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O olho do dono protege o gado: jornalismo e Ditadura Militar no Espírito Santo12 RONCHI, Ana Carolina (graduanda)3 PORTO, Camille (graduanda)4 DORNELAS, Raquel (mestre)5 Universidade Vila Velha - ES Resumo: O presente artigo visa investigar um momento crucial da história da imprensa no Brasil, marcado por um triplo movimento: a) a transição do modelo opinativo para o informativo; b) o processo de profissionalização dos jornalistas; c) a censura e a autocensura impostas pela Ditadura Militar (1964-1985). Para tanto, será discutido o processo de estandardização da notícia, em um período de forte controle governamental, enfocando a realidade do Espírito Santo. Além da pesquisa bibliográfica e documental, o trabalho traz na metodologia a entrevista em profundidade com Carlos Lindenberg Filho (Cariê), que em 1964 era diretor comercial de A Gazeta (jornal capixaba de maior circulação durante a Ditadura Militar) e mais tarde se tornou presidente da empresa, sendo atualmente o proprietário do grupo que compreende jornal impresso, rádio, televisão e portal na Internet. Problematiza-se, nesse contexto, a visão do proprietário da empresa jornalística e a relação do jornalismo com os circuitos do poder. Palavras-chave: Empresa Jornalística; A Gazeta; Ditadura Militar; Censura; Espírito Santo. Introdução Este trabalho pretende abordar no contexto da Ditadura Militar a relação entre a imprensa e a censura. Partimos do pressuposto de que esse período acarretou diversas transformações na sociedade brasileira, tendo forte influência na imprensa nacional. Revestidas pela vigilância, repressão e censura governamental, as redações 1 Trabalho apresentado no GT de História do Jornalismo, integrante do 10º Encontro Nacional de História da Mídia, 2015. 2 Trabalho Concorrente ao Prêmio José Marques de Melo de Estímulo à Memória da Mídia 2015. 3 Graduanda do curso de Jornalismo da Universidade de Vila Velha. Bolsista de iniciação científica do projeto Relatos Ausentes, financiado pela Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Privado (FUNADESP). E-mail: ana.ronchi.acr@gmail.com 4 Graduanda do curso de Jornalismo da Universidade de Vila Velha. Bolsista de iniciação científica do projeto Relatos Ausentes, financiado pela Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Privado (FUNADESP). E-mail: mille_pm@hotmail.com 5 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora do curso de Jornalismo da Universidade Vila Velha (UVV). Co-orientadora do projeto Relatos Ausentes, financiado pela Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Privado (FUNADESP). E-mail: raqueldornelas@gmail.com experimentaram outro movimento concomitante que modificou o modo de produção jornalística: a transição de um modelo opinativo (que historicamente atrelou os jornais brasileiros a disputas político-partidárias e ideológicas) para um formato informativo, que discursivamente prima pela descrição dos fatos, sem assumir um ponto de vista. Desse modo, a imprensa partidária, que vigorou no país até a primeira metade do século XX, acabou dando lugar a um modelo empresarial, que se serve do discurso da objetividade, neutralidade e profissionalização de seus agentes como forma de se posicionar e existir (COSTA, 2005). O tema traz como cenário os anos de chumbo e o endurecimento do regime, materializado pelo crescente cerceamento da liberdade de expressão e suspensão dos direitos sociopolíticos operados pelos Atos Institucionais. Estes, por sua vez, foram responsáveis por levar às redações brasileiras tanto o fortalecimento do golpe, quanto influenciaram mudanças no que diz respeito ao tipo de jornalismo praticado no país. A busca por produzir um modelo de imprensa informativo para substituição daquele exercido até então – muitas vezes, de orientação político-partidária – foi facilitada com a chegada do AI 2, que rompe com o padrão de pluralidade de partidos. Destaca-se também a presença das mais variadas formas de censura e autocensura e busca-se problematizar como o cerceamento da informação era estabelecido no contexto das redações. Aprofundando na esfera capixaba, encontramos como objeto empírico o jornal A Gazeta, que durante o regime possuía dentro da redação um militar-diretor, espécie de escudo para a empresa e seus profissionais, que permitiu a sobrevivência do veículo durante os 21 anos do regime militar. Os materiais analisados fazem parte do projeto de iniciação científica “Relatos