Buscar

silo tips_ler-por-prazer-perspectivas-para-a-leitura-literaria-na-escola

Prévia do material em texto

LER POR PRAZER: PERSPECTIVAS PARA A LEITURA LITERÁRIA NA 
ESCOLA 
 
 
 COENGA,Rosemar1 
 
Inicio minha reflexão com base no texto poético “Liberdade”, de Fernando Pessoa: 
“Ai que prazer/ não cumprir um dever./ Ter um livro para ler/ e não o 
fazer!/ Ler é maçada, /estudar é nada./ O sol doira sem literatura./ O rio 
corre bem ou mal, / sem edição original./ E a brisa, essa, de tão 
naturalmente matinal/ como tem tempo, não tem pressa.../Livros são 
papéis pintados com tinta./Estudar é uma coisa em que está indistinta/A 
distinção entre nada e coisa nenhuma./ Quanto melhor é quando há 
bruma./Esperar por D. Sebastião,/Quer venha ou não!/Grande é a poesia, 
a bondade e as danças.../Mas o melhor do mundo são as crianças, /Flores, 
música, o luar, e o sol que peca/ só quando, em vez de criar, seca./ E mais 
do que isto/ É Jesus Cristo,/ Que não sabia nada de finanças,/Nem consta 
que tivesse biblioteca...”(Fernando Pessoa). 
 
 Penso que é preciso buscar o prazer, mesmo que no descumprimento das normas e 
dos discursos mais sacramentados. O dicionário Aurélio traz a seguinte definição da 
palavra prazer [Do lat. Placere.] Causar prazer ou satisfação; agradar, aprazer, comprazer. 
Sensação ou sentimento agradável, harmonioso, que atende a uma inclinação vital; alegria, 
contentamento, satisfação, deleite. 
 Para mim, a leitura literária desencadeia em nós nossa quota de humanidade, na 
medida em que nos torna mais compreensivos, tolerantes e sensíveis, porque tratam de 
assuntos que afetam a dimensão humana. Para Jouve (2002), “o charme da leitura provém 
em grande parte das emoções que ela suscita. Se a recepção do texto recorre às capacidades 
reflexivas do leitor, influi igualmente ¾ talvez, sobretudo ¾ sobre sua afetividade. As 
emoções estão de fato na base do princípio de identificação, motor essencial da leitura de 
ficção”. (Jouve, 2002, p. 19). O que desejo com esta reflexão é traçar um percurso feito 
pelo leitor, entre o prazer e a fruição, para tanto recorro às idéias de Roland Barthes, 
Umberto Eco, Hans Robert Jauss e de outros estudiosos que discutem amplamente esses 
assuntos. 
O texto tem seu sabor. É ele que nos leva ao prazer da leitura. È muito comum o 
leitor utilizar metáforas culinárias para revelar seu prazer gustativo diante de leitura. São 
 
1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Doutorando em Teoria Literária 
pela Universidade de Brasília (UNB). 
comuns verbos como digerir, devorar, engolir etc utilizados por leitores ávidos, sedentos. 
 Em seu livro O prazer do texto, partindo das idéias psicanalíticas de gozo e prazer, e 
tentando articular através delas dois tipos de lógica de funcionamento do texto, Barthes 
demonstrará que o texto de gozo, ao contrário do texto de prazer, não obedece a uma 
dinâmica do preenchimento, da satisfação, mas aponta para algo que se situa sempre 
adiante, sempre mais além, e que, portanto, nunca é atingido, nunca se completa, nunca se 
satisfaz. Para Barthes (1996): 
Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da 
cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. 
Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta 
(talvez até certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, 
psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de 
suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem. (Barthes, 
1996, pp. 21-22). 
 
