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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE DIREITO MARCUS VINÍCIUS MELO VIEIRA COZINHOU DAQUELA VEZ COMO SE FOSSE A ÚLTIMA MasterChef Júnior: uma pitada de trabalho artístico infantil, uma colher de proteção integral Belo Horizonte 2016 MARCUS VINÍCIUS MELO VIEIRA COZINHOU DAQUELA VEZ COMO SE FOSSE A ÚLTIMA MasterChef Júnior: uma pitada de trabalho artístico infantil, uma colher de proteção integral Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Colegiado do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito para a aprovação na disciplina Trabalho de Curso II, sob a orientação da Professora Doutora Adriana Goulart de Sena Orsini. Belo Horizonte 2016 MARCUS VINÍCIUS MELO VIEIRA COZINHOU DAQUELA VEZ COMO SE FOSSE A ÚLTIMA MasterChef Júnior: uma pitada de trabalho artístico infantil, uma colher de proteção integral Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Colegiado do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito para a aprovação na disciplina Trabalho de Curso II. Belo Horizonte, 07 de dezembro de 2016 Componentes da banca examinadora: ___________________________________________________________ Professora Doutora Adriana Goulart de Sena Orsini (Orientadora) Universidade Federal de Minas Gerais ___________________________________________________________ Professora Doutora Mônica Sette Lopes Universidade Federal de Minas Gerais ___________________________________________________________ Hellen Matos Pereira Analista de Direito do Ministério Público do Estado de Minas Gerais A meus pais, Cecília e Waldonio, por todo o apoio e amor que me deram até aqui. AGRADECIMENTOS Agradeço à Professora Doutora Adriana Goulart de Sena Orsini por despertar em mim a necessidade de sempre procurar conhecer e compreender a realidade daqueles que poderão ser influenciados por minhas decisões, bem como pela valiosa orientação, não só no presente trabalho como durante toda minha vida acadêmica na UFMG. Agradeço, igualmente, ao RECAJ UFMG e a todos os seus membros. Foi extremamente gratificante encontrar um espaço acadêmico aberto à busca de um Direito verdadeiramente emancipador, um Direito que vê o sujeito como agente construtor de sua própria realidade. Minha formação teria sido totalmente distinta, e inferior, sem tudo que aprendi ali. Por fim, agradeço aos meus amigos que estiveram comigo até aqui. Sem vocês eu não teria conseguido superar todas as inseguranças e incertezas que me surgiram ao longo da graduação. Sem vocês, também, eu não teria tido alguns dos melhores momentos de minha vida. “Mama said, you’re a pretty girl What’s in your head it doesn’t matter Brush in your hair, fix your teeth What you wear is all that matters” (Beyoncé) RESUMO VIEIRA, Marcus Vinícius Melo. Cozinhou daquela vez como se fosse a última. MasterChef Júnior: uma pitada de trabalho artístico infantil, uma colher de proteção integral. Trabalho de Conclusão do Curso de Direito. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2016. O trabalho infantil ainda é um problema social brasileiro: atividades vistas negativamente, como a prostituição e o tráfico de drogas, dividem espaço com outras ocupações mais aceitas socialmente, como o trabalho doméstico e o trabalho artístico. Com o início da exibição da atração televisiva MasterChef Júnior, marcado por polêmicas envolvendo pedofilia e homofobia, reacenderam-se os holofotes sobre a temática do trabalho artístico infantil. Assim, percebeu-se a necessidade de uma discussão sobre tal tema na área jurídica. Desta forma, o presente trabalho de conclusão de curso objetivou compreender se a participação das crianças e adolescentes no programa configurou o emprego de mão de obra infantil e se foi respeitada a proteção integral conferida às crianças e adolescentes. Como arcabouço teórico, efetuou-se uma breve revisão bibliográfica sobre as faces do trabalho infantil no Brasil e sobre a doutrina da proteção integral. Após, abordou-se as especifidades do trabalho artístico infantil, discutindo seus aspectos sociais, psicológicos e jurídicos. Por fim, foi feito um estudo de caso utilizando-se da primeira temporada da atração televisiva MasterChef Júnior como paradigma para verificar a eficácia da proteção integral conferida constitucionalmente à criança e ao adolescente quando da sua participação em atividades artísticas. Palavras-chave: Direito do Trabalho. Trabalho Infantil. Trabalho Artístico Infantil. Direito Infanto-Juvenil. Proteção Integral. ABSTRACT VIEIRA, Marcus Vinícius Melo. Cooked that time as if it were the last. Masterchef Junior: a pinch of artistic child labor, a spoon of integral protection. (Concluding undergraduate work in Law). Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2016. Child labor is still a social issue in Brazil: activities which are seen as negative, like prostitution and drug trafficking, exist along other, more socially acceptable occupations, such as domestic and artistic work. The beginning of the exhibition of the television show Masterchef Junior, marked by polemic discussions over pedophilia and homophobia, has brought to the forefront the subject of artistic child labor and it has sparked awareness of the need to discuss the juridical matter. Therefore, this concluding undergraduate work has aimed at comprehending whether the participation of children and adolescents in the show has configured the employment of child labor and whether the integral protection of children and adolescents has been respected. A literature review on the discussion of the facets of child labor in Brazil, as well as on the legal doctrine about integral protection, has been conducted. After this, the specificities of child artistic labor have been discussed, especially regarding its social, psychological and juridical aspects. Finally, the first season of the television show Materchef Junior has been taken as a paradigmatic case study in order to verify the efficiency of integral protection, which is granted constitutionally to children and adolescents when they participate in artistic activities. Key-words: Labor Law. Child Labor. Artistic Child Labor. Youth Law. Integral Protection. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO …......................................................................................................10 2 DA ESCRAVIDÃO À PROIBIÇÃO PARCIAL: FACES DO TRABALHO INFANTIL NO BRASIL …..................................................................................... 12 2.1 Movidos pela chibata .................................................................................................12 2.2. Alinhados às engrenagens ......................................................................................... 13 2.3. Os errantes de 1927 ................................................................................................... 15 2.4. Tempos de Revolução ................................................................................................ 16 2.5. Sob o manto constitucional ....................................................................................... 17 2.6. Não fale em ditadura, trabalhe ................................................................................ 19 3 A DOUTRINADA PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.................................................................................................... 21 3.1 Breve contexto histórico internacional ................................................................... 21 3.2 Diplomas legais vigentes no Brasil …..................................................................... 22 3.3 Princípios da proteção integral …........................................................................... 24 4 O TRABALHO ARTÍSTICO INFANTIL …......................................................... 28 4.1 Aspectos sociais ........................................................................................................... 28 4.1.1 Ei-lo: sucesso. Busque-o! .......................................................................................... 29 4.2 Aspectos psicológicos ................................................................................................. 32 4.2.1 Escalando o Olimpo ................................................................................................... 33 4.2.2 Luz! Câmera! Ação! ................................................................................................... 34 4.2.3 Corta! .......................................................................................................................... 36 4.3. Aspectos jurídicos ...................................................................................................... 38 4.3.1 Divergências jurisprudenciais .................................................................................. 39 4.3.2 Requisitos legais ........................................................................................................ 42 5 ESTUDO DE CASO …............................................................................................. 45 5.1 Lista de ingredientes …............................................................................................ 