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UNIVERSIDADE FEEVALE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIVERSIDADE CULTURAL E INCLUSÃO SOCIAL CLAUDIANE RAMOS FURTADO CINEMA E INCLUSÃO SOCIAL: SENSIBILIZANDO PARA A INCLUSÃO POR MEIO DO DESENHO ANIMADO PROCURANDO DORY Novo Hamburgo 2018 1 CLAUDIANE RAMOS FURTADO CINEMA E INCLUSÃO SOCIAL: SENSIBILIZANDO PARA A INCLUSÃO POR MEIO DO DESENHO ANIMADO PROCURANDO DORY Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social da Universidade Feevale como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Diversidade Cultural e Inclusão Social. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosemari Lorenz Martins Co-orientadora: Prof.ª Dr.ª Marinês Andreia Kunz Novo Hamburgo 2018 2 3 AGRADECIMENTOS Dois anos intensos, com momentos de alegria, aprendizagem, desespero, cansaço, desânimo, entusiasmo, dúvidas e principalmente pesquisa, leitura, trabalhos, noites sem dormir e muito questionamento sobre o real significado do mestrado para a minha vida. Realização de um sonho? Momentos de solidão? Quem disse que seria fácil? Mas podemos dizer que se tornou menos difícil quando em meu caminho surgiu uma orientadora simplesmente brilhante, que acreditou no meu sonho e mergulhou comigo em um oceano atrás dos pais da Dory, que me ensinou a nadar, nadou ao meu lado, respirou por mim nos momentos em que eu não tinha mais fôlego e, quando eu me recuperava generosamente, com muita competência e sensibilidade, ela conseguia me mostrar como eu deveria fazer para ter mais fôlego. Respeitou minhas limitações. Rosemari Lorenz Martins e Marinês Andréia Kunz, agradeço pelo apoio durante este percurso. E, quando eu queria desistir, de um jeito todo especial, ela me dizia "continue a nadar" e fazia- me acreditar na importância e na relevância desta pesquisa. Por isso, este trabalho finaliza aqui somente por causa do apoio de pessoas mais do que especiais, que fizeram e fazem parte da minha vida. À minha amiga Liége, que sempre "surgia" nos momentos mais inesperados, fazendo com que, mesmo com lágrimas nos olhos, as risadas surgissem. Aos meus colegas do LAC, agradeço pelo apoio e pelos auxílios nas ideias das imagens, captura de tela, fotos, ilustrações e a vibração de cada conquista. Agradeço ao meu amigo e colega Luiz Specht, que, com sua sabedoria e paciência, nunca desistiu de me incentivar, de dar ideias e apoiar o setor na minha ausência. Meu amigo Gerson, que sempre tinha uma explicação diferente para eu entender as teorias e a indicação de um livro para que o entendimento fosse mais acessível. Agradeço à professora Débora Nice Ferrari Barbosa e ao professor Ítalo Ogliari por terem aceitado participarem da minha banca de qualificação e da defesa e por terem contribuído com o desenvolvimento deste trabalho. Josy Maria Realce Josy Maria Realce 4 Como não falar de minha família, meus filhos Vanessa e Vinícius, e meu marido Sidinei, que me acompanharam nesta caminhada, foram meus companheiros, me entenderam, me apoiaram e estiveram sempre ao meu lado me incentivando nos momentos mais difíceis, acreditando em mim mais do que eu mesma, tenho certeza de que se não fosse o apoio e o amor deles eu não teria finalizado este trabalho. E, finalmente, agradeço a força interior que brotou dentro de mim e fez com que eu superasse tudo, bem como o amparo que recebi de todos os deuses para chegar ao final. Obrigada! 5 RESUMO A inclusão de pessoas com deficiência é um assunto bastante abordado e que vem passando por significativas mudanças, especialmente no que diz respeito à inclusão de crianças com deficiência no ambiente escolar. Embora a criança com deficiência tenha o direito de frequentar a escola garantido por lei, seu ingresso no ensino regular nem sempre é tranquilo. Nesse contexto, surgiu este trabalho, cujo tema gira em torno da sensibilização de crianças da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental para a inclusão de crianças com deficiência no ensino regular. Com base nesse tema, estabeleceu-se como questão de pesquisa: como preparar crianças da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental para receberem um colega com deficiência? Para responder à questão de pesquisa, traçou-se como objetivo elaborar uma proposta pedagógica para a Educação Infantil e para os anos iniciais do Ensino Fundamental com a intensão de sensibilizar as crianças para incluírem, de forma mais natural, um colega com deficiência, a partir do filme da Disney, de Andrew Stanton e Angus MacLane, produzido pela Pixar, “Procurando Dory”. Palavras-chaves: Inclusão escolar. Proposta pedagógica. RPG. 6 ABSTRACT ABSTRACT: The inclusion of disabled people is a very discussed subject and has undergone significant changes, especially according to the inclusion of disabled children in the school environment. Although children with disabilities have the right to attend school, their access into regular school is not always peaceble. In this context, this work discourses around the awareness of Early Childhood Education and the early years of Elementary School children for the inclusion of disabled children in school. Based on this theme, it was established as a research question: how to prepare Early Childhood Education and the early years of Elementary School children to welcome a disabled classmate? In order to answer the research question, the objective was to elaborate a pedagogical proposal for Early Childhood Education and early years of Elementary School in intention to make children sensitive to include, naturally, a new disabled classmate, as from Andrew Stanton and Angus MacLane’s Disney movie, produced by Pixar, "Finding Dory". Keywords: School inclusion. Pedagogical proposal. RPG. 7 LISTA DE FIGURAS Figura 01 – Sequência da Cena 01.........................................................................................40 Figura 02 – Sequência da Cena 02.........................................................................................41 Figura 03 – Cena 03.................................................................................................................42 Figura 04 – Cena 04.................................................................................................................42 Figura 05 – Sequência da Cena 05.........................................................................................43 Figura 06 – Sequência da Cena 06.........................................................................................43 Figura 07 – Sequência da Cena 07.........................................................................................44 Figura 08 – Sequência da Cena 08.........................................................................................44 Figura 09 – Sequência da Cena 09.........................................................................................45 Figura 10 – Sequência da Cena 10.........................................................................................47 Figura 11 – Sequência da Cena 11.........................................................................................47 Figura 12 – Sequência da Cena 12.........................................................................................49 Figura 13 – Sequência da Cena 13.........................................................................................49 Figura 14 – Sequência da Cena 14.........................................................................................49 Figura 15 – Sequência da Cena 15.........................................................................................50 Figura 16 – Sequênciada Cena 16.........................................................................................51 Figura 17 – Sequência da Cena 17.........................................................................................53 Figura 18 – Cena 18.................................................................................................................53 Figura 19 – Cena 19.................................................................................................................54 Figura 20 – Sequência da Cena 20.........................................................................................55 Figura 21 – Sequência da Cena 21.........................................................................................56 Figura 22 – Sequência da Cena 22.........................................................................................57 Figura 23 – Sequência da Cena 23.........................................................................................57 Figura 24 – Sequência da Cena 24.........................................................................................58 Figura 25 – Descrição visual de pistas e enigmas do jogo..............................................70-71 8 SUMÁRIO 0. O PERCURSO DO SUJEITO QUE SE ENUNCIA NESTE TEXTO ........................ 9 1. INTRODUÇÃO........................................................................................................... 13 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA .............................................................................. 18 2.1 CONCEITUANDO E CONTEXTUALIZANDO INCLUSÃO ........................... 18 2.2 A PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O CINEMA ................................................... 25 2.3 ESTRUTURA E ELEMENTOS DA NARRATIVA ................................................ 30 2.4 O JOGO COMO RECURSO EDUCATIVO....................................................... 