Ausentes” desenvolvido por alunos e professores do curso de Jornalismo na Universidade Vila Velha (UVV). Buscamos problematizar a relação entre jornalismo e censura na imprensa capixaba no período ditatorial, através do resgate da memória de profissionais atuantes na imprensa no período em questão. Neste artigo, enfocamos um olhar em particular: o do proprietário da empresa jornalística e a gestão de um veículo noticioso num período de intenso cerceamento da liberdade de expressão. A imprensa nacional, a censura e o golpe de 1964: um breve resgate histórico A relação entre imprensa brasileira e censura não se restringe à Ditadura Militar. O primeiro jornal brasileiro nomeado de Correio Braziliense era impresso em Londres pelo jornalista Hipólito da Costa e foi perseguido pela inquisição, circulando durante 14 anos (1808-1822), sempre com a intervenção direta da coroa portuguesa sobre o seu conteúdo. Em 1808, com a vinda da corte portuguesa, o Brasil passa a sofrer transformações tanto estruturais como intelectuais. Foram necessárias algumas alterações para receber a monarquia – esta necessitava expor informações de seu interesse. Nasce então a Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal impresso no Brasil. Em 1820, é decretada a liberdade de imprensa e a liberação para circular impressos portugueses fora de Portugal. Contudo, ainda assim, a censura se fazia presente pela Impressa Régia. BARBOSA (2013, p. 75), ao refletir a respeito da história da comunicação no Brasil, esclarece que no campo ideológico considerava-se que os jornais possuíam funções como: discutir as palavras da ordem do dia; definir a posição política adotada; ampliar conhecimentos; e expressar juízo de valor e opinião. Em suma, no imaginário social vigorava a ideia de que os agentes sociais que manejavam a imprensa eram dotados do privilégio de educar, levar luz e instruir àqueles que ainda estavam obscurecidos pela ignorância. Contudo, com o desenvolvimento do jornalismo como campo profissional, os jornais começaram a ser vistos não só como suporte informativo e de formação das massas, mas como empresas, tendo como marcos o investimento na área visual e o apelo comercial da notícia, entre outros. Em tempos em que aqueles que detêm a informação de certo modo também detêm o poder, a tarefa de narrar o cotidiano se torna uma moeda valiosa, passível de ser ambicionada econômica e politicamente (MEDINA, 1988). A história brasileira é repleta de exemplos do uso dos meios de comunicação e do próprio jornalismo para controle e influência política. O Estado Novo (1937-1945) buscava orientar as massas e fazer com que Getúlio Vargas conquistasse a adesão da popular. Esse período mostrou também um rigoroso controle sobre a mídia em geral. Os anos de 1960 chegaram, assistiram à mudança da capital do país para Brasília e a implantação do regime militar, se constituindo em mais um período marcadopor grande censura sobre os meios de comunicação. A maior parte da chamada imprensa de referência ou tradicional, no primeiro momento, estava ao lado da intervenção militar; porém, não era esperado que tal intervenção chegasse às redações e trouxesse consequências tão severas. Nesse período, observa-se a concentração e o poder de jornais que ainda hoje ocupam espaço: De certo modo, os anos 1960 e 1970 foram o auge da grande imprensa tradicional, se forem consideradas a vendagem e a circulação dos diários. Eram vendidos aproximadamente 5 milhões de jornais e os diários mais influentes haviam passado por reformas recentes, tornando-se empresas mais sólidas. Também houve diversificação no perfil da imprensa, com a entrada em cena de diários que disputavam o público de mais baixa renda. O acirramento da competição e as pressões exercidas pelo regime militar levariam à redução do número de jornais no início dos anos 1970, gerando fenômeno de concentração nas empresas maiores, ao mesmo tempo que as tiragens aumentavam (MOTA, 2013, p.63). Nesse ponto, é importante ressalvar que já estava presente uma censura de ordem moral, balizada pelos chamados bons costumes da população brasileira. Nos anos da ditadura, as regras de conduta continuaram vigorando. Contudo, com o passar dos anos – e a censura cada vez mais presente e violenta –, os jornais que conseguiram se manter estáveis se tornaram mais do que instrumentos educativos: se constituíram como empresas que visavam a viabilidade econômica e, para tanto, tiveram que se alinhar, em maior ou menor grau, com os