45 5.2 Mise en place .............................................................................................................. 45 5.3 Chocolate com pimenta …....................................................................................... 50 5.3 Maná ou fel? ….......................................................................................................... 52 6 CONCLUSÃO …...................................................................................................... 57 REFERÊNCIAS …................................................................................................... 60 10 1 INTRODUÇÃO O trabalho infantil ainda é um problema social brasileiro. Dentre as atividades laborais exercidas por crianças e adolescentes, algumas geram comoção e revolta, sendo uma constante na sociedade a sua repulsa, como por exemplo os trabalhos penosos no meio rural, no tráfico de drogas e na prostituição. Outras, por sua vez, apesar de proibidas, possuem certa “aceitabilidade social” maior, chegando por vezes a serem vistas como algo natural e não prejudicial ao menor. É o caso do trabalho exercido no domicílio de terceiros (serviço doméstico) e o exercido no comércio em geral. Por fim, o trabalho infantil chega a ser visto socialmente com certa “glamourização”, havendo uma cultura de plena aceitabilidade, em dois setores específicos: o trabalho infantil artístico e o trabalho desportivo. Na visão de Cavalcante (2012), manifesta em sua obra Trabalho Infantil Artístico: do deslumbramento à ilegalidade, o trabalho artístico infantil pode ser enquadrado como uma forma sofisticada e oportunista de exploração de mão de obra infantil. A autora aponta, inclusive, uma pressão familiar para os filhos optarem pela carreira artística. Com o início da exibição da primeira temporada da atração televisiva MasterChef Júnior1, um talent show que consiste numa disputa de provas culinárias entre vinte crianças e adolescentes, com idades entre nove e treze anos, pelo título de primeiro MasterChef Júnior do Brasil, além de outros prêmios2, a temática do trabalho infantil artístico voltou à pauta brasileira, em especial a midiática. Apesar de certa regulamentação legal sobre o tema, sobremodo após a vigência da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88) que adotou, expressamente, no parágrafo 3º do art. 2273, a doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente, acredita-se que a regulamentação sobre o tema no Brasil ainda é insuficiente. Um sistema que se limita, por vezes, a regular como se dá a prestação do trabalho em si, disciplinando 1 Todos os dados sobre a atração televisiva foram retirados de seu sítio virtual, a saber < http://entretenimento.band.uol.com.br/masterchef/junior/2015/>. O acesso se deu em diversos dias alternados do mês de outubro de 2016, período no qual a presente monografia foi elaborada. 2 O primeiro colocado da atração levará o troféu de primeiro MasterChef Júnior do Brasil, um curso de culinária com duração de três meses e uma viagem para um famoso parque de diversões no exterior com mais cinco acompanhantes e um vale compras no valor de R$1.000,00 mensais em uma conhecida rede de supermercados brasileira. 3 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. [...]§ 3º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: [...] (sublinhas supridas) http://entretenimento.band.uol.com.br/masterchef/junior/2015/ 11 aspectos como duração do trabalho e necessidade do menor frequentar a escola, está fadado ao fracasso. Com o objetivo de averiguar a veracidade ou não dessa afirmação, buscar-se-á analisar as disposições legais acerca do trabalho artístico exercido pelas crianças e adolescentes que competiram na primeira edição do MasterChef Júnior e discutir se foram capazes de efetivar a proteção integral conferida aos menores. A fim de melhor desenvolver o objeto a ser estudado, o texto principal do trabalho foi dividido em quatro capítulos. O primeiro deles trará um breve histórico acerca da presença do trabalho infanto-juvenil no Brasil. O segundo abordará a doutrina da proteção integral, dispondo sobre seu contexto internacional e sobre as normas e princípios que a regulamentam no Brasil. O terceiro capítulo, por sua vez, trará disposições sobre o trabalho artístico infantil em seus aspectos legais, sociológicos e psicológicos. Por fim, no quarto e último capítulo será desenvolvido o estudo de caso sobre a atração televisiva MasterChef Júnior, visando averiguar se e como a doutrina da proteção integral materializou-se no decorrer da edição. 12 2 DA ESCRAVIDÃO À PROIBIÇÃO PARCIAL: FACES DO TRABALHO INFANTIL NO BRASIL Inicialmente, cumpre ressaltar que o objetivo desta breve remissão histórica se limita a apontar um panorama geral sobre o modo como ocorreu o trabalho infantil e as principais legislações existentes, ou que já existiram e que o regularam, de alguma forma, em terras brasileiras. Desta forma, o marco inicial escolhido foi o começo da colonização portuguesa. Nas naus portuguesas, inclusive, vieram ao Brasil várias crianças prestadoras de serviço. Eram os grumetes, aprendizes de marinheiros, [...] meninos com idade entre nove e quinze anos que, obrigados pelos próprios pais, trocaram a infância pela terrível vida no mar. Estima-se que 10% da frota de Cabral era formado por crianças.[...] trabalhavam como gente grande, ou melhor, como escravos. Limpavam o convés, faziam faxina nos porões e remendavam velas (PEREZ, 2008, p. 37 apud SENTO-SÉ, 2000, p. 62) 2.1. Movidos pela chibata É sabido que durante o período colonial a mão de obra brasileira era baseada no sistema escravagista. Dentre os escravos, encontravam-se crianças e adolescentes. Teixeira (2010), aponta que houve importante participação da reprodução natural na manutenção/ampliação das escravarias em regiões voltadas ao mercado interno4. De acordo com a autora, a mão de obra escrava infantil era vantajosa devido ao valor inferior para aquisição e por serem menos propícios a insubordinações e desacatos. Segundo MOTT, [...] desde pequenas, [as crianças escravas] eram obrigadas a acompanharem suas mães ao campo e com elas compartilhavam vários trabalhos agrícolas: tiravam ervas daninhas, semeavam frutas, cuidavam dos animais domésticos. (1989, p. 88 apud TEIXEIRA, 2010, p. 85) Contrapondo-se à escravidão, o movimento abolicionista materializou-se, inicialmente, no Brasil, com a Lei do Ventre Livre (Lei nº 2.040, de 28 de Setembro de 1871). 4 Em contraposição, nas regiões voltadas ao mercado externo, naquela época agroexportador, a autora aponta a predominância da reprodução da escravidão através do tráfico de pessoas, uma vez que uma mão de obra masculina e adulta era mais propícia para as atividades ali desenvolvidas. 13 Tal lei garantiu a “condição livre”5 aos filhos das escravas e, ao menos em tese, o direito de não laborarem até atingirem oito anos. Até tal idade os senhores eram responsáveis por criá- los e tratá-los. Inteirados oito anos, os senhores podiam optar em utilizar-se da mão de obra do “escravo livre” até que esses atingissem vinte e um anos, como forma de indenização por sua criação e cuidados, sendo, entretanto, proibidos os castigos excessivos. Sobre o período escravagista, ainda, ressalta-se a diferença notória entre a vida das crianças escravas e a das crianças da elite branca. Enquanto a estas era reservada a aprendizagem de idiomas e conhecimentos gerais, para os meninos, e de bordados, costura, música, para as meninas, àquelas, independente do sexo, era reservada a chibata e a obediência. Vê-se, portanto, uma plena aceitabilidade – legal e social - do labor infanto- juvenil durante todo o período escravagista, o que não causa espanto nesta concepção de mão de obra, visto que os escravos eram considerados bens de seus senhores. 2.2. Alinhados às engrenagens Com a abolição da escravidão o cenário não sofreu grandes alterações. O processo de industrialização pelo qual passou o Brasil também foi impulsionado pelo labor de crianças e adolescentes. Neste período, buscava-se disciplinar as crianças ao ritmo mecânico das máquinas. Para dimensionar, reproduzem-se dados levantados pela OIT sobre a mão de obra no estado de São Paulo, na passagem do século XIX para o século XX. Em 1890, do total de empregados em estabelecimentos industriais, 15% era formado por crianças e adolescentes. Nesse mesmo ano o Departamento de Estatística e Arquivo do Estado de São Paulo registrava que ¼ da mão de obra empregada no 5 “Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio desde a data desta lei, serão considerados de condição livre. § 1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os quaes terão obrigação de crial-os e tratal-os até a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indemnização pecuniaria acima fixada será paga em titulos de renda com o juro annual de 6%, os quaes se considerarão extinctos no fim de 30 annos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor chegar á idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbitrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor. [...] § 6º Cessa a prestação dos serviços dos filhos das escravas antes do prazo marcado no § 1°, se, por sentença do juizo criminal, reconhecer-se que os senhores das mãis os maltratam, infligindo-lhes castigos excessivos.” 