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Edições Pirata Não venda, por favor! II Virgílio · e os ideais de Roma Quando se encontrava no seu leito de morte cm Brun- dhium em 19 A. C., Virgílio pediu o manuscrito da Eneida com intenção de o destruir. No testamento deixou instruções aos seus executores para não publicarem nada, a não ser o que ele próprio editara já. Porém, por ordem de Augusto, estas vontades não se cumprir11m, sendo o poema posto a correr mundo, e para alcançar êxito imediato e fama constante sem paralelo na história, Mais do que qualquer outro livro, a Eneida dominou a educação e a literatura romana. Tor- nou-se o «livro indicado, durante séculos para os estudantes, sendo admirado por quase todos os escritores, de Pc:trónio a S.to Agostinho. Sérvio compôs o seu maçudo comentário á interpretação, texto, gramática e mitologia ; Donato espraiou-se cm lições morais, que dizia tiradas dele:; Macró- bio , dedicou as suas Saturnalia á discussão dos seus pro- blc-mas. O poema subrevivc:u ao advento do Cristianismo e á queda de Roma. Na Idade das Trevas (1) gozou de prestígio especial, sendo estudado sucessivamente por Beda, Alcuíno e S.1• Anselmo. Na L:!ade Média Dmte exaltou V ergílio até ao máximo entre todos os poetas, nele vendo a corporizac;ào dos conhecimentos terrenos: Meu guia, meu senhor e meu modelo (1) ao passo que: Chaucer o considerava o mais completo mestre que se devia honrar e imitar: (1) O período histórico que decorre entre os séculos V e x. (Nota do Trad.), (21 Inf. li. 140·: t'-' duca, tu ugnore e tu maestro. 44 VIRGlLIO E OS IDEAIS DE ROMA Honremos o teu nome, ó Mantuano, Por mim hei-de seguir-te fielmente, ó luz que sempre vais à minha frénte (1 ). No Renascimento, a Eneida tornou-se o grande poema que muitos poetas tristemente procuraram ultrapassar. Ela conservou o seu lugar de destaque e transformou-se à vez em escola de boas maneiras para o século XVII, e de estilo elevado para o século XVIII, enquanto os espíritos cépticos do século XIX nela encontraram um precursor das suas próprias dúvidas perante os problemas da vida e da morte. Em dois mil anos de histó· ria, a Eneida ocupou um lugar central na literatura europeia, sobrevivendo a fundas alterações seculares e religiosas. Nela se encontraram variedades sem par de inspiração, tendo sido admirada em umpos diferentes por diferentes razões. F.issem quais fossem os erros que Virgílio, ao morrer, nela encontrou, o poeta conseguiu fazer uma coisa que nem antes nero depois nenhum poeta épico fez. ajudando muitas geraçõ~s de homens a formular as suas opiniões quanto aos principais problemas da exi~tência Virgílio não foi quem primeiro escreveu a epopeia de Roma. No século llI A . C, Névio utilizara o antigo metro saturnino na sua Guerra Púnica, e no século imediato os Anais d~ Énio contaram a história de Roma de Rómulo até ao séu tempo. O primeiro destes três poemas deve ter-se asseme- lhado muito à epopeia oral ou até às bJladas; o segundo, embora utilizasse o hexâmetro e fizesse muitas adaptações da maneira de Homero, foi delineado dentro do plano de anais, que é sempre pmsívcl quando a poesia chama a si a história. Virgí~ lio conheceu ambas as obras, e talvez o seu pocm11 se destinasse a rivalizar com elas e a apresentar, de maneira um pouco mais satisfatória, a verdade acerca de Roma, tal como ela fora reve· !ada à sua geração. Para o fazer, adoptou um método digno de nora. Abandonou o sistema analítico e, em vez de pôr a his- tória em verso, deu o carácter e o destino romano através de um poema acerca dum passado lendàrio e, em grande parte, imaginário. O seu interesse ia menos para os factos históricos do que para o seu significado, menos para Roma nesta ou naquela época do que para o que ela fora Jesde o princípio e sempre, menos para os Romanos individualizados do qu: para Glory and honour, Virgil Mantuan, Be to thy name I and 1 shal as 1 can Folow thy lantern as thoM gost bi(orfl, VIRGÍLIO E OS IDEAIS DE ROMA 45 um só, herói simbólico que exemplifica as qualidades e a experiência tipicamente romanas. Por meio de hábeis artifícios literários, como as profecias proferidas por deuses, ou visões nos Campos Elíseos, ou cenas gravadas em obras de arte, Virgílio liga o passado mítico à história escrita e ao seu próprio tempo. Mas desvios desses são excepcionais, ocupando roenos de 300 versos num total de quase 10 mil. A acção principal da Eneida decorre uns 300 anos antes da fundação de n.oma. O protagonista e os seus companheiros não são romanos, nem sequer italianos, mas troianos, cuja ligação ancestral com a Itália é vaga e remota. Grande parce da acção passa-se fora da Itália, e, quando ali decorre, limita-se a uma estreita faixa junto do Tibre. O próprio Eneias é um vagabundo sem pátria que nada mais pede senão algumas jeiras de terra para si e para os companheiros. Este remoto passado encontra-se ligado ao presente por muitos elos engenhosamente lavrados. Os heróis troianos são os antepassados de famosas famílias roma- nas, e usam nomes ilustres na história de Roma. As suas ceri- mónias, os seus hábitos, os seus jogos predizem o que há-de ser mais tarde o traço característico de Roma; eles tocam em lugares familiares a todos os Romanos; lendas e tradições locais encontram-se entrelaçadas na sua história: os deuses que os ajudam e defendem são aqueles cujo culto constituía a reli- gião oficial do povo romano. Mais significativo, porém, do que estas re!Dções exteriores são o espírito, as virtudes e a visão romana que os troianos demonstram. As dificuldades enfren- tadas por estes primeiros antepassados, as suas relações com os deuses, as suas emoções e ideais, a sua fidelidade familiar, o seu procedimento na paz e na guerra, a sua atitude para com a missão divina que lhes foi imposta, são típicas e repre- sentativas dos Romanos, tal como se julgava que eles secnpre haviam sido. Virgílio importa-se menos com as origens do que com uma realidade permanente tal como desde o princípio ela se mostrara e ainda se mostrava no seu tempo. Um plano e um escopo como esses impunham espécie nova de poesia : passando da Ilíada à Eneida logo se torna patente que todo o ponto de vista é diferente e que Virgílio tinha uma nova visão da natureza humana e da virtude heróica. Homero limita-se aos indivíduos e aos seus destinos. A sorte de Aquiles e de Heitor dominam o seu desígnio; são os carac- teres destes que determinam a acção. Virg1llo, porém, logo de início manifesta especial atenção, não pelo destino de um homem, mas de uma nação: não é o de Eneias, é o de Roma. Apesar de abrir com •As armas e o homem• e dar a !ntender 46 VIRGÍLIO E OS IDEAIS DE ROMA que o seu herói vai ser outro Aquiles ou Ulisses, logo antes de co.ncluir o primeiro parágrafo já nos tem mostrado que vai alem de Eneias, até à longa história que dele procedeu: Donde a nação latina e albano, padres, E os muros vêm da·sublimada Roma(1). Logo depois, ao referir os obstáculos que os Troianos encontraram na~ suas viagens, de novo conclui um período com nota semelhante: Tdo grav5 era plantar de Roma a gentel (') _ D:pois, quando Vénus se ·queixa de que seu filho Eneias e_ tratado injustamente, Júpita responde prometendo-lhe não so que a respeito de Eneias tudo há-de correr bem, mas taro, bém fazendo-lhe um esboço profético da história de Roma até Júlio César. A recompensa que o tronco da raça romana vai receber vale muito mais do que o seu êxito ou a sua glória pessoal. mais ainda do que o sw estabelecimento na Itália: é a certeza do destino de Roma, do seu domínio universal e eterno : Metas nem tempos aos de Roma assino; O impéri6 dei sem fim (3). Virgílio mostra de começo que espécie de destino é o assunto do seu poema. As andanças e sofrimentos de Eneias e dos companheiros, e por fim o seu êxito, são apenas prelimina, r~s, preparação para um tema muito mais vasto. Razão teve Petró- mo em chamar, como Tennysoo, ao poeta .Virgílio romano'".( 1) Eneida Brazileira cit , pág. 7 . . .. gmus unde Latinum ..tlbanique patres atque altao moenia Romae (1) Ops. cit ., pág 8. Tantae molis erat Roma11am condere gentem. (3) Op, cit, pág. 45. his ego nec mttas rerum nec ttmpora pono : imperium sine fine dedi . (1, 6-7) (,, 33) 11, 27&-9) VIRG1LIO E OS IDEAIS DE ROMA 47 O assunto fundamental da Eneida é o destino de Roma tal como ele se revelou nesta alvorada da história antes da _ existência da cidade. Tal destino perfigura-se em Eneias que não só luta e sofre peb honra que há-de nascer, mas é já de si tipicamente romano. Se a sua sorte pcsRoal está subordinada à sorte de Roma, o seu carácter mostra já o que os Romanos são. Ele é o herói de Virgílio numa espécie nova de poema heróico; nele vemos como a visão épica do poeta é diferente da de Homero. Eneias é criaçã(!) pessoal de Virgílio, concebida com o intuito especial de mostrar o que é um herói romano. Ao contrário de Homero, pouco deve à tradição pelo que res- peita ao carácter do seu herói. Enquanto Homero teve de conformar-se com as noções estabelecidas e de fazer o seu Aquiles ,de pés ligeiros•, o seu Agamemnon •rei de homens, e o seu Ulisses ,de muitas traças•, Virgíliô não estava sujeito a obrigações dessas. · Fodia procurar as suas pers0nagens onde quise,se e facetá-las conformes ao fim que tinha cm vista. O seu Eneias deve algo ao precedente homérico em ser grande guerreiro e d evoto servidor dos deuses, mas adquiriu persona- lidade nova , sendo verdadeiro filho da meditação criadora de Virgílio e da sua visão imaginativa. As personagens da Eneida são criadas e amoldadas a um fim especial, contribuindo para o intuito principal. e tudo o que elas dizem ou fazem deve considerar-se à luz dos destinos de Roma. Por isso é erro tomá-los como se fossem personagens dramáticas como as de Homero. São-no mais e são-no menos. São-no mais por exi~• tirem para algo que os