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Autismo: Questões Estruturais e Clínicas

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BEATRIZ DE SOUZA SILVA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
AUTISMO: A QUESTÃO ESTRUTURAL E SUAS 
IMPLICAÇÕES NA CLÍNICA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São João del-Rei 
PPGPSI-UFSJ 
2018 
 
 
 
 
BEATRIZ DE SOUZA SILVA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
AUTISMO: A QUESTÃO ESTRUTURAL E SUAS 
IMPLICAÇÕES NA CLÍNICA 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em 
Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei, 
como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre 
em Psicologia. 
 
Área de Concentração: Psicologia 
Linha de Pesquisa: Fundamentos Teóricos e Filosóficos da 
Psicologia 
 
Orientador: Júlio Eduardo de Castro 
Coorientadora: Maria Gláucia Pires Calzavara 
 
 
 
 
 
 
 
São João del-Rei 
PPGPSI-UFSJ 
2018 
 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
Ao longo do mestrado, tive ao meu lado muitas pessoas que me ajudaram, direta ou 
indiretamente, a trilhar este caminho, que é a escrita da dissertação. Por isso, agradeço e 
compartilho com os que caminharam comigo a alegria de ver os rascunhos de escrita 
tomarem forma de dissertação. 
Ao professor Júlio Eduardo de Castro, agradeço pela acolhida ao meu tema de pesquisa, 
pela leitura precisa, pela orientação segura e pela generosidade. 
À professora Maria Gláucia Pires Calzavara, pela parceria de trabalho desde a graduação. 
Foram anos de trabalho e o que fica é a certeza que nossa parceria ainda renderá muitos 
frutos. Agradeço pela dedicação, incentivo e confiança depositada em meu trabalho. 
Ao professor Roberto Calazans e à professora Ângela Vorcaro, componentes da banca 
examinadora, pelos significativos apontamentos. 
Aos meus pais, Zenaide e Benedito, que sempre me incentivaram a seguir meus sonhos. 
Aos meus irmãos, Fábio e Fabiana, e aos meus cunhados, Leila e Reynaldo, pelo apoio, 
confiança e alegria. 
Aos meus sobrinhos, Faila, Frederico e Lígia, por me encherem de ligações sempre me 
perguntando: “Que dia você chega, tia?” O amor de vocês e por vocês me torna uma 
pessoa melhor. 
Ao meu noivo, Carmito Júnior, pelo amor, paciência e companheirismo durante todo este 
tempo em que estive distante dedicando-me à graduação e depois ao mestrado. 
Aos amigos conquistados na UFSJ, por me presentearem com o convívio e por tornarem 
os desafios da pesquisa e da vida muito mais leves. Em especial, à Laís e à Thaís, pela 
amizade, apoio, risadas e incentivo nos momentos difíceis. 
Às amigas Márcia, Mariângela e Daniela, pela amizade mesmo que à distância. 
Aos professores do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSJ, por toda a 
transmissão. 
 
 
 
 
À CAPES, pelo apoio financeiro. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
RESUMO 
 
A proposta da presente dissertação surgiu das inquietações decorrentes de um dos maiores 
debates teórico-clínicos no campo da psicanálise: o autismo é ou não uma psicose? O que 
é perceptível com a leitura de textos sobre essa temática é que há ainda muitas 
interrogações por parte dos autores em como situar o autismo estruturalmente. Diante 
dessa questão, há diferentes posicionamentos que destacam pontos de aproximação e 
distanciamento do autismo com a estrutura psicótica. Nesta pesquisa, consideramos que, 
se há diferentes posicionamentos a respeito da posição estrutural do autismo, isso deve 
ser discutido. Do mesmo modo, os aspectos que aproximam e distanciam o autismo das 
psicoses precisam ser elucidados. Tendo isso em vista, a pesquisa se propõe a apresentar 
as concepções de Jean-Claude Maleval e de Éric Laurent no que diz respeito à 
constituição do sujeito autista, às aproximações e distanciamentos para com a clínica da 
psicose, bem como à especificidade da transferência e dos efeitos terapêuticos na clínica 
do autismo. Além disso, contaremos com as contribuições de outros autores para discutir 
a especificidade do tratamento com sujeitos autistas. O objetivo de realizar este percurso 
é elucidar as implicações que se têm na clínica em decorrência da posição adotada pelos 
psicanalistas em relação à estruturação do sujeito autista. Por isso, a presente pesquisa 
tem a seguinte questão como proposta norteadora: até que ponto pensar o autismo inserido 
no campo das estruturas irá nos dizer sobre a direção do tratamento? 
 