circuitos do poder vigente. Entra em vigor o AI5 O ano de 1968 foi marcado por um endurecimento no regime, que teve como consequência muitos protestos contra a censura, a restrição de direitos políticos e a repressão por parte dos militares no poder. Curiosamente, dois anos antes, os ex- presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, além do ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda, haviam iniciado o movimento “Frente Ampla”, em defesa do retorno à democracia, que surgia como demanda em parte da classe política e em outros setores da sociedade (KUSHNIR, 2004). O movimento estudantil também se fortalecia na oposição ao regime e esteve à frente de manifestações como a “Passeata dos Cem Mil”, em junho de 1968, no Rio de Janeiro, que reuniu também professores, religiosos, intelectuais e artistas, entre outros. Em resposta a essa pressão e como forma de garantir o controle sobre o país, o governo edita o Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968. No discurso dos militares, a decisão prometia reforçar um regime que “assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade” e “no respeito à dignidade da pessoa humana” (Ato Institucional nº 5, 1968, preâmbulo). No entanto, o AI-5 deixava claro desde o início que se tratava de uma ferramenta de controle do Estado sobre a imprensa, a política e outros aspectos da vida social do país. O ato dava ao presidente o poder de cassar mandatos políticos, decretar o recesso do Congresso Nacional (em estado de sítio ou fora dele), suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos (pelo prazo de 10 anos), demitir funcionários públicos, aposentá-los ou coloca-los em disponibilidade. Em consequência, o habeas corpus perde sua aplicação legal. (Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968). Com o AI5, o presidente da República pode tudo (...) A linha dura e os órgãos de repressão ganham mais espaço e poder. Os direitos e garantias individuais são esmagados (...) A censura à imprensa alcança o ápice; a repressão espalha-se, inclusive pelo sistema educacional. Muitos opositores do regime militar, sobretudo jovens, não vêm outra saída para atuarem que não a clandestinidade e a luta armada (COUTO, 1999, p. 96). A violência com que o AI-5 seria imposto e que o caracterizou nos anos seguintes foi sentida pela imprensa antes mesmo de sua edição. No dia 12 de dezembro, “censores invadem as redações de rádios, jornais e televisões. No dia seguinte, centenas de jornalistas, intelectuais, estudantes e artistas vão para as celas em todo o país” (COUTO, 1999, p. 97). Muitos jornais foram também apreendidos e proibidos de circular. O general Emílio Garrastazu Médici foi empossado na presidência no dia 30 de outubro de 1969 e o período em que governou o país ficou caracterizado por um endurecimento do regime ao restringir liberdades democráticas, promover a censura, perseguir e oprimir os opositores, entre outras ações. A tortura se tornou prática sistemática do Estado contra aqueles que eram considerados uma ameaça à segurança nacional. Nesse contexto, muitos jornalistas assumiram o papel de militantes, buscando meios de combater a ditadura, ainda que indiretamente. A repressão e a censura se estendiam também para todo tipo de expressão artística. Muitas peças de teatro sofreram cortes de cenas, músicas foram vedadas, assim como diversos filmes e obras de artes plásticas. Artistas e intelectuais usavam o humor e a arte para criticar o governo, na tentativa de incentivar as pessoas à reflexão sobre o contexto político do país. Em algumas redações capixabas estavam presentes os censores, que controlavam a veiculação das notícias e avaliavam cada matéria, permitindo ou não a publicação do produto. Com a censura, os jornalistas procuravam “enganar” os censores, e acabavam ofertando narrativas que nas entrelinhas cumpriam o papel de narrar uma nação proibida de pensar a respeito de si própria. No início de abril de 1975, o jornal Pasquim circula nas bancas de jornal de todo o país com o editorial intitulado “Sem censura”, assinado por Millôr Fernandes, que informava ao público que o jornal estava livre da censura prévia desde 24 de março daquele ano (KUSHNIR, 2004, p. 18). A censura preventiva ou prévia é o direito que o governo tem de exercer vigilância sobre a publicação de matérias, livros, obras, fora da intervenção dos tribunais. Segundo Martinuzzo (2009), os jornais capixabas quase não enfrentaram esse tipo de censura direta. Privados