ultrapassa, algo que é típica e essencial- mente romano ; são tipos, modelos, símbolos. São-no menos, po1que qualquer personagem típica carece de fisionomia e de idiossincrasia , o atractivo pessoal e as ânsias íntimas d e uma per- sonagem que é criada por o ser e pela soma de deleite que o poeta nele encontra. Além disso, por Eneias ser a representação típica de Roma, também o são os episód ios que ele atravessa. As difi- culdades que tem de vencer, o peso d a carga que os deuses lhe impuseram, os seres humanos que lhe armam ciladas ou procuram embaraçà-lo, os obstáculos que ele encontra naR suas circunstâncias ou na, dos que o seguem ou nele próp1io, 1epresentam aquilo que pode acontecer a qualquer romano. Eneias procede como um romano procederia em condições familiares à experiência romana. Por isso, embora a acção decorra numa espécie de p;issado históri co, transcende a his- tória duma forma que a Guerra de T,óia não transcendeu Homero. Cada acção' n.i Eneida pode interessar por si; o seu fim principal, po1ém, é tipificar uma categoria de acções e 48 VIRGILIO , E OS IDEAIS DE ROMA situações em que se levantam grandes questões e em que estão cm jogo grandes resultados. Em parte devido a isto Virgílio conta uma história menos bem do que Homero. A sua missão impede-o, na realidade, de arquitectar uma história por simples prazer; de se concentrar inteiramente no entusiasmo daquilo que acontece. Além dos factos, há sempre algo mais, um pro- blema, um princípio, uma ideia de que aquilo que se passa tem outra intenção além do seu interesse imediato. Virgílio trabalhou na Eneida doze ano~, e no fim mos, trou·se profundamente descontente com ela. Não parece plau- sível que fosse o ela estar incompleta que o levasse a pedir que a destruíssem, pois até os versos incompletos têm muitas vezes beleza própria, e a arte da sua linguagem e versificação deu•lhe séculos de admiração devota. Parece mais provável que ele entendesse haver qualquer coisa de impeifeito em toda a sua concepção, corno se houvesse empreendido uma missão à altura da qual não se sentia ainda, ao fim de tanto trabalho. Antes de morrer, escreveu a Augusto dizendo que começara · o poema paene vitio mentis, •quase com perversão do espí· rito,, o que deixa a perceber ser o desãnimo e abatimento causados por qualquer falh a do plano principal. Quer assim seja ou não, a maior parte dos leitores da Eneida hão-de con• cardar que Virgílio, ao resolver escrever um poema épico de tema romano, se metera numa tarda de dificuldade extraor- dinária. Por um lado, a sua epopeia devia rivalizar, de certo modo, com a Ilíada e a Odisseia; tinha de mostrar um herói comparável a Aquiles e a Ulisses; tinha de possui r todos os ouropéis homéricos. Era o que o . seu tempo dele recla· mava. A época de Augusto achava que tudo o que fosse inferior à poesia homérica era indigno dela. Assim corno Ale- xandre lamentara não ter urn Homero que lhe cantasse as conquistas, assim Augusto parece ter decidido Virgílio a ser outro Homero. Esta nova epopeia devia, porém, ser alguma coisa mais. Tinha de descrever a virtHS romana ideal, perfeita· mente contrária ao ideal humano de H omero, e devia confor- mar isto, por qualquer modo, com o plano épico antigo. Tarefa como esta não se encontrava inteiramente de acordo com os dotes de Virgílio, o que ele, na sua maneira autocrí· tica, parece ter sentido, Por felici dade, outros viram que as suas qualidades ultrapassaram por completo as suas deficiên- cias, e salvaram-lhe o poema para a posteridade. O primeiro obstáculo de Virgílio ao escrever um poema heróico residia no seu próprio temperamento. Homero impressio· nara·o profundamente, sentindo ele que muitos dos seus dei- VIRGÍLIO E OS IDEAIS D.E ROMA tos tinham de ser homéricos. Ao mesmo tempo reconhecia a natureza formidável de tal missão, dizendo aer-lhe mais fácil arrancar a massa a Hércules do que tirar um 'f'erto a Homero. Nem por isso deixou de perseverar e muit11 veze1 competiu com Homero no p.óprio campo deate. t ne11e1 p11101 que Virgílio se encontra mais exposto à crítica. rouco tinha da compreensão que Homero possuía da fúria e da loucura da guerra. Longe de sentir o entusiasmo guerreiro, achava-o odioso e horrível. Tinha de fazer de Eneias um grande guer· reiro e pintar cenas de carnificina, mas parece ti·las adiado, o mais tempo possível, pelo qué a sua primeira tentativa para escrever uma batalha heróica ocorre no livro X. Depois, labo· ríosa e conscientemente, procura criar de novo, na sua lin- guagem sensitiva e melodiosa, o que Homero fizera tão natu- ral e brilhantemente. Faz Virgílio todo o possível por tornar interessantes as batalhas que descreve. Entremeia·•• com estra• tagemas guerreiros, como canlaria, instrumentos de usédio e aríetes. Isto, porém, não basta, e nas suas batalhas nota-se uma espécie de esforço, como se o coração do poeta não se encon- trasse nelas . Em Homero, as mortes de homens nio são ao sabor do gosto moderno, mas têm a sua vitalidade própria e, com certeza, muito mais poesia do que um passo como cate de Vir&ílio: A Hiclaspes Sacrator, o .Alcato Céàico, Rapon tronca a Parténia e o váliào OrHa ; Me,sapo a Glónio e o árcade Erfoett, (1). As figuras veladas que estão por detrás deste, nomes retumbantes não fazem parte da narrativa; o ,eu destino nlo inspira qualquer sentimento ou interesse. Um p11so deatea não tem relação com a experiência, sendo puramente literário. Virgílio escreveu-o por sentir que o seu poema o exi&i•; não lhe transmitiu, porém, vida, nem o fez na realidade aeu. Ainda mesmo quando é mai1 feliz do que aqui, o seu subconsciente meditativo, literário e altamente culto pareu \1) Op. cit , pá1 325. Caedicus Alcathoum obtruncat, Sacro,tot· B11daape" Parcheniumgue Rapo et prcsdurum viribu, Or,en, Messapus Cloniumque Lycaoniumque Erichaetm. (x, 747-P). • 50 VIRG1LIO E OS IDEAIS DE ROMA opor uma barreira entre o seu original homérico e a sua ten- tativa de o reproduzir em novas circunstâncias. Por exemplo:quando. Homero descreve a fatal perseguição de Heitor por Aqutles, e diz que eles não corriam para ganharem um boi condenado ao sacrifício ou uma tripode como as que são dadas por prémio 11a1 . corric)as pedestres, nao bovina Vítima ou p,le, da carreira prémios, J)o heroi Priameu se disputa a vida, (1 ). a impressão é verdadeira e exposta magnificamente. Provém cm lmh_a rccta do mundo heróico em que as qualidades exigidas _ para excrcíciqs, atlétic-:s também se o eram para a guerra, e tudo , o que difere entre as duas espécies de corrida é o prémio por que cada um deles corre. Vugílio tenta copiar este e{eito quando Eneias persegue . Turno : Leves prémio, de jogos ntto pkitei«m ; Da vida e sangue trata se 1k Turno (9). A eloquência latina torna este passo bastante claro, mas quase não desperta a nossa piedade e horror como desperta a aproximação dirccta de Homero. A descrição da corrida, tão real e verídica cm Homero, cm Virgílio não é tã<1 real. Ele não vê os exercícios físicos e atléticos com olhos de militar conhecedor, mal podendo sentir o entusiasmo da corrida como o de Homero. Algo de frescura e de verdadeiro desap11reccu na comparação, A incapacidade de Virgílio para vencer Homêro no seu próprio campo e a desconf1:1nça cm si mesro o ao procurar fazê-lo· deviam-se em parte às suas circunstâncias pessoais e (1) Ilíada dB Homero cm verso português por Manoel Odorico Mendes; Fio de Janeiro, 1874, pág 277. cWà napl ,pvv1, Oéo,, '1Ekio pó, ln no báµ,010 . (IL, XXII, ]61) . (1) Op. cit., pág. 384, ... neque enim lcvia aut ludicra petuntur praemia, sed Turni de vita et sanguim certant. (xu, 764-3). VJRGlLIO E OS IDEAIS Dli ROMA 51 reflectiam o temperamento do seu tempo. A geração para que Augusto apelou tão profundamente com as suas pro- messas de paz e ordem, conhecera demasiado a guerra para acreditar que ela causava na realidade entusiasmo ou prazer. Ninguém tinha mais consciência disto do que o próprio Au~usto, tendo ele o cuidado de fazer que uma dus suas razoes de reclamar o poder fosse a restauração da paz. No relato que faz dos seus actos, deu a isso grande relevo ; a paz estava i~dissoluvclmente ligada ao seu nome nas orações com que pediam a sua protecção; 0 Templo de Jano encerrou-se, como sinal de paz em terra e no mar. O mundo de Augusto estava ca_nsado da guerra e pronto a sacrificar a hberda?e para pode_r dtdrutar a paz. Virgílio partilhava deste sentimento. Na Juventude conhecera a confiscação das suas terras por soldados da Guerra Civil, tomando parte no coro de louvores ao homem que trouxera a paz a Roma e ao mundo, O seu ~úpiter profetiza o advento de Augusto, que há-de pôr termo a guerra: , • , Entao, deposta a guerra. Se amolgue a férrea idade (1). Nisto, Virgílio mostrava-se unânime com a maioria dos Romanos. (? espectáculo das lrgiões armadas, que Lucrécio podia apr_e- c1ar com serenidade filosófica, era demasiado para a geraçao de Yirgilio, cansada da gueira. No entanto, apesar. dos se~s anse10s e da sua admiração pela paz, ele teve de mtroduz'.r na sua epopeia inevitáveis descrições de combates e do espt- rito . heróico Ainda que possuísse dotes idênticos, _ ele nã_o podia descrever a guerra como Homero o fizera. Nao P?~ta mesmo r< percutir o ruído dos exércitos e o confiante espmto de vitória, que ainda se sente nos fragmentos de "Ênio. Se ia escrever uma epopeia que fosse realmente significativa para o seu tempo, devia considerar a Guerra dum modo que falasse à experiência do tempo e mostrar qual a parte que ela tomara na concepção romana da vida. . Virgílio não foi nisto completamente feliz, mas f<:i•o mais do que muitas vezes se admite ; em certos passos criou uma nova poesia, que os seus contemporâneos compreende- (1) Op. cit., pág. 19. aspera tum poaitis mitescent saecula bellis, (1, 291). 