Palavras-chave: autismo; psicose; estrutura; psicanálise; tratamento. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
The proposal of the present dissertation emerged from the arising concerns from one of 
the major theoretical-clinical debates in the field of psychoanalysis: is autism a psychosis 
or not? What is noticeable with the reading of texts on this subject is that there are still 
many questions on the part of the authors on how to situate autism structurally. In light 
of this situation, there are different positions that highlight points of approach and 
distance from autism to the psychotic structure. In this research, we consider that if there 
are different positions regarding the structural position of autism, this should be 
discussed. In the same way, the aspects that approach and distance autism from psychoses 
need to be elucidated. With this in mind, the research proposes to present the conceptions 
of Jean-Claude Maleval and Éric Laurent regarding the constitution of the autistic subject, 
the approximations and distances to the clinical psychosis, as well as the specificity of 
the transference and the therapeutic effects in the clinic of autism. In addition, we will 
rely on the contributions of other authors to discuss the specificity of treatment with 
autistic subjects. The objective of this course is to elucidate the implications that have in 
the clinic due to the position adopted by the psychoanalysts in relation to the structuring 
of the autistic subject. Therefore, the present research has the following question as a 
guiding proposal: to what extent to think the autism inserted in the field of the structures 
will tell us about the direction of the treatment? 
Keywords: autism; psychosis; structure; psychoanalysis; treatment. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
LISTA DE FIGURAS 
Figura 1. Representa o Outro endereçando significantes ao campo do Sujeito .............. 24 
Figura 2. O Sujeito está alienado ao primeiro significante, enquanto que o S2 surge 
no campo no Outro ......................................................................................................... 24 
Figura 3. Lacan ilustra a alienação a partir do exemplo “a bolsa ou a vida” .................. 25 
Figura 4. A interseção representa a perda do Sujeito em qualquer uma das escolhas ..... 25 
Figura 5. Ilustração de quando o sujeito escolhe o ser e petrifica-se no 
primeiro significante ....................................................................................................... 26 
Figura 6. O sentido, por surgir no campo do Outro, carrega um ponto de sem-sentido, 
de não senso .................................................................................................................... 26 
Figura 7. Há uma justaposição de faltas: tanto o Sujeito quanto o Outro estão 
barrados pela falta ........................................................................................................... 27 
Figura 8. Os três anéis separados e, depois, ligados pelo sinthoma, o quarto anel ......... 32 
Figura 9. Nó de trevo (nó da paranoia), nó trivial (nó de trevo com erro) e nó joyciano 32 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 8 
CAPÍTULO 1 – A NOÇÃO E O CONCEITO DE ESTRUTURA ................................. 13 
1.1 Aproximações da psicanálise lacaniana com o estruturalismo ..................................14 
1.2 A noção de estrutura na clínica ................................................................................. 17 
1.2.1 Diagnóstico diferencial estrutural nos anos de 1950 .............................................. 18 
1.2.2 Década de 1960: as operações de alienação e separação e o objeto a .................... 23 
1.2.3 Década de 1970: a topologia dos nós ..................................................................... 29 
CAPÍTULO 2 – AUTISMO: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS PARA COM 
A CLÍNICA DA PSICOSE ............................................................................................. 34 
2.1 Como o autismo é abordado por Maleval? ................................................................ 34 
2.1.1 Retenção dos objetos pulsionais ............................................................................. 35 
2.1.2 Estruturação do sujeito a partir dos signos ............................................................. 37 
2.1.3 Aparelhamento do gozo pela borda ........................................................................ 40 
2.1.3.1 O duplo ............................................................................................................... 41 
2.1.3.2 Objetos autísticos ................................................................................................ 42 
2.1.3.3 Ilhas de competência ........................................................................................... 44 
2.1.4 Comentários acerca do estudo de Kanner, de Asperger e dos Lefort ..................... 46 
2.1.4.1 Kanner e Asperger: os estudos iniciais ................................................................ 46 
2.1.4.2 Rosine e Robert Lefort ........................................................................................ 47 
2.1.5 Em quais elementos o autismo pode ser apreendido? Aproximações e 
distanciamentos para com a psicose ................................................................................ 49 
2.2 Como o autismo é abordado por Laurent? ................................................................ 52 
2.2.1 A especificidade dos objetos: do sem forma ao em-fôrma do objeto a .................. 55 
2.2.2 Reiteração do Um .................................................................................................. 56 
2.2.3 Aproximações e distanciamentos do autismo com a psicose ................................. 58 
CAPÍTULO 3 – A QUESTÃO ESTRUTURAL E A DIREÇÃO DO TRATAMENTO 60 
3.1 Nasce uma nova clínica: a perspectiva de Jean-Claude Maleval frente à especificidade 
do tratamento dos autistas ............................................................................................. 60 
3.2 O analista como parceiro frente ao singular da/na clínica do autismo: a perspectiva de 
Eric Laurent sobre o tratamento dos autistas ................................................................... 62 
3.3 Diferentes perspectivas acerca do tratamento com autistas ...................................... 65 
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 69 
REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 75
8 
 