da presença dos censores na redação, os jornalistas estavam sujeitos a publicar matérias consideradas ofensivas ao governo e serem punidos por essa atitude. Para evitar punições, os profissionais passaram a controlar o que escreviam: exerciam a autocensura – o ato de alguém aplicar a censura sobre sua própria ação, seu próprio comportamento, suas próprias obras. Existe também a visão de que a autocensura é uma forma de anular parte de uma informação pelo jornalista, privando o leitor de receber informações completas de fatos relevantes. Seguindo essa lógica, acredita-se que se torna difícil discernir se o texto foi censurado ou não, pois, se os fatos são controlados, eles não deixam cicatrizes – marcas visíveis para tal entendimento (MARTINUZZO, 2009). Houve um caso isolado em que o jornal Pasquim se viu na necessidade da presença de um censor nas redações, para que os jornalistas parassem de exercer a autocensura e de assumir o risco de publicar matérias consideradas ofensivas ao Governo (KUSHNIR, 2004, p. 18). Imprensa capixaba e censura Pode-se falar dos primórdios da imprensa no Espírito Santo em 1840 quando “O Estafeta’’ é criado ainda no governo provincial a fim de gerar a publicação de atos oficiais prevalecendo dessa forma a divulgação da política, assim como nos mostra MATTEDI (2010, p. 25): [...] o foco principal dosperiódicos, até o início do século XX, era a propaganda política, o que dava às publicações um caráter panfletário. Usados como ferramentas partidárias, os jornais serviam ao denuncismo ou para mandar recados para desafetos. A linguagem desabrida e a troca de ofensas faziam dos impressos verdadeiros jornais-trincheiras. A censura e análise de publicações capixabas se dá antes mesmo do ano de 1964. Pode- se citar já na Era Vargas o Departamento de Imprensa e Propaganda (DEIP), além da Delegacia de Ordem Política e Social do Espírito Santo (DOPS/ES) criada em 1930 buscando a vigilância principalmente sobre o movimento comunista. Esse órgão foi de suma importância para os vinte anos em que se seguiu a Ditadura Militar (1964-1985), já que realizava a manutenção, vigilância e até mesmo a contenção de movimentos contrários ao regime vigente. Quando é criado o Sistema Nacional de Informações (SNI) em 1964, e anos depois a promulgação dos Atos Institucionais que só intensificaram as decisões já tomadas. E assim que os órgãos de repressão começam a ser comandados pelas forças armadas, o combate a “elementos subversivos” chega a seu auge (FAGUNDES, 2011, p.23). Falar de mídia impressa no período de ditadura significa falar de luta, repressão, censura, omissão e de afirmação do poder das empresas de comunicação. No Espírito Santo, a situação não foi diferente, e podemos analisá-la a partir de algumas publicações locais, como A Gazeta, O Diário, Jornal da Cidade e o jornal alternativo Posição. Em A Gazeta, por exemplo, – um dos jornais de maior circulação atualmente e no período de 1964 até 1985 -, por exemplo, a encontrava em três estágios: O primeiro era bilhetes oriundos dos órgãos de controle de imprensa do Governo (comunicado dos assuntos que não poderiam constar nos noticiários e páginas de jornais). Em um segundo momento editores dos jornais que em busca de proteção acabavam por censurar textos dos próprios repórteres. No terceiro estágio os responsáveis eram os profissionais, que em busca da aprovação de seu texto realizavam a autocensura. Metáforas, sutis colocações, jogo de palavras. Alguns profissionais buscavam encontrar formas de enfrentar a censura. Jornalistas eram levados a dar esclarecimentos e algumas vezes até presos, isso tudo para buscar intimidar os profissionais que nem sempre desistiam facilmente. Falar de economia, circular à tarde, ter liberdade de escrita e formato, ser uma verdadeira escola de jornalismo. Assim era conhecido O Diário, o jornal da Rua Sete. Buscaram inovações, a estruturação da área financeira, porém, não era o grande forte e em 1980 é decretado o fim do mesmo (TATAGIBA, 2010, p.78-83). Em 1970, com o investimento para descentralizar a industrialização e a busca em transformar a economia do Espírito Santo surgem os jornais alternativos já que os veículos considerados como grande imprensa encontravam-se presos pela censura. No Espírito Santo, ao falar de imprensa alternativa é necessário a inserção de Posição: Apesar de jornalistas capixabas, por sua militância, em função da postura cotidiana nas redações e por brechas que abriam nas coberturas, terem