52 VIRG[LI0 E OS fDEAIS DE ROMA raro e àpreciaram, acerca da tragédia e da confusão da guerra. É significativo que o Livro li, a sua cena b.;lica mais prolon• gada e mais completa, não tivesse a aprovação d{' Napoleão. Disse este que Virgílio «não passava de um regente de colégio que nunca saíra das suas portas e não sabia o que aa um exército•; isto é verdade se o afer irmos pelo padrão de auste· ros ugentes de colégio. Virgílio não escreve como general, nem mesmo como velho militar. Considera a guerra do ponto de vista do cidadão que sofre, um caos de horrores e de con• fusão, ponto de vista perfeitamente humano: há muito de beleza trágica e de verdade eterna na sua descrição do Saque de Tróia, Na guerra, os horrores e a confusão desempenham inevitàvelmente um grande papel ; ao escrever a respeito disto, Virgílio ajuntou mais um campo ao reino da poesia. Nenhum soldado raso poderá negar a realidade e o realismo desta famosa narrativa, desde o estratagema, simples mas manhoso, do Cavalo de Pau, que leva os invasores ao coração da cidade sitiada, até à cena final em que os conquistadores reunem os despojos e lhes põem guardas, enquanto os pri1ioneiros esperam em longa fila à volta deles. Aspectos da guerra há que pouco dizem ao herói ou ao general, mas são muito conhecidos do homem vulgar. Virgílio é o poeta destes. A sua descrição do Saque de Tróia é a poesia da derrota do ponto de vista dos vencidos. Um assunto destes é familiar na poesia heróica, mas Virgílio trabalha de modo diferente. A derrota que ele descreve não é heróica e gloriosa como na Batalhfl de Malàon ou na Cançdo de Rolddo, nas quais os ven- cidos quase preferem morrer quando podiam fugir, sendo essa preferência indício da sua natureza heróica, da sua crença de valer mais a morte do que a desonra. A Tróia de Virgílio não admite uma preferência dessas ; desde o princípio que está sentenciada, quando Laocconte é devorado pelas serpentes de Neptuno por duvidar das intenções honestas do Cavalo de Pau; no final o carácter predestinado da sua queda é indicado pela visão ameaçadora dos deuses vingadores : Doa deuses aim, dos dtuses a inclemência É que abate e 6ubverte a excelsa Troia (1). (1) Op. cit. pág. 5t. appare11t dirae facie& inimicaque Troiae numina magna deum. (U, 622-3). VIRGtuo E os IDEAIS DE ROMA 53 Esta senteoç~ implacável torna-se evidente através de todos os cpisójios da tomada. Quando o espírito de H eitor aparece a Eneias em sonhos, não lhe f,,la cm combater: - tudo está perdido, a sorte de Tróia está lançada; o único caminho acertado é fugir . Os Gregos caem sobre Tróia como uma força natural irresistível, como fogo em seara ou torrente impetuosa sobre campos lavrados ou floresta . Os Troianos encontram-se inteiramente desprevenidos e a dormir pacificamente quando surge o ataque. São apanhados de surpresa, não tê-n plano nem chefe, s~ndo apanhados à traição pelo inimigo que se encontra no meio deles. Lutam com a coragem do desespero, como Eneias demonstra quando chima os camaradas: ... morn,mos, pelas armas Rompamos. Salvaçdo para os ve11cidos Uma, esperarem salvaçao nmlrnma (1) . Não é este o genuíno espírito do heroí-imo. Quando o Velho Companheiro, na Batalha de Maldon, incita os seus homens a combaterem até final, sabe o que._ faz, e as suas resoluções brotam da sua crença em que com essa re iistência desesperada a dignidade humana atinge na realidade o seu ponto culminante. Os Troianos não têrn uma crença dessas. O seu desastre é trágico, mas não heróico. A velha concepção de um comb1te até acabJr foi substituída por algo de mais semelhante à realidade e, à sua maneira, mais penoso e mais espantoso. P0esia como a da descrição do Saque de Tróia por Vir, gílio levanta, quase inevitàvelmente, grandes questões ac rca da natureza do heroísmo e do valor do velho ideal h eróico. S 1, na realidade, a guerra é como isto, difk ilmente pode dizer-se que Homero teve razão em tratar os guerreiros como se fossem super-homens. Virgílio não se esquiva a qualquer das questões levantadas pela sua narrativa e impli~itamente critica o idealheróico demonstrando até que baixezas ele pode degenerar. Os seus troianos são bastante nobres; faltam-lhes, porém, as qualidades necessárias para a vitória, não podendo ser conside- rados heró:s. Os sem gregos, cujos nomes e acçõ :s proYêm (1) Op. cit , pág. 50. moriamur et in media arma ruamus, utia salus victis nullam sperare salutem. (II, 353 - -4). S◄ VIRGILIO E OS IDEAIS DE ROMA da epopeia homérica e post-homérica, não se redimem pela nobreza, pela misericórdia ou pelos actos de cavalheirismo. O trai- dor Sinon, que assegura a introdução do Cavalo de Pau dentro de Tróia, é um mestre de falsidade p~rjura que não se coíb~ de invocar os mais sagrados poderes para confirmar as suas mentiras, ou de alcançar os seus fins iludindo a nob ~e compaixão e ideal de justiça dos Troianos por um homem que eles crêem forte- mente maltratado. A insí iia, que H .>mero descreveu tão humana e atraentemente em Ulisses, tornou-se sinistra, bestial e alheia à honestidade e à verdade. Sinon é a corrupção de um tipo heró 'co, o soldado esperto como mais tarde o considerou uma era desprovida de ilusões. Outro tipo, também sem os atrac- tivos do soldado. desapiedado, é o que Virgílio apresenta em Neoptolemo. O filho de Aquiles herda do pai o carácter altivo e a fúria bélica, mas é b~utal e sanguinário. É comparado a uma serpente venenosa, com crueldade impiedosa mata fülites, uma criança, na frente do velho pai, Príamo, e a seguir mata o próprio Príamo. O hediondo horror de tal morte é expresso nas pala- vras de Virgílio : ... na praia o trrmco informe Jaz Bem WJme, e a cabeça decepada (1). A odiosa brutalidade dos Gregos aumenta o desespero dos Troianos, de Cassandra arrastada p !los cabelos do santuá- · rio de PJlas, de Hécuba e das filhas agarradas umas às outras, como pombas assustadas, junto do lar sagrado, de P1íamo cin- gindo a sua espada inútil e atirando a Neoptolemo a sua triste lança sem préstimo. Num combJte como esse são os melhores que sucumbem, como Rifeu . . . o eapelho dos Troianos, O único ;usto, equíssimo Rijeu : Divino alto it4ízo ! (1J. (1) Op. cit., pág . 56. iacet ingens litore truncus, avulsumque umeri8 caput et sine nomine corpus. (B) Op. cit., pág. 52. (II, 557 - 8). iustissimus unus qui fuit in Teucris et servantissimu, aequi (dis aliter visum). (II, -426 - 8). VIRGlLIO E OS IDEAIS DE ROMA 55 Uma vitória dessas não tem brilho nem glória. Foi alcan· çada pela traição e pela crueldade. A tal ponto dcgcncraradl os Aqueus de Homcr0. . A crítica do tipo heró;co que Virgílio nos dá na dcscn· ção do Saque de Tróia não é o seu único caao. Mostra ela um aspecto da questão tal como ele a viu, mas um só. Para ele, como para os outros, era evidente que um ideal que no seu t~mp~ exercera tão grande influência no Mundo, não podia ser mtel• ramente semelhante a isto, apesar de, por vezes, poder ~eg_e- nerar ao ponto de descer até isto. Realmente, a sua m1ssao quase o obrigava a adaptar outra opinião, mais favorável, ª respeito dele i se os romanos de Augusto queriam ser campa· rac.los aos heróis, o ideal heróico devia reve~tir-se de certa Jignidade e atractivo. 01 sentimentos mais benévolos de V:ir· gílio para com ele podem ver-se no modo como caract:n:z:a Turno. O príncipe rútulo, que defende o Láci0 contra Eneias ~ ós seus troianos, é uma das criações de Virgílio mai, pus_ua· 11ivas. Tem a vitalidade e a nobreza de um herói homénco, vendo-nos nós obrigados a admirá-lo e até a compadecer-nos dele. Virgílio pinta-o com carinho e amor, e mais do que pelo degenerado Neoptolemo, é por ele que ficamos a conhecer 0 1entir do poeta a respeito de um herói. Turno é um novo Aquiles, como diz a Eneias a Sibila de Cumas: · . . também de deusa filho, Há no Lácio outro Aquiles, (') e aa suas acções provam bem que assim é. Como Aqui\e,, ele vive para a honra e para a glória, especialmente na guerr9:, Quando sabe que o estrangeiro desembarcou no Lácio e ten· ciona arrebatar-lhe a noiva, o seu primeiro impulso é lutar pelos seus direitos e pela sua honra. Achando que lhe ultraj aram 0 uigulho, corre cm fúria para as armas. As comparações de Virgílio mostram a força e a energia de Turno. Quando ataca o campo troiano é como um lobo faminto correndo em Tolta do aprisco (IX, 59-64); quando é levado, lentamente e codl relutância, do campo de bat,ilha, é como um leão que se recusa a virar as costas e a fugir (IX, 79-86) i cai sobre Palas como 0 (1) Op. cit,, pág. 187. alius Latio iam partus ..il.chilles, natus et ip3e dea, (VI, 89-9Ó) VIRGILIO E OS IDEAIS DE ROMA leão sobre o touro (X, 454-6); assemelha-se, do mesmo modo, ao leão ferido quando vê fraquejar o ânimo dos seus compa- nheiros e se recusa a admitir a derrota (XII, 4-8). Estas compa- rações baseiam-se na Ilíada e fazem de Turno, na sua majestade heróica, um igual de Aquiles e Ajax, Virgílio esforça-se por elenr Turno até aos antigos modelos heróicos e mostra como, seaundo aa melhores tradiçõ:s do seu tipo, ele reune as tropas, ataca o campo dos troian01, desfere golpes mortais a todos os que lhe aparecerem no caminho e luta com coragem indómita no seu último encontro contra a adversidade irremediável. ~ um verdadeiro herói segundo o modelo homérico e nos combates encontra o campo próprio de acção para as suas inclinaçõe1. Turno é mais do que um grande guerreiro. Não é sem razão que ele crê que luta pela sua terra. Apela para os seus compatriotas para verem em jogo os seus interesses; a 1go de Heitor há nele quando se dirige ao Conselho Latino, dizendo: . . . e•posa e valor vos lembrem, Lembrem-nos pátrios feitos gloriosos. (1) Ao contrário de Aquiles, não exulta com os inimigos prostra- dos, e apesar de. a morte de Palas lhe custar no fim a própria vida, não lhe maltrata o cadáver nem se reg.izija por dele haver triunfado: generosamente, entrega-o para que o enterrem. Tão-pouco é a sua confiança daquela espécie que desfJlece aos primeiros indícios de fracasso. Recebe golpes formidâl'eis, sofre a derrota das suas tropas, a qu~bra das neg0ciações diplomá· ricas com Diomede1, o apoio pouco sincero dos seus colegts e a inveja mal oculta dos seus rivais, e conserva, apesar disso, uma altin confiança nos seus aliados latinos (XI, 428 e ss.). Sente-se ansioso por dar a vida pela pátria em combate singular, seja quem for o inimigo poderoso; e, ainda quando as suas espe- ranças começam a desvanecer-se e a morte é quase certa, está pronto a suportar a carga, apesar de ter os deuses contra ele; mantém até final intacta a sua honra. Visto como não pode viver, morrerá como homem e digno da sua raça: (') Op. cit., pág. 312. nunc coniugis esto qui,que suae teclique memor, nunc magna referte facta . patnim laudei. (x, 280,82) VIRGlLIO E OS IDEAIS DE ROMA Pois morrer tanto cuata? Vós ó manes, Já que o.