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Economia Política e Serviço Social A transição do feudalismo para o capitalismo Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Ms. Bruno Leonardo Tardelli Revisão Textual: Prof. Ms. Claudio Brites 5 • Introdução • O declínio dos senhores feudais • Características essencias do capitalismo • O retrato da economia européia pré-capitalista • O sistema doméstico de produção • Aspectos do capitalismo industrial: o início da Revolução Industrial • Análise social no contexto da consolidação do capitalismo industrial Nesta primeira unidade, iremos apresentar a transição do feudalismo para o capitalismo, alguns tópicos sobre a Revolução Industrial e seu resultado social. Ao longo da unidade, muitas questões econômicas serão explicadas para você começar a ter noção do universo que envolve a economia e o serviço social. A transição do feudalismo para o capitalismo É importante o acompanhamento do material de forma integral, assim você não “perderá o fio da meada” logo de início – o estudo da economia política exige que você esteja sempre atento aos conceitos que são colocados, assim não haverá estranhamento em relação aos futuros conteúdos do curso. 6 Unidade: A transição do feudalismo para o capitalismo Contextualização 7 Introdução Nesta unidade, abordaremos sinteticamente a transição do feudalismo para o capitalismo. Para tal, explicaremos o que era o feudalismo, como essa transformação foi ocorrendo historicamente, e como a sociedade foi sendo modificada diante desse cenário. O retrato da economia européia pré-capitalista Entre os séculos IV e V, um tipo de relação social-produtiva estava estabelecida. Trata-se da hierarquia feudal, formada por senhores feudais (“senhores das terras”) que protegiam seus servos ou camponeses e lhes davam direito ao uso da terra em troca de pagamentos – em moeda, com parte da produção gerada, ou com a realização de trabalhos. Atenção “Os camponeses eram antigos servos que tinham atingido certo grau de independência e liberdade das restrições feudais” (HUNT, 2004). Ao longo do material didático não será realizada uma diferenciação profunda entre eles. 8 Unidade: A transição do feudalismo para o capitalismo Nessa época, a Europa se encontrava sem leis e o que definia se um indivíduo estava “certo ou errado” em determinada circunstância era o próprio senhor feudal. Nesse cenário, “os costumes e a tradição são a chave para a compreensão das relações medievais” (HUNT, 2004). A sociedade medieval era quase totalmente voltada para a agricultura. Apesar disso, nesse período existiam cidades. Elas eram vistas como centros de produção manufatureiras, como se fossem formadas por “indústrias” bem pouco desenvolvidas. Os produtos gerados eram vendidos aos feudos ou para centros manufatureiros mais distantes. Nas cidades, existiam as chamadas corporações de ofício, que eram associações formadas por artesões e outros profissionais produtores e comerciantes. Para se ter direito à produção ou comercialização de qualquer item seria necessário estar dentro de uma corporação de ofício. Nesse cenário, fica evidente a formação de uma divisão do trabalho entre cidade e a área rural. Enquanto a cidade estava voltada para a produção de manufaturas ao comércio, o campo se dedicava à produção de alimentos para os que se encontravam na área urbana (HUBERMAN, 1981). O declínio dos senhores feudais O fato é que os camponeses se sentiam oprimidos pelas obrigações impostas pelos senhores feudais. Os registros históricos indicam que o servo ou camponês passou a buscar terras incultas, que eram abundantes na Europa Ocidental. As terras incultas eram as terras dominadas por pântanos, florestas e terrenos que ainda não haviam despertado o interesse para o uso agrícola. Entretanto, os camponeses se interessavam por elas pois eram uma forma de se libertarem das obrigações tradicionais que possuíam com o senhor feudal. Nas palavras de Huberman: Os pioneiros europeus esgotaram os pântanos, construíram diques contra a invasão da terra pelo mar, limparam as florestas e transformaram as terras assim recuperadas em campos de cereais florescentes. Para os pioneiros do século XII [...] a luta foi longa e árdua, mas a vitória significou a possibilidade de ser, total ou parcialmente, dono de um pedaço de terra, isento do pagamento do cansativo trabalho a que estavam obrigados. (HUBERMAN, 1976). Os senhores feudais viram essa situação como uma oportunidade de terem algum tipo de ganho monetário. Ao invés da tradicional relação de troca entre