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C M Bowra, Virgílio e os ideais de Roma pesquisável

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II 
Virgílio · e os ideais de Roma 
Quando se encontrava no seu leito de morte cm Brun-
dhium em 19 A. C., Virgílio pediu o manuscrito da Eneida 
com intenção de o destruir. No testamento deixou instruções 
aos seus executores para não publicarem nada, a não ser o que 
ele próprio editara já. Porém, por ordem de Augusto, estas 
vontades não se cumprir11m, sendo o poema posto a correr 
mundo, e para alcançar êxito imediato e fama constante sem 
paralelo na história, Mais do que qualquer outro livro, a 
Eneida dominou a educação e a literatura romana. Tor-
nou-se o «livro indicado, durante séculos para os estudantes, 
sendo admirado por quase todos os escritores, de Pc:trónio a 
S.to Agostinho. Sérvio compôs o seu maçudo comentário 
á interpretação, texto, gramática e mitologia ; Donato 
espraiou-se cm lições morais, que dizia tiradas dele:; Macró-
bio , dedicou as suas Saturnalia á discussão dos seus pro-
blc-mas. O poema subrevivc:u ao advento do Cristianismo e á 
queda de Roma. Na Idade das Trevas (1) gozou de prestígio 
especial, sendo estudado sucessivamente por Beda, Alcuíno e 
S.1• Anselmo. Na L:!ade Média Dmte exaltou V ergílio até ao 
máximo entre todos os poetas, nele vendo a corporizac;ào dos 
conhecimentos terrenos: 
Meu guia, meu senhor e meu modelo (1) 
ao passo que: Chaucer o considerava o mais completo mestre 
que se devia honrar e imitar: 
(1) O período histórico que decorre entre os séculos V e x. 
(Nota do Trad.), 
(21 Inf. li. 140·: t'-' duca, tu ugnore e tu maestro. 
44 VIRGlLIO E OS IDEAIS DE ROMA 
Honremos o teu nome, ó Mantuano, 
Por mim hei-de seguir-te fielmente, 
ó luz que sempre vais à minha frénte (1 ). 
No Renascimento, a Eneida tornou-se o grande poema que 
muitos poetas tristemente procuraram ultrapassar. Ela conservou 
o seu lugar de destaque e transformou-se à vez em escola de 
boas maneiras para o século XVII, e de estilo elevado para o 
século XVIII, enquanto os espíritos cépticos do século XIX nela 
encontraram um precursor das suas próprias dúvidas perante 
os problemas da vida e da morte. Em dois mil anos de histó· 
ria, a Eneida ocupou um lugar central na literatura europeia, 
sobrevivendo a fundas alterações seculares e religiosas. Nela 
se encontraram variedades sem par de inspiração, tendo sido 
admirada em umpos diferentes por diferentes razões. F.issem 
quais fossem os erros que Virgílio, ao morrer, nela encontrou, 
o poeta conseguiu fazer uma coisa que nem antes nero depois 
nenhum poeta épico fez. ajudando muitas geraçõ~s de homens 
a formular as suas opiniões quanto aos principais problemas 
da exi~tência 
Virgílio não foi quem primeiro escreveu a epopeia de 
Roma. No século llI A . C, Névio utilizara o antigo metro 
saturnino na sua Guerra Púnica, e no século imediato os 
Anais d~ Énio contaram a história de Roma de Rómulo até ao 
séu tempo. O primeiro destes três poemas deve ter-se asseme-
lhado muito à epopeia oral ou até às bJladas; o segundo, 
embora utilizasse o hexâmetro e fizesse muitas adaptações da 
maneira de Homero, foi delineado dentro do plano de anais, que 
é sempre pmsívcl quando a poesia chama a si a história. Virgí~ 
lio conheceu ambas as obras, e talvez o seu pocm11 se destinasse 
a rivalizar com elas e a apresentar, de maneira um pouco mais 
satisfatória, a verdade acerca de Roma, tal como ela fora reve· 
!ada à sua geração. Para o fazer, adoptou um método digno de 
nora. Abandonou o sistema analítico e, em vez de pôr a his-
tória em verso, deu o carácter e o destino romano através de 
um poema acerca dum passado lendàrio e, em grande parte, 
imaginário. O seu interesse ia menos para os factos históricos 
do que para o seu significado, menos para Roma nesta ou 
naquela época do que para o que ela fora Jesde o princípio e 
sempre, menos para os Romanos individualizados do qu: para 
Glory and honour, Virgil Mantuan, 
Be to thy name I and 1 shal as 1 can 
Folow thy lantern as thoM gost bi(orfl, 
VIRGÍLIO E OS IDEAIS DE ROMA 45 
um só, herói simbólico que exemplifica as qualidades e a 
experiência tipicamente romanas. Por meio de hábeis artifícios 
literários, como as profecias proferidas por deuses, ou visões nos 
Campos Elíseos, ou cenas gravadas em obras de arte, Virgílio 
liga o passado mítico à história escrita e ao seu próprio 
tempo. Mas desvios desses são excepcionais, ocupando roenos 
de 300 versos num total de quase 10 mil. A acção principal 
da Eneida decorre uns 300 anos antes da fundação de n.oma. 
O protagonista e os seus companheiros não são romanos, nem 
sequer italianos, mas troianos, cuja ligação ancestral com a 
Itália é vaga e remota. Grande parce da acção passa-se fora da 
Itália, e, quando ali decorre, limita-se a uma estreita faixa 
junto do Tibre. O próprio Eneias é um vagabundo sem pátria 
que nada mais pede senão algumas jeiras de terra para si e 
para os companheiros. Este remoto passado encontra-se ligado 
ao presente por muitos elos engenhosamente lavrados. Os 
heróis troianos são os antepassados de famosas famílias roma-
nas, e usam nomes ilustres na história de Roma. As suas ceri-
mónias, os seus hábitos, os seus jogos predizem o que há-de 
ser mais tarde o traço característico de Roma; eles tocam em 
lugares familiares a todos os Romanos; lendas e tradições 
locais encontram-se entrelaçadas na sua história: os deuses que 
os ajudam e defendem são aqueles cujo culto constituía a reli-
gião oficial do povo romano. Mais significativo, porém, do que 
estas re!Dções exteriores são o espírito, as virtudes e a visão 
romana que os troianos demonstram. As dificuldades enfren-
tadas por estes primeiros antepassados, as suas relações com 
os deuses, as suas emoções e ideais, a sua fidelidade familiar, 
o seu procedimento na paz e na guerra, a sua atitude para 
com a missão divina que lhes foi imposta, são típicas e repre-
sentativas dos Romanos, tal como se julgava que eles secnpre 
haviam sido. Virgílio importa-se menos com as origens do que 
com uma realidade permanente tal como desde o princípio 
ela se mostrara e ainda se mostrava no seu tempo. 
Um plano e um escopo como esses impunham espécie 
nova de poesia : passando da Ilíada à Eneida logo se torna 
patente que todo o ponto de vista é diferente e que Virgílio 
tinha uma nova visão da natureza humana e da virtude heróica. 
Homero limita-se aos indivíduos e aos seus destinos. A sorte 
de Aquiles e de Heitor dominam o seu desígnio; são os carac-
teres destes que determinam a acção. Virg1llo, porém, logo de 
início manifesta especial atenção, não pelo destino de um 
homem, mas de uma nação: não é o de Eneias, é o de Roma. 
Apesar de abrir com •As armas e o homem• e dar a !ntender 
46 VIRGÍLIO E OS IDEAIS DE ROMA 
que o seu herói vai ser outro Aquiles ou Ulisses, logo antes de 
co.ncluir o primeiro parágrafo já nos tem mostrado que vai 
alem de Eneias, até à longa história que dele procedeu: 
Donde a nação latina e albano, padres, 
E os muros vêm da·sublimada Roma(1). 
Logo depois, ao referir os obstáculos que os Troianos 
encontraram na~ suas viagens, de novo conclui um período 
com nota semelhante: 
Tdo grav5 era plantar de Roma a gentel (') 
_ D:pois, quando Vénus se ·queixa de que seu filho Eneias 
e_ tratado injustamente, Júpita responde prometendo-lhe não 
so que a respeito de Eneias tudo há-de correr bem, mas taro, 
bém fazendo-lhe um esboço profético da história de Roma até 
Júlio César. A recompensa que o tronco da raça romana vai 
receber vale muito mais do que o seu êxito ou a sua glória 
pessoal. mais ainda do que o sw estabelecimento na Itália: é 
a certeza do destino de Roma, do seu domínio universal 
e eterno : 
Metas nem tempos aos de Roma assino; 
O impéri6 dei sem fim (3). 
Virgílio mostra de começo que espécie de destino é o 
assunto do seu poema. As andanças e sofrimentos de Eneias e 
dos companheiros, e por fim o seu êxito, são apenas prelimina, 
r~s, preparação para um tema muito mais vasto. Razão teve Petró-
mo em chamar, como Tennysoo, ao poeta .Virgílio romano'".( 1) Eneida Brazileira cit , pág. 7 . 
. .. gmus unde Latinum 
..tlbanique patres atque altao moenia Romae 
(1) Ops. cit ., pág 8. 
Tantae molis erat Roma11am condere gentem. 
(3) Op, cit, pág. 45. 
his ego nec mttas rerum nec ttmpora pono : 
imperium sine fine dedi . 
(1, 6-7) 
(,, 33) 
11, 27&-9) 
VIRG1LIO E OS IDEAIS DE ROMA 47 
O assunto fundamental da Eneida é o destino de Roma 
tal como ele se revelou nesta alvorada da história antes da 
_ existência da cidade. Tal destino perfigura-se em Eneias que 
não só luta e sofre peb honra que há-de nascer, mas é já de 
si tipicamente romano. Se a sua sorte pcsRoal está subordinada 
à sorte de Roma, o seu carácter mostra já o que os Romanos 
são. Ele é o herói de Virgílio numa espécie nova de poema 
heróico; nele vemos como a visão épica do poeta é diferente 
da de Homero. Eneias é criaçã(!) pessoal de Virgílio, concebida 
com o intuito especial de mostrar o que é um herói romano. 
Ao contrário de Homero, pouco deve à tradição pelo que res-
peita ao carácter do seu herói. Enquanto Homero teve de 
conformar-se com as noções estabelecidas e de fazer o seu 
Aquiles ,de pés ligeiros•, o seu Agamemnon •rei de homens, 
e o seu Ulisses ,de muitas traças•, Virgíliô não estava sujeito 
a obrigações dessas. · Fodia procurar as suas pers0nagens onde 
quise,se e facetá-las conformes ao fim que tinha cm vista. 
O seu Eneias deve algo ao precedente homérico em ser grande 
guerreiro e d evoto servidor dos deuses, mas adquiriu persona-
lidade nova , sendo verdadeiro filho da meditação criadora de 
Virgílio e da sua visão imaginativa. As personagens da Eneida 
são criadas e amoldadas a um fim especial, contribuindo para 
o intuito principal. e tudo o que elas dizem ou fazem deve 
considerar-se à luz dos destinos de Roma. Por isso é erro 
tomá-los como se fossem personagens dramáticas como as de 
Homero. São-no mais e são-no menos. São-no mais por exi~• 
tirem para algo que os ultrapassa, algo que é típica e essencial-
mente romano ; são tipos, modelos, símbolos. São-no menos, 
po1que qualquer personagem típica carece de fisionomia e de 
idiossincrasia , o atractivo pessoal e as ânsias íntimas d e uma per-
sonagem que é criada por o ser e pela soma de deleite que o poeta 
nele encontra. Além disso, por Eneias ser a representação típica 
de Roma, também o são os episód ios que ele atravessa. As difi-
culdades que tem de vencer, o peso d a carga que os deuses 
lhe impuseram, os seres humanos que lhe armam ciladas ou 
procuram embaraçà-lo, os obstáculos que ele encontra naR suas 
circunstâncias ou na, dos que o seguem ou nele próp1io, 
1epresentam aquilo que pode acontecer a qualquer romano. 