<J céus me aborrecem, protegei-me: Alma insolente e sem mancha, à Estige baixo, Dos meus grandes avós tufo terei pejo. (1) 57 No combate final não sente medo do antagonista, mas apenas dos deuses; recusa humilhar-se diante do triunfante Eneias e diz com altivez: . . . Esses feras não me assustam : Júpiter sim e os inimigos dtuses. (1) s~ pede a Eneias para lhe poupar a vida, é por causa do velho pai e por não u:reditar que Eneias continuará a odiar e a querer tirar vingança quando alcançou tudo aquilo que quis. Em Turno há muito de Aquiles, muito também de H eitor; nada existe de Sinon ou de Neoptolemo. É o herói que luta pela honra e pela pátria. Nele as qualidades heróicas nada perderam da sua fascinação, podendo nós estar certos de que Virgílio admirava-o tanto como nós. O poeta faz mais do que admirar Turno : tem um pro· fundo sentimento por ele, em especial na luta final com Eneias. Turno não tem esperança na vitória, pois os deuses o abando- naram. Mas não recusa o combate. Há um sentimento trágico no seu desalento quando ergue a última arma, uma enorme pedra, e a atira em vão contra o inimigo.Em parte nenhuma da Eneida 03 versos são tão profundos e tão ternos como na comparação que mostra a inutilidade dos esforços de Turno: (11 Op. cit , pág 381. usque adeolle mori miserum est ? v,s o mihi , Manes, este boni quolliam superis a11ersa voluntas. sancta aà vos anima atque istius inir.ia culpae descendam magnorum hauà iinquam indignus avonon (XII, 6◄6-9) (') Op. cit,, pág. 388 . non me tua fervida terrent dieta, ferox; di me terrent et luppitir hostis. (XII , B94-5) 58 .. VIRGfLIO E OS IDEAIS DE ROMA Como em sonhos, se l4nguida modorra Nos preme os olhoi, ávida carreira Tentando em vão, no meio esmorecidos Sucumbimos ; a lfngua e a voz nos falha, Falham no corpo as forças : tal por onde Seu valor Turno msaia, o impede a fúria. (1) hto está de todo fora do método de Homero, E,obora o esboç,) geral da comparaçã) proveoh.1 da Ilíada, em que a perseguição de Heitor por Aquiles é comparada à de um homem por outro em sonhos Como em sonhDB não pode ao fugitivo Este alcançar, nem se livrar aquele; Reitor assim de Aqitiles não se livra. (1) a comparação homédca é muito menos patética, muito menos interessada nos sentimentos do vencido do que é a de Virgílio. Homero vê a luta exteriormente, ao pJsso que V1rgílo a vê com todo o horror, desespero e desânimo que ela tem para Turno. Chega o final, Turno é morto e com a sua morte acaba o poema, não com uma nota de êxito, de triunfo ou até de dever cumprido, mas quase com um lamento p,:>r este grande e,pírito condenado a uma triste sorte tão cedo. Não é em Eneias, mas em Turno, que ficamos a pensar ao concluir da Eneida: (1) Op. cit. pág. 3t18. ac velut in somnis, oculos ubi languida pressit nocte quies, nequiquam avidos extendere cursus velle videmur et in med'iis conatibits aegri succidimus - non língua valet, non corpore notae sufficiunt vires nec vox aut verba sequuntur : sic Tur1110, quacunque viam virtute petivit, successum dea dira negat (') .A Ilíada de Homero, cit . pág 278 w, 3' w &vslpq> ov 3vvat:a, cplvyovra J,roksw, olJr' llp' & ,:ov Júvara, v:rrocpt'Úysiv olJO' & <lufi/;ew. &l, & ,ôv ov Jvvaro 11áptpa, noolv, oM' éJs à.!ú.;a,. (xn. 908-14) (n., XXII, 199-201). ; VIRGILIO E OS IDEAIS DE ROMA 59 Gelo 01 órgã,s lhe aolvt, e num gemido À alma indignada se afundou nas sombras ('). O poema da Roma imperial termina, não com um pean patriótico, ou com a esperanç~ em altos fc.:itos nacionais, mas com o sentimento da morte de um mancebo. Não podemos duvidar de Virgílio querer que sentíssemos que Turno era uma nobre figura heróica e que a suJ morte não constitui mero incidente na fundação de Roma, nem um castigo por resistir às determinações dos deuses, Ele insiste na nobreza e no patético de Turno, que devem ter tido certa influência no seu plano geral. Turno é uma figura trágica, a sua morte um trágico acontecimento. Ele morre por opor-se ao nascimento, inevitá- vel e predestinado, de Roma, mas isso não quer dizer que n os devamos regozijar com ele ou condená-lo por tudo o que faz. O nascimento duma potência como R0ma exige sacrifícios desta espécie. São inevitáveis, mas não são necessáriamente matérias para reg,1zijo. Virgílio considera Turno um herói trá· gic.o, um grande homem que possui elevados dotes e é, em muitos aspé'ctos, admirável, mas cai por causa de um só erro. O plano é mais de Sófocles que de HJmero, pois o erro que leva Turno à ruína é também a fonte da sua grandeza: é o seu orgulho heróico e o sentimento do seu próprio valor. Tal plano adopta-se naturalmente ao modelo épico, dando à nar- rativa profundeza e significação, Turno opõe-se à divina mis- são de Eneias porque os deuses resolvem que ele o faç~, e Juno, que se opõe a isso, utiliza-o como seu instrumento. Isto, porém, não quer dizer que Turno seja uma vítima involuntária ou um brinquedo nas mãos dos d euses, Ele procede assim por ser da espécie de homem que antepõe o seu orgulho a tudo o mais. Não pôde ver como eram poderosas as potências que lutam ao lado de Eneias, acreditando que o seu destino pode enfrentá-las. Por isso é cego aos presságios e surdo à q profecias reveladoras do significado da chegada de Eneias à Itália e finge acreditar que o simples facto é que tem importârlcia e que com ele se cumprem os oráculos. Por esta razão não os teme : \1) Op cit., pág 389. ast illi solvuntur frigore membra vitaque cum gemitu {ugit indignala sub umbras. (xu, 951-2), 60 VIRGÍLIO E OS IDEAIS DE ROMA Nada os fatais oráculos me assombram, Se de alguns o inimigo ora se jacta. Basta a Vénus que os seus na pingue Ausónia Toquem (1 ) . Ele confia tanto no seu próprio destino e no seu próprio critério, que comete erros fatais, primeiro quando alegre e confiadamente toma armas contra s Troianos, em segundo lugar quando, em vez de aproveitar uma b .:ia oportunidade de paz, segue a sua próplia opinião desassísada e resolve repetir a b1talha e manifestar as suas façanhas pessoai,. O seu amor pelos combates e pela gló ria cega-o ao mal que cometeu, resultando daí que se vê obrigado a combater sozinho Eneias e é morto. O seu forte temp!ramento debilita-lhe o rJciocínio, não sabendo em que ponto há-de deter-se. Constitui ele um exemplo desse trágico lJpPi. , ou or'gulho que leva o homem demasiado longe e trabalha pelo seu aniquilamento. Pur fim morre por tentar realizar aquilo que está para alérn das suas p:issibilidades, o que Virgílio mostra de modo significativo. Quando Turno mata PJlas, tira ao cadáver um cinturão com relevos, comentando o poeta: . . . oh ! mente humana, Fera e descamedida na bonança, Do porvir néscia ! (2) Turno manifesta a sua ex:ultaçio tomando o cinturão; no final, quando ele próprio se encontra à mercê de Eneias e pede que Ih~ perdoe a vida, há um momento em que ele ia ser poupado; Eneias, porém, a ponto de ced er, vê o cinturão e sente-se incitado a matá-lo. Rig,)rosamente f,,lando, Turno não é castigado por matar PJlas, pois esse era legítimo acto de (1) Op cit pág. '.lS2 . nil me fatalia terrent, si qua Phryges prae se iactanl, responsa deorum : sat fatis Venerique datum, tetigere quod arva fcrtilis Àusoniae 'l'roes. (2) Op. oit., pág. 318 . . (IX, 133·6). nescia mens hominum fati sortisque futurae et servare modum rellus sublata secundis ! (x, SO l-2). VIRGILIO E OS IDEAIS DE ROMA 61 guerra; é-o por viver vida de combates e inevitàvelmente recorrer à guerra quando a vontade lhe é contrariada. Ele representa esse mundo heróico que nos seus ideais contém as sementes da própria destruic;ão, e nele demonstra Virgílio que compreendia o tipo heróico e até o admirava, mas sabia não ser aquilo de que o Mundo precisava. Turno não é o único exemplo que Virgílio apresenta do tipo heróico. Com ele podemos, por muitas formas, comparar Dido, o mais pedeito e o mais feliz retrato de mulher que o poeta nos mostra na Eneida. Assim como Turno estorva Eneias no seu destino, assim o faz Dido à sua maneira. Também ela é instrumento de Juno; também ela atrai a nossa admiração e a nossa compaixão. Ela não provém de Homero e não tem raízes nas histórias heróicas. Virgílio transmitiu-lhe a sua feição heróica à sua maneira própria e por razões pessoais, Ela é um exemplo daquilo que uma mulher pode ser se o seu carácter for semdhante ao de um homem heróico. Também no seu caso Virgílio imagina a narrativa com espírito trágico e lhe dá a feição de uma tragédica àtica. Abre com a conversa entre Dido e a confidente, semelhante à de Fedra e a Ama no Hipólito de Eurípides. Daqui segue inevitàvelmente até à crise e à catástrofe, estando porém a poesia mais nos discursos do que nos relatos de acção. A mulher ofendida resolve suici- dar-se, mas antes lança uma horrível maldição ao homem que lhe fez mal, segundo ela ctê. Depois vem o final, tranquila· mente, com um deus ex machina, quando Iris liberta Dido da da sua agonir de morte. Há mesmo passos, como o relato de Atlas ou