eles e os camponeses, muitos passaram a cobrar pelo uso da terra (antes inculta e agora produtiva), ou seja, passaram a arrendá-las (cobrar um aluguel) aos pioneiros da expansão, para que estes pudessem continuar produzindo nelas. Um elemento importante a se considerar é que o camponês não possuía grandes estímulos a ser mais produtivo dentro do feudo. Afinal, por que o camponês teria interesse em aumentar a produção dentro do espaço do feudo se parte do que produzia já era suficiente para seu próprio sustento? O restante acabava indo parar nas mãos dos senhores feudais. Os camponeses tinham a certeza de que qualquer produção a mais não teria grandes chances de ser comercializada, uma vez que os comércios onde poderiam vender ainda estavam limitados, e parte do que produziam a mais teria grandes chances de ir parar nas mãos dos seus senhores. 9 Entretanto, com o desenvolvimento do comércio, o excedente produtivo poderia ser vendido e gerar dinheiro para o camponês, ansioso para se livrar das amarras criadas pelo sistema senhorial. As oportunidades de relativa prosperidade pareciam surgir para o camponês: Se trabalhasse mais, fizesse colheitas superiores às suas necessidades, poderia reunir algum dinheiro com o qual – talvez – lhe fosse possível pagar em dinheiro os serviços que devia ao senhor. Se o senhor não aliviasse o peso que recaía sobre seus ombros, poderia então ir para a cidade ou para uma região não cultivada, onde servos como ele abriam as florestas e recebiam em pagamento terras isentas de impostos ou taxas (HUBERMAN, 1981). Por volta do século XI, segundo Hunt (1981), disseminou-se o uso de uma tecnologia agrícola que teria elevado substancialmente a produção. Essa tecnologia foi o sistema de três campos. Nesse sistema, a terra arável era dividida em três partes iguais e, a cada período do ano, uma das partes permanecia “descansando” para evitar desgaste excessivo do solo. Antes desse sistema, a agricultura era baseada no sistema de dois campos, em que a terra era dividida em duas partes, sendo que uma metade sempre estava ociosa. Apesar de simples, o sistema de três campos elevou muito a produtividade na agricultura, possibilitando, assim, a expansão da produção. A partir desse sistema, uma parte da produção era destinada para a produção de aveia e forragem, o que permitiu a ampliação na criação de cavalos. E qual a importância disso? Cavalos são mais velozes para o transporte do homem e de mercadorias do que os bois – muito utilizados na época. São melhores também na produção agrícola, para arar a terra, por exemplo. Outra tecnologia importante no período foi a troca das carroças de duas rodas pelas de quatro rodas, que teriam reduzido o custo de transporte das mercadorias. Segundo Hunt (2004), boa parte dos historiadores consideram a expansão do comércio como o elemento principal para a queda do feudalismo. Foi crescendo a importância dada ao comércio de longa distância, que buscava a ampliação dos mercados atendidos pelos produtos manufaturados da Europa Ocidental, a expansão comercial acabou por estimular o crescimento das cidades e por ser um fator que reduziu os laços das áreas produtivas – tanto na agricultura como nas áreas de produção de manufaturas – com a estrutura feudal. Com o crescente interesse pela área urbana, a população das cidades se elevou consideravelmente e, junto a isso, surgiu a necessidade deum fluxo mais intenso de alimentos para abastecê-las. É nesse cenário que, cada vez mais, a especialização sobre as tarefas atribuídas ao campo e às cidades se tornou mais evidente. A busca por artigos de luxo nas cidades faz do senhor feudal mais um ator nesse novo cenário, que passa a “gostar” de dinheiro para adquiri- los, ou seja, “o senhor tinha muito em que empregar qualquer dinheiro que o servo lhe pudesse pagar” (HUBERMAN, 1981). Outro fator estimulante dessa nova forma de relação entre senhores feudais e servos que vale salientar era que “se o senhor não aliviasse as obrigações dos servos, era muito possível que alguns deles fugissem, deixando-o sem dinheiro e trabalho” (HEBERMAN, 1981). Um registro estatístico importante é que “por volta de meados do século XIV, as rendas monetárias (ou seja, os valores pagos como aluguéis pelo uso da terra) já excediam o valor dos serviços compulsórios prestados em muitas partes da Europa” (HUNT, 2004). 