Eneias procede como um romano procederia em condições 
familiares à experiência romana. Por isso, embora a acção 
decorra numa espécie de p;issado históri co, transcende a his-
tória duma forma que a Guerra de T,óia não transcendeu 
Homero. Cada acção' n.i Eneida pode interessar por si; o seu 
fim principal, po1ém, é tipificar uma categoria de acções e 
48 VIRGILIO , E OS IDEAIS DE ROMA 
situações em que se levantam grandes questões e em que estão 
cm jogo grandes resultados. Em parte devido a isto Virgílio 
conta uma história menos bem do que Homero. A sua missão 
impede-o, na realidade, de arquitectar uma história por simples 
prazer; de se concentrar inteiramente no entusiasmo daquilo 
que acontece. Além dos factos, há sempre algo mais, um pro-
blema, um princípio, uma ideia de que aquilo que se passa 
tem outra intenção além do seu interesse imediato. 
Virgílio trabalhou na Eneida doze ano~, e no fim mos, 
trou·se profundamente descontente com ela. Não parece plau-
sível que fosse o ela estar incompleta que o levasse a pedir 
que a destruíssem, pois até os versos incompletos têm muitas 
vezes beleza própria, e a arte da sua linguagem e versificação 
deu•lhe séculos de admiração devota. Parece mais provável 
que ele entendesse haver qualquer coisa de impeifeito em toda 
a sua concepção, corno se houvesse empreendido uma missão 
à altura da qual não se sentia ainda, ao fim de tanto trabalho. 
Antes de morrer, escreveu a Augusto dizendo que começara 
· o poema paene vitio mentis, •quase com perversão do espí· 
rito,, o que deixa a perceber ser o desãnimo e abatimento 
causados por qualquer falh a do plano principal. Quer assim 
seja ou não, a maior parte dos leitores da Eneida hão-de con• 
cardar que Virgílio, ao resolver escrever um poema épico de 
tema romano, se metera numa tarda de dificuldade extraor-
dinária. Por um lado, a sua epopeia devia rivalizar, de certo 
modo, com a Ilíada e a Odisseia; tinha de mostrar um herói 
comparável a Aquiles e a Ulisses; tinha de possui r todos 
os ouropéis homéricos. Era o que o . seu tempo dele recla· 
mava. A época de Augusto achava que tudo o que fosse 
inferior à poesia homérica era indigno dela. Assim corno Ale-
xandre lamentara não ter urn Homero que lhe cantasse as 
conquistas, assim Augusto parece ter decidido Virgílio a ser 
outro Homero. Esta nova epopeia devia, porém, ser alguma 
coisa mais. Tinha de descrever a virtHS romana ideal, perfeita· 
mente contrária ao ideal humano de H omero, e devia confor-
mar isto, por qualquer modo, com o plano épico antigo. 
Tarefa como esta não se encontrava inteiramente de acordo 
com os dotes de Virgílio, o que ele, na sua maneira autocrí· 
tica, parece ter sentido, Por felici dade, outros viram que as 
suas qualidades ultrapassaram por completo as suas deficiên-
cias, e salvaram-lhe o poema para a posteridade. 
O primeiro obstáculo de Virgílio ao escrever um poema 
heróico residia no seu próprio temperamento. Homero impressio· 
nara·o profundamente, sentindo ele que muitos dos seus dei-
VIRGÍLIO E OS IDEAIS D.E ROMA 
tos tinham de ser homéricos. Ao mesmo tempo reconhecia a 
natureza formidável de tal missão, dizendo aer-lhe mais fácil 
arrancar a massa a Hércules do que tirar um 'f'erto a Homero. 
Nem por isso deixou de perseverar e muit11 veze1 competiu 
com Homero no p.óprio campo deate. t ne11e1 p11101 que 
Virgílio se encontra mais exposto à crítica. rouco tinha da 
compreensão que Homero possuía da fúria e da loucura da 
guerra. Longe de sentir o entusiasmo guerreiro, achava-o 
odioso e horrível. Tinha de fazer de Eneias um grande guer· 
reiro e pintar cenas de carnificina, mas parece ti·las adiado, o 
mais tempo possível, pelo qué a sua primeira tentativa para 
escrever uma batalha heróica ocorre no livro X. Depois, labo· 
ríosa e conscientemente, procura criar de novo, na sua lin-
guagem sensitiva e melodiosa, o que Homero fizera tão natu-
ral e brilhantemente. Faz Virgílio todo o possível por tornar 
interessantes as batalhas que descreve. Entremeia·•• com estra• 
tagemas guerreiros, como canlaria, instrumentos de usédio e 
aríetes. Isto, porém, não basta, e nas suas batalhas nota-se uma 
espécie de esforço, como se o coração do poeta não se encon-
trasse nelas . Em Homero, as mortes de homens nio são ao sabor 
do gosto moderno, mas têm a sua vitalidade própria e, com 
certeza, muito mais poesia do que um passo como cate de 
Vir&ílio: 
A Hiclaspes Sacrator, o .Alcato Céàico, 
Rapon tronca a Parténia e o váliào OrHa ; 
Me,sapo a Glónio e o árcade Erfoett, (1). 
As figuras veladas que estão por detrás deste, nomes 
retumbantes não fazem parte da narrativa; o ,eu destino nlo 
inspira qualquer sentimento ou interesse. Um p11so deatea 
não tem relação com a experiência, sendo puramente literário. 
Virgílio escreveu-o por sentir que o seu poema o exi&i•; não 
lhe transmitiu, porém, vida, nem o fez na realidade aeu. 
Ainda mesmo quando é mai1 feliz do que aqui, o seu 
subconsciente meditativo, literário e altamente culto pareu 
\1) Op. cit , pá1 325. 
Caedicus Alcathoum obtruncat, Sacro,tot· B11daape" 
Parcheniumgue Rapo et prcsdurum viribu, Or,en, 
Messapus Cloniumque Lycaoniumque Erichaetm. 
(x, 747-P). 
• 
50 VIRG1LIO E OS IDEAIS DE ROMA 
opor uma barreira entre o seu original homérico e a sua ten-
tativa de o reproduzir em novas circunstâncias. Por exemplo:quando. Homero descreve a fatal perseguição de Heitor por 
Aqutles, e diz que eles não corriam para ganharem um boi 
condenado ao sacrifício ou uma tripode como as que são dadas 
por prémio 11a1 . corric)as pedestres, 
nao bovina 
Vítima ou p,le, da carreira prémios, 
J)o heroi Priameu se disputa a vida, (1 ). 
a impressão é verdadeira e exposta magnificamente. Provém 
cm lmh_a rccta do mundo heróico em que as qualidades 
exigidas _ para excrcíciqs, atlétic-:s também se o eram para a 
guerra, e tudo , o que difere entre as duas espécies de corrida 
é o prémio por que cada um deles corre. Vugílio tenta copiar 
este e{eito quando Eneias persegue . Turno : 
Leves prémio, de jogos ntto pkitei«m ; 
Da vida e sangue trata se 1k Turno (9). 
A eloquência latina torna este passo bastante claro, mas 
quase não desperta a nossa piedade e horror como desperta a 
aproximação dirccta de Homero. A descrição da corrida, tão 
real e verídica cm Homero, cm Virgílio não é tã<1 real. Ele 
não vê os exercícios físicos e atléticos com olhos de militar 
conhecedor, mal podendo sentir o entusiasmo da corrida como 
o de Homero. Algo de frescura e de verdadeiro desap11reccu 
na comparação, 
A incapacidade de Virgílio para vencer Homêro no seu 
próprio campo e a desconf1:1nça cm si mesro o ao procurar 
fazê-lo· deviam-se em parte às suas circunstâncias pessoais e 
(1) Ilíada dB Homero cm verso português por Manoel Odorico 
Mendes; Fio de Janeiro, 1874, pág 277. 
cWà napl ,pvv1, Oéo,, '1Ekio pó, ln no báµ,010 . 
(IL, XXII, ]61) . 
(1) Op. cit., pág. 384, 
... neque enim lcvia aut ludicra petuntur 
praemia, sed Turni de vita et sanguim certant. 
(xu, 764-3). 
VJRGlLIO E OS IDEAIS Dli ROMA 51 
reflectiam o temperamento do seu tempo. A geração para 
que Augusto apelou tão profundamente com as suas pro-
messas de paz e ordem, conhecera demasiado a guerra para 
acreditar que ela causava na realidade entusiasmo ou prazer. 
Ninguém tinha mais consciência disto do que o próprio 
Au~usto, tendo ele o cuidado de fazer que uma dus suas 
razoes de reclamar o poder fosse a restauração da paz. No 
relato que faz dos seus actos, deu a isso grande relevo ; a paz 
estava i~dissoluvclmente ligada ao seu nome nas orações com 
que pediam a sua protecção; 0 Templo de Jano encerrou-se, 
como sinal de paz em terra e no mar. O mundo de Augusto 
estava ca_nsado da guerra e pronto a sacrificar a hberda?e para 
pode_r dtdrutar a paz. Virgílio partilhava deste sentimento. 
Na Juventude conhecera a confiscação das suas terras por 
soldados da Guerra Civil, tomando parte no coro de louvores 
ao homem que trouxera a paz a Roma e ao mundo, O seu 
~úpiter profetiza o advento de Augusto, que há-de pôr termo 
a guerra: 
, • , Entao, deposta a guerra. 
Se amolgue a férrea idade (1). 
Nisto, Virgílio mostrava-se unânime com a maioria dos Romanos. 
(? espectáculo das lrgiões armadas, que Lucrécio podia apr_e-
c1ar com serenidade filosófica, era demasiado para a geraçao 
de Yirgilio, cansada da gueira. No entanto, apesar. dos se~s 
anse10s e da sua admiração pela paz, ele teve de mtroduz'.r 
na sua epopeia inevitáveis descrições de combates e do espt-
rito . heróico Ainda que possuísse dotes idênticos, _ ele nã_o 
podia descrever a guerra como Homero o fizera. Nao P?~ta 
mesmo r< percutir o ruído dos exércitos e o confiante espmto 
de vitória, que ainda se sente nos fragmentos de "Ênio. Se ia 
escrever uma epopeia que fosse realmente significativa para o 
seu tempo, devia considerar a Guerra dum modo que falasse 
à experiência do tempo e mostrar qual a parte que ela tomara 
na concepção romana da vida. 
. Virgílio não foi nisto completamente feliz, mas f<:i•o 
mais do que muitas vezes se admite ; em certos passos criou 
uma nova poesia, que os seus contemporâneos compreende-
(1) Op. cit., pág. 19. 
aspera tum poaitis mitescent saecula bellis, 
(1, 291). 
52 VIRG[LI0 E OS fDEAIS DE ROMA 
raro e àpreciaram, acerca da tragédia e da confusão da guerra. 
É significativo que o Livro li, a sua cena b.;lica mais prolon• 
gada e mais completa, não tivesse a aprovação d{' Napoleão. 