do Rumor, que se assemelhama odes corais e cons· tituem intermédios líricos à sombria história. O tom e a cons- trução do Livro IV provêm da tragédia grc."g'a; estamos na razão fazendo corresponder a catástrofe de Dido a um desas- tre trágico. As lágrimas que s.to Agostinho lamentou ter derramado sobre ele na juventude iludida demonstram que, pelo menos, o seu juízo literário não era erróneo. Por detrás desta semelhança exterior com a tragédia podemos ver tam- bém uma visão e uma intenção trágica, um desígnio que liga Dido a outras grandes mulheres cujo carácter é o seu destino. Como Turno, Dido tem um erro trágico. Ela fez voto de se conservar fiel ao espírito do defunto marido Siqueu, mas quebra-o quando se une a Eneias, É esta a culpa que eventualmente prova a sua ruína. Sem ela, nunca se teria apaixonado tanto por ele ou lhe teria sentido tão profunda• mente a deserção. Enquanto ainda hesita em resistir à paixão, Dido diz: 62 VIRGILIO E OS IDEAIS DE ROMA ... ao toro e /achas Tédio se na, tivesse, eu talvez, Ana, A esta só culpa sucumbir pudera (1), e depois de se deixa(vencer por ela, Virgílio repete a palavra culpa para não deixar dúvidas quanto ao seu significado: Nem mais Dido medita amor furtivo ; Com todo o Eg1pto, oh peío l aegue a esposa (2). A um romano a culpa havia de parecer mais grave que a nós. Não só consideraria especialmente santificado o juramento prestado a um marido dtfunto, mas também, pelo menos em teoria, havia de admitir que uma mulher não deve ter durante, a vida mais de um marido. Por isso, quando Dido cede à paixão, não se éncontra isenta por completo de culpa. Por outro lado, o castigo dela está muito além do que merece. Virgílio é explícito quanto à origem das tristezas de Dido, mas não diz que ela as merece todas, tendo sido o julgamento da posteridade que ela sofre injustamente. É ela e não Eneias quem merece a nossa piedade, ela, cujos sofrimentos dão origem à mais alta poesia de Virgílio. Tal como Turno, ela é conce· bida na escala heróica. Ao fundar Cartago, levou por diante um grande empreendimento arriscado, e até à chegada de Eneias é um grande chefe de Estado, razão pela qual tanto maior é a catástrofe quando esta chega. Quando está a morrer esquecemos a sua culpa inicial, e apreciamos a justiça c?m que nos Infernos, onde foi reunir-se de novo ao falecido marido, repele com desdém as desculpas de Eneias e a tenta· tiva deste para fazer as pazes com ela. O mundo moderno lamenta Dido e não Eneias, e no geral parece que os Romanos fizeram também o mesmo. Talvez Ovídio tenha em parte certa culpa disto, porque na (1) Op. cit., pág. 113. si non pertaesum thalami taedaeque fuisset, huic uni forsan potui succumbere culpae (2) Op. cit, pág. 118· (1v, lS-19). nec iam furtivum Dido meditatur amorem: coniugium vocal, hoc praetexit n~mine culpam. (1v, 171-2). VIRG1LIO E OS IDEAIS DE ROMA i 63 Carta de Dido para Eneias pôs-se abertamente ao lado dela, d ando um exemplo que outros seguiram, Até. porém, sem o exemplo de O vídio, parece provável que os Romanos teriam tomado a defesa de Dido. Na sua mocidade, s .to Agostinho, chorou por causa .dela, e, em idade mais avançadf, acentuou a dureza de coração de Eneias na forma como a tratou. Uma vez que Virgílio a apresentou como fez, quase não hat ia alternativa para a aceitarmos como mulher injuriadíssima. todavia , para os primeiros leitores de Virgílio, Dido não podia, ter esperado causar impressão tão imediata e tão poderosa. Ao ler o que o poeta disse a seu respeito, eles sentiriam suspeita e desconfiança. Virgílio deve ter tido consciência disto, e o modo como apresenta Dido demonstra como ele era capaz de fazer erguer o seu público romano acima das paixões nacionais, até uma visão mais imparcial. A sua Dido deve ter, forçosamente, evocado a lembrança da influência de outra rainha estrangeira na história romana e o seu domínio fatal sobre um grande romano. O episódio de António e Clrópatra provou como o Oriente era perigoso para o Ocidente, podendo ver-se o sentimento geral de alívio com a morte de Cleópatra, na explosão quase histérica de alegria de Horácio a respeito do facto . Pelo lugar que ela ocupa no l!i:scudo de Eneias torna-se evidente que Virgílio partilhava a opinião geral: Chama-o consórcio, e o nome é réu de culpa (1) . A palavra condenadora nefas (oh pejo 1), não deixa dúvi~a quanto à maldade das relações de António e Cleój)atra. É, pois, neste cenário de ó;lio, de temor e de horror que devemos colo- car a Dido de Eneias. Ela não é Cleópatra. Todavia as duas mulheres têm bastante de comum para que Dido recorde as tentações e os pe-rigos que os Romanos sabiam que se escondiam no Egipt0. As duas rainhas têm certas semelhanças supediciais e acidentais. Cada uma delas reina em Af,ica, e na mocidade foi despojada da herança por um irmão'; cada uma delas se apaixona por um romano notável, se assim podemos chamar a Eneias, e cada uma acaba por se suicidar. Mais importantes são as semelhanças de carácter. Cada .uma delas é (1) Op. oit., pág. 272. Sequiturque, nefas, Aepyptia coniunx . (vm, 618). r ' - \ - 64 VIRC1LIO E OS IDEAIS DE ROMA imperiosa e voluntariosa, capaz de actos desesperados e de executar grandes empresas e de governar um povo cercado de inimigos; cada uma tem o temperamento exaltado da mulher livre de quaisquer preconceitos de decoro romanos e possui a independência poderosa de quem nasceu para mandar, Havia em Cleópatra, assim como em Dido, muita coisa a impor o respeito e a admiração. Num mundo romano estas grandes figuras estão à parte, de modo notável. Virgílio deve ter visto, quando criou Dido, que os seus leitores haviam de relembrar Cleópatra e, consciente ou inconscientemente, dar a Dido muitos dos seus antigos sentimentos ressuscitados, pela rainha egípcia, e ver nisso ainda outro exemplo dos perigos que o Oriente trazia ao Ocidente. Foi precisa toda a arte de Virgílio para suavizar essas dúvidas, e parece que de facto o conseguiu. Dido podia tornar-se igualmente suspeita por outra razão. Era cartaginesa, chefe de um povo que fora a maior ameaça conhecida para Roma e de que pouca coisa de bom se disse ainda muito tempo depois da destruição de Cartago. A opinião oficial e, sem dúvida, popular acerca de Cartago torna-se cvi· dente pelo juízo de Tito Lívio a respeito do grande Aníbal, que vê, neste soldado, cujos leitosa inda nos :mpmsionam a imagi- nação, o exemplo da crueldade, da falta de escrúpulos e traição mais que púnica (1). Sente-se o mesmo espírito cm algumas odes de Horácio, quando fala da perfídia de Cartago e considera a ruína desta o justo castigo da sua impiedade. Sentimentos análogos foram partilhados por Cícero, que fez uma exccpção aos honrosos inimigos de Roma os • Cartagi- neses que quebram os tratados e o cruel Aníbal • (1) . Virgílio conhecia estas desconfianças e, de certo modo, partilhou delas. Ele viu que Dido, na qualidade de fundadora de Cartago, atrairia a desconfiança. Adopta, pois, uma solução atrevida. Quando Dido se viu abandonada por Eneias, amaldiçoa-o e aos seus descendentes, profetizando a sua maldição, as horren- das lutas das Guerras Púnicas e o advento de Aníbal: (1) XXI, 4, 17 : , inlmmana crudeli tas, perfídia plus quam Punica, nihil 11eri, nihil san,ti, nullua deum 11i rtutum, nullumjus juran- dum, nulla religio •· (Nota do Trad.) (2) De Off., 1, xu 28 : Pami f redifragi, crudclis Bannibal, reliqui justores. VIRG1LIO E OS IDEAIS DE ROMA ... Dos ossos tu me nasce, Tais colonos persegue II fogo e ferro, ó vingador : iá, logo, em todo o sempre QttP. haja forças . . (1) 65 .A hora da morte, Dido clama vingança sobre Roma : nali)uele momento parece ela a responsável pelas Guerras Púnicas. Todavia , é por Eneias a ter abandonado que o faz, pelo que o herói é tão responsável como ela. Na verdade, isto podia muito bem levar os leitores romanos a odiar ou a con- denar Dido como inimiga da sua raça, mas o poderda poesia de Virgílio é tal, que nos leva até a simpatizar com a maldição de Dido. Ele parece desposar a causa dela com tanta sinceri- dade, que os Romanos quase se viram obrigados a esquecer os seus agravos nacionais na sua compaixão pelo trágico destino de Dido. D e fa cto, Virgílio leva as desgraças de Dido a despertar uma com paixão e uma simpatia que ultrapassam e até oblite- ram considerações legítimas do que uma mulher dessas signi- ficava p ara Roma. Serve-se de todos os meios para a fazer majestosa, humana e trágica, Demora-se a descrever-nos a sua grandeza de carácter e de coração. Quando surge pela primeira vez, é uma grande rainha e uma grande mulher. Fundou e edificou Cartago, conduziu um grande agrupamento de gente desde Tiro até às desoladas praias da Africa, onde está a levan- tar uma cidade esplêndida que deve ter feito recordar os templos e palácios que Augusto estava a erguer cm Roma. A recepção que ela faz a Eneias e aos seus troianos é calorosa e sincera. Nos seus oferecimentos de hospitalidade, ela não faz quaisquer reservas, convidando os troianos a ficar em Cartago e prome- tendo-lhes não fazer qualquer distinção entre eles : Nào fare i distinção de Frígio a Peno (Z). (1) Eneida brazileira, pág. 132. exoriare aliquis nostr i.1 ex ORsibtt8 11ltor qui face Dardanios ferroque sequare colonos, nunc, olim , quocumgue dabunt se timpore viris. (2) Op. cit , pá g 24. (IV, 625 - 7) . 'l'ros 'l'yriusqu~ mihi nullo discdmine dgetur. (1, S'4) . 66 VIRGILIO E OS IDEAIS DE ROMA Recorda ela os antigos laços existentes entre a sua pró('ria família e a de Eneias, manifestando o que o mundo antigo teria considerado modéstia conveniente ao dizer que os seus sofrimentos próprios lhe ensinaram a socorrer os inklizes: Por trati ,~es mil trflzida, iguais deatinos Cá me fixaram Ndo do mal ignara A socorrer os m1seros aprendo (1) . O seu estado real manifesta-se nas festas e presentes, nas cerimónias prestadas aos deuses, na corte com os digniti.