33 3. METODOLOGIA ....................................................................................................... 38 4. “PROCURANDO DORY”............................................................................................. 41 5. PROPOSTA PEDAGÓGICA A PARTIR DE PROCURANDO DORY .................. 66 5.1 POSSÍVEIS DIAGNÓSTICOS .......................................................................... 76 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 79 REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 82 FILMOGRAFIA ................................................................................................................ 86 APÊNDICE A .................................................................................................................... 87 9 0. O PERCURSO DO SUJEITO QUE SE ENUNCIA NESTE TEXTO Com formação em Pedagogia – Orientação Educacional e Séries Iniciais, especialização em Psicopedagogia Clínica e Institucional e em Design Instrucional e também em Equoterapia, com dez anos de experiência profissional, atualmente sou Coordenadora Administrativa e Pedagógica do Laboratório de Arte e Criação de uma Instituição de Ensino Superior com o foco em produções de livros didáticos e vídeo aulas, mas nunca perdi o contato com os atendimentos clínicos – uma paixão que comecei a nutrir ainda nos tempos de faculdade, quando já vislumbrava especialização na área. A partir dessa realidade – e por ter engajamento desde a formação inicial na formação de pessoas e por pensar em intervenções diferenciadas que atendessem à diversidade – é que surgiu a motivação para a realização desta pesquisa. Acredito, todavia, que meu interesse pessoal por esta área fique mais claro a partir do relato que segue. Ao sentar para escrever sobre a razão pela qual escolhi este tema para pesquisar, recorri a um arsenal de lembranças que estão associadas a referências armazenadas no mais recôndito espaço da massa cinzenta tão valiosa que carregamos chamada cérebro. Segundo Jacques Le Goff (2003), a memória é a propriedade de conservar certas informações, propriedade que se refere a um conjunto de funções psíquicas que permite ao indivíduo atualizar impressões ou informações passadas, ou ainda, reinterpretadas como passadas. A partir da memória e de todos os atributos subjetivos que nos ajudam a lembrar de daquilo que ficou para trás em nossa lembrança é que inicio o seguinte relato: meu pai foi transferido de Canoas para uma cidade do interior e, aos sete anos de idade, quando ingressei na segunda série do primeiro grau, hoje segundo ano do Ensino Fundamental, ir à escola, entrar na sala de aula, tornou-se uma tortura para mim. Um verdadeiro desespero! Eu ficava em pânico por ter que permanecer dentro da sala de aula, pois tinha medo da professora e não desenvolvia nenhuma atividade, apenas chorava. Fui encaminhada para todos os setores de atendimento da escola e não conseguiam entender nem amenizar meu sofrimento e muito menos resolver a situação. A escola propôs aos meus pais me trocarem de turma, mas eles não aceitaram isso, pois acreditavam que aquele era o momento de entender e resolver o que estava me incomodando e bloqueando minha aprendizagem. Mas eles precisavam do apoio da escola para desvendar esse “mistério”. E aquela professora de traços grotescos, de pele escura, corpo “fora do padrão”, passos estranhos e voz rouca, que fugia do modelo estético determinado pela sociedade, que me causava tanto medo, em nenhum momento desistiu de se aproximar para me ajudar. Ela acreditou em mim, Josy Maria Realce 10 com toda sua simplicidade e humildade, aproximou-se e pediu que a ouvisse, pois ela estava muito triste e com medo de me perder. Ao caminhar no pátio da escola em direção ao pomar, com toda a dedicação e atenção, a professora explicou-me que ia passar na cozinha, pegar uma faca, pois ela estava com vontade comer laranja. Chegando ao pomar, ela pediu que eu observasse todas as frutas daquela estrondosa árvore, perguntou se eu gostava de laranjas, convidou-me para contar com ela quantas laranjas estávamos enxergando e se todas eram iguais. Eu, ainda chorando, limpei as lágrimas, observei e comecei a contar com ela. Aos poucos, fui me acalmando, ela questionou se todas as laranjas eram iguais e pediu que eu mostrasse o que estava percebendo de diferente nas frutas. Fui me envolvendo com a atividade e relatando minhas percepções. A professora convidou-me para comermos uma laranja, sendo que cada uma de nós deveria escolher a fruta que achasse mais bonita. E assim fizemos. Sentamos para comer e ela disse que ia me explicar uma coisa: pegou as duas laranjas e questionou se eram iguais, respondi que não e expliquei o que vi de diferente. Ela então partiu as laranjas ao meio e novamente me perguntou se eram iguais. Respondi que por dentro sim, pois eram da mesma cor. Ela então me disse: “nós duas somos assim, por fora, diferentes, mas, por dentro, iguais, e assim são as pessoas”. E me deu uma explicação sobre amor, diferenças, respeito, diversidade. Enfim, comemos a laranja e retornamos de mãos dadas para a sala de aula. E foi aquela professora, de traços grotescos, de pele escura, corpo “fora do padrão” e voz rouca, que fugia do modelo estético determinado pela sociedade, que me causava tanto medo, que me resgatou. Com esse relato, o que quero explicar não é o contexto da história, mas a ação, simples, didática e verdadeira. Quero mostrar o quanto essa atitude me marcou e a mudança que fez na minha vida e em minha caminhada acadêmica. Os anos se passaram, mas nunca esqueci as palavras, as explicações, a ação, o comprometimento, a dedicação e, principalmente, a sensibilidade da saudosa professora Tereza Ventura. O tempo foi passando e eu sem entender vários “porquês” da vida e, naminha inocência e inexperiência, sempre afirmei que seria professora. Mas eu não queria ser apenas professora, eu almejava, mesmo sem entender e conhecer as razões científicas, intelectuais, de pesquisas e acadêmicas, ser como aquela professora que entendeu o meu mundo, minhas limitações, meu sofrimento e soube me respeitar e não desistiu de acreditar em mim. Com responsabilidade e comprometimento, ela entrou no meu mundo e me convidou para conhecer e fazer parte de outro mundo, que eu não estava conseguindo “ver e aceitar”. E foi a partir desse olhar que fiz 11 o exercício inverso e me coloquei no lugar daquela professora. Como são recebidos e assistidos os alunos considerados “diferentes” em um ambiente escolar? A vida seguiu, os anos foram passando e a vida acadêmica foi se desenhando e junto dela foi aumentando a inquietação, a curiosidade de compreender como é o processo de aprendizagem, o que é preciso entender para aprender e ensinar. Como propiciar um aprendizado adequado e acessível a todos? Hoje, levando em consideração minha experiência profissional como psicopedagoga clínica e institucional, há mais de dez anos, percebo que algumas instituições de ensino regular ainda carecem de preparo físico, pedagógico e emocional para trabalhar com pessoas com deficiência. Foi esse cenário que me despertou a colocar luz sobre essas questões. O quanto o “diferente” necessita de um olhar realmente diferenciado e sensível, a importância de penetrar, conhecer e aceitar o mundo do outro para então entender o que está bloqueando seu acesso à aprendizagem. Se não fosse aquela professora ter um olhar diferenciado comigo talvez eu tivesse passado o ano inteiro “excluída”. Por isso, a decisão de buscar conhecimento, pesquisar, interpretar, observar, analisar e entender a diversidade sempre foi e continua sendo o meu grande desafio e minha opção acadêmica. As pessoas que convivem diretamente comigo sabem exatamente desse olhar aguçado que tenho sobre as questões que relatei. Quando minha filha Vanessa assistiu ao filme de animação “Procurando Dory”, encaminhou-me uma mensagem dizendo: “mãe, tens que assistir a este filme”. Ao assistir ao filme, a cada cena e narrativa abordada, fui fazendo relações com os diversos pacientes que passaram pelo meu consultório, surgindo o questionamento, de que forma a representatividade da pessoa com deficiência está sendo abordada nos filmes de animação e como poderia utilizar esse filme a favor da sociedade. Mais uma vez busquei lembranças que estavam adormecidas e lembrei-me do momento em que fui pela primeira vez ao cinema. Na pequena cidade do interior onde eu morava, não tinha salas de cinema e, nas férias, minha avó, que morava em Canoas-RS, levou-me para assistir a Marcelino Pão e Vinho (1955)1, um filme de cunho religioso. Dentro da sala de cinema, senti-me perplexa e fiquei impressionada com o som, com as imagens e com a forma como era contada aquela história e, no final do filme, saí da sala de cinema encantada. Aquela experiência ficou em minhas lembranças. Em um segundo momento, em minha cidade, no interior, foi projetado, na rua, em um telão, o filme “Carmen, a Cigana” 2 (1976), de Teixerinha, ou seja, um filme que não era para um público infantil, mas fiquei perplexa novamente com as 1 Marcelino, Pan y Vino, direção Ladislao Vadja. 2 Filme produzido e estrelado por Teixeirinha e por sua companheira Mary Terezinha. 