Disse este que Virgílio «não passava de um regente de colégio 
que nunca saíra das suas portas e não sabia o que aa um 
exército•; isto é verdade se o afer irmos pelo padrão de auste· 
ros ugentes de colégio. Virgílio não escreve como general, 
nem mesmo como velho militar. Considera a guerra do ponto 
de vista do cidadão que sofre, um caos de horrores e de con• 
fusão, ponto de vista perfeitamente humano: há muito de 
beleza trágica e de verdade eterna na sua descrição do Saque 
de Tróia, Na guerra, os horrores e a confusão desempenham 
inevitàvelmente um grande papel ; ao escrever a respeito disto, 
Virgílio ajuntou mais um campo ao reino da poesia. Nenhum 
soldado raso poderá negar a realidade e o realismo desta 
famosa narrativa, desde o estratagema, simples mas manhoso, 
do Cavalo de Pau, que leva os invasores ao coração da cidade 
sitiada, até à cena final em que os conquistadores reunem os 
despojos e lhes põem guardas, enquanto os pri1ioneiros 
esperam em longa fila à volta deles. Aspectos da guerra há 
que pouco dizem ao herói ou ao general, mas são muito 
conhecidos do homem vulgar. Virgílio é o poeta destes. 
A sua descrição do Saque de Tróia é a poesia da derrota 
do ponto de vista dos vencidos. Um assunto destes é familiar 
na poesia heróica, mas Virgílio trabalha de modo diferente. 
A derrota que ele descreve não é heróica e gloriosa como na 
Batalhfl de Malàon ou na Cançdo de Rolddo, nas quais os ven-
cidos quase preferem morrer quando podiam fugir, sendo essa 
preferência indício da sua natureza heróica, da sua crença de 
valer mais a morte do que a desonra. A Tróia de Virgílio 
não admite uma preferência dessas ; desde o princípio que está 
sentenciada, quando Laocconte é devorado pelas serpentes de 
Neptuno por duvidar das intenções honestas do Cavalo de Pau; 
no final o carácter predestinado da sua queda é indicado pela 
visão ameaçadora dos deuses vingadores : 
Doa deuses aim, dos dtuses a inclemência 
É que abate e 6ubverte a excelsa Troia (1). 
(1) Op. cit. pág. 5t. 
appare11t dirae facie& inimicaque Troiae 
numina magna deum. 
(U, 622-3). 
VIRGtuo E os IDEAIS DE ROMA 53 
Esta senteoç~ implacável torna-se evidente através de 
todos os cpisójios da tomada. Quando o espírito de H eitor 
aparece a Eneias em sonhos, não lhe f,,la cm combater: - tudo 
está perdido, a sorte de Tróia está lançada; o único caminho 
acertado é fugir . Os Gregos caem sobre Tróia como uma força 
natural irresistível, como fogo em seara ou torrente impetuosa 
sobre campos lavrados ou floresta . Os Troianos encontram-se 
inteiramente desprevenidos e a dormir pacificamente quando 
surge o ataque. São apanhados de surpresa, não tê-n plano nem 
chefe, s~ndo apanhados à traição pelo inimigo que se encontra 
no meio deles. Lutam com a coragem do desespero, como 
Eneias demonstra quando chima os camaradas: 
... morn,mos, pelas armas 
Rompamos. Salvaçdo para os ve11cidos 
Uma, esperarem salvaçao nmlrnma (1) . 
Não é este o genuíno espírito do heroí-imo. Quando 
o Velho Companheiro, na Batalha de Maldon, incita os 
seus homens a combaterem até final, sabe o que._ faz, e as 
suas resoluções brotam da sua crença em que com essa re iistência 
desesperada a dignidade humana atinge na realidade o seu 
ponto culminante. Os Troianos não têrn uma crença dessas. 
O seu desastre é trágico, mas não heróico. A velha concepção 
de um comb1te até acabJr foi substituída por algo de mais 
semelhante à realidade e, à sua maneira, mais penoso e mais 
espantoso. 
P0esia como a da descrição do Saque de Tróia por Vir, 
gílio levanta, quase inevitàvelmente, grandes questões ac rca da 
natureza do heroísmo e do valor do velho ideal h eróico. S 1, na 
realidade, a guerra é como isto, difk ilmente pode dizer-se que 
Homero teve razão em tratar os guerreiros como se fossem 
super-homens. Virgílio não se esquiva a qualquer das questões 
levantadas pela sua narrativa e impli~itamente critica o idealheróico demonstrando até que baixezas ele pode degenerar. 
Os seus troianos são bastante nobres; faltam-lhes, porém, as 
qualidades necessárias para a vitória, não podendo ser conside-
rados heró:s. Os sem gregos, cujos nomes e acçõ :s proYêm 
(1) Op. cit , pág. 50. 
moriamur et in media arma ruamus, 
utia salus victis nullam sperare salutem. 
(II, 353 - -4). 
S◄ VIRGILIO E OS IDEAIS DE ROMA 
da epopeia homérica e post-homérica, não se redimem pela 
nobreza, pela misericórdia ou pelos actos de cavalheirismo. O trai-
dor Sinon, que assegura a introdução do Cavalo de Pau dentro 
de Tróia, é um mestre de falsidade p~rjura que não se coíb~ de 
invocar os mais sagrados poderes para confirmar as suas mentiras, 
ou de alcançar os seus fins iludindo a nob ~e compaixão e ideal 
de justiça dos Troianos por um homem que eles crêem forte-
mente maltratado. A insí iia, que H .>mero descreveu tão 
humana e atraentemente em Ulisses, tornou-se sinistra, bestial 
e alheia à honestidade e à verdade. Sinon é a corrupção de um 
tipo heró 'co, o soldado esperto como mais tarde o considerou 
uma era desprovida de ilusões. Outro tipo, também sem os atrac-
tivos do soldado. desapiedado, é o que Virgílio apresenta em 
Neoptolemo. O filho de Aquiles herda do pai o carácter altivo e 
a fúria bélica, mas é b~utal e sanguinário. É comparado a uma 
serpente venenosa, com crueldade impiedosa mata fülites, uma 
criança, na frente do velho pai, Príamo, e a seguir mata o próprio 
Príamo. O hediondo horror de tal morte é expresso nas pala-
vras de Virgílio : 
... na praia o trrmco informe 
Jaz Bem WJme, e a cabeça decepada (1). 
A odiosa brutalidade dos Gregos aumenta o desespero 
dos Troianos, de Cassandra arrastada p !los cabelos do santuá- · 
rio de PJlas, de Hécuba e das filhas agarradas umas às outras, 
como pombas assustadas, junto do lar sagrado, de P1íamo cin-
gindo a sua espada inútil e atirando a Neoptolemo a sua triste 
lança sem préstimo. Num combJte como esse são os melhores 
que sucumbem, como Rifeu 
. . . o eapelho dos Troianos, 
O único ;usto, equíssimo Rijeu : 
Divino alto it4ízo ! (1J. 
(1) Op. cit., pág . 56. 
iacet ingens litore truncus, 
avulsumque umeri8 caput et sine nomine corpus. 
(B) Op. cit., pág. 52. 
(II, 557 - 8). 
iustissimus unus 
qui fuit in Teucris et servantissimu, aequi 
(dis aliter visum). 
(II, -426 - 8). 
VIRGlLIO E OS IDEAIS DE ROMA 55 
Uma vitória dessas não tem brilho nem glória. Foi alcan· 
çada pela traição e pela crueldade. A tal ponto dcgcncraradl 
os Aqueus de Homcr0. . 
A crítica do tipo heró;co que Virgílio nos dá na dcscn· 
ção do Saque de Tróia não é o seu único caao. Mostra ela um 
aspecto da questão tal como ele a viu, mas um só. Para ele, como 
para os outros, era evidente que um ideal que no seu t~mp~ 
exercera tão grande influência no Mundo, não podia ser mtel• 
ramente semelhante a isto, apesar de, por vezes, poder ~eg_e-
nerar ao ponto de descer até isto. Realmente, a sua m1ssao 
quase o obrigava a adaptar outra opinião, mais favorável, ª 
respeito dele i se os romanos de Augusto queriam ser campa· 
rac.los aos heróis, o ideal heróico devia reve~tir-se de certa 
Jignidade e atractivo. 01 sentimentos mais benévolos de V:ir· 
gílio para com ele podem ver-se no modo como caract:n:z:a 
Turno. O príncipe rútulo, que defende o Láci0 contra Eneias ~ 
ós seus troianos, é uma das criações de Virgílio mai, pus_ua· 
11ivas. Tem a vitalidade e a nobreza de um herói homénco, 
vendo-nos nós obrigados a admirá-lo e até a compadecer-nos 
dele. Virgílio pinta-o com carinho e amor, e mais do que pelo 
degenerado Neoptolemo, é por ele que ficamos a conhecer 0 
1entir do poeta a respeito de um herói. Turno é um novo 
Aquiles, como diz a Eneias a Sibila de Cumas: · 
. . também de deusa filho, 
Há no Lácio outro Aquiles, (') 
e aa suas acções provam bem que assim é. Como Aqui\e,, ele 
vive para a honra e para a glória, especialmente na guerr9:, 
Quando sabe que o estrangeiro desembarcou no Lácio e ten· 
ciona arrebatar-lhe a noiva, o seu primeiro impulso é lutar pelos 
seus direitos e pela sua honra. Achando que lhe ultraj aram 0 
uigulho, corre cm fúria para as armas. As comparações de 
Virgílio mostram a força e a energia de Turno. Quando ataca 
o campo troiano é como um lobo faminto correndo em Tolta 
do aprisco (IX, 59-64); quando é levado, lentamente e codl 
relutância, do campo de bat,ilha, é como um leão que se recusa 
a virar as costas e a fugir (IX, 79-86) i cai sobre Palas como 0 
(1) Op. cit,, pág. 187. 
alius Latio iam partus ..il.chilles, 
natus et ip3e dea, 
(VI, 89-9Ó) 
VIRGILIO E OS IDEAIS DE ROMA 
leão sobre o touro (X, 454-6); assemelha-se, do mesmo modo, 
ao leão ferido quando vê fraquejar o ânimo dos seus compa-
nheiros e se recusa a admitir a derrota (XII, 4-8). Estas compa-
rações baseiam-se na Ilíada e fazem de Turno, na sua majestade 
heróica, um igual de Aquiles e Ajax, Virgílio esforça-se por 
elenr Turno até aos antigos modelos heróicos e mostra como, 
seaundo aa melhores tradiçõ:s do seu tipo, ele reune as tropas, 
ataca o campo dos troian01, desfere golpes mortais a todos os 
que lhe aparecerem no caminho e luta com coragem indómita 
no seu último encontro contra a adversidade irremediável. 
~ um verdadeiro herói segundo o modelo homérico e nos 
combates encontra o campo próprio de acção para as suas 
inclinaçõe1. 
Turno é mais do que um grande guerreiro. Não é sem 
razão que ele crê que luta pela sua terra. Apela para os seus 
compatriotas para verem em jogo os seus interesses; a 1go de 
Heitor há nele quando se dirige ao Conselho Latino, dizendo: 
. . . e•posa e valor vos lembrem, 
Lembrem-nos pátrios feitos gloriosos. (1) 
Ao contrário de Aquiles, não exulta com os inimigos prostra-
dos, e apesar de. a morte de Palas lhe custar no fim a própria 
vida, não lhe maltrata o cadáver nem se reg.izija por dele haver 
triunfado: generosamente, entrega-o para que o enterrem. 
Tão-pouco é a sua confiança daquela espécie que desfJlece aos 
primeiros indícios de fracasso. Recebe golpes formidâl'eis, sofre 
a derrota das suas tropas, a qu~bra das neg0ciações diplomá· 
ricas com Diomede1, o apoio pouco sincero dos seus colegts e 
a inveja mal oculta dos seus rivais, e conserva, apesar disso, uma 
altin confiança nos seus aliados latinos (XI, 428 e ss.). Sente-se 
ansioso por dar a vida pela pátria em combate singular, seja 
quem for o inimigo poderoso; e, ainda quando as suas espe-
ranças começam a desvanecer-se e a morte é quase certa, está 
pronto a suportar a carga, apesar de ter os deuses contra ele; 
mantém até final intacta a sua honra. Visto como não pode 
viver, morrerá como homem e digno da sua raça: 
(') Op. cit., pág. 312. 
nunc coniugis esto 
qui,que suae teclique memor, nunc magna referte 
facta . patnim laudei. 