· rios e menestréis e as conversas que se prolongavam pela noite dentro, e na bondade ilimitada demonstrada para com o pequeno Ascânio. Mais ainda do que Turno, ela é um guia de homens que cumpre o seu dever com admirável consciência e grande estilo. Não foi assim que os Romanos viram Cleópatra. Dido fala aos sentimentos profundos dos Romanos ~ o respeito pelo poder, pela hospitalidade e pela generosidade. Ela é uma verdadeira heroína pelos seus dotes e pelos seus nobres senti- mentos. Até nas suas relações com Eneias, Dido aparece a uma luz inesperadamente favorável. Cometeu um erro em quebrar ó juramento feito ao primeiro marido, mas depois disto não é fácil condenar-lhe o procedimento. Apaixonou-se por Eneias, nunca dizendo Virgílio que ele está apaixonado por ela. Levada pelo seu amor, julga ela a união um autêntico casamento. E não era muito. Os dois consumam o seu amor numa caverna para a qual os empurrou uma tempestade, des, crevendo o poeta as circunstâncias : Ttlus sinal deu logo e Juno prónuba: Corisca , e o éter t,abedor das bodas J'ulge, e no mno as ninfas ulularam. (1) (l) Op. cit, pág. 26. me quoque per multo,9 .~imilis fortuna labores iactatam hac demum voluit consistere terra. non ignara mali miseris succurrere disco. (1) Op. cit. pág. 118 (1, 628 - 30). .. • prima et Ttllu8 et pronuba Iuno dant aignum ; fulsere ignes et conscius aether co11ubiis, summogue ulularunt vertice Nympliae. (1v, 166·8). vnt.GfL!O ! OS IDEAIS DB ROM A m Os factos são! menos simples do que parecem. O que se passou foi que as poteatades do céu e da terra celebraram à sua moda a cerimónia de um casamento antigo. A Terra-mãe e Juno, deusa das bodas, dão o sinal para principiarem 61 ritos; os relâmpagos correspondem aos fachos nupciais; o ar é uma testemunha e as Ninfas soltam o grito nupcial. Tudo está em boa ordem para a celebração do casamento ; este, porém, é celebrado pelas forças da Natureza e não por seres humanos. Conclui-se daqui inevitàvelmente que o casamento é, de certo modo, válido. Dido não desposa Eneias como uma romana des- posa um romano, roas siin com a aprovação da Natureza, acre- ditando que o casamento é real. Nesta crença não vacila, 1endo para ela que apela quando pede a Eneias qué não a deixe: Por nosso matrimónio, pelas núpcia, Enc,tadas . . . (') Ê, porém, precisamente nisto que reside a trágica dis• cordància. Eneias, já um típico romano, não partilha da crença dela. Ao responder-lhe, nega que algum dia tivesse casado : Nem a furto ausentar-me, tal nao penses, Cuidei: nem pretendi jamais as tedas. Ou vim nunca afirma,· esta aliança . (1) Ele sabe que, como o destino o chama à Itália, não há quaisquer laços a prendê-lo a Dido. Entre os dois ponto• de vista cxi1te um conflito irredutí vel. Dido deu toda a vida ao amor por Eneias; quando este o rejeita, para ela não há senão a morte, pois a vida não tem qualquer significado sem ele. O conflito provém de desacordo mais profundo. Dife· rentes pela origem e pelo destino, ela e Eneias não podem (l) Op, cit., pág. 122. Per ccmubia no3tra, per inceptos hvm,naeos. (l) Op. cit., pág. 123 . (tv, 316) • • • nec coniugi& unquam praetfflài taedaa aut haec in f oedtra ,eni, (tv, 338-9). A, •teclas• etam as toebas nupciais. (Nota do Trad) 68 Vlletuo E os IDEAIS Dl! ROMA unir-se por qualquer forma autêntica ou válida. C2da um deles se julga na razão, e tem boas ra2ões para o acreditar. Subme- tendo-se à sua culpa original e entregando-se à paixão por Eneias, Dido abre o caminho à sua própria condenação. A consumação da caverna é o principio do fim: · Este o dia letal dos males causa (1) Uma vez que ela acredita Eneias seu, está resol- vida a conservá-lo a todo o custo, esquecendo tudo o mais, levada pelo amor que lhe tem, Daí resulta que, quando a deixa, se suicida. O paralelo entre Dido e T urno é perfeito. Cada um deles chega a um fim trágico por causa de culpa relativamente pequena ; cada um deles merece compaixão e simpatia. Assim como os últimos momentos de Turno o colocam acima de todo o juízo condenatório ou crítico, assim esquecemos que Dido é em parte responsável pela sua própria catástrofe, e somos da sua opinião quando ela invoca as potências do céu e do inferno para lhe darem cumprimento .i maldição :. Sol, que lustras o globo e tudo aclaras ; .Juno, intérprete e cônscia destas penas ; Pt>las cidades tm nocturnos trívios Tu Recate ululada, u ltrices Fúrias, Ouvi-me, ó deuses da expirante Elisa . . . (1) Virgilio mostra-se mais do que "justo para com ela. Dá largas à imaginação poética quando a descreve, apresentando o caso dela com grande piedade e compreensão, Como Turno, também ela ilustra as limitações e os perigos do aspecto heróico. A sua grande alma leva-a a melhor desafiar a sua (1) Op. cit ., pág. 118. ille dies pt·imus leti primusque malorum cau,afuit. (2) Op. cit., pág. 131. ( IV, 169-70) Sol, qui terrarum fw.mmis opera omnia lustras, tuque harum interpres curarum et con,cia Iuno, nocturnisque R ecate triviis ululata per urbes _ -6t l)irae ultrices et di morientis Elissae • • • (IV, 607-10) VIRGÍLIO E OS IDEAlS DE ROMA atúrcza e condu-la ao seu destino. Ela refugia-se no seu [timo recurso, no das suas próprias emoções, paixões e orgu- 10. Uma vez que o amor por Eneias lhe domina a natureza põe em jogo a sua vaidade, nada mais lhe interessa. Quando , apaixona, esquece Cartago e descuida a iirande missão que >mcçara: l mpendentes merlões, fábri cas param; Já ndo labora u máquina altaneira (1) Por isso, ao saber que Eneias a vai deixar, apenas :nsa cm si e no seu orgulho ofendido, e volta-se contra ele; , não quer estar com ela, morra de morte horrenda, e fique mundo dos seus descendentes convulsionado pela guerra. sua natureza heróica, apesar de toda, as grandes qualidades, ve por si. Quando a iludem ou injuriam, apenas pode vol- r·se contra os outros e contra si e destruí-los. Virgíliop.ircce - r pressentido que o tipo heróico, que compreendeu e por uitos modos admirou, tinha esta culpa fatal: está con· :nado a causar a destruição, por viver para a sua própria 6ria e satisfação. E: um comentário justo; Virgílio tinha 1toridade para o fazer. Isto demonstra porque é que o velho itério heróico de Homero se não lhe adaptava, nem à Roma- : Augusto. O seu mundo possuía bastante experiência desta · merária auto-afirmação para saber que mal ela podia causar. Era contra estes tipos imperfeitos que Virgílio tinha de oçar o seu ideal pessoal, reformado e romano, de personali- .de, tarefa realmente difícil. Devia criar um homem que, ,r um lado, pudesse comparl!_r-se aos maia nobres heróis de omero por qualidades universalmente honradas, como a ragem e o sofrimento; e por outro, apresentar as qualidades LC a época de Augusto admirava acima de todas as outras, as que nada significavam para Homero. O modo como Vir• lio pinta Dido e Turno demonstra que o seu novo herói não ,dia ser impulsionado pelo espírito auto-dogmático e pelo culto honra que inspiraram a concepção heróica. Tinha de basear-1e :i qualquer outro princípio mais próprio duma era de paz e 1 ordem. Mas se tivesse de rivalizar com Aquilea e Uliase1, (l) Op. cit., pág- 115 pendmt opera inte'Yrupta minaeque murorum ingenteB aequataque machina caelo. (IV, 88·9) 10 vrn.ctuo E os IDEAIS . DE ROMA devia ser um grande homem e um chefe de homens. Vir- gílio tinha de apresentar um herói que atraísse pela grandeza, pela bondade, pelos dotes superiores e pela virtu, romana. Por um lado devia pertencer, com propriedade, à época heróica em que a lenda o colocava, e por outro tinha de representar, em toda a sua plenitude e variedade, o novo ideal de personali- dade que Augusto advogava e proclamava caractrristicamente romano. Daí resultou Eneias, personagem composto de tantos elementos diferentes que muitas vezes os que admiram Viq~ílio até ridicularizam. Todavia, o poeta dedicou-lhe as suas medi,tações mais profundas e alguma da sua mais bela poesia. Para o com- preendermos, temos de tentar aprender certas ideias e senti- mentos da época de Augusto. Eneias provém de Homero, e na Eneida é apresentado como grande guerreiro, quase igual a ,Heicor, que lhe aparece, depois de molto, como ao seu legítimo sucessor na defesa de Tróia. Andrómaca associa-o a Heitor quando ele pergunta se Ascânio, seu filho, possui a coragem e o ânimo de seu pai Eneias e de seu tio Heitor. A fama de Eneias espalhou-se por todo o mundo, e Dido já sabe algo a seu respeito, ainda ant~.i de o ver, do mesmo passo que Palas, em Itália, manifesta espanto por ver que um homem tão célebre lhe apareça 11:0 Tibre. Ele tem as qualidades heróicas do sangue divino, doa feitos guerreiros, da beleza física e do poder de comandar homens. Tem, porém, algo mais do que isto. A sua qualidade essencial é a pietas, a devoção aos deuses e a todas as suas ordens, como o demonstra o espíteto de pius com que · se distingue. Quando Ilioneu fala dele a Dido, mostra o coo· junto de qualidades em Eneias: Rei no,so Eneias e, que a ninguém cede, Pio e inteiro, valente e belicoso (1). Não é apenas um grande militar : é um homem bom. De certo modo, Homero já o pintara assim, ao falar dos seus muitos sacrifícios a Poscidon; Vi,gílio, porém, amplia o con• ceito da sua bondade até abranger muito mais do que a prá, tica de ritos religiosos. A pietas de Eneias mo1tra-1é na devo· (1) Op. cit,, pág. 129. rex erat Aenea, nobis, guo iu.,tior aller nec pietate fuit, nec bello maior et armis. (1, 544-5). VIRGÍLIO E OS IDEAIS DE ROMA 7f ção à pátria, ao pai, à mu1her, ao filho, aos companheiros e, acima• de tudo, aos muitos deveres e à missão espe ial que lhe impuseram os deuses. Ê pius por fazer o que um homem bom deve. O epíteto que Virgílio lhe dá é diferente dos que dá Homero aos seus heróis, pois enquanto estes denotam características físicas ou qualidades úteis na guerra, pim indica uma qualidade