 Para Barthes, o texto de gozo é sempre insuportável, sempre colocando em jogo a 
morte, a perda, a destruição das certezas do sujeito, a ruína de seus alicerces, enquanto o 
texto de prazer reconforta o leitor, “contenta, enche, dá euforia”, não estabelece entre leitor 
e linguagem uma relação de crise. 
Assim, o texto de fruição é de ruptura, de desdobramentos, de defecção. É uma 
“esfoladura”, nas palavras de Barthes. Na tradição da pesquisa sobre leitura literária, várias 
posições teóricas disputam lugar. Para Jouvé (2002) há duas abordagens centrais: uma que 
se ocupa do como se lê, representada pela Escola de Constance e a outra, que se preocupa 
com o que se lê, representada pelas teorias que analisam os leitores reais. 
 A Escola de Constance tem por objeto o estudo da relação anteriormente textual 
para a relação leitor/texto. Os principais representantes desta escola são Jauss (1979), com a 
Teoria da Estética da Recepção, e Iser (1996), com a teoria do leitor implícito. Na visão de 
Jauss, o leitor ganha uma grande dimensão. A sucessão dos leitores de uma obra constitui a 
própria história literária, ou seja, o texto literário não sobrevive sem um público. Nesse 
caso, a literatura não deve ser estudada a partir de seu impacto sobre as normas sociais, uma 
vez que pré-forma a compreensão de mundo do leitor, repercutindo então em seu 
comportamento social. Iser se preocupa com o leitor em particular, pois para ele o leitor é 
pressuposto do texto. Logo, ele tenta vislumbrar como um texto literário direciona a leitura 
do leitor e como este reage cognitivamente aos percursos impostos pelo texto. 
 Além de Jauss e Iser, Eco (1994) postula uma análise da leitura cooperativa, cujo 
objetivo, próximo ao de Iser, é estudar as maneiras pelas quais o texto programa sua 
recepção e as formas pelas quais o leitor (modelo) responde às solicitações das estruturas 
sociais. Na proposta de Jouvé (2002) é imprescindível determinar os papéis do texto e do 
leitor na concretização do sentido para a investigação de como se lê e o que se lê. Se a 
leitura é vista como produção interativa entre leitor e texto, dessa maneira, a obra literária 
tem constitutivamente, necessidade da participação do destinatário. O universo textual é 
sempre inacabado e a recepção e, pois, o acabamento da obra. Para Jouvè (2002), o papel 
do leitor na interpretação textual se dá da seguinte maneira: 
 
Há sempre duas dimensões na leitura: uma comum a todo leitor porque 
determinada pelo texto e outra variável até o infinito porque depende do que 
cada um projeta no texto de si mesmo.[...] A leitura levando o leitor a integrar a 
visão do texto a sua não é uma atitude passiva. O leitor vai retirar desta relação 
não só sentido, mas também significação[...] O que permite a leitura é a 
descoberta da sua alteridade. O outro do texto, narrador ou personagem, nos 
remete a uma imagem de nós mesmos. (Jouvé, 2002, pp. 94-97). 
 