(x, 280,82) 
VIRGlLIO E OS IDEAIS DE ROMA 
Pois morrer tanto cuata? Vós ó manes, 
Já que o.<J céus me aborrecem, protegei-me: 
Alma insolente e sem mancha, à Estige baixo, 
Dos meus grandes avós tufo terei pejo. (1) 
57 
No combate final não sente medo do antagonista, mas apenas 
dos deuses; recusa humilhar-se diante do triunfante Eneias e 
diz com altivez: 
. . . Esses feras não me assustam : 
Júpiter sim e os inimigos dtuses. (1) 
s~ pede a Eneias para lhe poupar a vida, é por causa do velho 
pai e por não u:reditar que Eneias continuará a odiar e a 
querer tirar vingança quando alcançou tudo aquilo que quis. 
Em Turno há muito de Aquiles, muito também de H eitor; nada 
existe de Sinon ou de Neoptolemo. É o herói que luta pela 
honra e pela pátria. Nele as qualidades heróicas nada perderam 
da sua fascinação, podendo nós estar certos de que Virgílio 
admirava-o tanto como nós. 
O poeta faz mais do que admirar Turno : tem um pro· 
fundo sentimento por ele, em especial na luta final com Eneias. 
Turno não tem esperança na vitória, pois os deuses o abando-
naram. Mas não recusa o combate. Há um sentimento trágico 
no seu desalento quando ergue a última arma, uma enorme 
pedra, e a atira em vão contra o inimigo.Em parte nenhuma 
da Eneida 03 versos são tão profundos e tão ternos como na 
comparação que mostra a inutilidade dos esforços de Turno: 
(11 Op. cit , pág 381. 
usque adeolle mori miserum est ? v,s o mihi , Manes, 
este boni quolliam superis a11ersa voluntas. 
sancta aà vos anima atque istius inir.ia culpae 
descendam magnorum hauà iinquam indignus avonon 
(XII, 6◄6-9) 
(') Op. cit,, pág. 388 . 
non me tua fervida terrent 
dieta, ferox; di me terrent et luppitir hostis. 
(XII , B94-5) 
58 .. VIRGfLIO E OS IDEAIS DE ROMA 
Como em sonhos, se l4nguida modorra 
Nos preme os olhoi, ávida carreira 
Tentando em vão, no meio esmorecidos 
Sucumbimos ; a lfngua e a voz nos falha, 
Falham no corpo as forças : tal por onde 
Seu valor Turno msaia, o impede a fúria. (1) 
hto está de todo fora do método de Homero, E,obora 
o esboç,) geral da comparaçã) proveoh.1 da Ilíada, em que a 
perseguição de Heitor por Aquiles é comparada à de um 
homem por outro em sonhos 
Como em sonhDB não pode ao fugitivo 
Este alcançar, nem se livrar aquele; 
Reitor assim de Aqitiles não se livra. (1) 
a comparação homédca é muito menos patética, muito 
menos interessada nos sentimentos do vencido do que é a de 
Virgílio. Homero vê a luta exteriormente, ao pJsso que 
V1rgílo a vê com todo o horror, desespero e desânimo que 
ela tem para Turno. Chega o final, Turno é morto e com a sua 
morte acaba o poema, não com uma nota de êxito, de triunfo 
ou até de dever cumprido, mas quase com um lamento p,:>r 
este grande e,pírito condenado a uma triste sorte tão cedo. 
Não é em Eneias, mas em Turno, que ficamos a pensar ao 
concluir da Eneida: 
(1) Op. cit. pág. 3t18. 
ac velut in somnis, oculos ubi languida pressit 
nocte quies, nequiquam avidos extendere cursus 
velle videmur et in med'iis conatibits aegri 
succidimus - non língua valet, non corpore notae 
sufficiunt vires nec vox aut verba sequuntur : 
sic Tur1110, quacunque viam virtute petivit, 
successum dea dira negat 
(') .A Ilíada de Homero, cit . pág 278 
w, 3' w &vslpq> ov 3vvat:a, cplvyovra J,roksw, 
olJr' llp' & ,:ov Júvara, v:rrocpt'Úysiv olJO' & <lufi/;ew. 
&l, & ,ôv ov Jvvaro 11áptpa, noolv, oM' éJs à.!ú.;a,. 
(xn. 908-14) 
(n., XXII, 199-201). 
; 
VIRGILIO E OS IDEAIS DE ROMA 59 
Gelo 01 órgã,s lhe aolvt, e num gemido 
À alma indignada se afundou nas sombras ('). 
O poema da Roma imperial termina, não com um pean 
patriótico, ou com a esperanç~ em altos fc.:itos nacionais, mas 
com o sentimento da morte de um mancebo. Não podemos 
duvidar de Virgílio querer que sentíssemos que Turno era 
uma nobre figura heróica e que a suJ morte não constitui 
mero incidente na fundação de Roma, nem um castigo por 
resistir às determinações dos deuses, Ele insiste na nobreza e 
no patético de Turno, que devem ter tido certa influência 
no seu plano geral. 
Turno é uma figura trágica, a sua morte um trágico 
acontecimento. Ele morre por opor-se ao nascimento, inevitá-
vel e predestinado, de Roma, mas isso não quer dizer que n os 
devamos regozijar com ele ou condená-lo por tudo o que faz. 
O nascimento duma potência como R0ma exige sacrifícios 
desta espécie. São inevitáveis, mas não são necessáriamente 
matérias para reg,1zijo. Virgílio considera Turno um herói trá· 
gic.o, um grande homem que possui elevados dotes e é, em 
muitos aspé'ctos, admirável, mas cai por causa de um só erro. 
O plano é mais de Sófocles que de HJmero, pois o erro que 
leva Turno à ruína é também a fonte da sua grandeza: é o seu 
orgulho heróico e o sentimento do seu próprio valor. Tal 
plano adopta-se naturalmente ao modelo épico, dando à nar-
rativa profundeza e significação, Turno opõe-se à divina mis-
são de Eneias porque os deuses resolvem que ele o faç~, e 
Juno, que se opõe a isso, utiliza-o como seu instrumento. Isto, 
porém, não quer dizer que Turno seja uma vítima involuntária 
ou um brinquedo nas mãos dos d euses, Ele procede assim por 
ser da espécie de homem que antepõe o seu orgulho a tudo o 
mais. Não pôde ver como eram poderosas as potências que 
lutam ao lado de Eneias, acreditando que o seu destino pode 
enfrentá-las. Por isso é cego aos presságios e surdo à q profecias 
reveladoras do significado da chegada de Eneias à Itália e finge 
acreditar que o simples facto é que tem importârlcia e que 
com ele se cumprem os oráculos. Por esta razão não os 
teme : 
\1) Op cit., pág 389. 
ast illi solvuntur frigore membra 
vitaque cum gemitu {ugit indignala sub umbras. 
(xu, 951-2), 
60 VIRGÍLIO E OS IDEAIS DE ROMA 
Nada os fatais oráculos me assombram, 
Se de alguns o inimigo ora se jacta. 
Basta a Vénus que os seus na pingue Ausónia 
Toquem (1 ) . 
Ele confia tanto no seu próprio destino e no seu próprio 
critério, que comete erros fatais, primeiro quando alegre e 
confiadamente toma armas contra s Troianos, em segundo 
lugar quando, em vez de aproveitar uma b .:ia oportunidade de 
paz, segue a sua próplia opinião desassísada e resolve repetir a 
b1talha e manifestar as suas façanhas pessoai,. O seu amor 
pelos combates e pela gló ria cega-o ao mal que cometeu, 
resultando daí que se vê obrigado a combater sozinho Eneias 
e é morto. O seu forte temp!ramento debilita-lhe o rJciocínio, 
não sabendo em que ponto há-de deter-se. Constitui ele um 
exemplo desse trágico lJpPi. , ou or'gulho que leva o homem 
demasiado longe e trabalha pelo seu aniquilamento. Pur fim 
morre por tentar realizar aquilo que está para alérn das suas 
p:issibilidades, o que Virgílio mostra de modo significativo. 
Quando Turno mata PJlas, tira ao cadáver um cinturão com 
relevos, comentando o poeta: 
. . . oh ! mente humana, 
Fera e descamedida na bonança, 
Do porvir néscia ! (2) 
Turno manifesta a sua ex:ultaçio tomando o cinturão; 
no final, quando ele próprio se encontra à mercê de Eneias e 
pede que Ih~ perdoe a vida, há um momento em que ele ia 
ser poupado; Eneias, porém, a ponto de ced er, vê o cinturão e 
sente-se incitado a matá-lo. Rig,)rosamente f,,lando, Turno não 
é castigado por matar PJlas, pois esse era legítimo acto de 
(1) Op cit pág. '.lS2 . 
nil me fatalia terrent, 
si qua Phryges prae se iactanl, responsa deorum : 
sat fatis Venerique datum, tetigere quod arva 
fcrtilis Àusoniae 'l'roes. 
(2) Op. oit., pág. 318 . . 
(IX, 133·6). 
nescia mens hominum fati sortisque futurae 
et servare modum rellus sublata secundis ! 
(x, SO l-2). 
VIRGILIO E OS IDEAIS DE ROMA 61 
guerra; é-o por viver vida de combates e inevitàvelmente 
recorrer à guerra quando a vontade lhe é contrariada. Ele 
representa esse mundo heróico que nos seus ideais contém as 
sementes da própria destruic;ão, e nele demonstra Virgílio que 
compreendia o tipo heróico e até o admirava, mas sabia não 
ser aquilo de que o Mundo precisava. 
Turno não é o único exemplo que Virgílio apresenta 
do tipo heróico. Com ele podemos, por muitas formas, comparar 
Dido, o mais pedeito e o mais feliz retrato de mulher que o 
poeta nos mostra na Eneida. Assim como Turno estorva Eneias 
no seu destino, assim o faz Dido à sua maneira. Também ela 
é instrumento de Juno; também ela atrai a nossa admiração e 
a nossa compaixão. Ela não provém de Homero e não tem 
raízes nas histórias heróicas. Virgílio transmitiu-lhe a sua 
feição heróica à sua maneira própria e por razões pessoais, 
Ela é um exemplo daquilo que uma mulher pode ser se o 
seu carácter for semdhante ao de um homem heróico. Também 
no seu caso Virgílio imagina a narrativa com espírito trágico 
e lhe dá a feição de uma tragédica àtica. Abre com a conversa 
entre Dido e a confidente, semelhante à de Fedra e a Ama 
no Hipólito de Eurípides. Daqui segue inevitàvelmente até à 
crise e à catástrofe, estando porém a poesia mais nos discursos 
do que nos relatos de acção. A mulher ofendida resolve suici-
dar-se, mas antes lança uma horrível maldição ao homem que 
lhe fez mal, segundo ela ctê. Depois vem o final, tranquila· 
mente, com um deus ex machina, quando Iris liberta Dido da 
da sua agonir de morte. Há mesmo passos, como o relato de 
Atlas ou do Rumor, que se assemelhama odes corais e cons· 
tituem intermédios líricos à sombria história. O tom e a cons-
trução do Livro IV provêm da tragédia grc."g'a; estamos na 
razão fazendo corresponder a catástrofe de Dido a um desas-
tre trágico. As lágrimas que s.to Agostinho lamentou ter 
derramado sobre ele na juventude iludida demonstram que, 
pelo menos, o seu juízo literário não era erróneo. Por detrás 
desta semelhança exterior com a tragédia podemos ver tam-
bém uma visão e uma intenção trágica, um desígnio que liga 
Dido a outras grandes mulheres cujo carácter é o seu destino. 