10 Unidade: A transição do feudalismo para o capitalismo Nesse contexto, outro elemento marcante na transição do feudalismo para o capitalismo foram os movimentos de cercamentos (ou fechamentos), iniciados por volta do século XIII. Estes movimentos representaram a expulsão de muitos camponeses dos feudos. A motivação para isso foi a de que os senhores feudais estavam com necessidade de dinheiro e viam a produção de lã como uma boa forma de obterem recursos financeiros. Assim, cercaram (ou fecharam) grandes áreas de terras para a ocupação de pastagens para criação de ovelhas, o que fez com que muitos camponeses perdessem espaço no campo. Sem alternativas, estes foram em direção às cidades Os movimentos de cercamentos podem ser vistos como um fator relevante na formação da classe trabalhadora que, sem os meios de produção, sem instrumentos ou ferramentas para produzir, só pode sobreviver com a venda de sua força de trabalho nas cidades. Reflita Isso não seria o retrato da classe trabalhadora que temos hoje? Para sobreviver, normalmente, trabalhamos para nós mesmos ou temos de vender nossa força de trabalho para alguma empresa em troca de um salário, não é? Alguns fatos foram vistos como determinantes para a transição do feudalismo para o capitalismo: a peste negra – iniciada em meados do século XIV – e a Guerra dos Cem Anos, entre França e Inglaterra (1337-1453). Tais fatos tiveram como consequência a morte de boa parte da população da Europa Ocidental. Esses acontecimentos levaram muitos senhores feudais a tentarem restabelecer os serviços obrigatórios dos servos e camponeses. Por quê? Bem, a população europeia diminuiu com a peste e as guerras, assim, havia falta de mão de obra no campo – com menos pessoas para trabalhar nas terras, estas davam menos renda para os senhores feudais. Entretanto, segundo Hunt (1981), muitos camponeses já haviam obtido certa liberdade, independência e prosperidade. Por exemplo, após a ocupação de terras incultas, muitos senhores, ao invés de estabelecerem os serviços obrigatórios costumeiros no período conhecido como auge do feudalismo, estavam dispostos a aceitar arrendamento, e os camponeses tinham mais liberdade para venderem seus produtos diretamente para as cidades. Diante desse cenário, a tentativa de volta ao regime que determinava ao camponês alguma forma de pagamento – em moeda, com parte da produção, ou ainda trabalhando – para o senhor parecia algo fora de cogitação a maioria dos camponeses. Seria de se esperar, portanto, que estourassem na Europa – entre o final do século XIV e início do século XVI – as chamadas revoltas de camponeses, que foram rebeliões marcadas por muito sangue. 11 O sistema doméstico de produção Ao longo dos séculos XVI e XVII, houve crescimento do sistema doméstico de produção. Esse sistema é caracterizado pela tomada do controle da produção das manufaturas pelos capitalistas comerciantes, ou seja, ao invés de ser realizada pelos tradicionais artesãos da época, a produção passa a ser comandada pela classe de capitalistas mercantis (ou seja, comerciantes da época que buscavam o lucro por meio da prática comercial). Nas palavras de Hunt (2004): O retrato europeu dos fins do século XVI e início do século XVII é o de que em “quase todas as grandes cidades da Inglaterra, França e dos Países-Baixos (Bélgica e Holanda) já tinham se transformado em prósperas economias capitalistas, dominadas pelos mercadores capitalistas, que não controlavam somente o comércio, mas também grande parte da indústria (HUNT, 2004). A seguir, serão apresentados alguns elementos da primeira Revolução Industrial, bem como o resultado social promovido por ela. Características essenciais do capitalismo Segundo Hunt (2004), o capitalismo pode ser caracterizado por quatro esquemas: 1) Produção de mercadorias, orientada para o mercado. No capitalismo, as “coisas” são produzidas para serem vendidas pelo capitalista, sendo este o empresário que, essencialmente, tem por atividade principal produzir mercadorias para vender. A produção de mercadorias não existe apenas para satisfazer as necessidades dos indivíduos, mas para a venda a outros indivíduos. 2) Propriedade privada dos meios de produção. Pense Imagine que você queira produzir lâmpadas: você precisará basicamente de matéria prima, ferramentas, maquinaria e edifícios. Alguém o impede de ter isso? Não. Ou seja, existe por parte do Estado a garantia da propriedade privada desses meios de produção para os que os possuem. Basta ter dinheiro. 12 Unidade: A transição do feudalismo para o capitalismo Reflita Entretanto, você imagina que muitas pessoas possuem esses meios de produção ou apenas alguns? Certamente que a propriedade se concentra nas mãos apenas de uma fatia pequena da população; o restante não possui os instrumentos de trabalho, nem a matéria prima. E isso faz parte da característica do capitalismo. 