14 setor têxtil da capital paulista era formada por crianças e adolescentes. Vinte anos depois, esse equivalente já era de 30%, segundo dados do Departamento Estadual do Trabalho. Já em 1919, segundo o mesmo órgão, 37% do total de trabalhadores do setor têxtil eram crianças e jovens; e, na capital paulista, esses índices chegavam a 40%. Crianças operárias trabalhavam em vários setores da atividade fabril; além da têxtil, estavam também presentes nas indústrias alimentícias e de produtos químicos, por exemplo. (2001, p. 27) Ainda, de acordo com a OIT (2001), nas fábricas, às humilhações e aos castigos pela baixa produção somava-se a ocorrência de diversos acidentes de trabalho. Nas cidades, por sua vez, eram oferecidas às crianças várias oportunidades de trabalho informal, como o de jornaleiros, engraxates e vendedores ambulantes. Visando regularizar o trabalho infanto-juvenil, foi expedido o Decreto nº 1.313, de 17 de janeiro de 1891, que instituiu a fiscalização permanente de todos os estabelecimentos fabris que empregassem menores. Tal decreto proibiu a admissão de crianças menores que doze anos em qualquer emprego fabril, exceto para as fábricas de tecido, que podiam contratar mão de obra, na condição de aprendizes, com idade entre oito e doze anos. O decreto ainda regulamentava a duração do trabalho do menor, verbis: Art. 4º Os menores do sexo feminino de 12 a 15 annos e os do sexo masculino de 12 a 14 só poderão trabalhar no maximo sete horas por dia, não consecutivas, de modo que nunca exceda de quatro horas o trabalho continuo, e os do sexo masculino de 14 a 15 annos até nove horas, nas mesmas condições. Dos admittidos ao aprendizado nas fabricas de tecidos só poderão occupar-se durante tres horas os de 8 a 10 annos de idade, e durante quatro horas os de 10 a 12 annos, devendo para ambas as classes ser o tempo de trabalho interrompido por meia hora no primeiro caso e por uma hora no segundo. Apesar da existência da referida legislação, a fiscalização era insuficiente. Na prática, era o próprio empresariado que determinava a jornada de trabalho. Havia, ainda, o discurso da classe empresária de que o trabalho era uma alternativa/solução aos problemas da vida nas ruas, além de “propiciar o aprendizado de habilidades para o exercício de profissão ou função” (OIT, 2001, p. 28). Antes da preocupação com o ensino visando a alfabetização, foram criadas, por meio do Decreto nº 7.566, de 23 de setembro de 1909, as Escolas de Aprendizes Artífices, para o ensino profissional primário e gratuito. Na justificativa, há a clara reprodução do discurso da classe empresária: Considerando: 15 Que o augmento constante da população das cidades exige que se facilite ás classes proletarias os meios de vencer as difficuldades sempre crescentes da lucta pela existencia; Que para isso se torna necessario, não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensavel preparo techinico e intellectual, como fazel-os adquirir habitos de trabalho proficuo, que os afastará da ociosidade ignorante, escola do vicio e do crime; Que é um dos primeiros deveres do Governo da Republica formar cidadãos uteis á Nação [...] Do exposto, tem-se que a saída do sistema escravagista não foi suficiente para alterar a visão do trabalho como alternativa de vida digna aosfilhos das classes menos favorecidas. Ressalta a OIT, em sua publicação “Combatendo o trabalho infantil: guia para educadores”, que “tal mentalidade, enraizada em nossa sociedade por quase quatro séculos, pode estar na raiz da aceitação como ‘natural’ do trabalho de crianças e adolescentes pobres” (2001, p. 26). 2.3. Os errantes de 1927 Não se pode afirmar precisamente se o Governo da República conseguiu cumprir com maestria seu dever, exposto na justificativa do Decreto nº 7.566 de 1909, de formar cidadãos úteis à nação. Entretanto, tem-se que outros cidadãos, talvez verdadeiramente mais uteis à nação que os formatados pelo ensino profissional, se uniram em movimentos contrários ao emprego da mão de obra de crianças e adolescentes, culminando, em 1927, na publicação do Código de Menores6. Tal código, em seu capítulo IX, dedicou-se a disciplinar o trabalho do menor. Reproduziu-se a proibição que estava vigente do trabalho dos menores de doze anos. Para os adolescentes com idade entre doze e quatorze anos, por sua vez, a conclusão da instrução primária era condição necessária para se habilitar ao trabalho, possível à época. A exceção dava-se quando o trabalho era indispensável à subsistência do menor ou dos pais. Proibia-se, ainda, a admissão de menores de onze anos em usinas, manufaturas, estaleiros, minas ou qualquer trabalho subterrâneo, pedreiras, oficinas e suas dependências, ainda que na condição de aprendizes. Ainda, era proibido aos menores de dezoito anos os trabalhos perigosos à saúde, à vida, à moralidade, excessivamente fatigantes ou que excedessem suas forças, bem como o trabalho noturno. 6 Decreto nº 17.943-A, de 12 de Outubro de 1927 16 Merece destaque na análise do Código de Menores a positivação da proibição genérica ao trabalho artístico de menores de dezoito anos, salvo com autorização judicial. Veja-se: Art. 111. Os menores do sexo masculino de menos do 18 annos e os do Feminino de menos de 18, não podem ser empregados como actores, figurantes, ou de qualquer outro modo, nas representações publicas dadas em theatros e outras casas do divisões de qualquer genro, sob pena de muita do 1:000$ a 3:000$000. Tambem sob as mesmas penas, é interdicto a taes menores todo trabalho em estabelecimentos theatraes ou analogos, inclusive a venda de quaesquer objetos. § 1º Todavia, a autoridade competente póde, exepcionalmente, autorizar o empregado de um ou vários menores nos theatros, para representação de determinadas peças. § 2º Nos cafés-concertos e cabarats a prohibição vae até maioridade. Outro apontamento a ser feito, dado o objeto de estudo da presente monografia, é a perseguição, à época, às atividades circenses exercidas por menores. Foi estabelecida pena de multa e de prisão aos indivíduos que fizessem com que menores de dezesseis anos executassem exercícios de força, perigosos ou de deslocação. Os acrobatas, saltimbancos, ginastas, adestradores de animais, diretores de circo ou similares que utilizassem em suas apresentações menores de dezesseis anos também estavam sujeitos às mesmas penas. Caso tais profissionais fossem os pais das crianças, a idade mínima para poderem contar com os filhos em suas apresentações diminuía de dezesseis para doze anos. Analisando o Código de Menores, Perez aponta, em sua obra “Regulação do Trabalho do Adolescente” (2008), que o Código de Menores foi fruto de uma concepção que associava a pobreza à delinquência, gerando a denominada doutrina da “situação irregular”. Assim, apesar da expectativa pelo código, que se destinava a promover e garantir os direitos dos infantes, seus defensores acabaram por frustrar-se com a edição de um código voltado ao menor delinquente. Contrariando os ideais humanitaristas da época, via-se uma nítida intenção de retirar os menores “abandonados” do convívio social, utilizando-se, inclusive, do trabalho como ferramenta de adestração. 2.4. Tempos de Revolução Em 1930, dada a pressão operária por melhores condições de vida e de trabalho, 17 deu-se a Revolução, que derrubou a primeira República e colocou Getúlio Vargas no poder. Com ela, iniciou-se o protecionismo7 e a maior intervenção do Estado na economia. O trabalho infantil também foi contemplado pelas mudanças, sendo elevada a idade mínima para admissão em fábricas de doze para quatorze anos, por meio da publicação do Decreto nº 22.042, de 19328. O Decreto, contuto, não trouxe grandes mudanças em relação aos trabalhos proibidos aos menores. Para que pudessem ser contratados, era necessário que os menores fossem alfabetizados, salvo se o trabalho fosse indispensável para a subsistência e não prejudicasse que fosse ministrada ao adolescente pelo menos a instrução primária. Ainda, aponta-se a inovação na obrigação dos estabelecimentos que contassem com mais de trinta trabalhadores com menos de dezoito anos em ministrar-lhes o ensino primário, caso não houvesse nenhuma escola no raio de um quilômetro9. Buscou conciliar-se o trabalho e o ensino. Entretanto, dadas as limitações do ensino primário, voltado mais à alfabetização que à real transmissão e problematização sobre o conhecimento, é questionável o escopo legal. Ainda, as dificuldades já apontadas de fiscalização podem ter sido um empecilho à efetivação da norma. 2.5. Sob o manto constitucional Em 1934, foi promulgada a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Em seu título V, da Ordem Econômica e Social, foram disciplinadas as condições básicas do trabalho. Como inovação, foi estabelecida a proibição de diferença salarial por idade10. Desta forma, ao menos em tese, não persistiria a vantagem em contratar menores de idade por serem uma mão de obra mais barata. A idade mínima para o trabalho permaneceu em quatorze anos, entretanto, ao estar disposta na Constituição, ganhou maior proteção, uma 7 O primeiro governo de Getúlio Vargas foi marcado pelo protecionismo econômico à indústria e ao capital nacional, desta forma as indústrias estrangeiras eram vistas como exploradoras dos recursos nacionais. 