Como Turno, Dido tem um erro trágico. Ela fez voto 
de se conservar fiel ao espírito do defunto marido Siqueu, 
mas quebra-o quando se une a Eneias, É esta a culpa que 
eventualmente prova a sua ruína. Sem ela, nunca se teria 
apaixonado tanto por ele ou lhe teria sentido tão profunda• 
mente a deserção. Enquanto ainda hesita em resistir à paixão, 
Dido diz: 
62 VIRGILIO E OS IDEAIS DE ROMA 
... ao toro e /achas 
Tédio se na, tivesse, eu talvez, Ana, 
A esta só culpa sucumbir pudera (1), 
e depois de se deixa(vencer por ela, Virgílio repete a palavra 
culpa para não deixar dúvidas quanto ao seu significado: 
Nem mais Dido medita amor furtivo ; 
Com todo o Eg1pto, oh peío l aegue a esposa (2). 
A um romano a culpa havia de parecer mais grave que a nós. 
Não só consideraria especialmente santificado o juramento 
prestado a um marido dtfunto, mas também, pelo menos em 
teoria, havia de admitir que uma mulher não deve ter durante, 
a vida mais de um marido. Por isso, quando Dido cede à 
paixão, não se éncontra isenta por completo de culpa. Por 
outro lado, o castigo dela está muito além do que merece. 
Virgílio é explícito quanto à origem das tristezas de Dido, 
mas não diz que ela as merece todas, tendo sido o julgamento 
da posteridade que ela sofre injustamente. É ela e não Eneias 
quem merece a nossa piedade, ela, cujos sofrimentos dão origem 
à mais alta poesia de Virgílio. Tal como Turno, ela é conce· 
bida na escala heróica. Ao fundar Cartago, levou por diante 
um grande empreendimento arriscado, e até à chegada de 
Eneias é um grande chefe de Estado, razão pela qual tanto 
maior é a catástrofe quando esta chega. Quando está a morrer 
esquecemos a sua culpa inicial, e apreciamos a justiça c?m 
que nos Infernos, onde foi reunir-se de novo ao falecido 
marido, repele com desdém as desculpas de Eneias e a tenta· 
tiva deste para fazer as pazes com ela. 
O mundo moderno lamenta Dido e não Eneias, e no 
geral parece que os Romanos fizeram também o mesmo. 
Talvez Ovídio tenha em parte certa culpa disto, porque na 
(1) Op. cit., pág. 113. 
si non pertaesum thalami taedaeque fuisset, 
huic uni forsan potui succumbere culpae 
(2) Op. cit, pág. 118· 
(1v, lS-19). 
nec iam furtivum Dido meditatur amorem: 
coniugium vocal, hoc praetexit n~mine culpam. 
(1v, 171-2). 
VIRG1LIO E OS IDEAIS DE ROMA i 63 
Carta de Dido para Eneias pôs-se abertamente ao lado dela, 
d ando um exemplo que outros seguiram, Até. porém, sem o 
exemplo de O vídio, parece provável que os Romanos teriam 
tomado a defesa de Dido. Na sua mocidade, s .to Agostinho, 
chorou por causa .dela, e, em idade mais avançadf, acentuou a 
dureza de coração de Eneias na forma como a tratou. Uma vez 
que Virgílio a apresentou como fez, quase não hat ia alternativa 
para a aceitarmos como mulher injuriadíssima. todavia , para 
os primeiros leitores de Virgílio, Dido não podia, ter esperado 
causar impressão tão imediata e tão poderosa. Ao ler o 
que o poeta disse a seu respeito, eles sentiriam suspeita e 
desconfiança. Virgílio deve ter tido consciência disto, e o modo 
como apresenta Dido demonstra como ele era capaz de fazer 
erguer o seu público romano acima das paixões nacionais, até 
uma visão mais imparcial. A sua Dido deve ter, forçosamente, 
evocado a lembrança da influência de outra rainha estrangeira na 
história romana e o seu domínio fatal sobre um grande romano. 
O episódio de António e Clrópatra provou como o Oriente 
era perigoso para o Ocidente, podendo ver-se o sentimento 
geral de alívio com a morte de Cleópatra, na explosão quase 
histérica de alegria de Horácio a respeito do facto . Pelo lugar 
que ela ocupa no l!i:scudo de Eneias torna-se evidente que 
Virgílio partilhava a opinião geral: 
Chama-o consórcio, e o nome é réu de culpa (1) . 
A palavra condenadora nefas (oh pejo 1), não deixa dúvi~a 
quanto à maldade das relações de António e Cleój)atra. É, pois, 
neste cenário de ó;lio, de temor e de horror que devemos colo-
car a Dido de Eneias. Ela não é Cleópatra. Todavia as duas 
mulheres têm bastante de comum para que Dido recorde 
as tentações e os pe-rigos que os Romanos sabiam que se 
escondiam no Egipt0. As duas rainhas têm certas semelhanças 
supediciais e acidentais. Cada uma delas reina em Af,ica, e na 
mocidade foi despojada da herança por um irmão'; cada uma 
delas se apaixona por um romano notável, se assim podemos 
chamar a Eneias, e cada uma acaba por se suicidar. Mais 
importantes são as semelhanças de carácter. Cada .uma delas é 
(1) Op. oit., pág. 272. 
Sequiturque, nefas, Aepyptia coniunx . 
(vm, 618). 
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64 VIRC1LIO E OS IDEAIS DE ROMA 
imperiosa e voluntariosa, capaz de actos desesperados e de 
executar grandes empresas e de governar um povo cercado de 
inimigos; cada uma tem o temperamento exaltado da mulher 
livre de quaisquer preconceitos de decoro romanos e possui a 
independência poderosa de quem nasceu para mandar, Havia 
em Cleópatra, assim como em Dido, muita coisa a impor o 
respeito e a admiração. Num mundo romano estas grandes 
figuras estão à parte, de modo notável. Virgílio deve ter visto, 
quando criou Dido, que os seus leitores haviam de relembrar 
Cleópatra e, consciente ou inconscientemente, dar a Dido 
muitos dos seus antigos sentimentos ressuscitados, pela rainha 
egípcia, e ver nisso ainda outro exemplo dos perigos que o 
Oriente trazia ao Ocidente. Foi precisa toda a arte de Virgílio 
para suavizar essas dúvidas, e parece que de facto o conseguiu. 
Dido podia tornar-se igualmente suspeita por outra razão. 
Era cartaginesa, chefe de um povo que fora a maior ameaça 
conhecida para Roma e de que pouca coisa de bom se disse 
ainda muito tempo depois da destruição de Cartago. A opinião 
oficial e, sem dúvida, popular acerca de Cartago torna-se cvi· 
dente pelo juízo de Tito Lívio a respeito do grande Aníbal, que 
vê, neste soldado, cujos leitosa inda nos :mpmsionam a imagi-
nação, o exemplo da crueldade, da falta de escrúpulos e 
traição mais que púnica (1). Sente-se o mesmo espírito cm 
algumas odes de Horácio, quando fala da perfídia de Cartago 
e considera a ruína desta o justo castigo da sua impiedade. 
Sentimentos análogos foram partilhados por Cícero, que fez 
uma exccpção aos honrosos inimigos de Roma os • Cartagi-
neses que quebram os tratados e o cruel Aníbal • (1) . Virgílio 
conhecia estas desconfianças e, de certo modo, partilhou delas. 
Ele viu que Dido, na qualidade de fundadora de Cartago, 
atrairia a desconfiança. Adopta, pois, uma solução atrevida. 
Quando Dido se viu abandonada por Eneias, amaldiçoa-o e 
aos seus descendentes, profetizando a sua maldição, as horren-
das lutas das Guerras Púnicas e o advento de Aníbal: 
(1) XXI, 4, 17 : , inlmmana crudeli tas, perfídia plus quam 
Punica, nihil 11eri, nihil san,ti, nullua deum 11i rtutum, nullumjus juran-
dum, nulla religio •· 
(Nota do Trad.) 
(2) De Off., 1, xu 28 : Pami f redifragi, crudclis Bannibal, 
reliqui justores. 
VIRG1LIO E OS IDEAIS DE ROMA 
... Dos ossos tu me nasce, 
Tais colonos persegue II fogo e ferro, 
ó vingador : iá, logo, em todo o sempre 
QttP. haja forças . . (1) 
65 
.A hora da morte, Dido clama vingança sobre Roma : 
nali)uele momento parece ela a responsável pelas Guerras 
Púnicas. Todavia , é por Eneias a ter abandonado que o faz, 
pelo que o herói é tão responsável como ela. Na verdade, isto 
podia muito bem levar os leitores romanos a odiar ou a con-
denar Dido como inimiga da sua raça, mas o poderda poesia 
de Virgílio é tal, que nos leva até a simpatizar com a maldição 
de Dido. Ele parece desposar a causa dela com tanta sinceri-
dade, que os Romanos quase se viram obrigados a esquecer os 
seus agravos nacionais na sua compaixão pelo trágico destino 
de Dido. 
D e fa cto, Virgílio leva as desgraças de Dido a despertar 
uma com paixão e uma simpatia que ultrapassam e até oblite-
ram considerações legítimas do que uma mulher dessas signi-
ficava p ara Roma. Serve-se de todos os meios para a fazer 
majestosa, humana e trágica, Demora-se a descrever-nos a sua 
grandeza de carácter e de coração. Quando surge pela primeira 
vez, é uma grande rainha e uma grande mulher. Fundou e 
edificou Cartago, conduziu um grande agrupamento de gente 
desde Tiro até às desoladas praias da Africa, onde está a levan-
tar uma cidade esplêndida que deve ter feito recordar os templos 
e palácios que Augusto estava a erguer cm Roma. A recepção 
que ela faz a Eneias e aos seus troianos é calorosa e sincera. 
Nos seus oferecimentos de hospitalidade, ela não faz quaisquer 
reservas, convidando os troianos a ficar em Cartago e prome-
tendo-lhes não fazer qualquer distinção entre eles : 
Nào fare i distinção de Frígio a Peno (Z). 
(1) Eneida brazileira, pág. 132. 
exoriare aliquis nostr i.1 ex ORsibtt8 11ltor 
qui face Dardanios ferroque sequare colonos, 
nunc, olim , quocumgue dabunt se timpore viris. 
(2) Op. cit , pá g 24. 
(IV, 625 - 7) . 
'l'ros 'l'yriusqu~ mihi nullo discdmine dgetur. 
(1, S'4) . 
66 VIRGILIO E OS IDEAIS DE ROMA 
Recorda ela os antigos laços existentes entre a sua pró('ria 
família e a de Eneias, manifestando o que o mundo antigo 
teria considerado modéstia conveniente ao dizer que os seus 
sofrimentos próprios lhe ensinaram a socorrer os inklizes: 
Por trati ,~es mil trflzida, iguais deatinos 
Cá me fixaram Ndo do mal ignara 
A socorrer os m1seros aprendo (1) . 
O seu estado real manifesta-se nas festas e presentes, 
nas cerimónias prestadas aos deuses, na corte com os digniti.· 
rios e menestréis e as conversas que se prolongavam pela noite 
dentro, e na bondade ilimitada demonstrada para com o 
pequeno Ascânio. Mais ainda do que Turno, ela é um guia de 
homens que cumpre o seu dever com admirável consciência e 
grande estilo. Não foi assim que os Romanos viram Cleópatra. 