12 cenas, com as músicas e com as imagens. Também pensando muito no “recado” do filme e em como as pessoas tinham prestado atenção naquela história e como tinham saído felizes, fazendo comentários e paralelos com suas vidas. Quando iniciei minhas experiências profissionais, sempre gostei de ousar, de trabalhar com música, imagens, cores, histórias e movimento. Penso que são formas diferentes e mais atrativas de levar o conhecimento, usar a criatividade e, de certa forma, de desafiar a si próprio. Um dos grandes desafios encontrados ao trabalhar com as pessoas com deficiência é o momento em que os pacientes são inseridos em escolas regulares, porque algumas escolas ainda não demonstram estar totalmente preparadas para atendê-las de forma adequada (escola significa corpo docente e toda equipe escolar), pois esse aluno não fica apenas dentro de uma sala de aula: o discente vai à cantina, dirige-se à biblioteca, circula pelo pátio, enfim, percorre todo o ambiente escolar. A preocupação com a carência técnica nas instituições e com o despreparo da sociedade é a mola propulsora para esta pesquisa. Com tantas mudanças, conquistas e lutas pelo direito à igualdade, pelo respeito à diversidade, ao reconhecimento e à inclusão do cidadão na sociedade, acredito que seja viável a realização deste estudo. Além disso, assistir ao filme “Procurando Dory” e perceber a delicadeza e a naturalidade com que o tema da inclusão foi tratado em uma obra para o público infantil, mas que também atingiu o público adulto, e que foi criada com a finalidade de entreter, surgiu a ideia de investigar a possibilidade de utilizar esse desenho animado para sensibilizar a sociedade de alguma forma para a inclusão de pessoas com deficiência. 13 1. INTRODUÇÃO Nos últimos anos, a inclusão de pessoas com deficiência é um assunto bastante abordado e que vem passando por significativas mudanças. A pessoa com deficiência, doravante PCD, tem seus direitos garantidos por lei. Mas será que apenas a existência de leis e de documentos oficiais garante a inclusão desse sujeito? Podemos dizer que estamos vivendo em um momento de mudanças e de transições no que diz respeito aos direitos das PCDs, mas um dos grandes desafios encontrados ao trabalhar com as PCDs ainda é o momento em que crianças com deficiência são inseridas nas escolas regulares, porque algumas escolas3 ainda não demonstram estar totalmente preparadas para atendê-las de forma adequada, pois o aluno não fica apenas dentro de uma sala de aula: ele vai à cantina, dirige-se à biblioteca, circula pelo pátio, enfim, percorre todo o ambiente escolar. Isso ficou evidente para mim, quando cursei Pós-Graduação em Psicopedagogia Institucional e Clínica e tive a oportunidade de trabalhar durante 5 anos em uma APAE – Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – realizando atendimentos clínicos e prestando suporte técnico e psicopedagógico a uma equipe de docentes de escolas regulares da rede estadual, municipal e da rede privada, foi possível perceber o despreparo dos profissionais bem como a falta de informação dos professores sobre como agir e como trabalhar com uma PCD. Duas questões fizeram-se bem presentes: como explicar para os alunos que não possuem deficiência que a turma vai receber um colega “diferente”? E como orientar os pais dos alunos para o fato de que a escola e seus filhos vão precisar de seu envolvimento e do apoio de todos para enfrentarem juntos o desafio da inclusão? Esse cenário causava-me grande desconforto e continua causando, pois, como sou graduada em Pedagogia – Orientação Educacional e Séries Iniciais e, além da especialização em Psicopedagogia Clínica e Institucional e em Design Instrucional, sou Equoterapeuta e tenho dez anos de experiência profissional com atendimentos clínicos, embora atualmente seja Coordenadora Administrativa e Pedagógica do Laboratório de Arte e Criação de uma Instituição de Ensino Superior, sempre estive engajada com a formação de pessoas e pensei em intervenções diferenciadas que pudessem atender à diversidade. Nessa perspectiva, mesmo com as mudanças que vêm ocorrendo, com as conquistas obtidas em função das lutas pelo direito à igualdade, ao respeito à diversidade, ao 3 Por escola, entende-se não apenas o espaço físico, mas, especialmente o corpo docente,a equipe pedagógica, a direção e os alunos. 14 reconhecimento e à inclusão do cidadão na sociedade, ainda acredito que a escola não esteja preparada para receber alunos com deficiência. Falamos tanto em preparar a pessoa com deficiência para ir à escola e se adequar para acompanhar a sociedade em si, mas não se costuma fazer o contrário: preparar colegas, ambientes e profissionais para receber a pessoa com deficiência. As crianças com deficiência, quando ingressam na escola, precisam integrar-se e participar “obrigatoriamente de três estruturas distintas da dinâmica escolar: o ambiente de aprendizagem; a integração professor-aluno; e a interação aluno-aluno (MACIEL, 2000, p.54). Para tanto, além de oferecer uma infraestrutura física adequada, a escola precisa ter professores que “tenham conhecimento sobre o que é deficiência, quais são seus principais tipos, causas, características e as necessidades educativas de cada deficiência” (MACIEL, 2000, p. 54), pois só assim a integração professor-aluno poderá verdadeiramente ocorrer. Também é importante que os professores tenham ciência do diagnóstico de cada aluno e que interajam com os pais ou responsáveis pela criança, para que possam conhecê-la melhor e traçar estratégias conjuntas de estimulação família-escola, peçam orientações e procurem profissionais – como psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos – que estejam atendendo ou que já atenderam esses alunos, solicitando relatórios e avaliações, e pesquisem várias técnicas, métodos e estratégias de ensino, em que variáveis como o desenvolvimento da linguagem, o desenvolvimento físico e sobretudo as experiências sociais estejam presentes (MACIEL, 2000, p. 54). O professor, nessa perspectiva, deve repensar suas funções, porque, segundo Heidrich (2018), ele não pode mais ser apenas um agente de informação e de formação dos alunos, já que as interações entre as crianças também desempenham um papel fundamental na promoção do desenvolvimento individual do aluno. O professor deve ser o mediador e o possibilitador, conforme a mesma pesquisadora, das interações entre as crianças e entre as crianças e os objetos de conhecimento. Isso porque, de acordo com Vygotsky (1984), construir conhecimento implica ações compartilhadas, implica relações com outros sujeitos e com objetos, o que requer “um redimensionamento do valor das interações sociais (entre os alunos e o professor e entre as crianças) no contexto escolar” (HEIDRICH, 2018), que devem passar a ser entendidas como condição necessária para a produção de conhecimentos por parte dos alunos, particularmente aquelas que permitem o diálogo, a cooperação e troca de informações mútuas, o confronto de pontos de vista divergentes e que implicam a divisão de tarefas, nas quais cada um tem uma responsabilidade que, somadas, resultarão no alcance de um objetivo comum (HEIDRICH, 2018). Esse tipo de prática escolar “deverá, necessariamente, considerar o sujeito ativo (e interativo) em seu processo de conhecimento” (HEIDRICH, 2018) e não como alguém que 15 recebe informações passivamente e, para isso, a intervenção do professor e as interações entre as crianças são primordiais. A interação aluno-aluno, contudo, consoante Maciel (2000, p. 54), “traz à tona as diferenças interpessoais, as realidades e experiências distintas que os mesmos trazem do ambiente familiar, a forma como eles lidam com o diferente, os preconceitos e a falta de paciência em aceitar o outro como ele é”. Em função disso e considerando-se a importância dessa relação para a construção de conhecimentos, “todos os alunos das classes regulares devem receber orientações sobre a questão da deficiência e as formas de convivência que respeitem as diferenças, o que não é tarefa fácil, mas possível de ser realizada” (2000, p. 54), porque aceitar e respeitar as PCDs é um ato de cidadania. Sendo assim, antes de inserir uma criança com deficiência na escola regular, é preciso preparar toda a comunidade escolar para essa inclusão, para que a criança seja aceita, respeitada e realmente incluída, pois só assim poderá construir conhecimentos na escola. A partir dessas reflexões, nasceu a vontade de aprofundar os estudos nesta área, de modo que o tema desta pesquisa gira em torno da sensibilização de crianças da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental para a inclusão de crianças com deficiência no ensino regular. Com base nesse tema, estabeleceu-se como questão de pesquisa: como preparar crianças da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental para receberem um colega com deficiência? Considerando-se que, desde criança, somos estimulados a assistir a desenhos e a filmes animados que, de uma forma encantadora e envolvente, abordam os mais diversos assuntos, pensei que o cinema poderia ser uma boa alternativa para responder a questão proposta. Por que, quem de nós, na infância, não ficou encantado com um dos clássicos da Disney? Além disso, já em 1937, Walt Disney lançou “Branca de Neve e os Sete Anões”, que conta a história de sete anões, personagens que possuem uma deficiência física, assunto que é tema deste trabalho. Personagens como os sete anões, o Corcunda de Notre Dame, Dumbo, Nemo e Dory são exemplos de alguns dos protagonistas de desenhos, cujas histórias mostram diferentes dificuldades e diversos obstáculos enfrentados por personagens que possuem algum tipo de deficiência. Embora as deficiências nas animações sejam retratadas de forma sutil e, talvez, muitas vezes, nem sejam percebidas pelos espectadores, é possível fazer um paralelo entre as histórias desses personagens com a vida em nossa sociedade, pois os casos apresentados são semelhantes a situações vivenciadas por PCDs no dia a dia em nossa sociedade. 