3) Existência de uma numerosa classe trabalhadora, que não tem qualquer controle sobre os meios necessários para a execução de sua atividade produtiva. Reflita Se você trabalha para uma empresa, os meios de produção (máquinas para produção, computadores, impressoras, espaço físico da empresa, etc.) não são seus. São da empresa. Você representa somente uma força de trabalho, que é tudo o que pode oferecer à empresa. 4) A maioria das pessoas é motivada por um comportamento individualista, aquisitivo e maximizador. Pense Como você enxerga a sociedade? Egoísta? Ansiosa para ter sempre mais dinheiro? Como se estivessem em um mar de solidão por seu individualismo? Além disso, não existem personagens na nossa sociedade que brigam entre si por mais lucro? Pois bem, estes fatores representam mais uma face do capitalismo. Hunt (2004) ilustra isso tudo em um parágrafo brilhante: Os costumes sociais do capitalismo têm levado as pessoas a acreditar que praticamente toda necessidade ou infelicidade subjetiva pode ser eliminada simplesmente comprando-se mais mercadorias. O mundo competitivo e economicamente inseguro no qual movem os trabalhadores cria sentimentos subjetivos de ansiedade, solidão e alienação. A maioria dos trabalhadores vê como causa desses sentimentos sua própria incapacidade de comprar mercadorias suficientes para fazê-los felizes. Mas, na medida em que recebem salários maiores e compram mais mercadorias, verificam que o sentimento geral de insatisfação e ansiedade continua. Então, os trabalhadores tendem a concluir que o problema é que o aumento dos salários é insuficiente. 13 Como não identificam a verdadeira origem de seus problemas, caem num círculo vicioso asfixiante, onde quanto mais se tem, mais necessidade se sente; quanto mais rápido se corre, mais devagar se parece andar; quanto mais arduamente se trabalha, mais parece ser a necessidade de se trabalhar cada vez mais arduamente (HUNT, 2004). Em resumo, podemos ver que esses quatro conjuntos de características do capitalismo podem ser facilmente entendidos por vivermos dentro desse contexto.Deve-se relembrar que nem sempre foi assim: no período feudal, por exemplo, esses elementos não estavam presentes dessa forma. Aspectos do capitalismo industrial: o início da Revolução Industrial A expressão maior da busca pelo lucro ocorre com a passagem dos capitalistas voltados à prática comercial para a predominância dos capitalistas industriais – indivíduos que buscam o lucro a partir da fabricação de produtos mesmo que mantendo a prática comercial. Fatores que levaram a essa passagem serão explicados de forma mais detalhada na próxima unidade. Por hora, vamos registrar o que foi essa transformação dentro do capitalismo – que é chamada de primeira Revolução Industrial – e o reflexo dela na sociedade. A Revolução Industrial ocorrida, de início, na Inglaterra, por volta das três últimas décadas do século XVIII, representou um processo profundo de transformação econômico e social. Ela revolução foi marcada, segundo Hunt (2004), por um surto de atividades inventivas e explosão no número de patentes. A imagem que se tem quando se fala dessa primeira Revolução Industrial é a de um período de muitas invenções e progressos nas atividades fabris, inicialmente vinculados ao algodão (e de fato foi isso). Entretanto, algumas questões surgem nesse contexto, abordaremos alguns dos elementos que fizeram com que a revolução industrial ocorresse na Inglaterra em fins do século XVIII, e alguns aspectos gerais que cercam essa transformação. Segundo Hobsbawm (1979), alguns fatores essenciais concorrem para o surgimento da revolução industrial: a questão do mercado interno, o mercado externo e o governo. A seguir, apresentaremos o papel de cada um, mas precisamos ter em mente que o surgimento de um grande número de invenções nesse período não foi obra do acaso, a busca pelo lucro por parte do capitalista é algo a se considerar em primeira instância. Pense Para que gerar uma revolução industrial com o intuito de ter condições de produzir mais, se não houvesse possibilidades de expandir o lucro dos capitalistas? 