8 Art. 1º É vedado na indústria, em geral, o trabalho de menores que não hajam completado a idade de 14 anos. 9 Art. 16. Nos estabelecimentos situados em lugar onde houver escola primaria, dentro do raio de um quilometro, será concedido aos menores analfabetos o tempo necessário à frequência da escola. Parágrafo único: Os estabelecimentos situados em lugar onde a escola estiver a maior distância e que ocuparem, permanentemente, mais de trinta menores analfabetos, de 14 a 18 anos, serão obrigados a manter local apropriado em que lhes seja ministrada a educação primária. 10 Art. 121. A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País. §1º - A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador: a) proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; 18 vez que não mais poderia ser alterada por lei infraconstitucional. Para o trabalho noturno, porém, foi estabelecida a idade mínima de dezesseis anos. A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, não alterou as idades para o trabalho. Ressalta-se, entretanto, que a proteção básica ao trabalhador passou a figurar no capítulo destinado unicamente à Ordem Econômica. Uma inovação que pode ser apontada foi a criação das escolas vocacionais e pré-vocacionais, tratando a Constituição pela primeira vez do ensino técnico11. Ressalta Perez (2008) que a criação do ensino técnico não representou uma conquista para a população, senão o frutoda necessidade após a mecanização e a racionalização do trabalho, ligadas ao desenvolvimento da industrialização. Desta forma, a alfabetização tornou-se insuficiente no preparo do obreiro para o mercado de trabalho. Em 1943 foi aprovada a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)12, que compilou toda a legislação trabalhista vigente até então. Foi dedicado um capítulo à proteção do trabalho do menor, tendo sido vedada a prorrogação do trabalho, exceto em situações excepcionais13. Cita-se que o trabalho em teatros e circos continuou sendo considerado prejudicial à moralidade do menor (Art. 405, §1º). Entretanto, caso a representação tivesse caráter educativo ou não ofendesse a moralidade do menor ou fosse essencial a sua subsistência ou de sua família, poderia ser autorizada, pelo juiz de menores, a participação desses em teatros e circos (Art. 406). A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, não trouxe nenhuma inovação no tema, mantendo o disposto na legislação vigente no que toca ao 11 Art 129 - A infância e à juventude, a que faltarem os recursos necessários à educação em instituições particulares, é dever da Nação, dos Estados e dos Municípios assegurar, pela fundação de instituições públicas de ensino em todos os seus graus, a possibilidade de receber uma educação adequada às suas faculdades, aptidões e tendências vocacionais. O ensino pré-vocacional profissional destinado às classes menos favorecidas é em matéria de educação o primeiro dever de Estado. Cumpre-lhe dar execução a esse dever, fundando institutos de ensino profissional e subsidiando os de iniciativa dos Estados, dos Municípios e dos indivíduos ou associações particulares e profissionais. É dever das indústrias e dos sindicatos econômicos criar, na esfera da sua especialidade, escolas de aprendizes, destinadas aos filhos de seus operários ou de seus associados. A lei regulará o cumprimento desse dever e os poderes que caberão ao Estado, sobre essas escolas, bem como os auxílios, facilidades e subsídios a lhes serem concedidos pelo Poder Público. 12 Ressalta-se que neste capítulo da presente monografia foi considerado o texto original da CLT. Nos próximos capítulos, por sua vez, será considerado o texto atualizado. 13 Art. 413. É vedado prorrogar a duração normal do trabalho dos menores de 18 anos, salvo, excepcionalmente: a) quando, por motivo de força maior, que não possa ser impedido ou previsto, o trabalho do menor for imprescindível ao funcionamento normal do estabelecimento; b) quando, em circunstâncias particularmente graves, o interesse público o exigir; c) quando se tratar de prevenir a perda de matérias primas ou substâncias perecíveis. 19 trabalho do menor. 2.6. Não fale em ditadura, trabalhe Um golpe de estado, organizado pelas Forças Armadas, levou a cabo a democracia e instaurou a ditadura militar no país em 1964, levando à supressão de vários direitos individuais e a ingerências de um Estado totalitário na vida dos cidadãos. Naturalmente, tal regime influenciou nas relações laborais. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, sob a égide da ditadura militar, representou um retrocesso na proteção ao trabalho do menor. A idade mínima para o trabalho, então de quatorze anos, foi reduzida para doze anos (art. 158, X)14. Outro retrocesso é representado pela edição da Lei nº 5.274, de 196715, que escalonou o salário do trabalhador menor com base em sua idade ou grau de instrução. Ou seja, restaurou-se a vantagem ao empresariado de contratar menores de idade, uma vez que voltaram a ser uma mão de obra mais barata. Desta forma, ao menor poderia ser pago um valor entre metade e 75% do salário-mínimo então vigente, a saber: Art. 1º Para menores não portadores de curso completo de formação profissional, o salário-mínimo de que trata o Capítulo III do Título II da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-lei nº 5.452 de 1º de maio de 1943, respeitada a proporcionalidade com que vigorar para os trabalhadores adultos da região, será escalonado na base de 50% (cinqüenta por cento) para os menores entre 14 (quatorze) e 16 (dezesseis) anos de idade e em 75% (setenta e cinco) por cento para os menores entre 16 (dezesseis) e 18 (dezoito) anos de idade. § 1º Para os menores aprendizes assim considerados os menores de 18 (dezoito) anos e maiores de 14 (quatorze) anos de idade sujeitos a formação profissional metódica do oficio em que exerçam seu trabalho, o salário-mínimo poderá ser fixado em até metade do estatuído para os trabalhadores adultos da região. Ainda, editou-se um novo Código de Menores16, que, nos moldes do anterior, manteve a doutrina da “situação irregular”. Perez (2008) aponta que a visão do código era obter o controle social das crianças e adolescentes pobres, que eram enquadradas em uma das “patologias sociais” então positivadas. Comentando sobre o trabalho dos menores a autora diz que 14 Ressalta-se que tal fato contrariou a Convenção 5 e 58 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), então vigentes no país. 15 Tal lei vigorou por sete anos, até ser revogada pela Lei nº 6.086 de 1974. 16 Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del5452.htm 20 [...] não obstante previsão normativa proibitiva de seu ingresso no mercado de trabalho antes dos doze anos, como também em condições insalubres e perigosas antes dos dezoito anos, tal determinação não lograva êxito em seu cumprimento tendo em vista que a doutrina da situação irregular, claramente direcionada aos menores de dezoito anos pertencentes à classe econômica menos favorecida, lhes atribuía o peso do trabalho como forma de socialização. (p. 57). Apesar das represálias típicas de um regime ditatorial, a década de oitenta foi marcada pelos movimentos pela redemocratização do país. O maior deles foi o Diretas Já, que pleiteava a eleição direta para presidente da República, e que não teve sucesso. O primeiro presidente civil após a ditadura foi eleito por eleições indiretas, a saber, Tancredo Neves, que faleceu antes de sua posse. Ainda assim era um presidente civil, e, com isso, a ditadura militar chegou ao fim. José Sarney, o vice de Tancredo Neves, assumiu a Presidência da República, e foi convocada a Assembleia Constituinte de 1987. Perez (2008) aponta que houve uma grande mobilização para que a nova Carta Constitucional expressasse os direitos e garantias das crianças e dos adolescentes. De fato, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 pautou-se no princípio da dignidade da pessoa humana, erigindo-o como núcleo de todo o sistema jurídico. Em relação às crianças e aos adolescentes, foi adotado o princípio da proteção integral e do melhor interesse, que será melhor abordado no capítulo seguinte. Por fim, cita-se que o texto constitucional vigente reconheceu a proteção do trabalhador, incluindo o menor, como direito social. Anteriormente, tal proteção era tratada na disciplina da ordem econômica (CF/37) ou da ordem econômica e social (as demais). Como garantias ao trabalho do menor, foi constitucionalizada a idade mínima de quatorze anos para o trabalho e proibido o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de dezoito anos. 21 3 A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Ao romper com o regime ditatorial, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 também trouxe em seu texto inúmeros direitos e garantias fundamentais. Machado, em sua obra A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos (2003), aponta que a CR/88 traz uma concepção unitária dos direitos humanos. Desta forma, haveria uma interdependência entre os “direitoscivis” e