espiritual sem nada que ver com a guerra, reportando-se cm "special às relações entre Eneias e os deuses. Assim, logo de ptincípio, o herói de Virgílio figura numa ordem diferente de coisas e pede uma atenção de espécie dife- rente; Neste epíteto sem precedentes dado a um herói épico e em tudo o que ele implica está a chave da concepção de Virgílio acerca de Eneias. O. herói é pius mas não se mostra, no decorrer do poema, homem perfeito e ideal. A indignação que provocou a mais de um crítico pelas suas faltas manif"stas, demonstra não que a ideia que Virgílio fazia da bondade fosse singularmente dife- rente da nossa, mas que ele preferiu mostrar um homem bom em formação e os meios pelo~ quais ela' é levada a cabo. Para compreender Eneias temos de compreender o plano pelo qual Virgílio o apresenta, plano baseado nas opiniões morais da época de Augusto, modificadas, porém, pelas cren<~as e admira~ ções pessoais de Virgílio. O sep,redo de Eneias está em ser '. construído segundo o ideal estóico. S.0 Agostinho refere-se a isto ao aludir ao procedimento de Eneias com Dido, considerando-o tipicamente estóico porque, ao mesmo tempo que chora por ela, a sua missão não é abalada pelos sofrimentos dela : . .. a mente imóvel Persiste, e rodam lágrimas baldias (1). Não há a certeza de s.t• Agostinho interpretar correcta• tamente o verso, mas a conclusão principal está certa. Eneias tem inegàvelmente algo de estóico a justificar os paradoxos e contradições do seu carácter. Não há nisto nada de estranho. Nas reformas morais que Augusto pregou e concebeu, ocup u lugar de destaque um estoicismo renovado, que vive nas (1) Op. cit., pág. 127. mens immota manet, lacrirnae volvuntur inanes. (1v, 449i , 7l VIRGfLIO E OS IDEAIS DE ROMA odes patrióticas de Horácio e sobreviveu através dos dois primeiros séculos da era cristã. Na sua origem, o Estoi· cismo era uma cr.ença nascida para defrontar os horrores de uma época em que não havia segurança política ou pessoal, estabelecendo, contra esta desordem, a cidadela da alma humana, na qual ela podia viver em paz consigo própria e com o universo, e, dominando as suas emoçõ~, manter-se impávida perante tudo aquilo que pudesse acontecer. Os roma- nos do tempo de Augusto adoptaram esta crença e deram-lhe nova significação. Ela convinha-lhes porque desaprovava o auto-dogmatismo e a ambição, e dava particular importância ao1 dcvercd sociais. Ela convinha bem a uma época que espe- rava curar-se dos excessos do individualismo desenfreado. · O cidadão pacato, desinteressado e abnegado, pronto a cum- prir tudo o que lhe diziam, era o tipo caro a Augusto. Virgílio conhecia a teoria e a doutrina, e embora na juventude sen• tisse certa inclinação por Epicuro, foi profundamente afectado por elas, Os estóicos criam que o homem não nasce bom, ou, como eles diziam, •sábio,, mas chega l.í por meio da provação, a exercitatio, com que as suas qualidades naturais entram em acção e o seu carácter se fortalece e desenvolve. Se ele corres· ponde exactamente a este processo, no fjnal encontrará a sabedoria que o mesmo é que a bondade. O que interessa é o resultado, o estado final do homem. Não importa que cometa erros desde que com eles aprenda e 1e torne sábio: Os grandes exemplos da virtude estóica eram Hércules e ~s Dioscuros, homens que passaram a vida a cumprir missões difíceis no fim, sendo elevados até à divindade por terem sucedido nelas. É a uma concepção como esta que se adapta a vida de Eneias. Nos primeiros cinco livros da Eneida é posto à prova; nos últimos tornou-se sábio e bom: é um homem completo. Não importa que no passado às vezes falhasse, desde que o resultado seja bom ; o que conta é o seu carácter final; este é que Virgílio nos põe diante dos olhos depois de nos mostrar as suas fraquezas . . Que esta era a intenção do poeta demonstra-se pelo emprego da linguagem estóica em . certos passos importantes. O processo da prqvação revcla-ay .duu vezes. A primeira ocasião é no momento em que Eneias ae mostra desesperado por lhe falhar o projecto de se fixar em Creta; a segunda, quando viu quatro dos scµs navios arderem na Sicília, pensando por iuo cm abandonar a empresa. De ambas as vezes o vemos quase sem confiança, e de ambas -das é ,alvo pelo pai Anquiscs, primeiro em carne e osso e VIRG1Lf0 E OS IDEAIS DE ROMA 73 depoi1 em espirito, em sonhos, o qual se lhe dirige nestas palavras : Filho, a quem deJlion persegue e> fado (1 ). A palavra e:urcit8 é téc~ica e significa ,provado, e quase •provado depois de exame,, Séneca diz que Deus põe à prova ª'!ueles a quem ama (1). Como os deuses amam Eneias, poem-no à prova. Quase metade da Eneida se reporta a este processo, ex:plicando porque é que Eneias procede como pro- cede. O homem naturalmente bom, fiel aos seus deuses e à família, foi escolhido para uma missão especial, e para estar à Altura dela tem de passar por muitas provas. Erra, mas aprende com os seus erros : no final encontra o seu verdadeiro ,cu,. Os erros de Eneias são motivo já antigo de irriaão. T~lvez fossem postos em relevo numa obr11 perdida de Carvílio P1ctor chamada Aeneomastix lO Aeorrague de Eneias), e cha· maram a viva atenção dos Padres da Igreja, que acharam que um_ do.1 seus principais antagonistas era este herói mítico, ofe- recido à admiração da juventude romana. Muitas das acusações c_ontra Eneias são fúteis; há, porém, três casos ém que as auto- ridades mais conspícuas admitem ter ele falhado: durante o ~aq_ue ~e Tróia, nas suas relações com Dido, e por ocasião do mcend10 dos seus navios na Sicília. Em cada uma destas oca· siões permite que as emoções se apossem dele e o fa_çam pro- ceder contra a sabedoria ou erradamente. Os Estóicos . àdmi- tia~ que as emoções devem êstar totalmente subordinada, à razao; Virgílio serviu-se desta crença. Eneias, com toda a sua nobreza natural, começa por mostrar-se emotivo no caminho errado e mostra não compreender qual seja o seu dever ou que acções deva pra_ticar. A, provas a que é sujeito revelam esta sua fraqueza e, na devida oportunidade, ensinam-lhe como deve contrabatê-la. No Saque de Tróia, Eneias comporta-se com bastante ~oragem, mas a sua coragem é inútil. Os Estóicos explicariam isto dizendo que a verdadeira coragem não é de espécie füica ou animal, mas uma qualidade moral orientada pela razão; -- (1) Op. cit. pág. 82. nate Ilíacis ex ercite {atis 12) Dial., 1, 4 (UI, 112 ; V, 7251. VIRGILIO . E OS IDEAIS DE ROMA consiste em grande parte em saber o que deve fazer-se em determinadas circunstâncias. É isto o que falta a· Eneias, Ele acredita na mentira de Sinon, apesar de a experiência lhe ter ensinado a desconfiar dos Greitns, e ajuda a transportar o Cavalo de Pau para dentro de Tróia, acto em que, como ele mesmo diz, ele e 01 seus amigos são . . . c!dmentes Naquele d11 Darddnia último dia (1) . Estãõ agitados e descuidados, não 1e mostram razoáveis nem previdentes; falta-lhes aquela coragem a que Cícero chlima cmemória do passado e previsão do futuro• (1), e deixam que os sentimentos lhes vençam a razão, Até no momento de se baterem não procedem como serea racionais; batem-se) com uma fúria louca e cega, sem qualquer fim ou plano definido. Eneias condena-se mais uma vez; quando se prepara para combater : Das armas ferro. desatino, e em armas Doido onde vá nao s,i.,. (1) e quando, com o, companheiros, se lança na luta, À ira me precipita (& ). . Qualquer previsão que possa t~r é dominada pela paixão e •pela fúria . . o modo como os Troianos combatem mo1tra que (1) .d Ene:ida Brasileira, páa, 47. immemores caeciqud furore (11, 244) (J) De Sen , 78 : ,sic mihi pcrsuasi, aic ,eritio, cum tanta ce~ritas animorum sit, tanta memoria pra-ltrittwum, futurommque prudentia • (Nota do Trad.) (S) A Eneida Braaileira, pág. 49. a ma amens capio, nec sat rationís in armis (•) Op. cit., pág. 49. furor irague mentem prafcipitant (u, â-1.C) (II, 316-7) VJRG!LIO E OS IDEAIS DE ROMA 75 Ião uril povo condenado. A sua coragem sem finalidade é inútil contra os previdentes planos dos Gregos, sendo sintomá, tico que, em certo passo, matem por engano os próprios cama, . radas. Na sua exaltação e ansiedade, Eneias ainda procura retirar de Tróia o pai e o filho, maa de caminho perde a esposa Creusa, não voltando a vê,la cm vida. Os Padres da Igreja falaram com certa satisfação a respeito deste fracasso, mas foi Virgílio quem lhe1 apontou o caminho, levando Eneias a admitir que naquela ocasião a confusão lhe reinava no espírito, aendo por isso que perdeu Creusa : Não sei que nume inf austo alucinou-me : Por dévia estranha rota extraviado (1), Nesta fase, Eneias encontra-se ainda à mercê dos instin· toa e das emoções; não aprendeu a dominar-se ou a dominar aa circunstâncias. Nas suaii relações com Dido, falha mais uma vez, embora o não seja pelo modo que os críticos modernos acham tão censurável. O erro não está cm ele a abandonar, o que lhe foi ordenado pelos deuses e se torna necessário para cumpri- mento da sua missão na Itália, mas em se entregar em primeiro lugar ao amor dela e, posteriormente, cm descuidar-se do seu verdadeiro dever que estava longe de Cartago. Virgílio não mostra com clareza quais são os motivos de Eneias; pelo menos não parecem ser amor por Dido, por quem manifesta pouco mais do que afeição grata. Não se trata, porém, da sua falta; trata-se do descuido e do esquecimento em cumprir um dever,. Mercúrio, mandado por Júpiter, di-lo claramente: Teu reino, ah ! tudo esqueces ! (9) Eate esquecimento, devido talvez à indolência e ao amor pelo conforto, é uma espécie de intemperança, falha em mode· ração, catado de falso deleite em que um proveito temporário (') Op cit, pág. 61. hic mihi neacio quod trepido mal6 ttumen amicum confusam eripuit mentem. (li , 735-6) (ª) Op. cit I pá~. }21, heu, ,-egrii rerumque ol.ilite tuanim I (IV, 267) 76 ~ROfLIO E Oii IDEAIS Dll ROMA se confunde com