14 Unidade: A transição do feudalismo para o capitalismo Segundo Hunt (1981), os empresários de muitas indústrias enxergaram as possibilidades de maiores lucros caso conseguissem elevar a produção e baixar os custos. O raciocínio era o de que os lucros crescentes viriam de maiores quantidades de produtos produzidas a preços menores – pois, ao produzirem cada mercadoria com custos menores e, por consequência, cobrarem um preço de venda menor para cada um desses produtos, esses preços mais baixos estimulariam as pessoas a comprá-los e, assim, darem mais lucro ao capitalista industrial. Pense Expande-se a produção com o uso de máquinas => reduz-se os custos => pode-se diminuir o preço de venda do produto => aumenta-se o número de compradores => aumentam-se os lucros. A revolução industrial veio, a grosso modo, para dar lucro ao capitalista. Entretanto, esse lucro não viria se não houvesse pessoas para comprarem os produtos que as novas máquinas inventadas poderiam gerar. É por esse motivo que vamos abordar a situação do mercado interno – ou seja, analisar as pessoas que poderiam comprar dentro da Inglaterra –, do mercado externo – as pessoas que poderiam comprar os produtos ingleses, mas que moravam fora do país – e o papel do governo da Inglaterra. Em relação ao mercado interno, além do fato dos ingleses passarem a ter um desejo maior de comprar mais produtos para consumo, outro fator pode ser considerado de suma importância: as melhorias nos transportes internos. As melhorias no transporte dentro da Inglaterra reduziram os custos de movimentar as cargas terrestres. Por exemplo, “a construção de canais reduziu o custo por tonelada entre Liverpool e Manchester ou Birmingham em 80%” (HOBSBAWN, 1979). Pense O efeito na redução dos custos de transporte acaba reduzindo o preço final do produto no seu destino. Veja a situação: imagine que você comprou um equipamento eletrônico na cidade de São Paulo para vender em Manaus. Além disso, suponha que o preço que você pagou em São Paulo foi de R$ 400, e que, para transportar até Manaus, o custo de carregar a mercadoria até o destino seja de R$ 300. Qual o menor preço que você poderia cobrar por esse produto? A resposta é R$400 + R$300 = R$ 700. Contudo, se o produto que você compra por R$ 400 pode ser transportado para Manaus por R$50, mais ou menos pessoas se interessariam em comprá-lo? Provavelmente mais, pois o menor preço de venda que você poderia colocar cairia para R$ 450 (R $ 400 + R $ 50). Ou seja, pelo que foi explicado acima, fica fácil entender como a redução nos custos de transporte – via melhorias nas condições de carregar as cargas – poderia estimular os ingleses a comprarem produtos, dando força ao mercado interno inglês. 15 Entretanto, apesar de o mercado interno ser importante, o mercado externo é visto como o grande impulsionador da possibilidade de expansão da produção. Juntamente a este fator está o governo. O que o governo tem a ver com a história? A questão é que o governo inglês – ou britânico, pois não faremos distinção entre a Grã-Bretanha e a Inglaterra – fez, ao longo do século XVIII, uso de uma agressiva investida em guerras e colonizações de regiões ao redor do mundo em benefício de seus capitalistas manufatureiros. “O resultado desse século de guerras intermitentes foi o maior triunfo jamais obtido por qualquer outro Estado: o virtual monopólio entre as potências europeias” (HOBSBAWN, 1979, p. 47). Glossário Segundo Mankiw (2001), o monopólio ocorre quando uma empresa for a única vendedora de seu produto, e esse produto não possuir substitutos próximos. Um elemento importante nesse processo, por parte do governo e sua relação com o mercado interno, foi a proibição de importação de algodão da Índia. Por que isso foi importante? A única fabricação de algodão puro conhecida pela Europa no começo do século XVIII era a da Índia, cujos produtos eram vendidos pelas companhias orientais no exterior e na Inglaterra [...]. Em 1700, a manufatura inglesa de lã conseguiu proibir internamente sua importação, e com isso deu acidentalmente, aos futuros fabricantes nacionais de algodão, algo como que um livre trânsito no mercado interno (HOBSBAWM, 1979). Pelas palavras de Hobsbawm (1979), fica clara a ideia de que com a proibição dos tecidos indianos, os produtores ingleses podiam ter uma concorrência menor dentro da própria Inglaterra e, assim, poderiam expandir seu mercado interno. Pense Por que a concorrência seria menor? Vamos a um exemplo fictício para o caso do Brasil (não com a proibição de entrada de produtos estrangeiros, mas com elevação de taxas de importação): se os carros importados tiverem suas taxas de importação aumentadas (ou seja, um valor maior a ser pago para poder entrar no país), as pessoas que moram no Brasil vão ter de pagar um valor maior para adquiri-los. Se o valor for muito elevado, os brasileiros podem passar a preferir comprar o produto nacional, que estará mais “protegido” da concorrência com produtos estrangeiros. 