os “direitos sociais”, e só se alcançaria a efetividade plena de uma dessas “classes” quando a outra também estivesse satisfeita. Em relação às crianças e adolescentes, o texto constitucional vigente adotou expressamente, no parágrafo 3º do art. 227, a doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente, podendo também ser encontrada em outras passagens do texto constitucional. Machado aponta que o núcleo desta proteção é a noção de que sem a efetivação dos chamados “direitos sociais” de crianças e adolescentes – especialmente educação, saúde, profissionalização, direito ao não- trabalho no seu particular imbrincamento com direito à alimentação – não se logrará material proteção a seus direitos fundamentais. (2003, p. 136) 3.1 Breve contexto histórico internacional Leciona José Afonso da Silva, em seu Curso de Direito Constitucional Positivo (2016), que as primeiras declarações de direitos humanos foram concebidas sob influência do Iluminismo, ainda no séc. XVIII, como a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia (Estados Unidos da América, 1776) e a Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão (França, 1789). Entretanto, tais declarações regionalizadas não tinham força internacional, uma vez que se possuíam validade limitada ao sistema jurídico no qual foram firmadas. Durante a Primeira Guerra Mundial, em 1919, com o Tratado de Versalhes, criou- se a Liga das Nações, uma instituição internacional que buscava a paz entre as nações. De acordo com dados obtidos no sítio virtual da Organização das Nações Unidas (ONU) 17, a Liga das Nações deixou de existir por causa da impossibilidade de evitar a II Guerra Mundial. Após a Segunda Guerra Mundial, criou-se, em 24 de outubro de 1945, a 17 < http://www.onu.org.br/> http://www.onu.org.br/ 22 Organização das Nações Unidas, uma organização mundial composta por países que se reuniram voluntariamente para trabalhar pela paz e pelo desenvolvimento mundial. Aduz Jose Afonso da Silva (2016) que a preocupação com os direitos fundamentais levou à criação, na ONU, de uma Comissão dos Direitos do Homem, responsável pela edição da “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, que erigiu a dignidade da pessoa humana como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Ademais, em 1959, baseada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, a ONU promulgou a Declaração Universal dos Direitos da Criança, que pode ser considerada o precedente da doutrina da proteção integral. Em relação ao trabalho infantil propriamente dito, a proteção por meio de normas internacionais é anterior até mesmo às declarações de direitos. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1919, criou-se, como parte do Tratado de Versalhes, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) 18, fundada sobre a convicção primordial de que a paz universal e permanente somente pode estar baseada em justiça social. Como exemplos de legislação internacional protetiva do trabalho do menor cita-se a Convenção nº 5, que trata da Idade Mínima de Admissão nos Trabalhos Industriais, e a Convenção nº 6, tratando do Trabalho Noturno dos Menores na Indústria. Ambas foram editadas pela OIT e aprovadas em 1919. Entretanto, a existência de tratados internacionais não foi o suficiente para efetivar a proteção ao menor. Perez aponta que o quadro de exploração da mão-de-obra dos pequenos ao redor do mundo, apesar da existência de vasto conteúdo normativo emanado pela Organização Internacional do Trabalho e das orientações políticas acerca da garantia dos direitos fundamentais do grupo, fez com que a ONU, no ano de 1989 – trinta anos após a proclamação da Declaração dos Direitos das Crianças – editasse a Convenção sobre os Direitos das Crianças, positivando em caráter universal as normas de tutela dos direitos humanos da comunidade. (2008, p. 69) 3.2 Diplomas legais vigentes no Brasil A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88) reconhece a 18 A OIT é responsável pela formulação e aplicação das normas internacionais do trabalho (convenções e recomendações). As convenções, uma vez ratificadas por decisão soberana de um país, passam a fazer parte de seu ordenamento jurídico. O Brasil está entre os membros fundadores da OIT e participa da Conferência Internacional do Trabalho desde sua primeira reunião. Mais informações podem ser obtidas no sítio virtual do Escritório no Brasil da OIT, a saber <http://www.ilo.org/brasilia/lang--pt/index.htm> http://www.ilo.org/brasilia/lang--pt/index.htm 23 condição da criança como indivíduo em formação, sendo dever do Estado, da família e da sociedade assegurar-lhes, com absoluta prioridade, as condições necessárias ao seu desenvolvimento, tais como saúde, educação, lazer, etc19. A proteção integral, por sua vez, encontra-se expressa nos diversos incisos do parágrafo terceiro do art. 207 da CR/88, a saber: § 3º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7º, XXXIII; II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; III - garantia de acesso do trabalhador adolescente e jovem à escola; IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica; V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade; VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado; VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins. Desta forma, ao colocar toda a sociedade e o próprio Estado, além da família, como responsáveis por fornecer condições que propiciem o desenvolvimento das crianças e adolescentes, a CR/88 estabelece diversos aspectos a serem observados no cumprimento desse ônus. Não é difícil concluir que tais direitos não são compatíveis com o Código de Menores de 1979, elaborado sob a égide da chamada “situação irregular”. E, ainda, conclui-se que, ao ser positivada na CR/88, a doutrina da proteção integral sai do campo meramente teórico, passando seu cumprimento a ser um imperativo legal que não mais poderia ser ignorado. Na esteira da CR/88, e dada a necessidade de um novo diploma legal que regulamentasse os aspectos ali elencados, foi promulgado, em 13 de julho de 1990, por meio 19 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 24 da Lei nº 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que dispôs sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Aqui, cabe apontar o fato do ECA ter trazido dois conceitos distintos, o de criança, que é o indivíduo com até doze anos de idade, e o de adolescente, que é o indivíduo com idade entre doze anos completos até dezoito incompletos. 3.3 Princípios da proteção integral Amin (2011), em capítulo intitulado “Princípios Orientadores do Direito da Criança e do Adolescente”, contido na obra “Curso de Direito da Criança e do Adolescente:aspectos teóricos e práticos”, aponta como materializadores da noção de proteção integral três princípios gerais: princípio da prioridade absoluta, princípio do melhor interesse e princípio da municipalização. Segundo a autora, o princípio da prioridade absoluta estabelece primazia absoluta em favor das crianças e dos adolescentes em todas as esferas de interesses. Seja no campo judicial, extrajudicial, administrativo, social ou familiar o interesse infanto-juvenil deve preponderar. Não comporta indagações ou ponderações sobre o interesse a tutelar em primeiro lugar, já que a escolha foi realizada pela nação através do legislador constituinte. (p. 22) Tal princípio, como já dito, encontra-se positivado na CR/88. Também se encontra de forma expressa no ECA, a saber: Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. Mais adiante, o ECA traz uma norma interpretativa de como deve ser efetivada a prioridade conferida à criança e ao adolescente, dispondo que “a interpretação e aplicação de 25 toda e qualquer norma contida nesta Lei deve ser voltada à proteção integral e prioritária dos direitos de que crianças e adolescentes são titulares” (art. 100, parágrafo único, II). O Supremo Tribunal Federal (STF), em 2010, por decisão da lavra do Ministro Celso de Mello, afirmou que, embora a Administração Pública possua discricionariedade para atender normas programáticas, ela não pode se esquivar do cumprimento de tais normas quando estas estabelecem direitos de crianças e adolescentes. Afirma o STF que a ineficiência administrativa, o descaso governamental com direitos básicos da pessoa, a incapacidade de gerir os recursos públicos, a falta de visão política na justa percepção, pelo administrador, do enorme significado social de que se reveste a proteção à criança e ao adolescente, a inoperância funcional dos gestores públicos na concretização das imposições constitucionais não podem nem devem representar obstáculos à execução, pelo Poder Público, da norma inscrita no art. 227, “caput”, da Constituição da República, que traduz e impõe, ao Estado, um dever inafastável, sob pena de a ilegitimidade dessa inaceitável omissão governamental importar em grave vulneração a um direito fundamental e que é, no contexto ora examinado, a proteção integral da criança e do adolescente. (RE 482611/SC, julgado em 23/03/2010) Desta forma, é plenamente cabível o controle jurídico das atuações estatais negativas, como por exemplo a não realização de matrícula da criança ou adolescente em escola próxima