Dido fala aos sentimentos profundos dos Romanos ~ o respeito 
pelo poder, pela hospitalidade e pela generosidade. Ela é uma 
verdadeira heroína pelos seus dotes e pelos seus nobres senti-
mentos. 
Até nas suas relações com Eneias, Dido aparece a 
uma luz inesperadamente favorável. Cometeu um erro em 
quebrar ó juramento feito ao primeiro marido, mas depois 
disto não é fácil condenar-lhe o procedimento. Apaixonou-se 
por Eneias, nunca dizendo Virgílio que ele está apaixonado 
por ela. Levada pelo seu amor, julga ela a união um autêntico 
casamento. E não era muito. Os dois consumam o seu amor 
numa caverna para a qual os empurrou uma tempestade, des, 
crevendo o poeta as circunstâncias : 
Ttlus sinal deu logo e Juno prónuba: 
Corisca , e o éter t,abedor das bodas 
J'ulge, e no mno as ninfas ulularam. (1) 
(l) Op. cit, pág. 26. 
me quoque per multo,9 .~imilis fortuna labores 
iactatam hac demum voluit consistere terra. 
non ignara mali miseris succurrere disco. 
(1) Op. cit. pág. 118 
(1, 628 - 30). 
.. • prima et Ttllu8 et pronuba Iuno 
dant aignum ; fulsere ignes et conscius aether 
co11ubiis, summogue ulularunt vertice Nympliae. 
(1v, 166·8). 
vnt.GfL!O ! OS IDEAIS DB ROM A m 
Os factos são! menos simples do que parecem. O que se 
passou foi que as poteatades do céu e da terra celebraram à 
sua moda a cerimónia de um casamento antigo. A Terra-mãe 
e Juno, deusa das bodas, dão o sinal para principiarem 61 
ritos; os relâmpagos correspondem aos fachos nupciais; o ar é 
uma testemunha e as Ninfas soltam o grito nupcial. Tudo está 
em boa ordem para a celebração do casamento ; este, porém, 
é celebrado pelas forças da Natureza e não por seres humanos. 
Conclui-se daqui inevitàvelmente que o casamento é, de certo 
modo, válido. Dido não desposa Eneias como uma romana des-
posa um romano, roas siin com a aprovação da Natureza, acre-
ditando que o casamento é real. Nesta crença não vacila, 
1endo para ela que apela quando pede a Eneias qué não a 
deixe: 
Por nosso matrimónio, pelas núpcia, 
Enc,tadas . . . (') 
Ê, porém, precisamente nisto que reside a trágica dis• 
cordància. Eneias, já um típico romano, não partilha da crença 
dela. Ao responder-lhe, nega que algum dia tivesse casado : 
Nem a furto ausentar-me, tal nao penses, 
Cuidei: nem pretendi jamais as tedas. 
Ou vim nunca afirma,· esta aliança . (1) 
Ele sabe que, como o destino o chama à Itália, não há 
quaisquer laços a prendê-lo a Dido. Entre os dois ponto• 
de vista cxi1te um conflito irredutí vel. Dido deu toda a vida 
ao amor por Eneias; quando este o rejeita, para ela não há 
senão a morte, pois a vida não tem qualquer significado sem 
ele. O conflito provém de desacordo mais profundo. Dife· 
rentes pela origem e pelo destino, ela e Eneias não podem 
(l) Op, cit., pág. 122. 
Per ccmubia no3tra, per inceptos hvm,naeos. 
(l) Op. cit., pág. 123 . 
(tv, 316) 
• • • nec coniugi& unquam 
praetfflài taedaa aut haec in f oedtra ,eni, 
(tv, 338-9). 
A, •teclas• etam as toebas nupciais. (Nota do Trad) 
68 Vlletuo E os IDEAIS Dl! ROMA 
unir-se por qualquer forma autêntica ou válida. C2da um deles 
se julga na razão, e tem boas ra2ões para o acreditar. Subme-
tendo-se à sua culpa original e entregando-se à paixão por 
Eneias, Dido abre o caminho à sua própria condenação. 
A consumação da caverna é o principio do fim: · 
Este o dia letal dos males causa (1) 
Uma vez que ela acredita Eneias seu, está resol-
vida a conservá-lo a todo o custo, esquecendo tudo o mais, 
levada pelo amor que lhe tem, Daí resulta que, quando a 
deixa, se suicida. 
O paralelo entre Dido e T urno é perfeito. Cada um deles 
chega a um fim trágico por causa de culpa relativamente 
pequena ; cada um deles merece compaixão e simpatia. Assim 
como os últimos momentos de Turno o colocam acima de 
todo o juízo condenatório ou crítico, assim esquecemos que 
Dido é em parte responsável pela sua própria catástrofe, e 
somos da sua opinião quando ela invoca as potências do céu 
e do inferno para lhe darem cumprimento .i maldição :. 
Sol, que lustras o globo e tudo aclaras ; 
.Juno, intérprete e cônscia destas penas ; 
Pt>las cidades tm nocturnos trívios 
Tu Recate ululada, u ltrices Fúrias, 
Ouvi-me, ó deuses da expirante Elisa . . . (1) 
Virgilio mostra-se mais do que "justo para com ela. Dá 
largas à imaginação poética quando a descreve, apresentando 
o caso dela com grande piedade e compreensão, Como Turno, 
também ela ilustra as limitações e os perigos do aspecto 
heróico. A sua grande alma leva-a a melhor desafiar a sua 
(1) Op. cit ., pág. 118. 
ille dies pt·imus leti primusque malorum 
cau,afuit. 
(2) Op. cit., pág. 131. 
( IV, 169-70) 
Sol, qui terrarum fw.mmis opera omnia lustras, 
tuque harum interpres curarum et con,cia Iuno, 
nocturnisque R ecate triviis ululata per urbes 
_ -6t l)irae ultrices et di morientis Elissae • • • 
(IV, 607-10) 
VIRGÍLIO E OS IDEAlS DE ROMA 
atúrcza e condu-la ao seu destino. Ela refugia-se no seu 
[timo recurso, no das suas próprias emoções, paixões e orgu-
10. Uma vez que o amor por Eneias lhe domina a natureza 
põe em jogo a sua vaidade, nada mais lhe interessa. Quando 
, apaixona, esquece Cartago e descuida a iirande missão que 
>mcçara: 
l mpendentes merlões, fábri cas param; 
Já ndo labora u máquina altaneira (1) 
Por isso, ao saber que Eneias a vai deixar, apenas 
:nsa cm si e no seu orgulho ofendido, e volta-se contra ele; 
, não quer estar com ela, morra de morte horrenda, e fique 
mundo dos seus descendentes convulsionado pela guerra. 
sua natureza heróica, apesar de toda, as grandes qualidades, 
ve por si. Quando a iludem ou injuriam, apenas pode vol-
r·se contra os outros e contra si e destruí-los. Virgíliop.ircce -
r pressentido que o tipo heróico, que compreendeu e por 
uitos modos admirou, tinha esta culpa fatal: está con· 
:nado a causar a destruição, por viver para a sua própria 
6ria e satisfação. E: um comentário justo; Virgílio tinha 
1toridade para o fazer. Isto demonstra porque é que o velho 
itério heróico de Homero se não lhe adaptava, nem à Roma-
: Augusto. O seu mundo possuía bastante experiência desta · 
merária auto-afirmação para saber que mal ela podia causar. 
Era contra estes tipos imperfeitos que Virgílio tinha de 
oçar o seu ideal pessoal, reformado e romano, de personali-
.de, tarefa realmente difícil. Devia criar um homem que, 
,r um lado, pudesse comparl!_r-se aos maia nobres heróis de 
omero por qualidades universalmente honradas, como a 
ragem e o sofrimento; e por outro, apresentar as qualidades 
LC a época de Augusto admirava acima de todas as outras, 
as que nada significavam para Homero. O modo como Vir• 
lio pinta Dido e Turno demonstra que o seu novo herói não 
,dia ser impulsionado pelo espírito auto-dogmático e pelo culto 
honra que inspiraram a concepção heróica. Tinha de basear-1e 
:i qualquer outro princípio mais próprio duma era de paz e 
1 ordem. Mas se tivesse de rivalizar com Aquilea e Uliase1, 
(l) Op. cit., pág- 115 
pendmt opera inte'Yrupta minaeque 
murorum ingenteB aequataque machina caelo. 
(IV, 88·9) 
10 vrn.ctuo E os IDEAIS . DE ROMA 
devia ser um grande homem e um chefe de homens. Vir-
gílio tinha de apresentar um herói que atraísse pela grandeza, 
pela bondade, pelos dotes superiores e pela virtu, romana. Por 
um lado devia pertencer, com propriedade, à época heróica em 
que a lenda o colocava, e por outro tinha de representar, em 
toda a sua plenitude e variedade, o novo ideal de personali-
dade que Augusto advogava e proclamava caractrristicamente 
romano. Daí resultou Eneias, personagem composto de tantos 
elementos diferentes que muitas vezes os que admiram Viq~ílio 
até ridicularizam. Todavia, o poeta dedicou-lhe as suas medi,tações 
mais profundas e alguma da sua mais bela poesia. Para o com-
preendermos, temos de tentar aprender certas ideias e senti-
mentos da época de Augusto. 
Eneias provém de Homero, e na Eneida é apresentado 
como grande guerreiro, quase igual a ,Heicor, que lhe aparece, 
depois de molto, como ao seu legítimo sucessor na defesa de 
Tróia. Andrómaca associa-o a Heitor quando ele pergunta se 
Ascânio, seu filho, possui a coragem e o ânimo de seu pai 
Eneias e de seu tio Heitor. A fama de Eneias espalhou-se por 
todo o mundo, e Dido já sabe algo a seu respeito, ainda ant~.i 
de o ver, do mesmo passo que Palas, em Itália, manifesta 
espanto por ver que um homem tão célebre lhe apareça 11:0 
Tibre. Ele tem as qualidades heróicas do sangue divino, doa 
feitos guerreiros, da beleza física e do poder de comandar 
homens. Tem, porém, algo mais do que isto. A sua qualidade 
essencial é a pietas, a devoção aos deuses e a todas as suas 
ordens, como o demonstra o espíteto de pius com que · se 
distingue. Quando Ilioneu fala dele a Dido, mostra o coo· 
junto de qualidades em Eneias: 
Rei no,so Eneias e, que a ninguém cede, 
Pio e inteiro, valente e belicoso (1). 
Não é apenas um grande militar : é um homem bom. De 
certo modo, Homero já o pintara assim, ao falar dos seus 
muitos sacrifícios a Poscidon; Vi,gílio, porém, amplia o con• 
ceito da sua bondade até abranger muito mais do que a prá, 
tica de ritos religiosos. A pietas de Eneias mo1tra-1é na devo· 
(1) Op. cit,, pág. 129. 
rex erat Aenea, nobis, guo iu.,tior aller 
nec pietate fuit, nec bello maior et armis. 
(1, 544-5). 
VIRGÍLIO E OS IDEAIS DE ROMA 7f 
ção à pátria, ao pai, à mu1her, ao filho, aos companheiros e, 
acima• de tudo, aos muitos deveres e à missão espe ial que lhe 
impuseram os deuses. Ê pius por fazer o que um homem 
bom deve. O epíteto que Virgílio lhe dá é diferente dos que 
dá Homero aos seus heróis, pois enquanto estes denotam 
características físicas ou qualidades úteis na guerra, pim indica 
uma qualidade espiritual sem nada que ver com a guerra, 
reportando-se cm "special às relações entre Eneias e os deuses. 