 
 
INTRODUÇÃO 
 
Como situar estruturalmente o autismo? Esse questionamento parece permear a 
maioria dos textos e eventos psicanalíticos que se propõem a falar sobre o autismo, pois 
ainda não há consenso sobre essa questão. Se, por um lado, há autores que seguem a 
leitura de que o autismo estaria no campo das psicoses, por outro, existem os autores que 
situam o autismo como uma quarta estrutura ou uma a-estrutura. Constata-se, com isso, 
que não somente não há consenso na área sobre essa questão, como também é uma das 
questões que mais levantam debates e discordâncias na psicanálise. 
A presente pesquisa surgiu de minhas inquietações decorrentes da leitura de 
textos psicanalíticos sobre autismo em conjunto com as questões originadas no trabalho 
clínico com crianças autistas. À medida que aparecia na clínica uma variedade de 
autismos, novas questões surgiam, fazendo-me recorrer aos textos na tentativa de 
entender a posição desses sujeitos perante o Outro. Nos textos, fui percebendo que não 
há uma única teoria que se propõe a falar sobre o autismo, assim como não há somente 
um autor que apresente suas perspectivas. Conforme fui me deparando com as inúmeras 
perspectivas teóricas, a interrogação a respeito da questão estrutural do autismo me 
indagava a ponto de eu questionar: quais são as implicações que se têm na clínica 
psicanalítica em decorrência do posicionamento adotado pelo analista a respeito da 
posição estrutural do autismo? 
Diante das interrogações, a questão desencadeadora desta pesquisa surgiu: até 
que ponto nomear um sujeito amparado em uma estruturação que seja autística diz sobre 
a direção do tratamento? Frente a isso, iremos desenvolver nesta pesquisa um debate que, 
apesar de fundamentado na clínica, não é uma pesquisa de cunho prático. Trata-se aqui 
de uma pesquisa teórica amparada na teoria psicanalítica de orientação lacaniana. 
Na atualidade, há inúmeras pesquisas (Bracks Faria, 2017; Oliveira, 2013; 
Gontijo, 2008) que apresentam detalhadamente o percurso do conceito do autismo desde 
a origem do termo, ao ser postulado como um sintoma, à sua transformação para uma 
entidade nosográfica. Por esse motivo, não vemos necessidade de apresentar esse 
percurso nesta dissertação, mas salientamos a importância histórica da construção desse 
conceito tanto do ponto de vista teórico quanto clínico. 
Na história da psicanálise, diversos autores se dedicaram à prática com crianças 
e investiram também no trabalho com sujeitos que apresentavam um funcionamento 
psíquico diferente. Donald Meltzer (1922-2004), Margaret Mahler (1897-1985), Bruno 
9 
 
 
 