16 Unidade: A transição do feudalismo para o capitalismo Com o desenvolvimento da atividade têxtil ao longo dos anos e as investidas do governo britânico com o intuito de expandir os mercados para seus produtos, o resultado foi o de que [...] até 1770, mais de 90% das exportações britânicas de algodão dirigiam-se para os mercados coloniais (...), sobretudo para a África. A enorme expansão das exportações após 1750 deu ímpeto à fabricação – entre aquele ano e 1770 as exportações de algodão mais que decuplicaram (HOBSBAWM, 1979). Apesar da cultura do algodão ter sido a atividade que iniciou o processo de Revolução Industrial, o desenrolar desta não se baseou somente na atividade têxtil. Na realidade, presencia- se, entre outras, também, o desenvolvimento das produções de carvão e de ferro. Entretanto, aprofundar-se nisso foge do escopo dessa disciplina, pois a introdução de elementos vinculados à RevoluçãoIndustrial iniciada no fim do século XVIII teve a intenção somente de descrever os caminhos que a história do capitalismo – iniciada com o declínio do modo de produção feudal – percorreu com a passagem do interesse dos capitalistas do comercial para o industrial. Além disso, a época da Revolução Industrial é o ambiente vivenciado por alguns pensadores que iremos explorar ao longo da disciplina. Portanto, as teorias formadas por esses autores estão intimamente relacionadas com os acontecimentos econômicos e sociais ocorridos nesse período. Análise social no contexto da consolidação do capitalismo industrial A partir da experiência da primeira Revolução Industrial, pode-se observar uma série de modificações. A tarefa deste tópico não é elucidar todas elas, mas apresentar o panorama social desse período. A análise social no início do capitalismo industrial pode começar pelo registro de que se “entre os povos primitivos, a medição do tempo está comumente relacionada com os processos familiares no ciclo do trabalho ou das tarefas domésticas” (THOMPSON, 1998), por outro lado, com o desenvolvimento do capitalismo industrial, este se caracteriza por ser o tempo do relógio. Aqueles que são contratados experienciam uma distinção entre o tempo do empregador e o seu ‘próprio’ tempo. E o empregador deve usar o tempo de sua mão-de-obra e cuidar para que não seja desperdiçado: o que predomina não é a tarefa, mas o valor do tempo quando reduzido a dinheiro. O tempo é agora moeda: ninguém passa o tempo, e sim o gasta (THOMPSON, 1998). Os tempos mudaram, literalmente, o capitalista industrial quer utilizar a máquina comprada o máximo de tempo possível e, com isso, faz com que o indivíduo trabalhe uma enorme quantidade de horas e produza o maior número de mercadorias nesse período de trabalho, pagando o menor salário possível. O capitalismo industrial provocou modificações econômicas que alteraram toda a estrutura social. Dentre essas transformações, a vida dos trabalhadores: 17 [...] cujo mundo e estilo de vida tradicionais tinham sido destruídos pela revolução industrial, sem que fossem substituídos automaticamente por qualquer outra coisa. É essa desagregação que forma o cerne da questão dos efeitos sociais da industrialização (HOBSBAWN, 1979). As condições de vida dos operários, tanto nas fábricas quanto fora delas, eram precárias, resultado de salários mal pagos, que pouco davam para o sustento familiar – contraíam dívidas nas mercearias para ter pão todos os dias, além de dependerem da ajuda de outras pessoas. Brasciani (1982) relata toda a brutalidade e selvageria das moradias em que o proletariado vivia com suas famílias. Em cidades como Londres e Paris, de maior densidade demográfica, os bairros mais pobres eram excluídos, não dava para deixar de ser notado o mau cheiro, verdadeiros chiqueiros para os humanos. Nas palavras do autor: [...] as péssimas condições de moradia e a superpopulação são duas anotações constantes sobre os bairros operários londrinos. Mesmo áreas ricas como Westminter têm paróquias onde (...) moram 5.366 famílias de operários em 5.294 habitações, num total de 26.830, dispondo ¾ dessas famílias somente de uma peça para viver (BRESCIANI, 1984). Com base nesse trecho, percebe-se a crueldade presente, a falta de humanidade dos patrões que alimentavam as péssimas condições de vida mantendo as baixas remunerações. Por esse motivo, Bresciani (1984) nomeia de colmeias populares os bairros em que os operários moravam, fazendo analogia às colmeias de abelhas, na qual esses insetos