Assim, logo de ptincípio, o herói de Virgílio figura numa 
ordem diferente de coisas e pede uma atenção de espécie dife-
rente; Neste epíteto sem precedentes dado a um herói épico 
e em tudo o que ele implica está a chave da concepção de 
Virgílio acerca de Eneias. 
O. herói é pius mas não se mostra, no decorrer do poema, 
homem perfeito e ideal. A indignação que provocou a mais 
de um crítico pelas suas faltas manif"stas, demonstra não que a 
ideia que Virgílio fazia da bondade fosse singularmente dife-
rente da nossa, mas que ele preferiu mostrar um homem bom 
em formação e os meios pelo~ quais ela' é levada a cabo. Para 
compreender Eneias temos de compreender o plano pelo qual 
Virgílio o apresenta, plano baseado nas opiniões morais da 
época de Augusto, modificadas, porém, pelas cren<~as e admira~ 
ções pessoais de Virgílio. O sep,redo de Eneias está em ser '. 
construído segundo o ideal estóico. S.0 Agostinho refere-se a isto 
ao aludir ao procedimento de Eneias com Dido, considerando-o 
tipicamente estóico porque, ao mesmo tempo que chora por 
ela, a sua missão não é abalada pelos sofrimentos dela : 
. .. a mente imóvel 
Persiste, e rodam lágrimas baldias (1). 
Não há a certeza de s.t• Agostinho interpretar correcta• 
tamente o verso, mas a conclusão principal está certa. Eneias 
tem inegàvelmente algo de estóico a justificar os paradoxos 
e contradições do seu carácter. Não há nisto nada de estranho. 
Nas reformas morais que Augusto pregou e concebeu, ocup u 
lugar de destaque um estoicismo renovado, que vive nas 
(1) Op. cit., pág. 127. 
mens immota manet, lacrirnae volvuntur inanes. 
(1v, 449i , 
7l VIRGfLIO E OS IDEAIS DE ROMA 
odes patrióticas de Horácio e sobreviveu através dos dois 
primeiros séculos da era cristã. Na sua origem, o Estoi· 
cismo era uma cr.ença nascida para defrontar os horrores de 
uma época em que não havia segurança política ou pessoal, 
estabelecendo, contra esta desordem, a cidadela da alma 
humana, na qual ela podia viver em paz consigo própria e 
com o universo, e, dominando as suas emoçõ~, manter-se 
impávida perante tudo aquilo que pudesse acontecer. Os roma-
nos do tempo de Augusto adoptaram esta crença e deram-lhe 
nova significação. Ela convinha-lhes porque desaprovava o 
auto-dogmatismo e a ambição, e dava particular importância 
ao1 dcvercd sociais. Ela convinha bem a uma época que espe-
rava curar-se dos excessos do individualismo desenfreado. · 
O cidadão pacato, desinteressado e abnegado, pronto a cum-
prir tudo o que lhe diziam, era o tipo caro a Augusto. Virgílio 
conhecia a teoria e a doutrina, e embora na juventude sen• 
tisse certa inclinação por Epicuro, foi profundamente afectado 
por elas, 
Os estóicos criam que o homem não nasce bom, ou, 
como eles diziam, •sábio,, mas chega l.í por meio da provação, 
a exercitatio, com que as suas qualidades naturais entram em 
acção e o seu carácter se fortalece e desenvolve. Se ele corres· 
ponde exactamente a este processo, no fjnal encontrará a 
sabedoria que o mesmo é que a bondade. O que interessa é 
o resultado, o estado final do homem. Não importa que 
cometa erros desde que com eles aprenda e 1e torne sábio: 
Os grandes exemplos da virtude estóica eram Hércules e ~s 
Dioscuros, homens que passaram a vida a cumprir missões 
difíceis no fim, sendo elevados até à divindade por terem 
sucedido nelas. É a uma concepção como esta que se adapta 
a vida de Eneias. Nos primeiros cinco livros da Eneida é posto 
à prova; nos últimos tornou-se sábio e bom: é um homem 
completo. Não importa que no passado às vezes falhasse, 
desde que o resultado seja bom ; o que conta é o seu carácter 
final; este é que Virgílio nos põe diante dos olhos depois de 
nos mostrar as suas fraquezas . . Que esta era a intenção do 
poeta demonstra-se pelo emprego da linguagem estóica em . 
certos passos importantes. O processo da prqvação revcla-ay .duu vezes. A primeira ocasião é no momento em que Eneias 
ae mostra desesperado por lhe falhar o projecto de se fixar 
em Creta; a segunda, quando viu quatro dos scµs navios 
arderem na Sicília, pensando por iuo cm abandonar a empresa. 
De ambas as vezes o vemos quase sem confiança, e de ambas 
-das é ,alvo pelo pai Anquiscs, primeiro em carne e osso e 
VIRG1Lf0 E OS IDEAIS DE ROMA 73 
depoi1 em espirito, em sonhos, o qual se lhe dirige nestas 
palavras : 
Filho, a quem deJlion persegue e> fado (1 ). 
A palavra e:urcit8 é téc~ica e significa ,provado, e quase 
•provado depois de exame,, Séneca diz que Deus põe à prova 
ª'!ueles a quem ama (1). Como os deuses amam Eneias, 
poem-no à prova. Quase metade da Eneida se reporta a este 
processo, ex:plicando porque é que Eneias procede como pro-
cede. O homem naturalmente bom, fiel aos seus deuses e à 
família, foi escolhido para uma missão especial, e para estar à 
Altura dela tem de passar por muitas provas. Erra, mas aprende 
com os seus erros : no final encontra o seu verdadeiro ,cu,. 
Os erros de Eneias são motivo já antigo de irriaão. 
T~lvez fossem postos em relevo numa obr11 perdida de Carvílio 
P1ctor chamada Aeneomastix lO Aeorrague de Eneias), e cha· 
maram a viva atenção dos Padres da Igreja, que acharam que 
um_ do.1 seus principais antagonistas era este herói mítico, ofe-
recido à admiração da juventude romana. Muitas das acusações 
c_ontra Eneias são fúteis; há, porém, três casos ém que as auto-
ridades mais conspícuas admitem ter ele falhado: durante o 
~aq_ue ~e Tróia, nas suas relações com Dido, e por ocasião do 
mcend10 dos seus navios na Sicília. Em cada uma destas oca· 
siões permite que as emoções se apossem dele e o fa_çam pro-
ceder contra a sabedoria ou erradamente. Os Estóicos . àdmi-
tia~ que as emoções devem êstar totalmente subordinada, à 
razao; Virgílio serviu-se desta crença. Eneias, com toda a sua 
nobreza natural, começa por mostrar-se emotivo no caminho 
errado e mostra não compreender qual seja o seu dever ou 
que acções deva pra_ticar. A, provas a que é sujeito revelam 
esta sua fraqueza e, na devida oportunidade, ensinam-lhe como 
deve contrabatê-la. 
No Saque de Tróia, Eneias comporta-se com bastante 
~oragem, mas a sua coragem é inútil. Os Estóicos explicariam 
isto dizendo que a verdadeira coragem não é de espécie füica 
ou animal, mas uma qualidade moral orientada pela razão; 
--
(1) Op. cit. pág. 82. 
nate Ilíacis ex ercite {atis 
12) Dial., 1, 4 
(UI, 112 ; V, 7251. 
VIRGILIO . E OS IDEAIS DE ROMA 
consiste em grande parte em saber o que deve fazer-se 
em determinadas circunstâncias. É isto o que falta a· Eneias, 
Ele acredita na mentira de Sinon, apesar de a experiência lhe 
ter ensinado a desconfiar dos Greitns, e ajuda a transportar o 
Cavalo de Pau para dentro de Tróia, acto em que, como ele 
mesmo diz, ele e 01 seus amigos são 
. . . c!dmentes 
Naquele d11 Darddnia último dia (1) . 
Estãõ agitados e descuidados, não 1e mostram razoáveis nem 
previdentes; falta-lhes aquela coragem a que Cícero chlima 
cmemória do passado e previsão do futuro• (1), e deixam que 
os sentimentos lhes vençam a razão, Até no momento de se 
baterem não procedem como serea racionais; batem-se) com 
uma fúria louca e cega, sem qualquer fim ou plano definido. 
Eneias condena-se mais uma vez; quando se prepara para 
combater : 
Das armas ferro. desatino, e em armas 
Doido onde vá nao s,i.,. (1) 
e quando, com o, companheiros, se lança na luta, 
À ira me precipita (& ). 
. Qualquer previsão que possa t~r é dominada pela paixão 
e •pela fúria . . o modo como os Troianos combatem mo1tra que 
(1) .d Ene:ida Brasileira, páa, 47. 
immemores caeciqud furore 
(11, 244) 
(J) De Sen , 78 : ,sic mihi pcrsuasi, aic ,eritio, cum tanta ce~ritas 
animorum sit, tanta memoria pra-ltrittwum, futurommque prudentia • 
(Nota do Trad.) 
(S) A Eneida Braaileira, pág. 49. 
a ma amens capio, nec sat rationís in armis 
(•) Op. cit., pág. 49. 
furor irague mentem 
prafcipitant 
(u, â-1.C) 
(II, 316-7) 
VJRG!LIO E OS IDEAIS DE ROMA 75 
Ião uril povo condenado. A sua coragem sem finalidade é 
inútil contra os previdentes planos dos Gregos, sendo sintomá, 
tico que, em certo passo, matem por engano os próprios cama, . 
radas. Na sua exaltação e ansiedade, Eneias ainda procura 
retirar de Tróia o pai e o filho, maa de caminho perde a esposa 
Creusa, não voltando a vê,la cm vida. Os Padres da Igreja 
falaram com certa satisfação a respeito deste fracasso, mas foi 
Virgílio quem lhe1 apontou o caminho, levando Eneias a 
admitir que naquela ocasião a confusão lhe reinava no espírito, 
aendo por isso que perdeu Creusa : 
Não sei que nume inf austo alucinou-me : 
Por dévia estranha rota extraviado (1), 
Nesta fase, Eneias encontra-se ainda à mercê dos instin· 
toa e das emoções; não aprendeu a dominar-se ou a dominar 
aa circunstâncias. 
Nas suaii relações com Dido, falha mais uma vez, 
embora o não seja pelo modo que os críticos modernos acham 
tão censurável. O erro não está cm ele a abandonar, o que lhe 
foi ordenado pelos deuses e se torna necessário para cumpri-
mento da sua missão na Itália, mas em se entregar em primeiro 
lugar ao amor dela e, posteriormente, cm descuidar-se do seu 
verdadeiro dever que estava longe de Cartago. Virgílio não 
mostra com clareza quais são os motivos de Eneias; pelo 
menos não parecem ser amor por Dido, por quem manifesta 
pouco mais do que afeição grata. Não se trata, porém, da sua 
falta; trata-se do descuido e do esquecimento em cumprir um 
dever,. Mercúrio, mandado por Júpiter, di-lo claramente: 
Teu reino, ah ! tudo esqueces ! (9) 
Eate esquecimento, devido talvez à indolência e ao amor 
pelo conforto, é uma espécie de intemperança, falha em mode· 
ração, catado de falso deleite em que um proveito temporário 
(') Op cit, pág. 61. 
hic mihi neacio quod trepido mal6 ttumen amicum 
confusam eripuit mentem. 
(li , 735-6) 
(ª) Op. cit I pá~. }21, 
heu, ,-egrii rerumque ol.ilite tuanim I 
(IV, 267) 
76 ~ROfLIO E Oii IDEAIS Dll ROMA 
se confunde com um bem verdadeiro. O dever de Eneias, 
diz-lho Mercúrio, é para com o filho; ele tem de o cumprir. 