16 Partindo desse pressuposto, pesquisei trabalhos sobre filmes de animação da Disney que pudessem ser aproveitados como prática pedagógica a favor da educação inclusiva, para proporcionar um suporte no que se refere à diversidade, entendendo que o cinema e obras audiovisuais, utilizados como mediadores das representações, podem ser grandes aliados na caminhada de conscientização para o respeito e para a aceitação da diversidade, porque acredito ser possível, assim como Rossini (2005), utilizar o discurso do cinema para dar visibilidade às representações sociais. E, mesmo que os filmes de animação remetam à diversão, ao entretenimento, acredito ser possível utilizar esse recurso audiovisual como ferramenta pedagógica a partir de um olhar de infinitas possibilidades. A pesquisa levou-me ao desenho “Procurando Dory”. Ao assistir ao filme, percebi a delicadeza e a naturalidade com que o tema da inclusão foi tratado em uma obra que, de praxe, seria para o público infantil (mas que também atinge o público adulto), o que me levou à decisão de utilizá-lo como uma mídia educativa para falar sobre inclusão. Assim, o objetivo deste projeto é, a partir do filme da Disney, produzido pela Pixar, de Andrew Stanton e Angus MacLane, “Procurando Dory”4, elaborar uma proposta pedagógica para a Educação Infantil e para os anos iniciais do Ensino Fundamental com a intensão de sensibilizar as crianças para incluírem, de forma mais natural, um colega com deficiência. A história da peixinha azul, que é a protagonista, já conhecida do público, bateu recorde e foi campeã de bilheteria e, ainda, de acordo com as notícias5, foi o desenho animado mais visto nos Estados Unidos no ano de 2016. O desenho animado faz parte do imaginário que engloba a história do filme “Procurando Nemo”, de 2003, que conta a história de uma família de peixes: um pai que atravessa o oceano com uma amiga para encontrar seu filho. Já o filme “Procurando Dory” retrata a história de uma personagem divertida, engraçada e com problema de memória recente6, que se perde de seus pais e que, ao se lembrar deles, atravessao oceano para encontrá-los. A protagonista inicia suas aventuras com um flashback, lembrando que tem uma família. A partir dessas recordações, Dory motiva-se a procurar seus familiares. Com esse resgate de memória, vão surgindo cenas em que ela vai acionando a memória, trazendo lembranças e recordando as orientações que seus pais davam para que ela 4 Lançado no Brasil no dia 30 de junho de 2016, com duração de 1 hora e 45 minutos (105 minutos). 5 Disponível em: <http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-124999/>. Acesso em: 16 nov. 2016. 6 “Dory tem amnésia anterógrada, ela não consegue registrar as coisas", conforme Paulo Mattos, neurocientista do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR). "Isso acontece porque ela provavelmente teve uma hipóxia neonatal, ou seja, ela ficou sem oxigenação no cérebro quando saiu do ovo e sofreu uma lesão em uma região chamada hipocampo." Disponível em: <https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2016/07/entenda-o-que- ha-de-errado-com-memoria-de-dory.html>. Acesso em: 26 fev. 2018. http://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2014/07/11-sites-para-para-exercitar-seu-cerebro-e-de-graca.html Josy Maria Realce 17 soubesse enfrentar seu “problema de perda de memória recente”. No decorrer da aventura, surgem outros personagens com transtornos e deficiências, que também são desafiados a superar certas dificuldades. Em função disso, surgiu o insight de utilizar esse filme, mesmo que não tenha o propósito específico de tratar da inclusão, para discutir o tema de modo proveitoso com crianças em escolas, fazendo uma analogia entre as experiências vivenciadas pelos personagens do filme com a vida real na sociedade contemporânea das PCDs. Dessa forma, pretende-se, como objetivos específicos, a partir de um olhar clínico, (i) investigar de que forma a PCD está sendo representada no desenho animado “Procurando Dory” e (ii) como esse recurso pode ser aproveitado para trabalhar essa temática em escolas de Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental como uma mídia educativa. Nessa perspectiva, o trabalho foi dividido em cinco capítulos. O primeiro, contempla a introdução, destacando o tema da pesquisa, os objetivos, o percurso metodológico e a estrutura do trabalho; o segundo, traz-se uma revisão teórica, abordando, na primeira seção, aspectos sobre PCD e inclusão; na segunda, um debate sobre a presença da PCD no cinema; na terceira, uma revisão sobre estrutura e elementos da narrativa; e, na quarta, uma discussão sobre o jogo como recurso educativo; o terceiro capítulo, descreve a metodologia utilizada para desenvolver o trabalho; o quarto, traz a análise do filme; e, o quinto, a prática pedagógica desenvolvida para sensibilizar crianças de Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental para a inclusão de colegas com deficiência no ensino regular. Por fim, são apresentadas as considerações finais, as referências e os apêndices. Introduzida a pesquisa, na sequência, tem início a apresentação da revisão teórica. Josy Maria Realce 18 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Neste capítulo, é trazida a fundamentação teórica que norteia este trabalho. Para tanto, na seção 2.1, discuto os conceitos de PCD e de inclusão, além de revisar algumas leis sobre inclusão; na seção 2.2, abordo a presença da PCD no cinema, apresentado um panorama histórico; na seção 2.3, trago conceitos sobre estrutura e sobre elementos da narrativa com o intuito de prover elementos para a análise do filme de animação “Procurando Dory” e, na seção 2.4, debato o jogo como recurso educativo. 2.1 CONCEITUANDO E CONTEXTUALIZANDO INCLUSÃO Para conceituar e contextualizar a inclusão, permito-me fazer uma analogia com o próprio processo de inclusão: esta é uma história que, ao longo dos anos, vem sendo construída dia a dia, passo a passo. Ela se desenha com várias ilustrações: umas coloridas, outras nem tanto. Passando pelas mãos de vários artistas diferentes, que juntos constroem novos cenários para serem apresentados nesse imenso palco que é a vida em sociedade. Ao escrever sobre inclusão, assunto de constantes discussões e que está cada vez mais em evidência na sociedade contemporânea, cabe refletir sobre alguns conceitos específicos a partir do ponto de vista de alguns autores. Tal como Almeida (p. 4) e sua visão sobre a inclusão, acredito que ela deve ser compreendida como uma questão histórica e séria, que se constrói ainda aos poucos, sem romantismos, pois, “não é algo novo que intimida e ameaça. É uma luta antiga e séria que precisa ser encarada com respeito e dignidade” (ALMEIDA, 2002, p, 4). Sendo assim, este levantamento procura entender desde o significado da palavra, a partir dos conceitos de Aranha (2002), Mantoan (2004) e Bayer (2006), até como a discussão sobre o tema e as leis influenciam esse processo de incluir na sociedade. A inclusão tem preponderado como uma temática importante na sociedade. A luta pelo direito da inclusão da PCD no ambiente educacional aumenta a cada ano. De acordo com os dicionários de língua portuguesa (SILVEIRA BUENO, 2000; AURÉLIO, 1998), a palavra inclusão significa “fazer parte, estar compreendido”. O principal fundamento da inclusão é facilitar, favorecer ou permitir o acesso ao meio comum. Esse é um termo usado para vários segmentos no âmbito da educação: inclusão escolar, educacional, educação inclusiva, escola inclusiva, inclusão na educação; inclusão social e inclusão de deficientes. Inclusão escolar 19 significa acolher sem discriminação todas as pessoas, sem exceção, no sistema de ensino, independentemente de cor, classe social e condições físicas e psicológicas. Para Aranha (2002), inclusão quer dizer afiliação, combinação, compreensão, envolvimento, continência, circunvizinhança. Ou seja, incluir é fazer parte de um grupo, é estar ativamente presente e em transformação. Já para Mantoan (2004), inclusão é a capacidade de entender e reconhecer o outro e, assim, ter o privilégio de conviver e compartilhar com pessoas diferentes. Em última instância, inclusão é “estar com”, é “interagir com o outro”. Portanto, a palavra inclusão, etimologicamente significa estar por dentro, inserir, estar envolvido, sentir-se pertencente a um grupo. O resultado da inclusão é a construção de uma sociedade melhor para todos. O movimento de inclusão surgiu na segunda metade dos anos 1980 nos países mais desenvolvidos, tomou impulso na década de 1990 também em países em desenvolvimento e deslanchou significativamente nos primeiros anos do século XXI, envolvendo todos os países (SASSAKI, 1997, p. 17). Desde os anos 1990, novos grupos e movimentos sociais passaram a despontar com o objetivo de não se isolarem em guetos e de conquistarem seus direitos na sociedade dominante, além de exercê-los na prática. Como exemplos desses novos movimentos sociais têm-se o feminista, os étnicos, os LGBT7 e o movimento de PCD e com altas habilidades. Amaral (2006, p.30), quando se refere ao movimento das PCDS e com altas habilidades, afirma que o paradigma da inclusão foi sendo erguido e defendido como uma novidade na forma de pensar e de valorizar as diferenças de cada indivíduo da sociedade. Assim, esse movimento defende que “é necessário que essa nova mentalidade de valorização dos direitos humanos se efetive na prática, e que organizações governamentais e não governamentais façam valer o gancho principal da inclusão: o respeito à diversidade humana”. A partir do entendimento do gene