br/mc-pedrinho/menino-sonhador/
32 
 
4.2 Aspectos psicológicos 
 
Ainda que que a sociedade veja o trabalho artístico infantil com certa 
glamourização e como forma de ascensão social, não se pode olvidar que também se trata de 
uma forma de apropriação da mão de obra infantil. 
Via de regra, o trabalho artístico não expõe o menor a condições penosas, 
perigosas ou insalubres como outras formas de trabalho infantil socialmente mal vistas (a 
exemplo do trabalho em lavoura, carvoarias, prostituição, etc). Pelo contrário, o trabalho 
artístico proporciona, de certa forma, uma faceta de expressão da personalidade, podendo ser 
visto inclusive como uma forma de acesso à cultura. Entretanto, o trabalho no meio artístico 
também pode trazer consequências, devido à fama e à exposição precoce, ao desenvolvimento 
da criança e do adolescente, conforme será demonstrado adiante. 
Comentando o tema, a Ministra Kátia Arruda, em entrevista publicada no sítio 
virtual do TST sobre o trabalho artístico infantil, alertou que: 
 
O estresse permanente que envolve a atividade artística, aliado às obrigações 
contratuais com horários, regras, além da possibilidade de exposição a diversos 
fatores de risco podem causar prejuízos psicológicos irreversíveis. Além disso, é 
comum o abandono ou descontinuidade escolar com defasagem na aprendizagem. 
[...] Já foi comprovado que a aparição de crianças em propagandas rende maior 
atenção ao produto que está sendo anunciado e em busca do lucro, muitas crianças 
são exploradas. 
 
Há um esforço necessário para se atingir um resultado de sucesso. Isso é comum a 
todas as profissões, porém, aponta Cavalgante (2012) que na carreira artística há uma 
intensificação, uma vez que as pessoas tendem a apreciar apenas a arte, resultado final de um 
trabalho que envolve pressão e sacrifício. No trabalho artístico infantil, aponta a autora, tal 
situação de esforço intensifica-se, por se tratar de um sujeito mais frágil. 
A autora complementa que: 
 
A questão é saber quais os limites adequados de tal participação, pois não é tão 
simples perceber quando uma atividade que gera prazer, estímulo e desenvolvimento 
à criança e ao adolescente se transforma em opressão e esforço prejudicial com 
consequências físico-psico-emocionais.(2012, p. 50) 
 
Em síntese, a autora conclui que “o trabalho infantil na televisão não é uma 
atividade cultural, que estimula o desenvolvimento da criança, mas sim um trabalho árduo, 
33 
 
que exige esforço, dedicação e compromisso.” (2012, p. 50). Não se nega que o trabalho 
artístico possa trazer benefícios aos pequenos, entretanto, desde já se deixa claro que qualquer 
omissão na vigilância dos limites à tal atividade pode trazer problemas de difícil gestão. 
 
4.2.1 Escalando o Olimpo 
 
Lacombe (2006), em sua tese de mestrado em psicologia intitulada “A infância 
dos bastidores e os bastidores da infância: uma experiência com crianças que trabalham em 
televisão” narra sua experiência como psicóloga com crianças que trabalhavam na TV24. 
Buscando uma visão da psicologia, em uma perspectiva interdisciplinar, o presente trabalho 
compartilhará algumas de suas lições. 
Inicialmente, Lacombe (2006) aponta que a visão de infância não é única e 
imutável. É uma visão construída numa perspectiva social e histórica, não vendo a criança 
como algo universal, mas sim uma construção histórica atravessada pela cultura. Partindo de 
tal pressuposto, “podemos olhar para a criança como um outro que é potente e que tem algo a 
contribuir, que tem voz. Um sujeito produtor e crítico da cultura que o constitui e que é 
constituída por ele, um sujeito da linguagem” (2006, p. 30). 
Desta forma, construiu-se uma infância contemporânea, marcada pela cultura do 
consumo propagada pela mídia e cada vez mais antenada com o mundo adulto. 
Contraditoriamente, nesta nova infância as crianças estão cada vez mais afastadas dos pais, 
distantes e afastados socialmente. Abre-se um hiato entre o mundo adulto e o mundo infantil, 
no qual “a TV ocupa um lugar privilegiado no contexto infantil, tornando-se companheira, 
interlocutora, educadora e generosa no fornecimento de modelos que estão em falta pelo 
pouco contato cotidiano com os adultos” (2006, p. 38). 
Nessa nova infância, não há mais espaço para o mito: praticamente toda a 
informação está disponível às crianças. A TV e outras mídias mostram-lhes diretamente os 
bastidores do mundo adulto. Somado a tudo isso, encontra-se a difusão dos ideais de 
consumo, em uma mídia cada vez mais voltada para as crianças. Assim, elas acabam por 
compartilhar dos mesmos ideais dos adultos, como, por exemplo, o de entrar para a televisão 
e de ser famosa. 
Lacombe (2006) aponta que a psicanálise traz uma reflexão sobre a importância 
 