vivem amontoados em grande número, com pequeno espaço – como os operários. Em alguns bairros havia populações tão grandes quanto Berlim, Viena, São Petersburgo ou Filadélfia. Segundo Hobsbawn (1981), os operários tinham longas jornadas de trabalho – de 14 ou até mesmo de 16 horas. Nas minas de carvão, por exemplo, eles ficavam expostos muito tempo ao pó do carvão sem nenhuma proteção, o que debilitava a saúde deles. Bresciani (1984) demonstra indignação em relação às más condições a quais os operários eram submetidos nas fábricas. Muitos se tornavam incapacitados pela ausência de uma boa saúde, resultado de uma rotina desgastante causada pelas longas jornadas de trabalho sem interrupções. A degradação física e moral do trabalhador urbano (...) transmutava-se, nas décadas seguintes, na degeneração urbana do homem pobre. Em torno de 1860, os filhos dos tecelões de seda de Londres (...) espalhavam-se pelas esquinas das ruas da cidade em grupos de rapazes de dezesseis a vinte anos, magros, pálidos, improdutivos e furiosos, dizendo não terem emprego e terem suas tentativas de obtê-lo sido frustradas até no exército, dada sua compleição física débil e a pouca altura (JONES apud BRESCIANI, 1984). Se a condição de vida para quem trabalhava não era fácil, para aqueles que não conseguiam se empregar era bem pior. Muitos foram mandados embora no início da Revolução Industrial, outros eram demitidos por conta da introdução de máquinas que os substituía. O reflexo desse grande número de pessoas demitidas foi o aumento da violência e da mendicância nas ruas. “Estima-se em 20.000 os criminosos espalhados pelas cidades de Londres. Junto ao crime vem a mendicância: uma verdadeira ‘praga de mendigos’ flagela a cidade” (BRESCIANI, 1984). 18 Unidade: A transição do feudalismo para o capitalismo Em meio a todo o sofrimento da classe trabalhadora, havia a burguesia que, ao contrário dos operários, não precisava se humilhar para ter o que comer. Além de boa parte da burguesia viver em grandes casas luxuosas, os burgueses tinham todo o conforto que era possível na época, alimentavam-se com verdadeiros banquetes nas refeições. Mesmo que houvesse crise em algum setor, como o da agricultura, por exemplo, continuavam a manter a hegemonia que possuíam. Em relação à situação da família operária em meio à consolidação do capitalismo industrial, é evidente a fragmentação dos laços familiares, bem como o esfacelamento da vida social na comunidade. O fato é que “termina a função da família como uma empresa cooperativa empreendendo a produção conjunto de um modo de vida [...]. O cuidado dos seres humanos uns para com os outros se torna cada vez mais institucionalizado” (BRAVERMAN, 1987). A destruição dos laços familiares advém da introdução do capitalismo industrial e, com este, a partir da destruição das empresas familiares, surge a necessidade de toda família inserir-se no processo produtivo para se manter, visto os baixos salários pagos pela burguesia – os baixos salários bastavam para os limites da subsistência, ou até mesmo abaixo deles. Os operários não podiam sentir-se felizes numa tal situação; que a sua situação não é a mais adequada para que um homem, ou uma classe inteira, tenha possibilidade de pensar, sentir e viver humanamente. Os operários devem, portanto, tentar libertar desta situação que os coloca ao nível dos animais, para criarem para si próprios uma existência melhor, mais humana, que só o podem fazer entrando em luta contra os interesses da burguesia enquanto tal, interesses residem precisamente na exploração dos operários (ENGELS, 1986). A tensão gerada a partir das relações sociais entre a classe burguesa e operária foi se intensificando. Os operários viviam em uma situação que lhes faltava tudo, até mesmo comida, e sentiram-se obrigados a se associarem para unir forças e lutarem contra a classe que os oprimia e que gerava aquela situação. A burguesia, na luta por seus interesses, tenta subtrair as condições de vida dos operários a níveis mínimos de subsistência, com a finalidade de obter o máximo de lucro possível. Esse período é marcado por uma série de associações operárias, que buscavam diminuir a exploração realizada pelos capitalistas. Havia, entretanto, um profundo desinteresse burguês em relação às reivindicações operárias, não era criada nenhuma possibilidade de mudança que melhorasse as condições do operário, comoafirma Engels (1845, p. 212): “o burguês não quer saber se os operários morrem ou não de fome, desde que ganhem dinheiro”. De acordo com Engels (1845), em 1824, os