do surgimento das lutas em prol da inclusão, é possível traçar um breve histórico da evolução desse movimento, questão tão marcante e bastante discutida atualmente dentro e fora do país. Fazendo um retrospecto da evolução dos direitos humanos, percebe-se que a história inicia na antiguidadee pode ser dividida em dois momentos: antes e depois da Segunda Guerra Mundial. Em 1945, no período pós-guerra, os Estados Unidos tomaram consciência do holocausto e de todas as crueldades vivenciadas durante a Grande Guerra. Após esse acontecimento, surgiu a Organização das Nações Unidas (ONU), com o intuito de propagar e 7 Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros. 20 manter a paz mundial. Após a assinatura da Carta das Nações Unidas, no dia 20 de junho de 1945, o povo realizou um manifesto em prol das futuras gerações do flagelo da guerra. Promovendo, assim, a igualdade de direitos e o progresso social. A fundação da ONU representa a necessidade de um mundo melhor, com paz, solidariedade e tolerância, para que o progresso entre os países se concretize sem nenhum tipo de distinção. Nessa perspectiva, no dia 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, um documento formado por 30 artigos, considerado fundamental na sociedade contemporânea. Quase todos os tratados referentes aos Direitos Humanos têm como inspiração essa Carta e, alguns governos, fazem referência direta a ela em suas constituições nacionais. A partir desta visão histórica, que contextualiza o começo da luta pelos direitos e pela liberdade, pode-se refletir sobre a forma como a inclusão escolar está se desenhando no mundo contemporânea, que, apesar dos avanços, ainda parece possuir indícios de discriminação, enfrentando alguns impasses. De acordo com Bayer (2006, p. 73), “a educação inclusiva surgiu, ou, melhor posto, evoluiu como conceito e proposta institucional ao longo dos anos 90”. Pode-se considerar que a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) foi o marco para se pensar a inclusão. Ela inspirou os movimentos integracionistas na esfera educacional, tendo como base que toda criança tem direito à educação, independentemente de sua condição social ou origem, como fica claro no Art. 26: toda pessoa tem direito à educação [...] A educação terá por finalidade o pleno desenvolvimento da personalidade humana e o fortalecimento do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; favorecerá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos étnicos ou religiosos. Já no Brasil, em outubro de 1988, com a publicação da Constituição da República Federativa do Brasil, ficou entendido que todas as pessoas têm direito e acesso à educação, conforme o Art. 205, segundo o qual “a educação, direito de todos e dever do Estado e da Família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para trabalho”. Em seu Capítulo III, a Constituição garante atendimento educacional especializado às PCDs, preferencialmente na rede regular de ensino. No Art. 208, o Atendimento Educacional Especializado (AEE) é garantido na rede regular de ensino, tendo a Educação Especial o papel de complementar a aprendizagem. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), 21 Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, também dispõe, em seu Capítulo IV, sobre o Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer. Art. 53. A criança e o adolescente para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-lhes: igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – direito de ser respeitado pelos seus educadores; III – direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores; IV – direito de organização e participação em entidades estudantis; V – acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência. Parágrafo único. É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais. Na Conferência Mundial sobre “Educação Para Todos”, realizada na cidade de Jomtien, na Tailândia, em março de 1990, foi assinado o documento chamado Declaração de Jomtien, que tem inspirado as propostas e definições de novas abordagens referentes às necessidades básicas de aprendizagem, tendo como proposta estabelecer compromissos mundiais com o objetivo de garantir conhecimentos básicos necessários para uma vida digna a todas as pessoas. Dessa declaração, destaca-se o Art. 1, que diz que cada pessoa – criança, jovem ou adulto – deve estar em condições de aproveitar as oportunidades educativas voltadas para satisfazer suas necessidades básicas de aprendizagem. Essas necessidades compreendem tanto os instrumentos essenciais para a aprendizagem (como a leitura e a escrita, a expressão oral, o cálculo, a solução de problemas), quanto os conteúdos básicos da aprendizagem (como conhecimentos, habilidades, valores e atitudes), necessários para que os seres humanos possam sobreviver, desenvolver plenamente suas potencialidades, viver e trabalhar com dignidade, participar plenamente do desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar decisões fundamentadas e continuar aprendendo. Em junho de 1994, na Espanha, na cidade de Salamanca, ocorreu a Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais Especiais, da qual saiu a “Declaração de Salamanca”. Essa declaração é reconhecida mundialmente por ser um dos mais importantes documentos que visam à inclusão social, por servir de referência para a inserção de Políticas Públicas para a Inclusão Escolar e por instituir a educação inclusiva como compromisso mundial. Em seu texto introdutório, é dito que o direito de cada criança à educação é proclamado na Declaração Universal de Direitos Humanos e foi fortemente reconfirmado pela Declaração Mundial sobre Educação para Todos. Qualquer pessoa portadora de deficiência tem o direito de expressar seus desejos com relação à sua educação, tanto quanto estes possam ser realizados. (...); 3. O princípio que orienta esta Estrutura é o de que escolas deveriam acomodar todas as crianças independentemente de suas condições físicas, intelectuais, 22 sociais, emocionais, linguísticas ou outras. Aquelas deveriam incluir crianças deficientes e superdotadas, crianças de rua e que trabalham, crianças de origem remota ou de população nômade, crianças pertencentes a minorias linguísticas, étnicas ou culturais, e crianças de outros grupos desavantajados ou marginalizados (BRASIL, 1994, p. 4). Outro documento importante é a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiências (Convenção de Guatemala, 1999), que surgiu como um documento que define o que é discriminação, conceituando “deficiência” e orientando como se deve proceder a fim de eliminar qualquer discriminação. No Brasil, uma lei ordinária, possibilitou a reinterpretação da LDBEN (1996). Considerando o modo como funcionam os processos, as atualizações e as revisões de leis e de decretos com o passar do tempo, acredito que a caminhada segue e que a sociedade, aos poucos, continua construindo um âmbito cada vez mais inclusivo. Portanto, de acordo com as leis, a inclusão requer uma adequação do sistema de ensino, com o objetivo de fazer com que as escolas se tornem aptas a trabalharem com todos, sem discriminação e valorizando as diferenças, levando em conta não apenas as dificuldades de aprendizagens e as deficiências, mas também aspectos culturais, pois ninguém é igual a ninguém. Após esse breve histórico sobre as leis, cabe ressaltar que a educação, para ser inclusiva, não pode seguir o padrão de fábrica, como podemos perceber quando o filósofo Zigmund Bauman (2009, p. 63) questiona “em que medida possessões duráveis de conhecimento, daqueles que duram para a vida inteira, ainda interessam à escola e aos processos formativos”? Ainda conformeesse autor, é preciso atualizar-se, para entender que os processos educativos clamam por acompanhar as atualizações inclusivas. Também é interessante observar quando Sodré (1999, p. 8) diz que “o olhar, ao mesmo tempo em que percebe, atribui valor”. Para reverter isso, seria preciso ligar afetivamente um ao outro, entender suas peculiaridades, admirar sua essência, seus motivos, suas características. Mas, como isso é feito? Acredita-se que o primeiro passo seja refletir sobre nossos próprios valores e sobre nossas crenças. Enxergar o que nos motiva a pensar desse ou daquele jeito é o caminho, se isso não for feito, as ações continuarão no automático e nossa complexidade será sempre reduzida conforme as crenças e os valores propagados. Por isso, acredita-se que, com uma reestruturação cultural a partir das práticas políticas vivenciadas nas escolas e na sociedade, existe a possibilidade de viver na diversidade, ressaltando que o processo de inclusão não é apenas responsabilidade da escola, mas de toda a sociedade. 