Bettelheim (1903-1990), Melanie Klein (1882-1960) e Frances Tustin (1913-1994) são 
exemplos de autores pós-freudianos que se empenharam no trabalho com crianças autistas 
e contribuíram enormemente para o avanço do debate teórico-clínico. No entanto, as 
produções desses autores são marcadas pela lógica desenvolvimentista. 
A partir da década de 1960, surgiram contribuições à clínica com crianças 
autistas e psicóticas graves orientadas pela clínica lacaniana por meio dos nomes de 
Rosine e Robert Lefort. A grande diferença demarcada pelas considerações desses autores 
é o fato de eles utilizarem o conceito de sujeito introduzido pela psicanálise lacaniana 
distanciando-o da noção deficitária do autismo até então recorrente. Esses estudiosos 
apresentaram significativas contribuições para se pensar a clínica do autismo a partir do 
trabalho realizado com Marie-Françoise exposto no livro “Nascimento do Outro” (Lefort 
& Lefort, 1984). Essa criança havia sido abandonada pela mãe quando contava com dois 
meses de idade e tinha permanecido até os dez meses em creche com frequentes 
internações. Após a criança ter sido encaminhada por outros profissionais que a 
atenderam, Rosine começou o trabalho com Marie. Conforme esses profissionais, havia 
a dúvida diagnóstica entre autismo e esquizofrenia. Marie apresentava fenômenos 
clínicos próprios do quadro autístico, descrito inicialmente por Leo Kanner (1943/1997), 
como ausência da fala, olhar vago, dificuldade em se relacionar e transtorno alimentar. 
De acordo com Rosine, houve uma completa ausência do olhar do Outro para Marie, 
chegando a formular que, para Marie, havia uma dupla ausência: tanto o outro quanto o 
Outro faltaram. 
A partir do caso Marie-Françoise, Rosine e Robert Lefort introduziram um 
imenso debate na psicanálise, após formularem o autismo como uma a-estrutura, na 
tentativa de enfatizar a precariedade em que se encontrava o sujeito autista. Essa 
formulação introduziu uma discussão acerca da questão estrutural do autismo, uma vezque, até então, tanto na psiquiatria quanto na psicanálise, o autismo era integrado ao 
campo das psicoses. Apesar de diversos autores, como exemplo temos os já citados Leo 
Kanner e Melanie Klein, terem postulado diferenciações entre o autismo e a psicose, até 
aquele momento não havia questionamentos a respeito da inclusão do autismo no campo 
da psicose. 
Em uma Jornada do Campo Freudiano, Rosine e Robert Lefort (1995, p. 146) 
forneceram esclarecimentos acerca do termo “a-estrutura” ao dizerem que “ele assinalava 
a ausência de divisão do sujeito entre o Um e o Outro sem queda de um (a). O Outro do 
autismo ‘existe’ enquanto absoluto e sem corte”. No mesmo evento, esses autores 
10 
 
 
 
afirmaram que deixaram de empregar tal termo pelo fato de o considerarem “absoluto 
demais” (ibidem). Todavia, essa retificação não diminuiu o debate acerca da estrutura do 
autismo, pois este já havia se firmado. 
Atualmente, como nos relevam Pozzatto e Vorcaro (2014), há diferentes 
concepções teóricas e práticas a respeito das semelhanças e distinções nos quadros de 
autismo e psicose, que não são esclarecidas em muitos casos. Nesta pesquisa, 
consideramos que, se há diferentes posicionamentos a respeito da posição estrutural do 
autismo, isso deve ser debatido. Do mesmo modo, se existem pontos de aproximação e 
distanciamento entre o autismo e as psicoses, esses pontos precisam ser elucidados. 
Diante dessa problemática, o presente trabalho de pesquisa parte do pressuposto 
de que a clínica, a despeito de não ser o único espaço onde a psicanálise pode ser aplicada, 
é certamente um lugar adequado para investigar e interrogar suas teorias. Joel Birman 
(1989, pp. 196-197) contribui para essa colocação ao nos apontar que, “mesmo quando 
as hipóteses teóricas tenham a sua origem em outros espaços de elaboração, a sua inserção 
no dispositivo da clínica psicanalítica é um momento decisivo de consolidação da 
hipótese em pauta”. 
Isso posto, a pesquisa que orientou esta dissertação buscou estudar as diferentes 
concepções teóricas sobre o autismo propostas por autores do campo psicanalítico de 
orientação lacaniana e, do mesmo modo, analisar as aproximações e distanciamentos 
teóricos acerca do autismo e da psicose. Foi a partir dessas discussões que se pretendeu 
elucidar um ponto angular nesta pesquisa: até que ponto a questão estrutural diz sobre a 
direção do tratamento? Isto é, até que ponto incluir o autismo no campo das psicoses ou 
como uma categoria distinta implica a direção do tratamento? E foi a partir dessa questão 
que esta dissertação se fez. 
Desse modo, no projeto de pesquisa, foi utilizado como orientação metodológica 
o que Canguilhem (1975) define como trabalho de conceito: 
Trabalhar um conceito é fazer variar sua extensão e compreensão, generalizá-lo 
mediante a importação de traços de exceção, exportá-lo para fora de sua região de 
origem, tomá-lo como modelo ou, inversamente, fornecer-lhe um; em resumo, dar-
lhe progressivamente a função de uma forma (p. 256). 
A partir de uma epistemologia específica, essa posição baseia-se no princípio de 
que é preciso estender o conceito até seus limites e articulá-lo com outros conceitos, a fim 
de investigar até que ponto o conceito consegue ser fecundo (Calazans & Neves, 2010). 
Desse modo, o sentido de se interrogarem as proposições dos psicanalistas 
11 
 