Isto mesmo diz ele a Dido. Embora o modo desvairado como 
ela recebe a sua defesa a faça parecer fraca, ele não sabe dizer 
mais nada, e tem razão. Talvez ele não parecesse tão fraco 
aos olhos de um romano, pois o seu dever reporta-se · 
à fundação de Roma, não séndo justo pôr os sentimentos 
duma mulher à frente desse destino. Eneias gosta de Dido e 
sente piedade por ela, mas a sua conteiência é mais forte do 
que as suas emoções e acaba por vencer. Quando a deixa pro-
cede como um estóico procederia, e, tanto quanto lhe é possível, 
desfaz o mal que praticou com se esquecer da sua missão na 
companhia dela. · 
No Livro V lineias defronta outra crise. Durante os Jogos 
Fúnebres de seu pai, as mulheres do seu séquito, instigadas 
por Juno, começam a incendiar-lhe os navios com o fim de o 
obrigarem a ficar na Sicília. O herói vê o destroço que elas 
começaram a fazer e pede a Júpiter que as impeça de conti~ 
nuarem. Júpiter manda chuva e o incêndio é apagado. Mas ate 
depois desta demonstração do auxílio divino, Eneias continua 
cheio de dúvidas: 
Do ,1gro desastre Eneias combatido, 
Cem razões ver.sa n'alma, hesita incerto 
Se na fértil Sicília esqueça os fados, 
Ott se à Icália prossiga (1) . 
Parece quase inacreditável que, numa conjeç:tura desta•, 
Eneias pensasse cm pôr de parte a sua empresa. Todavia fá-ló, 
demonstrando como os seus sentimentos ainda o dominam 
profundamente. A catástrofe do incêndio dos navios encheu-o 
de tal desespero, que por momentos deixa de acreditar no seu 
dcatino. Felizmente 6 salvo pelo velho marinheiro ·Nautes, que 
não 1ó lhe dá o conselho sensato de deixar as mulheres na 
Sicília e continuar a viagem com o resto dos companheiro,, 
(1) Op. cit , pág. 169. 
At pater Àmeas c«au concussus acerbo 
nwnc huc i11gentis, nunc illuc pectore curas 
mutabat venans, Siculisque residertt arvis 
oblitus fatorum,Italasne capesseret oras. 
(V, 700-3) 
VIRGtL.10 ! OS IDEAIS · OI'! ROMA 
Qlas ainda resume a situação por uma forma tal que deve ter 
falado à consciência de todos os Romanos: 
Da fortuna aos vaivéns nos resignemos, 
ó dioneia prole ; em todo o aperto 
Sofrendo é que se vence a ad1Jersidade (1). 
G) fado que Eneias tem de cumprir é o destino que os deu-
ses lhe impuseram : ele deve ser bastante senhor de si para o 
conhecer. Nautes c.hama•o à razão, e. depois deste conselho 
ser fortalecido pelas palavras do espírito de Anquises, Eneias 
recupera a confiança e parte para a Itália. Nunca màia permite 
aos sentimentos que lhe ocultem o conhecimento do seu dever. 
Uma vez desembarcado em Itália, Eneias é homem total-
mente diferente. Já não comete erros, cumprindo sempre o seu 
deYer nas · circunstâncias. Não mais volta a ser assaltado pela 
dúvida ou pelo desespero; as suas únicas hesitações são acerca 
dos verdadeiros meio, para atingir o fim conhecido, 01 quais 
acaba por encontrar depois da devida ponderação. A modifi· 
cação nele operada torna-se evidente quando visita a Sibila de 
Cumas e lhe diz : 
Um por ttm antevi, ponderei todos (2). 
· A palavra pr~ (antevi) provém da linguagem técnica 
do Estoicismo. O dever do homem sábio e valente é prever, . 
pratci~e, todas as emergências possíveis e estar pronto para 
as defrontar. Cícero serve-se dela quando diz que o dever de 
um grande carácter .é prever o que pode acontecer, bom ou • 
mau (1), e _ Séneca cita as próprias palavras de Virgílio para 
· (1) Op. cit., pág. 170. 
nate dea, quo {ata trahunt retrahuntque sequamur ; 
quidguid erit, 8Uperanda omnia fortuna {,rendo csl. 
(V, 7(1} - 10) 
(lj Op. cit., píg. 18/1. 
Ont11ia praecepi atqu, animo mecum ante peregi. 
(VI, 105) 
(3) De off., 1, 80: ,Quamguam hoc a11imi, illud etiam in9e11ii 
magni ut, praectpsre cogit11,tions fu,ura•. (Nota do 'Trad) 
18 VlRGILIO E OS IDEAIS DJZ ROMA 
exemplificar a sua opinião de um bom homem: - «Aconteça 
o que acontecer, diz ele, previ•o• (1). Ao tocar no solo predes• 
tinado da Itália, Eneias já aprendera as suas lições e encontrara 
esse auto-domínio e sabedoria que os Estoicos consideravam 
a característica do homem bom. Não haviam sido vãs as suas 
primeiras aventuras e enganos, porque o fizeram mais senhor 
de si e mais confiante no destino divino que o guia. 
As ideias estóicas que informam a concepção que Vir· 
gílio faz das provaa e pr<,gresso de Eneias: persistem, de certo 
modo, nos últimos livros da Eneida, mas com diferente intcn· 
ção. Eneias é o príncipe justo e sábio; não deve proceder 
injustamente, cm particular em assuntos tão importantes como 
a paz e a guerra, acerca das quais a era de Augusto fora ensi• 
nada por larga experiência a ter opiniões bastante fortes. Eneias 
assemelha-se a um invasor, e vive num passado heróico; todavia 
não deve poder fazer a guerra como a fizeram os heróis de Ho-
mero, apenas para se darem · ao desejo de alcançar glória. Por esta 
razão Virgílo faz que o herói·encare a guerra com a consciência 
dei graves responsabilidades e de subtis distinções entre dois 
resultados morais. Assim como Cícero diz que a única razão 
justa para se declarar a guérra é que ,a vida deva viver-se em' 
pa:z sem mal• (1), assim Virgílio tem o cuidado de dar razão a 
Eneias quando a guerra lhe é imposta pelos Latinos. As antigas 
versões da história diziam que os Troianos começaram o ataque 
e 011 Latinos lhes resistiram ; o poeta inverte a situação e leva 
Eneias a· fazer tudo para alcançar os seus intuitos por negocia-
ções pacíficas. O seu enviado faz os pedidos mais modesto• ao 
rei Latino, que se mostra perfeitamente disposto .a aceder a eles, 
Quando se inicia a guerra por parte dos Latinos, Eneias diri• 
ge-a com o espírito que Cícero advoga, «que nada se busque 
senão a paz. (1), Mesmo depois da agressão dos Latinos, o 
herói diz aos enviados deles, que lhe vêm pedir licença para 
enterrar os mortos, que ele lhes quer dar muito maia do 
que isso: 
(1) Ep., 76, 33 : cquidquid factum e:Jt, dici, scibam•. (Nota 
do Trad.) 
(1) De off., 1, 35: •Quare suscipienda quidem bella sunt ob eam 
causam, ut sine injuria ín pace vivatur•. (Nota do Trad.). 
(ª) Op cit, ,, 81: •Bellum autem ita suscipiatur, ut 'ttiml aUuà, 
nisi pax quoasita vicwxtur•. (Nota do Trad.). 
VIRG!LIO E OS IDEAIS OE ROMA 
. • E a paz quereis s~mente 
Pera os da luz privaao8 nas batalhas ? 
, Eu quereria conced~-la aos vivos (') 
Quando a trégua se quebra, o seu pensamento principal é 
restabelecê-la. Procura evitar uma carnificina geral e oferece-,e 
para resolver o caso por meio de um combate singular entre 
ele e Turno. E grita então P.ara os exércitos enfurecidos : 
. . . Suspendei-vos : 
Que furor, que disc6rdia vos despenha? 
Ferido o ajuste, as condições compostas, 
Devo tu só pelejar . . , e) 
Nisto se vê o espírito da era de Augusto como o 1eu 
mestre proclamou ao dizer que ele próprio jamais havia 
feito a guerra cSem razões justas e necessárias, e sempre 
perdoara aos inimigo, quando a segurança geral o permitia. 
Uma atitude destas para com a guerra em nada se assemelha 
ao heróico ou ·ªº homérico. A guerra tornou-se um mal e 
apenas ic deve empreender quando não houver outra âlter, 
nativa, devendo ser conduiida com espírito cavalbeiresco e 
clemente. 
Apesar de Eneias ser concebido largamente num plano 
estóico e, a muitos respeitos importantes, se conforme com 
esse ideal do homem sábio, não é apenas isto. Possui outras 
qualidades exteriores ao ponto de v11ta estóico e até lhe são 
hostis, o que não é difícil de compreender. Apesar de ser 
interessante, como tentativa por colocar o homem num plano 
superior aos males e às suas fraquezas e lhe transmitir um sen-
timento de segurança no meio de uma sociedade cm dcsot• 
dem, o ideal estóico falhou na sua missão de atrair a humanidade, 
porque negou o valor de muita coisa que o coração do homem 
crê sagrado e não esquecerá de boa vontade. S.~ Agostinho n~o 
(1) A Eneida brazileira, pág. 337. 
pacem me exanimis et Martü sorte peremptia 
oratis ? equidem et vivis concedere vellsm. 
(Z) Op. cit., p.ig. 371. 
o cohibete iraa ! ictum iam (~dua et omnu 
compositae leges, mihi ius concurrere soli , 
(XI 110·11) 
(xn, ~14-15) 
VIRGILIO F: OS 'IDEAIS DE ROMA 
foi o único a sentir que os Estóicos eram inumanos no desejo 
de suprimirem todas as emoções, fossem ou não dignas de 
estima. Muitos outros homens sentiram que tal exaltação da 
razão é errónea por estancar as fontes naturais de muitas acções 
excelentes. Embora Virgílio utilizasse concepções estóicas no 
desenvolvimento do carácter de Eneias, o seu temperamento 
afectuoso e compassivo não se sentia satisfeito com ideal tão 
frio e tão estranho. Se o estoicismo fornece um plano por meio 
do qual Eneias é posto à prova e amadurecido, não explica 
nele muito mais. Com todos os seus erros e contradições, 
o herói é essencialmente um ser emotivo. Verdade seja que 
no principio estas emoções dão causa às suas fraquezas e 
devem condenar-se, mas Virgílio não quer que ao seu romano 
ideal faltem totalmente as emoções. O aeu Eneias confiante 
dos últimos livros é ainda elevadamenre emotivo, mas as suas 
emoções encontram-se agora em harmonia com o seu fim 
indicado e ajudam-no a alcançá-lo. · 
A mais importante destas divag11ções fora dos preceitos 
estóicos é a .parte desempenhada pela piedade no carácter de 
Eneias. Esta é, para muitos leitores, a mais virgiliana de todas 
as qualidades, a mais típica e a mais essencial característica da 
Eneida. Quando Eneias vê os episódios da Guerra de Tróia 
descritos na p~dra em Cartago, profere as célebres palavras 
que tantas vezes têm sido citadas como o âmago da visão e 
da mensagem de Virgílio: .· 
. . . o louvor tem cá seus prémios, 
Dói mágoa alheia, e remanece tJ pranto. (1) 
. A.s palavras não têm o significado que às -vezes · lhes têm 
atribuído; não são, com certeza, uma déclaração de que a vida 
humana não passa de lágrimas. Mostram, porém, que Eneias,. 
ao chegar

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