23 Almeida (2002), em seu artigo “Inclusão Preventiva: Conquistando a Sensibilidade do Ser Humano”, enfatiza que, “se as instituições, quaisquer que sejam familiares, escolares, sociais ou empresariais quiserem se constituir como espaços que acolham as diferenças a meta não deve ser necessariamente enquadrar, mas sim ajudar o ‘diferente’ a encontrar um lugar social, uma identidade” (ALMEIDA, 2002, p. 1). Isso porque é através da troca de experiências vividas na diversidade que o indivíduo aprende e constrói sua identidade. Sendo assim, não é viável nem justo negar a oportunidade das pessoas de conviverem com grupos diversificados. Essa concepção de escola, que não exclui ninguém, em que a deficiência, seja ela qual for, não constitui uma barreira para a criança permanecer na escola e aprender, vem assumindo particular importância e UM papel decisivo no atendimento educacional especializado, que tem como pressuposto fundamental o direito da criança com deficiência a frequentar a escola comum e de nela progredir, dentro de seus limites e de suas possibilidades (SARTORETTO, 2011, p. 2). A intenção aqui não é descrever todas as alterações presentes nas leis, pois ocorreram várias alterações ao longo do tempo, a ideia é citar alguns pontos marcantes e relevantes que contribuíram para o processo da inclusão, pois, frente à realidade da sociedade, é preciso seguir em frente, lutando pelos direitos já adquiridos por lei, para que os espaços que, ainda, por uma razão ou outra, não estão sendo atuantes na inclusão, possam colocá-la em prática e se beneficiarem dessa ação. Além de promover rompimentos e buscar constantemente aperfeiçoamento para entender as demandas, é preciso ter clareza do que significa dizer PCD. Segundo Diniz (2003, p. 2), o modelo social da deficiência estruturou-se em oposição ao que ficou conhecido como modelo médico da deficiência, isto é, aquele que reconhecia na lesão a primeira causa da desigualdade social e das desvantagens vivenciadas pelos deficientes, ignorando o papel das estruturas sociais para a opressão dos deficientes. Entre o modelo social e o modelo médico há uma mudança na lógica da causalidade da deficiência: para o modelo social, a causa da deficiência está na estrutura social para o modelo médico no indivíduo. A definição de PCD é abordada na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas como "aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, as quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas" (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS [ONU], 2006 a, artigo 1º). 24 No Brasil, acreditava-se que as PCDs não eram capazes de conviver com os “ditos normais” nas escolas regulares, justificando, assim, a separação em ensino especial e ensino regular. Ao ter a oportunidade de conviver e trabalhar com uma PCD, é possível perceber o quanto são desvalorizadas, esquecidas em um mundo silencioso, mas, a partir de vivências e de trocas, é possível perceber também o quanto são valiosas e capazes de desenvolverem suas habilidades, desde que estimuladas adequadamente e valorizadas a partir do limite de cada um. Mantoan (2006, p. 47) defende que a inclusão não prevê a utilização de práticas de ensino escolar específicas para esta ou aquela deficiência e/ou dificuldade de aprender. Os alunos aprendem nos seus limites e se o ensino for, de fato, de boa qualidade, o professor levará em conta esses limites e explorará convenientemente as possibilidades de cada um. De acordo com o posicionamento da autora, acredita-se que seja importante despertar o interesse e o prazer dos envolvidos no processo de ensinar e aprender, garantindo o sucesso ao sujeito em todas as esferas. Além disso, é preciso proporcionar mudanças positivas e possibilidades de inserção da PCD em todos os espaços sociais, qualificando suas habilidades e competências. Para que isso seja possível, contudo, é preciso que a sociedade veja uma pessoa na PCD, com sonhos, desejos, qualidades e capacidades. O que não é algo simples, uma vez que as PCDs, até bem pouco tempo, ou eram escondidas pelas famílias ou exibidas em espetáculos como animais em circos ou zoológicos, como se discute na seção que segue. Tendo em vista as questões trabalhadas até aqui, nota-se a evolução e a preocupação social com relação aos direitos humanos, em especial ao que se refere às questões inclusivas no âmbito educacional. O Brasil reconhecidamente vem obtendo graus de avanço no âmbito de acesso às políticas inclusivas na esfera da educação. No entanto, as PCDs continuam sofrendo por causa dos mesmos limites e das impossibilidades que têm acompanhado nossa evolução histórica. Ainda há diversas barreiras para transpor, quando nos referimos à educação inclusiva, tais como atitudes reativas em relação à deficiência, à discriminação, à invisibilidade de crianças com deficiência que não frequentam a escola e aos custos que demandam as políticas inclusivas para a educação e para a acessibilidade. Conforme Almeida (2002, p. 1), quaisquer que sejam as instituições que buscam incluir PCDs em seus espaços, cabe compreender que o propósito não é apenas colocar pessoas em um mesmo local tal como um “depósito de seres humanos amontoados” (2002, p. 4), mas humanamente auxiliá-las a encontrarem seu lugar no espaço social. 25 As mudanças nos conceitos relativos à inclusão e nas formas de ver a PCD ficam evidentes também no cinema, como pode ser visto na seção que segue. 2.2 A PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O CINEMA Nesta seção, faz-se uma relação entre a pessoa com deficiência e o cinema, passando pelas formas de exposição do “corpo anormal”, segundo Jean Jacques Courtine (2008), desde os freak shows, até os filmes atuais, destacando as mudanças. Sabe-se que, antigamente, ter uma criança com algum tipo de deficiência era motivo para escondê-la do mundo. Esse cenário mudou na segunda metade do século XIX com a ascensão dos freak shows, que tinham como objetivo a exposição do corpo – em especial, do corpo que possuía alguma anormalidade. Nessa época, houve também a ascensão da medicina, que pôde analisar algumas anomalias antes não expostas, visitando esses shows. A exposição da deformidade tomou conta também do cinema, como no filme O Homem- Elefante (1980), de David Lynch, e, em seguida, foi permeando novos campos. De acordo com Jean-Jacques Coutrine (2008, p. 328-329), os estúdios Disney souberam captar o fenômeno que ocorria naquela época e capitalizou a partir dele, transformando, por exemplo, os anões expostos nos freak shows em seu primeiro longa-metragem: Branca de Neve e os Sete Anões. A Disney soube, em suma, trabalhar esse tema e retratá-lo de forma polida para o público infantil, fazendo assim umaindústria de novos monstros e “anormais” em desenhos animados. O Quadro 1 apresenta uma relação de filmes que tem PCDs como personagens, com o ano de lançamento, a deficiência abordada e a situação da PCD retratada no filme. Quadro 1 – Relação de filmes que tem PCDs como personagens Filme e ano de lançamento Deficiência Situação universal da PCD na época do filme Branca de Neve e os Sete Anões (1937) Nanismo Apresentações em freak shows, que tinham como objetivo a exposição do corpo que possuía alguma anormalidade. Dumbo (1941) “Orelhas de abano” Declaração Universal de Direitos Humanos – marco para se pensar a inclusão (1948). 26 O Corcunda de Notre-Dame (1996) Física Assinatura da “Declaração de Salamanca”, durante a Conferência Mundial sobre necessidades educacionais especiais (1994). O Corcunda de Notre-Dame 2 (2002) Física Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiências (Convenção de Guatemala, 1999). Procurando Nemo (2013) Personagens com deficiência física e perda da memória Definição de pessoa com deficiência é abordada na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (2006). Procurando Dory (2016) Perda de memória recente Estatuto da Pessoa com Deficiência (Brasil) (Lei 13.146/2015) – assegura e promove o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. Fonte: organizado pela pesquisadora Desde sua descoberta, há mais de um século, o cinema, de acordo com Silva (2007, p.57), “encanta, provoca e comove milhares de pessoas em todo o mundo (...) estão aí incluídos muitos professores e alunos e, mesmo assim, o cinema ainda não tem ‘entrada franca’ na escola”. O cinema foi evoluindo e, quando surgiu a animação, muitos acreditavam que seu futuro seria a educação, Edwin George Lutz, renomado animador, no manual “Animated Cartoons” (1998, p. 2), inclusive, afirmou: “o futuro da animação é a educação”. Conforme (PAZELLI, 2012, p.22), foi esse manual que inspirou Walt Disney, o qual acreditava “que o cinema, principalmente a linguagem da animação, seria capaz de sensibilizar e motivar crianças através de seus personagens”. De modo semelhante, também Napolitano apostou na utilização do filme como sensibilização. Para ele, “um bom filme é interessantíssimo para introduzir um novo assunto, para despertar curiosidade e a motivação para novos temas. Isto facilita o desejo de pesquisa nos alunos para aprofundar o assunto do vídeo e da matéria” (NAPOLITANO, 2003, p. 34). Walt Disney revolucionou, a partir de 1920, a arte de animar com novas técnicas, com novos roteiros, desenhos e personagens, como Branca de Neve e os Sete Anões, Cinderela entre 27 outros. Ele “tentava copiar a realidade para a animação, dando personalidade aos seus personagens” (PAZELLI, 2012, p. 24). No Brasil, o pioneiro a pensar na utilização do filme como uma ação educativa foi Roquette-Pinto, que, em 1910, iniciou uma filmoteca com filmes de caráter científico e pedagógico no Museu Nacional (DUARTE; ALEGRIA, 2008, p. 62). Na área de educação, acredita-se, hoje, que investigar as relações que crianças e adolescentes estabelecem com artefatos audiovisuais pode ajudar a compreender o papel que as mídias desempenham no cotidiano delas, em sua formação moral e ética e em seus processos de construção de conhecimentos (DUARTE, 2004, p. 38). De acordo com o Plano Nacional de Direitos Humanos, a contemporaneidade é caracterizada pela sociedade do conhecimento e da comunicação, tornando a mídia um instrumento indispensável para o processo educativo. Por meio da mídia, são difundidos conteúdos éticos e valores solidários, que contribuem para processos pedagógicos libertadores, complementando a educação formal e não formal. Nessa perspectiva, os filmes animados atingem muitas pessoas, levando novos conhecimentos, novos valores e situações atuais enfrentadas