operários obtiveram o direito de se associarem, tirando da ilegalidade as muitas associações operárias que existiam – direito que até então pertencia somente à aristocracia e à burguesia. A intenção dessas associações era, conforme acima citado, de proteger o operário isolado da tirania da classe burguesa. Para tal, ajudavam financeiramente os operários desempregados, lutavam contra as reduções salariais que os industriais tentavam impor e negociavam com os capitalistas uma faixa de salários a ser cumprida em toda parte. Essas associações eram uma forma de “[...] intimidar os empregadores, como para manter os homens juntos e animados” (HOBSBAWN, 1964, p. 20 19 Através dessas associações, a classe operária apresentava suas queixas à burguesia por meio de solicitações, e se isso não bastasse para que a burguesia considerasse as exigências dos operários, ordenava-se a seus membros a paralisação do trabalho. Entretanto, as paralisações não duravam muito tempo, pouco a pouco a fome obrigava os operários a retornarem ao trabalho. Devido as muitas fragilidades que as associações possuíam, seus fundos esgotavam-se rapidamente, por conta do grande número de operários que era preciso socorrer – pois os comerciantes negavam ao operário o crédito que antes concediam (quando estavam trabalhando). Além disso, principalmente, os industriais conseguiam recrutar homens suficientes para continuar o trabalho entre aqueles que não faziam parte da associação, ou que a deixavam em prol de algum benefício concedido pela burguesia. Esses operários (ovelhas negras) eram alvos de todos os tipos de maus tratos e intimidações pelos membros das associações. Nesse contexto, as associações operárias utilizavam também de outro tipo de meio para paralisar o trabalho e se proteger dos “fura-greve”: destruíam as máquinas da indústria, pois, dessa forma, a produção com certeza seria interrompida. Os primeiros movimentos do operariado parecem, à primeira vista, sem sentido, se vermos que sua “[...] base do poder estava na quebra de máquinas, nas arruaças e na destruição das propriedades em geral [...]” (HOBSBAWN, 1964, p. 16), fazendo com que alguns autores vejam as quebras das máquinas somente como uma oposição do proletariado contra as mesmas. Entretanto, determinados tipos de ataques nada tinham a ver com agressão contra a mecanização, mas sim, um meio de se “[...] fazer pressão contra os empregados e trabalhadores extras” (HOBSBAWN, 1964, p 17). Além disso, “[...] entre homens e mulheres mal pagos, sem fundo de greve, o perigo de furadores de greve é sempre agudo. A quebra de máquinas foi um dos métodos de contra-atacar essas fraquezas” (HOBSBAWN, 1964, p. 19). Apesar de seus esforços, Engels (1845) evidencia o efeito menor criado pelas associações diante de suas pretensões, pois, apesar de terem formado uma reconhecida estrutura organizacional, não chegaram ao objetivo que deveriam atingir, ou seja, não conseguiram suprimir a classe burguesa. A consequência disso é que essa classe continuou a exercer seu poder por meio da exploração dos operários e a formar seus exércitos de reserva de geração em geração. 20 Unidade: A transição do feudalismo para o capitalismo Material Complementar Como material complementar, pode-se recorrer ao filme O germinal, de Émile Zola. O contexto é o de extração de minérios, redução de salários, greve e ten- tativas de conter o avanço do mundo “capitalista”. 21 BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. BRESCIANI, M. S. M. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1984. ENGELS, F. A. Situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Global, 1986. HOBSBAWN, E. J. Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1979. . Os trabalhadores: Estudos sobre a História do Operariado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. HUBERMAN, L. História da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. HUNT, E. K. História do pensamento econômico: uma perspectiva crítica. 7. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. MANKIW, N. G. Introdução à economia: princípios de micro e macroeconomia. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2001. THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudo sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Referências 22 Unidade: A transição do feudalismo para o capitalismo Anotações www.cruzeirodosulvirtual.com.br Campus Liberdade Rua Galvão Bueno, 868 CEP 01506-000 São Paulo SP Brasil Tel: (55 11) 3385-3000 http://www.planalto.gov.br
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