 
 
acerca da questão estrutural do autismo é uma tentativa de elucidar efeitos que se têm no 
trabalho clínico em decorrência da posição teórica adotada pelo psicanalista. Em vista 
disso, dividimos esta dissertação em três capítulos e nas considerações finais. 
O primeiro capítulo, intitulado “A noção e o conceito de estrutura”, explora a 
origem desse termo no seio do movimento estruturalista até o momento quando Lacan o 
trouxe para o campo psicanalítico de forma a afastá-lo radicalmente de sua origem: a 
antropologia cultural. Além dessas modificações que Lacan introduziu no conceito de 
estrutura, houve alterações fundamentais no modo como ele fez uso de tal conceito ao 
longo do seu ensino. 
Ainda no capítulo 1, são discutidas não somente as diferentes formulações que 
Lacan postulou para falar sobre a constituição do sujeito, mas também como ele 
modificou o modo de se pensar a questão estrutural: se nos anos 1950 a estrutura 
carregava ainda uma dureza de origem do movimento estruturalista, ao longo dos anos a 
noção de estrutura se flexibilizou acompanhando os novos modos de se pensar o sujeito. 
Sob o título “Autismo: aproximações e distanciamentos para com a clínica da 
psicose”, o segundo capítulo tem como objetivo apresentar as proposições de dois autores 
a respeito da constituição do sujeito autista e sua relação com a estrutura psicótica. Os 
estudiosos escolhidos para tal empreitada foram Jean-Claude Maleval e Éric Laurent. A 
escolha por discutir a questão estrutural do autismo a partir das proposições desses dois 
autores se deu devido ao fato de eles se apresentarem como pesquisadores no âmbito 
internacional que recorrentemente expõem seus trabalhos sobre essa temática. Por esse 
motivo, e sabendo dos estudos de Laurent e Maleval há uma seção destinada a cada um 
desses autores, a fim de apresentar como cada um deles concebe a constituição do sujeito 
autista e em quais aspectos aproximam ou distanciam o autismo do campo das psicoses. 
Nesse momento, os conceitos psicanalíticos já discutidos no primeiro capítulo sobre a 
constituição do sujeito são fundamentais. 
 No terceiro capítulo, denominado “A questão estrutural e a direção do 
tratamento”, o foco da discussão recai sobre as possibilidades de tratamento clínico de 
sujeitos autistas. Para essa empreitada, são utilizadas as contribuições de Jean-Claude 
Maleval, Éric Laurent, Alfredo Zenoni, Ângela Vorcaro, Tânia Ferreira, Maria Cristina 
M. Kupfer, Cristina Keiko, Carina Faria, Ana Beatriz Freire e Angélica Bastos no que 
concerne à especificidade do tratamento com esses sujeitos. 
Após esse percurso de estudo, chegamos às considerações finais, detendo-nos 
nas consequências das diferentes perspectivas acerca da estruturação do sujeito autista, 
12 
 
 
 
bem como na articulação entre a direção do tratamento e a estruturação do sujeito autista. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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CAPÍTULO 1 – A NOÇÃO E O CONCEITO DE ESTRUTURA 
 