24 A autora narra ter trabalhado em três equipes de produção, com vinte crianças e adolescentes, com idade entre 
três e quatorze anos. 
34 
 
da imagem no processo de subjetivação e construção de laços sociais. Soma-se a isso a ação 
do consumo no cotidiano e chega-se ao resultado de que ser uma celebridade, no “varejodas 
imagens”, é uma valiosa mercadoria. Nas palavras da autora, 
 
Se concordamos que o contexto contemporâneo ampliou o contato cotidiano da 
criança com a televisão (e outras mídias) — seja porque tem uma linguagem que não 
exige aprendizagem, como diz Postman, seja porque seu tempo livre foi privatizado 
e sua casa equipada tecnologicamente, como mostra Buckingham —, podemos 
concluir que os ideais midiáticos povoam tanto o universo infantil quanto o universo 
adulto. (2006, p. 80) 
 
A autora aponta o papel de programas como os da Xuxa e da Angélica, exibidos 
na década de 80 e 90, como propulsores de mudanças na relação da TV com o telespectador 
criança. Era um formato de programa no qual as apresentadoras compartilhavam sua 
intimidade com o público, atrelando à sua imagem o glamour e a bondade. Além disso, havia 
a presença de crianças no cenário, o que gerava nas crianças a perspectiva de entrar na TV e 
brincar com o ídolo. Assim, é “possível que esse novo formato também tenha afetado a 
relação que essa geração de crianças experimenta com a TV: entrar na TV já não é mais pura 
imaginação, mas sonho perfeitamente realizável” (2006, p. 82). 
De fato o sonho é mesmo possível. Até mesmo pelo impacto da criança “atrás das 
câmeras”, que traz inúmeros benefícios e um apelo midiático imenso. Ocorre que, ao entrar na 
TV, a criança depara-se com o mundo por trás dos bastidores. Um mundo marcado pela 
velocidade, onde não necessariamente há espaço para ser criança. 
 
4.2.2 Luz! Câmera! Ação! 
 
Naturalmente, a criança possui especificidades e limitações que muitas vezes não 
são bem vistas pelo sistema “por trás das câmeras”. Lacombe (2006) aponta que há uma 
visão, nas situações cotidianas que as crianças passam nos bastidores, que são elas que devem 
se adequar ao sistema, e não que o sistema é inadequado a elas. 
Lacombe define tal situação como a infância dos bastidores, definindo-a como 
 
uma infância marcada por uma relação intensa com a televisão como audiência, 
conhecedora e interessada na vida de suas “celebridades” — interesse adultizado — 
e que, como os adultos de uma forma geral, almeja o sucesso, a fama e a exposição 
35 
 
na mídia. No entanto, a especificidade da infância caracterizada pela “experiência de 
sua não soberania25” (Jobim e Souza, Pereira, 1998, p. 35) também está presente. 
(2006, p. 90). 
 
Tal infância estaria envolvida em um universo tipicamente adulto, e os adultos que 
o habitam precisam reconhecer as especifidades do “ser criança” para que as entenda. 
Haveria, assim, um conflito de demandas entre o que se espera da criança e o que ela deseja e 
necessita. “Num ambiente adulto de trabalho, o comportamento tipicamente infantil, muitas 
vezes, aparece como o desvio” (2006, p. 90). E, ainda, o fato da criança ser menor por vezes é 
usado contra ela para identificar o limite do que a equipe de produção aceita dentro daquele 
ambiente. Aduz Lacombe que 
 
Assim, uma equipe é capaz de tolerar os mais “exóticos” comportamentos de 
grandes estrelas, mas, geralmente, repudiam qualquer indício (segundo suas 
interpretações) de “estrelismo” nas crianças. Comportamentos desse tipo são vistos 
como inaceitáveis numa criança. O paradoxo aqui fica por conta de ser a criança 
muito mais suscetível, por ter menos instrumentos e menos clareza de toda a 
dimensão da situação, a um certo deslumbramento com todo o glamour que envolve 
a sua condição de famosa. Enquanto os adultos de uma equipe se submetem e 
toleram situações muitas vezes humilhantes de estrelas adultas, não toleram 
qualquer sinal que interpretem como estrelismo numa criança. (2006, p. 102) 
 