sido detidos diversas vezes, presos, perseguidos e trabalharem sob vigilância patronal e policial, apenas o jornal alternativo Posição (1976-1979) conseguiu produzir uma pauta crítica dos anos de chumbo. (MARTINUZZO, 2009, p.13) Apesar de a época do regime ditatorial ter sido um período de tensão dentro das redações, foi nesse tempo também que se estabeleceram as grandes empresas nacionais e locais de comunicação. Esses grupos assimilaram a censura oficial de maneira mais intensa, mais por questão de sobrevivência empresarial do que propriamente por ideologia, haja vista que a ditadura recaiu por todos os setores da sociedade brasileira que, de alguma maneira, discordavam do regime imposto. Outro jornal Espírito-Santense, o Jornal da Cidade (1972-1992) teve toda sua edição apreendida em 15 de outubro de 1975 pela polícia Civil, sendo que antes já havia recebido represálias devido às publicações. O Governo do Estado passou a não dar mais nenhum dinheiro em publicidade para o jornal e coagir as empresas a fazer o mesmo (MARTINUZZO, 2005, p.186). Em outras palavras, tanto profissionais quanto empresas encontravam-se em uma difícil relação. Havia ocorrência de torturas, perseguições e mortes pelo regime imposto. Existia a censura que quando não explicitada antes do desenvolvimento da matéria já quase que inerente ao jornalista se fazia presente a autocensura. E como se já não bastasse, o poder econômico do governo sobre o jornal era tamanho que as chances de que caso não acatasse as ordens do mesmo dificilmente teria futuro os veículos relacionados. Cariê: o olhar do dono de A Gazeta Entre os jornais capixabas do período, aquele que mais se aproxima do perfil editorial da grande imprensa nacional é A Gazeta, ainda hoje um veículo de grande importância no estado. Fundado por Thiers Vellozo em 1928, o matutino passou ao controle da família Lindemberg em 1949, e serviu de instrumento político para o então governador Carlos Lindemberg e o PSD no Espírito Santo. A Gazeta circulou durante os 21 anos do regime militar e, nesse período, se consolidou como um interlocutor da elite política e intelectual do estado. Na década de 1970, a empresa pagava os melhores salários do mercado local e atraía profissionais de destaque. Dessa forma, o jornal se constitui num objeto privilegiado para se compreender a maneira como a censura se comportou em relação à grande imprensa no Espírito Santo. Conforme já explicitado, a breve análise a seguir busca mostrar a relação entre o jornal e os órgãos de repressão durante a ditadura militar, com ênfase no ponto de vista da empresa. Para isso, além do levantamento bibliográfico e da pesquisa no Centro de Documentação da Gazeta, este artigo utilizará entrevistas com o atual presidente do Conselho de Administração da Rede Gazeta, Cariê Lindemberg, filho de Carlos Lindemberg e presidente da empresa durante a maior parte dos anos de chumbo. Nos meses anteriores ao golpe de 1964, A Gazeta apoiava o governo de João Goulart e seu projeto de reformas de base, refletindo a posição de Carlos Lindemberg, então senador, com quem Jango tinha uma relação pessoal bastante próxima. Entretanto, a crise política que levou à queda de Goulart e a ascensão dos militares ao poder fez com o jornal respaldasse a derrubada do presidente. Em uma já conjuntura de ditadura militar A Gazeta encontrava em sua redação a presença de alguns comunistas, estes por sua vez, não foram esquecidos por aqueles que se encontravam no poder. A todo momento deveriam lembrar que como jornalistas, suas ações eram vigiadas: A Gazeta tinhas muitos comunistas. Mas não eram contra revolucionar, não tinham negócio de armas. Eram simplesmente comunistas e todos eles foram, cada um em sua vez chamados no quartel onde ouviam o seguinte: se você não fizer nada errado não vai te acontecer nada. Agora se mexer comigo vai ser preso, vai se ver conosco. Todos eles aceitaram essa situação e ficaram quietinhos” (LINDEMBERG, 2014). Poucos dias após o golpe – 08/04/1964 – ocorre a substituição do diretor Eloy Nogueira da Silva por Darcy Pacheco de Queiroz, general da reserva, cunhado de Carlos Lindemberg. Essa mudança possibilitou a sinalização de que o jornal possivelmente não iria de encontro ao regime, estando de acordo com as novasnormas regentes. Cariê – sobrinho de Darcy – relata o general como alguém de “mente aberta”, militar reformado, homem da área de esporte e lazer. Pacheco seria uma “um camarada à paisana”, uma espécie de escudo para que