à sua residência ou a negativa de determinado tratamento médico sob o argumento que ele não está disponível na rede pública de saúde. Assim, existem diversas decisões judiciais determinando, exatamente, tal matrícula, ou a disponibilização do tratamento médico, dentre outros exemplos que poderiam ser elencados. Sobre o princípio do melhor interesse, por sua vez, leciona Amin que: Trata-se de princípio orientador tanto para o legislador como para o aplicador, determinando a primazia das necessidades da criança e do adolescente como critério à interpretação da lei, deslinde de conflitos, ou mesmo para elaboração de futuras regras. Assim, na análise do caso concreto, acima de todas as circunstâncias fáticas e jurídicas, deve pairar o princípio do melhor interesse, como garantidor do respeito aos direitos fundamentais titularizados por crianças e jovens. (2011, p. 34) Tal princípio já se encontrava positivado no antigo Código de Menores de 1979, encontrando-se também presente no ECA. A diferença é que, enquanto naquele destinava-se apenas ao menor em situação irregular, neste destina-se a todo o público infanto-juvenil. Sua maior aplicação no campo jurisprudencial dá-se nos litígios envolvendo interesses familiares, uma vez que, nesses casos, para além das circunstâncias fáticas, deve-se analisar o melhor interesse da criança. Por exemplo, na hipótese de uma separação judicial 26 decorrente de traição, o fato de um cônjuge trair o outro não significa que ele não é um bom genitor, não devendo ser determinante na escolha da guarda da criança, que, via de regra, é a compartilhada. Outra interessante aplicação do princípio do melhor interesse é seu uso na fundamentação de decisões de habeas corpus de mães lactantes, concedendo a essas o direito à prisão domiciliar. Cita-se, por exemplo, a seguinte ementa de decisão: Habeas Corpus. 2. Tráfico ilícito de entorpecentes. Conversão da prisão em flagrante em preventiva. 3. Segregação cautelar mantida com base, apenas, na gravidade abstrata do crime. 4. Ausência de fundamentação idônea. Decisão contrária à jurisprudência dominante desta Corte. Constrangimento ilegal configurado. 5. Decisão do STJ que indeferiu liminarmente habeas corpus sem adentrar no mérito. Supressão de instância. Superação. 6. Paciente lactante. Garantia aos princípios da proteção à maternidade, à infância e do melhor interesse do menor. 7. Ordem concedida para revogar o decreto prisional expedido em desfavor da paciente, sem prejuízo da análise da aplicação de medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP. (HC 130685, julgado em 03/11/2015, Rel. Min. Gilmar Mendes) Por fim, cita-se acórdão do TJ/SC demonstrando que, mesmo em frente aos interesses familiares conflitantes e em situações delicadas, a prevalência deve ser sempre do melhor interesse do menor, ainda que aplicar tal princípio signifique retirar a criança da convivência familiar. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ADOÇÃO. ASSASSINATO DA GENITORA PELO MARIDO. PRETENSA ADOÇÃO DA FILHA DO CASAL DE TRÊS ANOS DE IDADE PELOS TIOS MATERNOS. INEXISTÊNCIA DE VANTAGENS. ANIMOSIDADE ENTRE AS FAMÍLIAS MATERNA E PATERNA EM RAZÃO DO CRIME OCORRIDO. ESTUDO SOCIAL DESFAVORÁVEL. PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. A adoção somente será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando, caso contrário, demonstrado que a família substituta não pode oferecer um ambiente familiar adequado, o indeferimento do pedido é medida que se impõe. (TJ-SC - Apelação Cível AC 110748 SC 2009.011074-8 (TJ-SC) Data de publicação: 27/07/2009) O princípio da municipalidade, por sua vez, trata da atuação concorrente dos entes federativos visando garantir a proteção integral. A despeito de sua importância, dada as especifidades do objeto de estudo, não se faz necessária a análise pormenorizada. Apesar da persistência de descumprimentos esporádicos, a doutrina da proteção http://tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6548216/apelacao-civel-ac-110748-sc-2009011074-8 http://tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6548216/apelacao-civel-ac-110748-sc-2009011074-8 27 integral ganhou força em terras brasileiras. Conforme demonstrado pelas jurisprudências citadas, é recorrente seu uso na fundamentação de decisões judiciais. Tal fato mostra que, em caso de descumprimento, as portas do judiciário estão abertas para garantir sua efetivação. 28 4 O TRABALHO ARTÍSTICO INFANTIL Conforme previsão do ECA, a criança e o adolescente têm direito ao acesso à cultura. Porém, não se pode confundir as atividades artísticasrealizadas com escopo meramente educativo e/ou recreativo com aquelas em que há uma finalidade lucrativa e comercial. Para fins desde trabalho adotou-se o conceito de trabalho artístico apresentado por Sandra Regina Cavalgante, em sua obra “Trabalho Infantil Artístico: do deslumbramento à ilegalidade” (2012), qual seja: “é trabalho infantil artístico quando o desempenho da criança ou adolescente será explorado comercialmente por terceiros” (p. 46). Complementa a autora ainda que “[...] não importa se houve contrapartida econômica ao artista mirim pelo seu trabalho” (p. 46). 4.1. Aspectos sociais Apesar da regulamentação narrada nos capítulos anteriores, o trabalho infantil é, e sempre foi, um problema social brasileiro. O Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar a exploração do trabalho infantil no Brasil (CPI do Trabalho Infantil), de dezembro de 2014, traz dados do Censo de 2010 mostrando que, das 3,6 milhões de crianças e adolescentes entre 10 e 15 anos que exerciam atividade laboral, 58% laboravam em atividades de lavoura e pecuária. Tais atividades oferecem inúmeros riscos aos obreiros, como exposição ao calor solar, contato com agentes químicos (como pesticidas), contato com itens perfuro cortantes (foices, facões, etc), em suma, podem vir a ser caracterizadas como insalubres e/ou perigosas. Campos (2012), em sua obra “Proposições jurídicas: fontes de proteção social ao trabalho infantil”, por sua vez, aponta que o trabalho é, por vezes, visto pela criança e pelo adolescente como forma de conseguir recursos financeiros, ainda que isso possa prejudicar sua integridade e perverter a sua efetiva profissionalização. Assim, por mais que o trabalho infantil traga diversas consequências negativas, como dificuldade de crescimento, problemas de saúde e exclusão educacional, ele ainda é visto como alternativa de geração de renda pelo menor e por sua família. Tal fato não causa espanto, uma vez que a matriz cultural do Brasil remonta a isso. Na escravidão, era plenamente aceitável e comum o trabalho dos filhos dos escravos. Após, ao 29 final do século XIX e início do século XX, era também aceitável o trabalho de crianças para ajudar na composição da renda familiar. E, ainda, vigeu no Brasil dois Códigos de Menores que exaltavam o trabalho como forma de engrandecimento pessoal e fuga da vida na delinquência. Como já dito, diferentemente das atividades que geram comoção e revolta quando empregam menores, ou daquelas mais aceitas socialmente, o trabalho infantil é visto socialmente com certa “glamourização”, havendo uma cultura de plena aceitabilidade, em dois setores específicos: o trabalho infantil artístico e o trabalho desportivo. O Relatório Final da CPI do Trabalho Infantil informa que, nesses casos: As próprias famílias estimulam o trabalho infantil artístico e desportivo; muitas retiram do mercado de trabalho um de seus membros para acompanhar a criança e o adolescente que se destaca nesses campos. O jovem trabalhador passa ser, assim, a principal fonte de renda da família e o seu principal veículo de ascensão social. (BRASIL, 2014, p. 23) O trabalho artístico infantil pode ser enquadrado como uma forma sofisticada e oportunista do labor de menores, uma vez que, além de ser incentivado pela família, a vida do artista é tida pela sociedade como ideal a ser atingido, conforme será mostrado adiante. Cavalcante comenta com maestria tal cenário: não é a vida do cientista ou do artista plástico que é repetidamente exposta em revistas populares e na própria mídia televisiva, mas sim a vida “deslumbrante” e bem remunerada da atriz, modelo, cantor ou jogador, que é tomada como único ideal de futuro bem-sucedido para crianças e adolescentes, bem como por seus pais. (2012, p. 47) 4.1.1 Ei-lo: sucesso. Busque-o! Soma-se a isso os exemplos “de sucesso”, frequentes na sociedade e na mídia brasileira. Um deles é o de Maísa Silva20, descoberta em uma atração televisiva quando ainda tinha três anos de idade e, posteriormente, contratada por uma emissora nacional para apresentar programas infantis. Atualmente, aos quinze anos, a adolescente é atriz e apresentadora, além de atuar em diversas campanhas publicitárias. Devido a um incidente ocorrido nas gravações de uma cena de um programa dominical, as condições do trabalho artístico exercido por ela chamaram a atenção do 20 Informações obtidas no sítio virtual da adolescente, a saber < https://maisasilva.com.br/>. https://maisasilva.com.br/ 30 Ministério Público do Trabalho, que ajuizou ação civil pública21 visando que a emissora para a qual a menina prestava serviços não contratasse mais crianças e adolescentes