 
Ao relatar sobre os momentos de descanso, Lacombe (2006) aponta que, por 
vezes, as crianças escolhem a televisão como brincadeira, ou seja, escolhem dramatizar e 
imitar a realidade que lhes cerca. Para a autora, tal escolha aponta um potencial 
reconhecimento e identificação com o que representam, bem como “o quanto brincadeira e 
trabalho, ficção e realidade se misturam” (2006, p. 91). 
Apesar de tudo isso, a autora aponta que a infância definitivamente não é 
suprimida dentro dos bastidores. Quando da presença de adultos que entendem e acolhem as 
crianças como crianças que são, elas podem continuar o sendo, sem uma submissão, 
obediência e repressão por parte dos adultos. Ou seja, uma vez que a infância não é aniquilada 
dentro dos bastidores abre-se a possibilidade de o trabalho artístico infantil ser realizado de 
forma não danosa para a criança. Apresentada uma breve análise do que acontece dentro dos 
estúdios, comentar-se-á sobre a influência do trabalho artístico no cotidiano dos pequenos. 
 
 
25 A “experiência da não soberania” seria, para os mencionados autores, a marca da identidade da “natureza 
infantil” enquanto alegoria de uma capacidade humana de “desencantar (ou reencantar) o mundo da razão 
instrumental...” (LACOMBE, 2006, p. 102/103) 
36 
 
4.2.3 Corta! 
 
Em relação ao mundo fora da televisão, o fato de ter tido uma infância famosa 
também pode afetar a vida das crianças de várias formas. Uma delas é a questão monetária. 
Por lei, um dos pais, ou algum outro acompanhante, necessita estar presente nos estúdios de 
gravação. Desta forma, por vezes algum membro da família abandona sua carreira 
profissional para acompanhar a da criança, o que acaba por afetar o orçamento doméstico. 
Todos os responsáveis pelas crianças do grupo com o qual Lacombe trabalhou 
afirmaram depositar parte do salário das crianças na poupança. Porém, em 60% dos casos o 
dinheiro das crianças era utilizado para ajudar nas despesas em casa. Assim, a autora aponta 
que tais crianças teriam uma “infância e adolescência parcialmente protegida” (2006, p. 88), 
uma vez que, ainda que tenham o apoio dos pais, são também responsáveis, em parte, pelo 
sustento da casa. 
Outro aspecto importante apontado pela autora é o aspecto de transitoriedade da 
condição que as crianças se encontram, assim, é necessário que as crianças sejam alertadas e 
tenham consciência que podem voltar a ser “normais” facilmente, bastando se afastarem da 
mídia. Há o risco ainda de tais crianças colocarem “a atividade de fazer TV acima até mesmo 
da inexoralidade do crescer. Ela assume que suas características de criança são o que as 
mantém naquele lugar e, por isso, se entristece e se preocupa com as inevitáveis mudanças da 
idade” (2006, p. 101). 
E não só o afastar-se da mídia pode representar uma experiência potencialmente 
traumática, como também o estar na mídia. A condição de famoso traz para crianças um misto 
de prazer e desconforto. 
Lacombe (2006) narra que as crianças com que trabalhou sentiam prazer com o 
assédio dos fãs e com os privilégios recebidos (patrocínio de lojas de roupas, bolsas escolares, 
dentre outros). Por outro lado, elas não tinham total consciência do cuidado que precisavam 
ter com sua imagem pública, e, quando repudiavam o assédio, o faziam de maneira direta, 
como o caso narrado de um artista mirim de quatro anos que caiu em prantos quando se viu 
cercado por fãs desconhecidos. 
Esse é outro problema que a condição de famoso pode trazer para as crianças. 
Lacombe (2006) explica que a experiência da fama faz com que dois sujeitos psicológicos 
dividam o corpo físico da criança: o seu sujeito psicológico (de âmbito privado) e sua persona 
(sua imagem pública). Na realidade social brasileira, via de regra, as pessoas se sentem mais à 
37 
 
vontade para interagir, inclusive fisicamente, com uma criança. No caso da criança famosa, 
ela 
 
está em dupla desvantagem, já que o acesso ao seu corpo se justificaria tanto por ser 
criança quanto por ser pessoa pública. Além disso, a sua espontânea recusa em se 
deixar incomodar acaba sendo repreendida pelos adultos que, ao contrário dela, têm 
plena consciência da importância do fã e da atenção

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