não se imaginasse qualquer reação no jornal (LINDEMBERG, 2014). Nós tínhamos um diretor de redação chamado Marien Calixte que teve a ideia de colocar um quadro enorme nas escadarias da redação e a censura vinha em forma de bilhetinhos: “Não publicar nada sobre Noel de Câmara, por exemplo. Aquele quadro era mais visitado do que o jornal A Gazeta do dia seguinte. Era uma beleza, todo mundo que queria saber novidade ia ali, porque ali é que estava o quente. E assim foi por um longo período. Nunca vi um censor, eu sei que eles estiveram presentes porque eu ouvi falar. Não vinha, não bisbilhotava o que estava escrito. Ele mandava um bilhete e ele era pregado lá no quadro (LINDEMBERG, 2014). Ao falar sobre a Ditadura Militar, Lindemberg (2014) aborda os Atos Institucionais de forma recorrente. O AI2, por exemplo, entra em vigor no ano de 1965 ampliando os poderes presidenciais e fortalecendo mais do que seu antecessor (AI-1) o poder executivo. Introduziu o bipartidarismo no país com as agremiações MDB -Movimento Democrático Brasileiro - e Arena - Aliança Renovadora Nacional- (FAGUNDES, 2011, p. 26-27). Para A Gazeta em especial, o acontecimento gerou a oportunidade de quebrar a amarração ao PSD (Partido Social Democrático) já citada acima: Olha, isso foi para nós uma bênção. Desde que eu comecei a ficar mais na área editorial do jornal que eu tinha um propósito muito firme e muito vibrante de levar A Gazeta de uma situação de atrelamento a um partido político, porque ela era atrelada, assim como todos os jornais do Brasil. Até mesmo para ser mais acreditada, ter mais prestígio. Isso era uma tarefa extremamente difícil enquanto você tinha o PSD vivo e uma oposição viva ao PSD. Quando veio esse fechamento dos partidos políticos vigentes, com a criação de um a favor de outro que é a ARENA e o MDB não tinha mais PSD, não tinha mais o que ser atrelado (LINDEMBERG, 2014). Além do abandono do caráter opinativo e a adoção de um modelo desligado de questões político-partidárias, Lindemberg (2014) reforça outras características assumidas pelo jornal ao longo do período ditatorial, tais como o investimento na editoria de economia (primeiramente para narrar os avanços do chamado “milagre econômico”, em especial, entre 1969 e 1973); o destaque ocupado no periódico pelas charges, usadas como meio para criticar as arbitrariedades sofridas no período de forma leve, mas reflexiva; e a sistemática substituição dos profissionais ligados à política e à literatura por jovens jornalistas oriundos das universidades. Nesse ponto, o processo de organização empresarial da atividade jornalística e a consequente profissionalização de seus agentes são apontados como fatores que contribuíram para a adoção de um texto cada vez mais objetivo, que se serve de técnicas de apuração e escrita específicas, visando materializar os ideais de busca da verdade, credibilidade, isenção e pretensa neutralidade. Além disso, observa-se que a inserção do jornalismo na lógica de uma sociedade capitalista não eximiu a sua autoinstituição como uma instância mediadora do interesse público, mesmo diante de um contexto sociopolítico de cerceamento da liberdade de expressão. Considerações finais A trajetória do jornalismo demonstra que a censura já se fazia presente muito antes da entrada no ano de 1964 e consequentemente com o início do golpe militar. Os anos de chumbo trouxeram consequências tanto ao lado profissional, quanto à empresa e seu dono. A censura presente impossibilitava a divulgação de temas que iam contra o regime vigente e se manifestava tanto por papéis enviados e fixados na redação quanto pelos próprios editores e jornalistas que buscavam prezar pela empresa e seus ofícios. Na esfera capixaba, A Gazeta encontrou nos Atos Institucionais a solução para acabar com partidarismo que definia a existência dos periódicos jornalísticos no estado até então. Nasce, assim, a possibilidade de uma linha editorial livre de questões partidárias e mais alinhada com o modelo empresarial informativo que configura, na segunda metade do século XX, um novo perfil de imprensa por todo o país. A presença de um diretor-militar garantiu uma pseudo-segurança e a estabilidade para circulação diária. Mas, ainda que o olhar do dono veja certo avanço no que diz respeito à implantação de um formato jornalístico apartidário, nada se destaca mais no período do que aquilo marcou a ditadura militar: a censura, a tortura e a morte. 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