com menos de 16 anos, salvo como aprendiz. Almejou-se também a proibição desses menores atuarem em programas artísticos, e de serem expostos a situações vexaminosas, humilhantes ou psicologicamente perturbadoras, como a ocorrida com a apresentadora Maísa. O Parquet laboral não conseguiu sucesso em sua demanda. Da decisão do juízo de primeiro grau, destaca-se: Em resumo, não seria jurídico nem tampouco justo no presente caso que, por conta de uma violação pontual praticada pela ré, já devidamente coibida pelo juízo competente, este juízo impedisse que esta contratasse menores devidamente autorizados para participar de seus programas, o que implicaria inclusive em ceifar a carreira de diversos menores que, por seu talento pessoal, estão tendo condições melhores de vida pessoal e financeira, para si e seus familiares. A ré é empresa que atua no segmento artístico à (sic) décadas, já promoveu diversos artistas mirins e os viu passar da infância para a juventude e da juventude para a idade adulta, sem que tivesse sua conduta questionada, pelo que não pode por um ato pontual ter todo seu trabalho desmerecido. Tem seus defeitos? Seguramente que sim. Tem suas virtudes? Isso também é inegável (sublinhas supridas) Ou seja, a visão social de que o trabalho infantil pode proporcionar uma vida melhor foi reconhecida judicialmente e utilizada como motivação para continuar permitindo tal prática. Tal argumento prevaleceu, uma vez que a decisão não foi reformada nas instâncias superiores. No campo musical, um grande exemplo são os funkeiros mirins: crianças e adolescentes que, com a mais tenra idade, despontaram em uma carreira com composições e videoclipes, via de regra, com conteúdo inadequado para sua idade. Cita-se o caso do MC Pedrinho, que, com apenas doze anos fez sucesso com o hit “Dom, dom, dom”, composição musical com forte apelo sexual. Aos treze anos, o MC foi proibido judicialmente de fazer shows, sob o argumento da Promotoria de Justiça de Santana, em São Paulo, de que os shows do adolescente 21 AIRR - 98000-62.2009.5.02.0382. Narra o MPT que “segundo notícia pinçada na internet, apresentadora Maisa, após se deparar com outra criança caracterizada como um monstro, correu chorando e gritando desesperadamente pelo palco, além de ser vítima de gracejos e comentários inadequados proferidos pelo apresentador Sílvio Santos (doc. 19). E sem embargo do susto e do pavor causado à criança, a infeliz brincadeira levou a menina Maisa a bater com a cabeça em uma das câmeras instaladas no palco do Programa, tendo, ainda, sua mãe, negado-lhe amparo. (doc. 20).” Disponível em <http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&nu meroTst=98000&digitoTst=62&anoTst=2009&orgaoTst=5&tribunalTst=02&varaTst=0382> Acesso em 04/10/2016. http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=98000&digitoTst=62&anoTst=2009&orgaoTst=5&tribunalTst=02&varaTst=0382 http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=98000&digitoTst=62&anoTst=2009&orgaoTst=5&tribunalTst=02&varaTst=038231 violam a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Convenção na ONU sobre os direitos da criança, notadamente pelo conteúdo das canções que interpreta, com alto teor de erotismo, pornografia, e palavras baixo calão, incompatíveis com a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento22. Posteriormente, os pais do adolescente realizaram acordo com o Ministério Público para que os shows fossem retomados, com a condição de que o adolescente não poderia realizar apresentações noturnas e para o público adulto. Os shows para o público infanto-juvenil, por sua vez, deveriam ser diurnos e em locais com classificação própria para a faixa etária. Ainda, a frequência do MC à escola deveria ser comprovada judicialmente. Após o acordo, comprovando a tese de que o trabalho artístico infantil é visto como forma de ascensão social, a primeira composição lançada pelo MC relata exatamente a música sendo vista por Pedrinho como forma de gerar uma melhor condição de vida à sua família. Destaca-se o trecho: Acordei relembrei dos passados meus E de um grande sonho de um menino que aconteceu Mas era uma vez, um menino sonhador Orava toda noite, pedindo para o senhor Queria dar à minha família o melhor de mim Ter fé e esperança pra um dia ser MC Dar a casa pra minha coroa é o que eu to querendo Ver meus irmãos feliz e não ver eles sofrendo23 Maísa e Pedrinho, que aqui representam inúmeros outros, para além de demonstrarem e comprovarem que a carreira artística efetivamente pode trazer um resultado positivo para os menores, ao menos do ponto de vista financeiro, materializam tal resultado, sendo vistos como exemplos a serem seguidos. Ocorre que nem só de glória é composta a exposição artística. Assim, o sucesso atingido nem sempre representa o melhor interesse da criança e do adolescente, e, por vezes, as crianças e adolescentes não conseguem compreender o motivo de tal atividade não serem o melhor para elas no momento. Buscando elucidar melhor tal questão, será mostrada uma visão da psicologia sobre a temática. 22 Devido ao sigilo processual em autos que tenham por partes crianças e adolescentes, as informações apresentadas sobre o MC Pedrinho foram retiradas do veículo midiático G1 <www.g1.globo.com >. Destaca- se que, no caso da Maísa, onde obteve-se acesso ao conteúdo do processo, os autos tramitaram na Justiça do Trabalho, e a adolescente não era parte no processo. Tratava-se de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho da 2ª Região em face da TV SBT Canal 4 De São Paulo S.A. 23 Disponível em <https://www.letras.mus.br/mc-pedrinho/menino-sonhador/> http://www.g1.globo.com/ https://www.letras.mus.br/mc-pedrinho/menino-sonhador/ 32 4.2 Aspectos psicológicos Ainda que que a sociedade veja o trabalho artístico infantil com certa glamourização e como forma de ascensão social, não se pode olvidar que também se trata de uma forma de apropriação da mão de obra infantil. Via de regra, o trabalho artístico não expõe o menor a condições penosas, perigosas ou insalubres como outras formas de trabalho infantil socialmente mal vistas (a exemplo do trabalho em lavoura, carvoarias, prostituição, etc). Pelo contrário, o trabalho artístico proporciona, de certa forma, uma faceta de expressão da personalidade, podendo ser visto inclusive como uma forma de acesso à cultura. Entretanto, o trabalho no meio artístico também pode trazer consequências, devido à fama e à exposição precoce, ao desenvolvimento da criança e do adolescente, conforme será demonstrado adiante. Comentando o tema, a Ministra Kátia Arruda, em entrevista publicada no sítio virtual do TST sobre o trabalho artístico infantil, alertou que: O estresse permanente que envolve a atividade artística, aliado às obrigações contratuais com horários, regras, além da possibilidade de exposição a diversos fatores de risco podem causar prejuízos psicológicos irreversíveis. Além disso, é comum o abandono ou descontinuidade escolar com defasagem na aprendizagem. [...] Já foi comprovado que a aparição de crianças em propagandas rende maior atenção ao produto que está sendo anunciado e em busca do lucro, muitas crianças são exploradas. Há um esforço necessário para se atingir um resultado de sucesso. Isso é comum a todas as profissões, porém, aponta Cavalgante (2012) que na carreira artística há uma intensificação, uma vez que as pessoas tendem a apreciar apenas a arte, resultado final de um trabalho que envolve pressão e sacrifício. No trabalho artístico infantil, aponta a autora, tal situação de esforço intensifica-se, por se tratar de um sujeito mais frágil. A autora complementa que: A questão é saber quais os limites adequados de tal participação, pois não é tão simples perceber quando uma atividade que gera prazer, estímulo e desenvolvimento à criança e ao adolescente se transforma em opressão e esforço prejudicial com consequências físico-psico-emocionais.(2012, p. 50) Em síntese, a autora conclui que “o trabalho infantil na televisão não é uma atividade cultural, que estimula o desenvolvimento da criança, mas sim um trabalho árduo, 33 que exige esforço, dedicação e compromisso.” (2012, p. 50). Não se nega que o trabalho artístico possa trazer benefícios aos pequenos, entretanto, desde já se deixa claro que qualquer omissão na vigilância dos limites à tal atividade pode trazer problemas de difícil gestão. 