 Trata-se, portanto, de uma leitura que exige do leitor experiência, habilidades e 
conhecimentos de mundo, de língua e de texto, a fim de que ele possa, durante o processo 
de interação, projetar algo de si mesmo na construção de um sentido para o texto e, ao 
mesmo tempo, buscar no outro a descoberta do seu próprio ser. 
 Como professor, compartilho a idéia de que a leitura é um ato interativo e de 
compreensão de mundo, e persigo a idéia de que a leitura literária em sala de aula deve 
favorecer o prazer e a fruição estética. 
 A pesquisa desenvolvida pela professora Lílian Lopes Martin da Silva (1986), sobre 
o ensino da literatura para jovens do ensino fundamental, demonstra através de 
depoimentos dos alunos, como as estratégias e os métodos utilizados em sala de aula ¾ 
resumos, questionários, fichas de leitura, provas, etc., em vez de motivarem os leitores à 
leitura literária, na verdade se transformavam numa “didática da destruição da leitura”, 
termo cunhado pela pesquisadora. 
 Soares (1999), ao discutir o ensino da literatura infanto-juvenil, considera o 
processo de escolarização inevitável, por ser da essência da escola a instituição dos saberes 
escolares. Entretanto defende a possibilidade de descoberta de uma escolarização adequada 
da literatura. E o que significa escolarização? Segundo a pesquisadora, o conceito 
escolarização é, em geral, tomadono sentido pejorativo, depreciativo, quando utilizado em 
relação a conhecimento e saberes, produções culturais, como há conotação pejorativa nas 
expressões adjetivadas conhecimento escolarizado, arte escolarizada, literatura 
escolarizada. No entanto, em tese, não é correta ou justa a atribuição dessa conotação 
pejorativa. É necessário lembrar que, não há como ter escola sem ter escolarização de 
conhecimentos, saberes, artes, diz a autora, uma vez que o surgimento da escola está 
atrelada à constituição de saberes escolares que se presentificam e se formalizam em 
currículos, matérias, disciplinas, programas e metodologias, nada disso exigido pela 
invenção, responsável pela criação da escola, de um espaço e de um tempo de 
aprendizagem. 
 Na concepção de Soares, portanto, a escola é instituição em que o fluxo das tarefas e 
das ações é ordenado em torno de procedimentos formalizados de ensino, isto é, ordenado 
através de um tratamento peculiar dos saberes pela seleção, e conseqüente exclusão, de 
conteúdos, pela ordenação e seqüenciação desses conteúdos, pelo modo de ensinar e de 
fazer aprender esses conteúdos. È a todo esse processo que a autora chama de escolarização 
¾ processo que a institui e que a constitui. Nessa perspectiva, não há como evitar que a 
literatura, qualquer literatura, ao se tornar saber escolar se escolarize, porque isso 
significaria negar a própria escola, afirma Soares (1999, p.21). 
 É importante salientar que, ao analisar o ensino de literatura, a autora não condena a 
escolarização desse conhecimento, mas sim, a forma inadequada com que ela tem se 
realizado no cotidiano escolar. Essa imprópria escolarização contribui para a falsificação, a 
distorção da literatura, uma vez que esvazia o texto literário de seu potencial, congelando-o, 
por exemplo, em definições e classificações que concorrem para afastar o aluno das práticas 
de leitura literária, desenvolvendo nele resistência ou aversão. 
 Não se trata, como bem destacou Soares, de condenar a escola ou a relação desta 
com a literatura. Literatura e escola são duas instituições e é como tal que estão em 
constante interação. 
 Para favorecer a leitura prazerosa é importante que o professor tenha a preocupação 
e o cuidado da seleção, organização e no tratamento dos textos. A minha experiência como 
professor mostra que para instaurar o prazer do texto literário em sala de aula, 
primeiramente, é necessário, saber quem é esse aluno, indagar sobre seu ambiente familiar, 
o tipo de leitura favorita, freqüência com que lê, autores favoritos, como gostaria que 
fossem suas aulas de literatura, entre outros aspectos que o professor possa considerar 
relevantes. 
 Levando em conta as diretrizes estabelecidas, o professor poderá propor um 
programa de leituras, para ser trabalhado durante determinando tempo, que pode se 
desenvolver através de crônicas, textos curtos, poesias, fábulas, romances, novelas. 
Contudo, penso que é importante que esse programa seja discutido com os alunos, 
privilegiando a participação/interação nesse processo. 
 Um outro aspecto que considero relevante destacar consiste nas palavras de Pennac 