pela sociedade, podendo contribuir com o processo de construção da aprendizagem, proporcionando uma nova maneira de ver, perceber, refletir sobre e construir novos conceitos. De acordo com Greenfiel (1988, p. 33), “as ações visualmente explícitas, ao passo que nos livros as ações estão visualmente implícitas, embora possam ser verbalmente descritas pela narração”, através do som, do movimento e do colorido das imagens, possibilitam apresentar uma narrativa com início meio e fim, mostrando a realidade de uma forma prazerosa e proporcionando uma aprendizagem significativa. Dessa forma, acredito que o uso do filme como um recurso pedagógico auxilia, porque retrata a realidade de um mundo não tão visto por muitos no cotidiano. Contudo, em circunstância alguma devemos usá-lo para moldar ou manipular o pensamento dos alunos, mas para ajudá-los a pensar o mundo, o outro, a si mesmo, o perto e o longe, o distante e o próximo, o passado e o presente, diminuindo as fronteiras do universo e olhando para o seu entorno (COUTO, 2001, p. 126). Isso porque “a influência da linguagem da animação na organização simbólica do público infantil e as consequências dessa influência a partir do conteúdo ideológico das tramas apresentadas nelas” é conhecida, de acordo com (PAZELLI, 2012, p. 27). E, como as crianças “se motivam e copiam os simbolismos de seus heróis animados” a indústria de entretenimento 28 “produz constantemente animações com novos textos (roteiros) e personagens” e, utilizando uma mensagem persuasiva, lança moda e produtos, que são rapidamente assimilados pelas crianças e pelos jovens. Isso acontece porque as crianças imitam o comportamento dos personagens dos filmes. Sendo assim, o cinema, pelo fato de poder ser bem persuasivo, torna-se uma mídia interessante para ensinar novos conteúdos de uma maneira mais fácil, especialmente quando veicula uma história cativante e envolvente, que não permite que a história nem o conteúdo atrelado a ela sejam esquecidos. Consoante Montigneaux (2003, p. 63), o imaginário detém lugar importante no cotidiano da criança. É a um tempo uma maneira de liberar suas angústias ou tensões acumuladas, mas é igualmente para ela um meio de conhecer a realidade, de se projetar e ‘de imaginar a vida’. A imagem, por sua função simbólica (como sinal, ela representa um objeto), abre o imaginário da criança e é também uma verdadeira fonte de prazeres para esta. A imagem toca sua sensibilidade e entra em ‘ressonância’ com seu mundo interior e suas experiências pessoais. Enfim, a imagem participa ativamente na representação do mundo para a criança pelo fato de estimular sua memória visual. Além disso, o fato de as situações vivenciadas na escola, por meio da socialização entre as crianças – o que as torna parte de um grupo – levarem o indivíduo a seguir o comportamento da maioria do grupo, isso facilita a absorção de conteúdos ensinados por meio de um recurso de animação. Assim, se a maioria do grupo assimilar as propostas apresentadas utilizando-se a linguagem audiovisual, é possível haver uma maior aceitação de mudanças comportamentais (PAZELLI, 2012, p. 28). Segundo Norbert (1994, p. 8-9), “[...] os seres humanos individuais ligam-se uns aos outros numa pluralidade, isto é, numa sociedade [...] essas sociedades entendem a si mesmas: em suma, a autoimagem e a composição social – aquilo que chamo habitus – dos indivíduos”, dessa forma, o uso do filme de animação “Procurando Dory” em sala de aula pode contribuir para que as crianças integrem crianças com deficiência em se grupo. Essa caminhada, contudo, é intensa. É necessário quebrar paradigmas. Precisa-se de muita análise, reflexão e discussão para propor mudanças e adequações, para juntos construirmos uma sociedade mais justa para a diversidade. Todavia, “nesse mundo [líquido],poucas coisas são predeterminadas, e menos ainda irrevogáveis” (BAUMAN, 2001, p. 74), por isso, quando uma sociedade começa a se organizar de forma diferente, usufruindo das ferramentas que estão sendo disponibilizadas, as mudanças são frequentes e as rupturas constituem mudanças que devem ser feitas em diversas esferas da sociedade como, por exemplo, nas escolas. 29 Com base nisso e por estar inserida profissionalmente em um meio clínico e educacional e por ter um olhar aprofundado e crítico frente às produções midiáticas, percebo o quanto essas ferramentas podem auxiliar na educação e na conscientização social, o que justifica a escolha de um desenho animado para a construção de uma prática pedagógica de sensibilização de crianças da Educação Infantil e de séries iniciais do Ensino Fundamental para a inclusão de PCDs na escola regular. A inserção do cinema em sala de aula como recurso educativo não é uma novidade. Essa possibilidade, de acordo com (PAZELLI, 2012), já era discutida desde a década de 1920. Nessa perspectiva, foi criado, em 1936, o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) – primeiro órgão governamental voltado para o cinema - criado pelo Presidente Getúlio Vargas e dirigido por Roquete-Pinto, a partir do que a discussão se intensificou. A criação do instituto levou a criação de inúmeros filmes educativos, que discutiam a vida no campo, como “Manhã na Roça - o carro de bois” e “O João de Barro”, de Humberto Mauro, aspectos de saúde, como “Fruta é bom demais!”, com os personagens da Mônica e de sua turma, de Maurício de Souza, entre outros. A empatia entre espectador e personagens de filmes de animação é muito clara, exemplos disso são o Mickey Mouse, a Minie, o Pato Donald, a Mônica, o Cebolinha, Nemo, Dory entre outros. Sendo assim, acredita-se que criar uma história ou um jogo a partir de uma história já conhecida, como “Procurando Dory”, envolvendo personagens carismáticos, como Dory e Nemo, possa contribuir para que uma PCD seja aceita e incluída no grupo como alguém capaz de realizar diferentes ações, assim como Dory foi, por meio da transferência da afeição dos espectadores à personagem para a PCD, a partir de conteúdos explícitos e implícitos presentes na narrativa. Em função disso, este trabalho propõe a elaboração de uma proposta pedagógica a partir do filme “Procurando Dory” para ser aplicada com crianças de Educação e Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental com o intuito de sensibilizar as crianças para a recepção de crianças com deficiências na sala de aula regular. Isso porque se acredita que aliar tecnologias para entreter ao ensino, como defendem os adeptos do Edutainment8 (um hibridismo entre educação e entretenimento, entretenimento educacional) seja uma excelente alternativa para discutir assuntos difíceis para as crianças. Além de partir de um filme de animação, a proposta 8 O Edutainment, segundo (PAZELLI, 2012, p. 31) é uma forma de entretenimento desenhado tanto para educar como para divertir. O Edutainment busca instruir ou socializar sua audiência passando lições através de formas familiares de entretenimento: programas de TV, computador, filmes, músicas, websites, softwares multimídia, games, etc. 30 pedagógica desenvolvida para este trabalho inclui também gameficação, outro recurso que, embora não seja totalmente novo, já que os jogos sempre estiveram presentes na história das civilizações, desde a Antiguidade, quando inclusive a caça e a pesca eram praticadas como jogos lúdicos, na era digital, os jogos eletrônicos vêm conquistando cada vez mais espaço, utilizando também recursos da linguagem da animação, influenciando crianças, adolescentes e adultos, mas pouco utilizado pela escola. Para construir um projeto educativo a partir de um filme, todavia, considera-se necessário, antes de mais nada, analisar o filme, para verificar como pode ser utilizado em sala de aula. No caso deste trabalho, é preciso compreender de que forma a PCD é retratada no desenho e de que forma a animação pode contribuir para sensibilizar as crianças para a inclusão. Em função disso, acredito que seja necessário compreender a história veiculada pelo desenho, compreender como a PCD é representada na narrativa e de que forma se dá a transposição de valores do filme para o espectador. Dessa forma, na seção que segue, faz-se uma breve revisão sobre a estrutura e os elementos da narrativa e sobre a identificação do espectador comas personagens e, na seção seguinte, aborda-se utilização do jogo como recurso pedagógico. 2.3 ESTRUTURA E ELEMENTOS DA NARRATIVA Contar e ouvir histórias são atividades antigas do homem, realizadas por pessoas de todas as condições socioculturais. Todos têm prazer em contar e ouvir histórias, todos se interessam pelo desenrolar de uma história bem contada. Segundo o romancista e ensaísta inglês E. M. Forster, esta é uma atividade realizada desde a idade mais remota da humanidade e tem força de vida e de morte. Ele cita como exemplo Xerazade, a protagonista de “As mil e uma noites”, que se salvou da morte contando histórias. Sendo assim, acredita-se que uma história pode contribuir também para sensibilizar a sociedade em relação à inclusão de PCDs. As narrativas costumam possuir uma característica em comum, de acordo com as concepções de Umberto Eco (2004) e também conforme pesquisas de W. Labov, J. Waletzky, H. Isenberg, W. Kintsch e T. A. Van Dijk, para os quais, existe uma espécie de modelo sociocultural da narrativa, que capacita todo falante a contar histórias, modelo que pode ser aplicado também a filmes de desenhos animados, que contam uma história. Isenberg (1977) propõe, a partir de estudos de Labov e Waletzky, um modelo de organização macroestrutural da narrativa composto de cinco funções encadeadas, não hierarquizadas e tornadas interdependentes por restrições contextuais. 