4.2.1 Escalando o Olimpo Lacombe (2006), em sua tese de mestrado em psicologia intitulada “A infância dos bastidores e os bastidores da infância: uma experiência com crianças que trabalham em televisão” narra sua experiência como psicóloga com crianças que trabalhavam na TV24. Buscando uma visão da psicologia, em uma perspectiva interdisciplinar, o presente trabalho compartilhará algumas de suas lições. Inicialmente, Lacombe (2006) aponta que a visão de infância não é única e imutável. É uma visão construída numa perspectiva social e histórica, não vendo a criança como algo universal, mas sim uma construção histórica atravessada pela cultura. Partindo de tal pressuposto, “podemos olhar para a criança como um outro que é potente e que tem algo a contribuir, que tem voz. Um sujeito produtor e crítico da cultura que o constitui e que é constituída por ele, um sujeito da linguagem” (2006, p. 30). Desta forma, construiu-se uma infância contemporânea, marcada pela cultura do consumo propagada pela mídia e cada vez mais antenada com o mundo adulto. Contraditoriamente, nesta nova infância as crianças estão cada vez mais afastadas dos pais, distantes e afastados socialmente. Abre-se um hiato entre o mundo adulto e o mundo infantil, no qual “a TV ocupa um lugar privilegiado no contexto infantil, tornando-se companheira, interlocutora, educadora e generosa no fornecimento de modelos que estão em falta pelo pouco contato cotidiano com os adultos” (2006, p. 38). Nessa nova infância, não há mais espaço para o mito: praticamente toda a informação está disponível às crianças. A TV e outras mídias mostram-lhes diretamente os bastidores do mundo adulto. Somado a tudo isso, encontra-se a difusão dos ideais de consumo, em uma mídia cada vez mais voltada para as crianças. Assim, elas acabam por compartilhar dos mesmos ideais dos adultos, como, por exemplo, o de entrar para a televisão e de ser famosa. Lacombe (2006) aponta que a psicanálise traz uma reflexão sobre a importância 24 A autora narra ter trabalhado em três equipes de produção, com vinte crianças e adolescentes, com idade entre três e quatorze anos. 34 da imagem no processo de subjetivação e construção de laços sociais. Soma-se a isso a ação do consumo no cotidiano e chega-se ao resultado de que ser uma celebridade, no “varejodas imagens”, é uma valiosa mercadoria. Nas palavras da autora, Se concordamos que o contexto contemporâneo ampliou o contato cotidiano da criança com a televisão (e outras mídias) — seja porque tem uma linguagem que não exige aprendizagem, como diz Postman, seja porque seu tempo livre foi privatizado e sua casa equipada tecnologicamente, como mostra Buckingham —, podemos concluir que os ideais midiáticos povoam tanto o universo infantil quanto o universo adulto. (2006, p. 80) A autora aponta o papel de programas como os da Xuxa e da Angélica, exibidos na década de 80 e 90, como propulsores de mudanças na relação da TV com o telespectador criança. Era um formato de programa no qual as apresentadoras compartilhavam sua intimidade com o público, atrelando à sua imagem o glamour e a bondade. Além disso, havia a presença de crianças no cenário, o que gerava nas crianças a perspectiva de entrar na TV e brincar com o ídolo. Assim, é “possível que esse novo formato também tenha afetado a relação que essa geração de crianças experimenta com a TV: entrar na TV já não é mais pura imaginação, mas sonho perfeitamente realizável” (2006, p. 82). De fato o sonho é mesmo possível. Até mesmo pelo impacto da criança “atrás das câmeras”, que traz inúmeros benefícios e um apelo midiático imenso. Ocorre que, ao entrar na TV, a criança depara-se com o mundo por trás dos bastidores. Um mundo marcado pela velocidade, onde não necessariamente há espaço para ser criança. 4.2.2 Luz! Câmera! Ação! Naturalmente, a criança possui especificidades e limitações que muitas vezes não são bem vistas pelo sistema “por trás das câmeras”. Lacombe (2006) aponta que há uma visão, nas situações cotidianas que as crianças passam nos bastidores, que são elas que devem se adequar ao sistema, e não que o sistema é inadequado a elas. Lacombe define tal situação como a infância dos bastidores, definindo-a como uma infância marcada por uma relação intensa com a televisão como audiência, conhecedora e interessada na vida de suas “celebridades” — interesse adultizado — e que, como os adultos de uma forma geral, almeja o sucesso, a fama e a exposição 35 na mídia. No entanto, a especificidade da infância caracterizada pela “experiência de sua não soberania25” (Jobim e Souza, Pereira, 1998, p. 35) também está presente. (2006, p. 90). Tal infância estaria envolvida em um universo tipicamente adulto, e os adultos que o habitam precisam reconhecer as especifidades do “ser criança” para que as entenda. Haveria, assim, um conflito de demandas entre o que se espera da criança e o que ela deseja e necessita. “Num ambiente adulto de trabalho, o comportamento tipicamente infantil, muitas vezes, aparece como o desvio” (2006, p. 90). E, ainda, o fato da criança ser menor por vezes é usado contra ela para identificar o limite do que a equipe de produção aceita dentro daquele ambiente. Aduz Lacombe que Assim, uma equipe é capaz de tolerar os mais “exóticos” comportamentos de grandes estrelas, mas, geralmente, repudiam qualquer indício (segundo suas interpretações) de “estrelismo” nas crianças. Comportamentos desse tipo são vistos como inaceitáveis numa criança. O paradoxo aqui fica por conta de ser a criança muito mais suscetível, por ter menos instrumentos e menos clareza de toda a dimensão da situação, a um certo deslumbramento com todo o glamour que envolve a sua condição de famosa. Enquanto os adultos de uma equipe se submetem e toleram situações muitas vezes humilhantes de estrelas adultas, não toleram qualquer sinal que interpretem como estrelismo numa criança. (2006, p. 102) Ao relatar sobre os momentos de descanso, Lacombe (2006) aponta que, por vezes, as crianças escolhem a televisão como brincadeira, ou seja, escolhem dramatizar e imitar a realidade que lhes cerca. Para a autora, tal escolha aponta um potencial reconhecimento e identificação com o que representam, bem como “o quanto brincadeira e trabalho, ficção e realidade se misturam” (2006, p. 91). Apesar de tudo isso, a autora aponta que a infância definitivamente não é suprimida dentro dos bastidores. Quando da presença de adultos que entendem e acolhem as crianças como crianças que são, elas podem continuar o sendo, sem uma submissão, obediência e repressão por parte dos adultos. Ou seja, uma vez que a infância não é aniquilada dentro dos bastidores abre-se a possibilidade de o trabalho artístico infantil ser realizado de forma não danosa para a criança. Apresentada uma breve análise do que acontece dentro dos estúdios, comentar-se-á sobre a influência do trabalho artístico no cotidiano dos pequenos. 25 A “experiência da não soberania” seria, para os mencionados autores, a marca da identidade da “natureza infantil” enquanto alegoria de uma capacidade humana de “desencantar (ou reencantar) o mundo da razão instrumental...” (LACOMBE, 2006, p. 102/103) 36 4.2.3 Corta! Em relação ao mundo fora da televisão, o fato de ter tido uma infância famosa também pode afetar a vida das crianças de várias formas. Uma delas é a questão monetária. Por lei, um dos pais, ou algum outro acompanhante, necessita estar presente nos estúdios de gravação. Desta forma, por vezes algum membro da família abandona sua carreira profissional para acompanhar a da criança, o que acaba por afetar o orçamento doméstico. Todos os responsáveis pelas crianças do grupo com o qual Lacombe trabalhou afirmaram depositar parte do salário das crianças na poupança. Porém, em 60% dos casos o dinheiro das crianças era utilizado para ajudar nas despesas em casa. Assim, a autora aponta que tais crianças teriam uma “infância e adolescência parcialmente protegida” (2006, p. 88), uma vez que, ainda que tenham o apoio dos pais, são também responsáveis, em parte, pelo sustento da casa. Outro aspecto importante apontado pela autora é o aspecto de transitoriedade da condição que as crianças se encontram, assim, é necessário que as crianças sejam alertadas e tenham consciência que podem voltar a ser “normais” facilmente, bastando se afastarem da mídia. Há o risco ainda de tais crianças colocarem “a atividade de fazer TV acima até mesmo da inexoralidade do crescer. Ela assume que suas características de criança são o que as mantém naquele lugar e, por isso, se entristece e se preocupa com as inevitáveis mudanças da idade” (2006, p. 101). E não só o afastar-se da mídia pode representar uma experiência potencialmente traumática, como também o estar na mídia. A condição de famoso traz para crianças um misto de prazer e desconforto. Lacombe (2006) narra que as crianças com que trabalhou sentiam prazer com o assédio dos fãs e com os privilégios recebidos (patrocínio de lojas de roupas, bolsas escolares, dentre outros). Por outro lado, elas não tinham total consciência do cuidado que precisavam ter com sua imagem pública, e, quando repudiavam o assédio, o faziam de maneira direta, como o caso narrado de um artista mirim de quatro anos que caiu em prantos quando se viu cercado por fãs desconhecidos. Esse é outro problema que a condição de famoso pode trazer para as crianças. Lacombe (2006) explica que a experiência da fama faz com que dois sujeitos psicológicos dividam o corpo físico da criança: o seu sujeito psicológico (de âmbito privado) e sua persona (sua imagem pública). Na realidade social brasileira, via de regra, as pessoas se sentem mais à 37 vontade para interagir, inclusive fisicamente, com uma criança. No caso da criança famosa, ela está em dupla desvantagem, já que o acesso ao seu corpo se justificaria tanto por ser criança quanto por ser pessoa pública. Além disso, a sua espontânea recusa em se deixar incomodar acaba sendo repreendida pelos adultos que, ao contrário dela, têm plena consciência da importância do fã e da atenção
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