(1998). Para ele, o leitor possui direitos imprescritíveis, dentre eles: 
1. O direito de não ler; 
2. O direito de pular páginas; 
3. O direito de não terminar um livro; 
4. O direito de reler; 
5. O direito de ler qualquer coisa; 
6. O direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível); 
7. O direito de ler em qualquer lugar; 
8. O direito de ler uma frase aqui e outra ali; 
9. O direito de ler em voz alta; 
10. O direito de calar. 
 Esse é um momento de intimidade entre o leitor e o livro e essa relação necessita ser 
respeitada. O professor precisa estar atento a esses direitos para não se tornar autoritário 
com os alunos, impondo-lhes um modelo único de leitor, na qual eles devem se enquadrar. 
O professor precisa ter sensibilidade para notar que naquele dia, por exemplo, o aluno não 
quer ler e forçá-lo a isso não contribuirá na formação do gosto pela leitura por parte deste. 
 Assim, é importante que a hora de ler tenha o perfil que o leitor empregar a ela. O 
professor será um observador perspicaz e dedicado, pronto para corrigir possíveis desvios 
do objetivo da proposta programada, mas os agentes do momento reservado à leitura serão 
o leitor e o livro. 
 Para mim, não se pode pensar em formar aluno-leitor se não houver o professor-
leitor. Para Lajolo (1994) a discussão sobre leitura, principalmente numa sociedade que 
pretende democratizar-se, começa dizendo que os profissionais responsáveis pela iniciação 
na leitura devem ser bons leitores. Um professor precisa gostar de ler, precisa ler muito, 
precisa envolver-se com o que lê. Essa idéia levou-me a analisar as histórias de leitura de 
professores de língua portuguesa tecida no decorrer de sua vida pessoal, acadêmica e 
profissional, no trabalho intitulado Pelas veredas da memória: revisitando as histórias de 
leitura de professores de língua portuguesa, idéia essa compactuada com a de Lajolo. 
 Também, penso que a atividade não deva ser desenvolvida apenas pelo professor de 
língua portuguesa. Não faz sentido atribuir esta responsabilidade a apenas um professor, 
enquanto que a leitura faz parte de todas as áreas do saber. 
 Concluo minha reflexão em torno do poema “Cartas a um jovem leitor”: 
“Você me pergunta/Que melhores livros e autores/Devia ter e ler/E eu lhe 
indico/Ao acaso, aqui,/Sem fazer o profundo/alguns dos que já li/O 
critério podia ser melhor,/Mas não tem parti pris./ Comecemos com o 
Livro, A Bíblia/Em segundo, Platão(Diálogos, A República),/Em terceiro 
o Corão./Na certa as Rubaiatas, Ensaios de Confúcio E o 
Maabarata./Algum teatro grego,/ Um pouco de romano, E em teatro já 
tardo/ Se não falar do Bardo./Logo ponho Defoe com Robinson Crusóe./ 
E em seguida vem/O bom Mark Twain/Sem esquecermos Camões/ Os 
contos da Clarice/O máximo no gênero/E a suave meiguice/Desse lírico 
modelo/Que é Marques Rebelo/ah, a sibilina prosa de João: João 
Guimarães Rosa./ De Rosa, vem Rosário/Amargo e solitário... 
Aconselhar, neste final,/Pro safado que você/Um pouco de 
Rabelais./Acho que já ajudo/Amigo: não posso citar tudo./ P.S. sem 
esquecer, é claro, (e não faz nenhum favor)/ 
 O livro vermelho dos pensamentos do Millôr. 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 
 
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1996. 
 
COENGA, Rosemar. Pelas veredas da memória: revisitando as histórias de leitura de 
professores de língua portuguesa. Universidade Federal de Mato Grosso. 2003 
(Dissertação de Mestrado). 
 
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Cia das Letras, 1994. 
 
FERNANDES, Millôr. Cartas a um jovem leitor. In: Circo de palavras: histórias, poemas e 
pensamentos. São Paulo: Ática, 2007. 
ISER, Wolfang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Ed. 34, 1996. 
 
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São 
Paulo: Ática, 1994. 
 
_______. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 
1979. 
 
JOUVÈ, Vincent. A leitura. São Paulo: Ed. da Unesp, 2002. 
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1994. 
 
PENNAC, Daniel. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 
SILVA, Lílian Lopes Martin da. A escolarização do leitor: a didática da destruição da 
leitura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986. 
 
SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA, 
Aracy Alves Martins et all. (orgs.). A escolarização da leitura literária: o jogo do livro 
infantil e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

Continue navegando