31 O modelo pode ser resumido pela seguinte regra. orientação avaliação moral TEXTO = ou + complicação + ou + resolução + ou introdução ação conclusão Já Jean-Michel Adam (1987), que retoma a perspectiva de Isenberg (1977), busca apoio nos estudos e na terminologia usada por Todorov para definir sua teoria e a nomenclatura de seu modelo. Este modelo pode ser exemplificado da seguinte forma (ADAM, 1987, p. 80): 1) Situação inicial (SI): é o início, o começo da história, caracterizado por apresentar os actantes, o lugar e as circunstâncias numa situação estável, equilibrada. 2) Nó (desencadeador) (N): que é uma força transformadora que introduz algo que vai perturbar o equilíbrio da situação inicial e gerar o momento seguinte. 3) Ação (A) (= reação): que é caracterizada por apresentar situações narrativas que ora pendem para a melhoria ora para a degradação. 4) Desenlace (D): que introduz uma segunda força que vai devolver à narrativa a situação de equilíbrio, confirmando a melhoria ou a degradação na narrativa. 5) Situação final (SF): que apresenta as consequências possíveis e pertinentes ao que foi estabelecido e apresentado anteriormente, sendo coerente com os quatro momentos que o antecedem, restaurando o equilíbrio perdido, sem ser obrigatoriamente, igual à situação inicial. Para esse pesquisador, toda narrativa tem um início, um meio e um fim. Assim, após apresentar o problema inicial da narrativa, surge o primeiro rompimento na situação inicial, causando uma perturbação inesperada, o nó desencadeador, que provoca automaticamente uma ação da personagem em busca do reestabelecimento do equilíbrio inicial. Essa ação é chamada de desenlace, ou seja, a virada dahistória, o momento em que algumas ações serão tomadas para resolver o imprevisto e para encaminhar a situação final. No meio do caminho, podem, contudo, surgir vários nós e desenlaces até realmente chegar ao final da história. No que tange aos componentes da narrativa, Françoise Revaz indica seis elementos (REVAZ, 1987). 1. Uma personagem constante (ao menos uma, individual ou coletiva); 32 2. predicados que definem a personagem: predicados qualitativos (ser) ou funcionais (fazer), respectivamente, em um tempo tn e tn+1; 3. uma sucessão temporal mínima: tn – tn+1; 4. uma transformação dos predicados pelo ou ao longo de um processo; 5. uma lógica singular, na qual o que após aparece causado por; 6. um fim-finalidade sob a forma de “moral”, avaliação explícita ou derivada. A partir disso, conclui-se que uma simples sucessão temporal de ações não caracteriza uma narrativa, ou seja, simplesmente relatar atividades que foram realizadas durante o dia, sem que se consiga perceber, além da cronologia dos fatos, uma lógica de ação, que designa as alternativas subjacentes a cada fato e uma “moral”, uma avaliação dos acontecimentos narrados que explicita a finalidade de a narrativa ter sido feita, não significa produzir um texto narrativo, mas apenas descrever uma sucessão de ações. “A narrativa comporta uma estrutura mais complexa, implicando uma dimensão argumentativa, na medida em que é sempre em função de um fim a demonstrar que uma história é narrada” (GIERING, 1992). Conhecer a estrutura da narrativa contribui para compreender uma história, para compreender o percurso percorrido pelas personagens ao longo da trama, que inicia com uma situação de harmonia, que é logo interrompida por situações adversas que as personagens precisam enfrentar para chegarem novamente, no final da história, a uma situação de tranquilidade. Esta não igual à situação inicial, já que, depois de ter “vivenciado” inúmeras situações difíceis e de terem aprendido muitas coisas, as personagens saem, de alguma forma, transformadas. No que se refere à construção de uma personagem, Field (1982), em seu Manual do Roteiro, afirma que uma personagem é “o fundamento essencial do seu roteiro. É o coração, a alma e sistema nervoso de sua história. Antes de colocar uma palavra no papel, você tem que conhecer seu personagem” (FIELD, 2001, p. 32). Conhecer a personagem supõe-se, para este estudo, que seja um fator importante para trabalhar e criar uma identificação com o receptor. Essa ideia remete ao que Umberto Eco (2004) chama de fisionomia intelectual da personagem. Essa consideração diz respeito ao perfil compreendido pelo leitor (neste caso, espectador), que o faz entender todas as razões, os sentimentos e os motivos do personagem, podendo assim conhecê-lo de forma completa. A compreensão da personagem possibilita a criação de um “vínculo” com o público, que cria empatia, afeição e compreende sua história, seus motivos e suas percepções, podendo assim ter uma maior proximidade com ele. 33 Conforme Morin, o cinema é “um sistema que tende a integrar o espectador no fluxo do filme” e “o fluxo do filme no fluxo psíquico do espectador” (MORIN, 1997, p. 161). Ele afirma isso, possivelmente, em função das semelhanças entre as imagens cinematográficas e as mentais, que levam à identificação. O processo de identificação acontece, quando uma pessoa se coloca no lugar da outra, quando, segundo Morin, realiza “uma abertura subjetiva (simpática) em relação ao outro” (MORIN, 2002, p. 101). Dessa forma, acredita-se que as crianças sejam capazes de se identificar com a história do filme de animação, sofrer com as personagens, divertir-se com elas e, porque não, aprender com elas, porque os sentimentos representados no filme dizem respeito à condição humana. Ainda sobre as personagens de ficção do cinema, Gomes (1968 p. 111-113) afirma que elas, para além da presença física, alcançam também uma nitidez espiritual. Em paralelo ao teatro, ele explica que a personagem no cinema é apreendida pelo espectador de um modo diferente, o que permite maior identificação. Essa ideia vai ao encontro das concepções sobre montagem e enquadramentos, que auxiliam na construção da personagem, permitindo que, junto às demais imagens que compõem o filme, exista uma diferente percepção. A identificação das crianças com personagens de desenhos e filmes infantis é importante para sua formação, uma vez que o homem, como ser social, necessita projetar-se em outras individualidades para compreender a sua. De acordo com Delory-Momberger (2008, p. 59), “as experiências e as significações da vida nunca atuam na relação única consigo mesmo; elas devem seu conteúdo e extraem sua validade das relações interindividuais que o sujeito encontra em suas primeiras redes de pertencimento”, redes essas que podem ser construídas a partir de filmes de animação ou de jogos. Apresentada a importância da identificação das crianças com personagens para sua formação como ser social, a seguir, discutem-se as contribuições do jogo para essa mesma finalidade. 2.4 O JOGO COMO RECURSO EDUCATIVO O jogo infantil é normalmente caracterizado pelos signos do prazer ou da alegria, entre os quais o sorriso. Quando brinca livremente e se satisfaz, a criança o demonstra por meio do sorriso. Esse processo traz inúmeros efeitos positivos aos aspectos corporal, moral e social da criança (SIMÃO, 2002, p. 26, apud KISHIMOTO,1996, p. 25). A partir desta visão sobre a relação entre o jogo e a alegria, inicio este capítulo. O autor, nesta citação, fala sobre o sorriso: expressão que geralmente vemos no rosto das crianças quando estão jogando. A reflexão que proponho é sobre a razão pela qual nem sempre 34 aproveitamos o sorriso no rosto das crianças e utilizamos o jogo como uma ferramenta pedagógica? No que diz respeito ao conceito da palavra jogo, Antunes (2003, p. 11) afirma que ela “provém de jocu, substantivo masculino de origem latina que significa gracejo”. Ainda, para o autor, “no sentido etimológico, a palavra jogo expressa um divertimento, brincadeira, passatempo sujeito a regras que devem ser observadas quando se joga”, desse modo, pode-se entender que o ato de jogar pode se tornar mais interessante do que realizar um debate, dependendo do assunto, quando se visa a uma participação ativa das crianças. Quando falamos em jogo, estamos nos referindo a atividades lúdicas, a brincadeiras, a entretenimento e a jogos educacionais. Os jogos, de uma forma geral, são atividades prazerosas que envolvem as crianças e que promovem o desenvolvimento de habilidades e, até, de conhecimentos específicos, tornando a aula mais atraente. No artigo “No Fascínio do jogo alegria de aprender”, Simão Miranda enfatiza a importância do uso de jogos e de atividades lúdicas nas Séries Iniciais. Miranda (2002, p. 22) afirma que é “por intermédio do jogo, que evidentemente mobiliza a cognição, desenvolvem-se na criança inteligência e personalidade, proporcionando-lhe fundamentos para a construção do conhecimento”. A utilização do jogo, conforme Miranda (2002), é importante para o desenvolvimento global da criança, porque, além de trazer alegria, amplia os conhecimentos de maneira descontraída, proporcionando a socialização e a integração. Para ele, “o jogo deve ser entendido como um dispositivo facilitador para a criança perceber os conteúdos”. Dessa forma, pode se tornar um aliado positivo para a dinâmica pedagógica, na medida em que motiva a criança a participar das atividades propostas. Ainda, para o autor, “o jogo por imitar a vida pode ser uma recriação do macro em escala micro” (MIRANDA, 2002, p. 31). Nessa perspectiva, o jogo pode ser um recurso eficaz para atividades que possuam como propósito sensibilizar as crianças para a inclusão, porque um jogo é mais interessante do que apenas abordar o assunto teoricamente,
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