um bem verdadeiro. O dever de Eneias, diz-lho Mercúrio, é para com o filho; ele tem de o cumprir. Isto mesmo diz ele a Dido. Embora o modo desvairado como ela recebe a sua defesa a faça parecer fraca, ele não sabe dizer mais nada, e tem razão. Talvez ele não parecesse tão fraco aos olhos de um romano, pois o seu dever reporta-se · à fundação de Roma, não séndo justo pôr os sentimentos duma mulher à frente desse destino. Eneias gosta de Dido e sente piedade por ela, mas a sua conteiência é mais forte do que as suas emoções e acaba por vencer. Quando a deixa pro- cede como um estóico procederia, e, tanto quanto lhe é possível, desfaz o mal que praticou com se esquecer da sua missão na companhia dela. · No Livro V lineias defronta outra crise. Durante os Jogos Fúnebres de seu pai, as mulheres do seu séquito, instigadas por Juno, começam a incendiar-lhe os navios com o fim de o obrigarem a ficar na Sicília. O herói vê o destroço que elas começaram a fazer e pede a Júpiter que as impeça de conti~ nuarem. Júpiter manda chuva e o incêndio é apagado. Mas ate depois desta demonstração do auxílio divino, Eneias continua cheio de dúvidas: Do ,1gro desastre Eneias combatido, Cem razões ver.sa n'alma, hesita incerto Se na fértil Sicília esqueça os fados, Ott se à Icália prossiga (1) . Parece quase inacreditável que, numa conjeç:tura desta•, Eneias pensasse cm pôr de parte a sua empresa. Todavia fá-ló, demonstrando como os seus sentimentos ainda o dominam profundamente. A catástrofe do incêndio dos navios encheu-o de tal desespero, que por momentos deixa de acreditar no seu dcatino. Felizmente 6 salvo pelo velho marinheiro ·Nautes, que não 1ó lhe dá o conselho sensato de deixar as mulheres na Sicília e continuar a viagem com o resto dos companheiro,, (1) Op. cit , pág. 169. At pater Àmeas c«au concussus acerbo nwnc huc i11gentis, nunc illuc pectore curas mutabat venans, Siculisque residertt arvis oblitus fatorum,Italasne capesseret oras. (V, 700-3) VIRGtL.10 ! OS IDEAIS · OI'! ROMA Qlas ainda resume a situação por uma forma tal que deve ter falado à consciência de todos os Romanos: Da fortuna aos vaivéns nos resignemos, ó dioneia prole ; em todo o aperto Sofrendo é que se vence a ad1Jersidade (1). G) fado que Eneias tem de cumprir é o destino que os deu- ses lhe impuseram : ele deve ser bastante senhor de si para o conhecer. Nautes c.hama•o à razão, e. depois deste conselho ser fortalecido pelas palavras do espírito de Anquises, Eneias recupera a confiança e parte para a Itália. Nunca màia permite aos sentimentos que lhe ocultem o conhecimento do seu dever. Uma vez desembarcado em Itália, Eneias é homem total- mente diferente. Já não comete erros, cumprindo sempre o seu deYer nas · circunstâncias. Não mais volta a ser assaltado pela dúvida ou pelo desespero; as suas únicas hesitações são acerca dos verdadeiros meio, para atingir o fim conhecido, 01 quais acaba por encontrar depois da devida ponderação. A modifi· cação nele operada torna-se evidente quando visita a Sibila de Cumas e lhe diz : Um por ttm antevi, ponderei todos (2). · A palavra pr~ (antevi) provém da linguagem técnica do Estoicismo. O dever do homem sábio e valente é prever, . pratci~e, todas as emergências possíveis e estar pronto para as defrontar. Cícero serve-se dela quando diz que o dever de um grande carácter .é prever o que pode acontecer, bom ou • mau (1), e _ Séneca cita as próprias palavras de Virgílio para · (1) Op. cit., pág. 170. nate dea, quo {ata trahunt retrahuntque sequamur ; quidguid erit, 8Uperanda omnia fortuna {,rendo csl. (V, 7(1} - 10) (lj Op. cit., píg. 18/1. Ont11ia praecepi atqu, animo mecum ante peregi. (VI, 105) (3) De off., 1, 80: ,Quamguam hoc a11imi, illud etiam in9e11ii magni ut, praectpsre cogit11,tions fu,ura•. (Nota do 'Trad) 18 VlRGILIO E OS IDEAIS DJZ ROMA exemplificar a sua opinião de um bom homem: - «Aconteça o que acontecer, diz ele, previ•o• (1). Ao tocar no solo predes• tinado da Itália, Eneias já aprendera as suas lições e encontrara esse auto-domínio e sabedoria que os Estoicos consideravam a característica do homem bom. Não haviam sido vãs as suas primeiras aventuras e enganos, porque o fizeram mais senhor de si e mais confiante no destino divino que o guia. As ideias estóicas que informam a concepção que Vir· gílio faz das provaa e pr<,gresso de Eneias: persistem, de certo modo, nos últimos livros da Eneida, mas com diferente intcn· ção. Eneias é o príncipe justo e sábio; não deve proceder injustamente, cm particular em assuntos tão importantes como a paz e a guerra, acerca das quais a era de Augusto fora ensi• nada por larga experiência a ter opiniões bastante fortes. Eneias assemelha-se a um invasor, e vive num passado heróico; todavia não deve poder fazer a guerra como a fizeram os heróis de Ho- mero, apenas para se darem · ao desejo de alcançar glória. Por esta razão Virgílo faz que o herói·encare a guerra com a consciência dei graves responsabilidades e de subtis distinções entre dois resultados morais. Assim como Cícero diz que a única razão justa para se declarar a guérra é que ,a vida deva viver-se em' pa:z sem mal• (1), assim Virgílio tem o cuidado de dar razão a Eneias quando a guerra lhe é imposta pelos Latinos. As antigas versões da história diziam que os Troianos começaram o ataque e 011 Latinos lhes resistiram ; o poeta inverte a situação e leva Eneias a· fazer tudo para alcançar os seus intuitos por negocia- ções pacíficas. O seu enviado faz os pedidos mais modesto• ao rei Latino, que se mostra perfeitamente disposto .a aceder a eles, Quando se inicia a guerra por parte dos Latinos, Eneias diri• ge-a com o espírito que Cícero advoga, «que nada se busque senão a paz. (1), Mesmo depois da agressão dos Latinos, o herói diz aos enviados deles, que lhe vêm pedir licença para enterrar os mortos, que ele lhes quer dar muito maia do que isso: (1) Ep., 76, 33 : cquidquid factum e:Jt, dici, scibam•. (Nota do Trad.) (1) De off., 1, 35: •Quare suscipienda quidem bella sunt ob eam causam, ut sine injuria ín pace vivatur•. (Nota do Trad.). (ª) Op cit, ,, 81: •Bellum autem ita suscipiatur, ut 'ttiml aUuà, nisi pax quoasita vicwxtur•. (Nota do Trad.). VIRG!LIO E OS IDEAIS OE ROMA . • E a paz quereis s~mente Pera os da luz privaao8 nas batalhas ? , Eu quereria conced~-la aos vivos (') Quando a trégua se quebra, o seu pensamento principal é restabelecê-la. Procura evitar uma carnificina geral e oferece-,e para resolver o caso por meio de um combate singular entre ele e Turno. E grita então P.ara os exércitos enfurecidos : . . . Suspendei-vos : Que furor, que disc6rdia vos despenha? Ferido o ajuste, as condições compostas, Devo tu só pelejar . . , e) Nisto se vê o espírito da era de Augusto como o 1eu mestre proclamou ao dizer que ele próprio jamais havia feito a guerra cSem razões justas e necessárias, e sempre perdoara aos inimigo, quando a segurança geral o permitia. Uma atitude destas para com a guerra em nada se assemelha ao heróico ou ·ªº homérico. A guerra tornou-se um mal e apenas ic deve empreender quando não houver outra âlter, nativa, devendo ser conduiida com espírito cavalbeiresco e clemente. Apesar de Eneias ser concebido largamente num plano estóico e, a muitos respeitos importantes, se conforme com esse ideal do homem sábio, não é apenas isto. Possui outras qualidades exteriores ao ponto de v11ta estóico e até lhe são hostis, o que não é difícil de compreender. Apesar de ser interessante, como tentativa por colocar o homem num plano superior aos males e às suas fraquezas e lhe transmitir um sen- timento de segurança no meio de uma sociedade cm dcsot• dem, o ideal estóico falhou na sua missão de atrair a humanidade, porque negou o valor de muita coisa que o coração do homem crê sagrado e não esquecerá de boa vontade. S.~ Agostinho n~o (1) A Eneida brazileira, pág. 337. pacem me exanimis et Martü sorte peremptia oratis ? equidem et vivis concedere vellsm. (Z) Op. cit., p.ig. 371. o cohibete iraa ! ictum iam (~dua et omnu compositae leges, mihi ius concurrere soli , (XI 110·11) (xn, ~14-15) VIRGILIO F: OS 'IDEAIS DE ROMA foi o único a sentir que os Estóicos eram inumanos no desejo de suprimirem todas as emoções, fossem ou não dignas de estima. Muitos outros homens sentiram que tal exaltação da razão é errónea por estancar as fontes naturais de muitas acções excelentes. Embora Virgílio utilizasse concepções estóicas no desenvolvimento do carácter de Eneias, o seu temperamento afectuoso e compassivo não se sentia satisfeito com ideal tão frio e tão estranho. Se o estoicismo fornece um plano por meio do qual Eneias é posto à prova e amadurecido, não explica nele muito mais. Com todos os seus erros e contradições, o herói é essencialmente um ser emotivo. Verdade seja que no principio estas emoções dão causa às suas fraquezas e devem condenar-se, mas Virgílio não quer que ao seu romano ideal faltem totalmente as emoções. O aeu Eneias confiante dos últimos livros é ainda elevadamenre emotivo, mas as suas emoções encontram-se agora em harmonia com o seu fim indicado e ajudam-no a alcançá-lo. · A mais importante destas divag11ções fora dos preceitos estóicos é a .parte desempenhada pela piedade no carácter de Eneias. Esta é, para muitos leitores, a mais virgiliana de todas as qualidades, a mais típica e a mais essencial característica da Eneida. Quando Eneias vê os episódios da Guerra de Tróia descritos na p~dra em Cartago, profere as célebres palavras que tantas vezes têm sido citadas como o âmago da visão e da mensagem de Virgílio: .· . . . o louvor tem cá seus prémios, Dói mágoa alheia, e remanece tJ pranto. (1) . A.s palavras não têm o significado que às -vezes · lhes têm atribuído; não são, com certeza, uma déclaração de que a vida humana não passa de lágrimas. Mostram, porém, que Eneias,. ao chegar
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