Frente à interrogação teórica no que se refere à questão estrutural do autismo e 
suas implicações na prática clínica e, consequentemente, na direção do tratamento, o 
objetivo deste capitulo é discutir a acepção de estrutura em psicanálise. Além disso, ao 
longo deste, buscaremos destacar os principais elementos que aproximam e diferenciam 
as estruturas postuladas por Freud, para que, no capítulo seguinte, possamos interrogar 
como se relacionariam ou não com o autismo. 
O termo estrutura advém do latim structura e originalmente é utilizado para 
designar a forma como um edifício é construído. O sentido empregado para esse termo se 
expandiu com o passar dos anos até que, no século XIX, se estendeu ao campo das 
ciências humanas. Em 1900, em “A interpretação dos sonhos”, Freud começou a utilizar 
a noção de estrutura para se referir a um conjunto de elementos configurados seguindo as 
relações de uma ordem (Kaufmann, 1996). Nesse texto, Freud explica que a estrutura do 
aparelho psíquico é formada pelo inconsciente, a consciência, a censura que os separa, 
pelo fato de uma atividade inibir outra, e pelas relações das duas atividades com a 
consciência. Logo, Freud utilizava-se da noção de estrutura para caracterizar o aparelho 
psíquico. 
Porém, o conceito de “estruturas clínicas”, tal como utilizado atualmente na 
psicanálise, só surgiu posteriormente. O neologismo “estruturalismo”, por sua vez, foi 
empregado em 1928, no I Congresso Internacional de Linguística, porJakobson, quando 
este fazia uma referência a Ferdinand Saussure. Esse último foi o fundador da linguística, 
e Jakobson era um dos seus seguidores linguistas e pioneiro da análise estrutural da 
linguagem. Assim, foi a partir da linguística que esse movimento teve início. 
Apesar de Saussure ser indicado como o fundador do estruturalismo, ele usou o 
termo “estrutura” apenas três vezes durante o “Curso de linguística geral”, cabendo, na 
verdade, à Escola de Praga, nos nomes dos linguistas Trubetzkoy e Jakobson, a difusão 
dos termos (Barros, 2012). O êxito desse movimento na França foi decorrente, sobretudo, 
do encontro frutífero entre Jakobson e o antropólogo estruturalista Lévi-Strauss em 1942. 
Esse encontro aconteceu em Nova York quando Jakobson assistiu aos cursos de Lévi-
Strauss sobre o parentesco e Lévi-Strauss frequentou o curso sobre o som e o sentido 
apresentado por Jakobson. A partir desse encontro, um iria influenciar os trabalhos 
posteriores do outro. Assim, nasceu o triunvirato estruturalista no qual Lacan se apoiou 
inicialmente: Lévi-Strauss, Jakobson e Saussure. 
14 
 
 
 
O estruturalismo se constitui como um movimento de pensamento e um método 
de análise praticado especialmente nas ciências humanas. O movimento estruturalista 
concentrava-se no uso da razão, a fim de entender como o homem é determinado por 
estruturas sociais, psicológicas e culturais (Barros, 2012). Segundo Coelho (1967), há 
uma pluralidade de estruturalismos, sendo o de Lévi-Strauss diferente do de Lacan, do de 
Greimas, do de Barthes etc. O que se apresenta como ponto em comum entre esses autores 
é o fato de o estruturalismo lançar contribuições para o desenvolvimento de suas teorias 
e o que afasta radicalmente a psicanálise lacaniana desse movimento é, principalmente, o 
fato de Lacan embasar sua teoria em uma aposta no sujeito. Para esta pesquisa, o 
importante neste capitulo é entender que estrutura é essa, a qual Lacan postulou. 
 
1.1 Aproximações da psicanálise lacaniana com o estruturalismo 
 
Em 1953, Lacan tomou conhecimento das produções de Saussure relacionadas à 
linguística, sobretudo a partir da obra de Lévi-Strauss. Lacan se interessou pelas ideias de 
Saussure e buscou aprofundar seu conhecimento com a leitura do “Curso de linguística 
geral”. Essa leitura teve consequências diretas para o ensino de Lacan, já que, em 1957, 
em um pronunciamento, ele fez uso de um vocabulário novo, oriundo de Saussure. Esse 
pronunciamento, intitulado “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, 
foi publicado em 1966 em Escritos. Neste, já é possível identificar o quanto esse autor foi 
influenciado pela linguística mesmo que apresentando modificações em suas 
conceituações centrais, tais como a noção de estrutura, as figuras retóricas metáfora e 
metonímia e o algoritmo saussuriano. 
 Em “Observações sobre o relatório de Daniel Lagache: ‘Psicanálise e estrutura da 
personalidade’” (1960a[1958]/1998), Lacan conceitua o termo “estrutura”, destacando-o 
como uma máquina que põe em cena o sujeito. Nas palavras de Lacan 
(1960a[1958]/1998): 
Pois é ou não é o estruturalismo aquilo que nos permite situar nossa experiência 
como o campo em que isso fala? Em caso afirmativo, “a distância da experiência” 
da estrutura desaparece, já que opera nela não como modelo teórico, mas como a 
máquina original que nela põe em cena o sujeito (p. 655). 
Lacan articula e estende o termo “estrutura” à teoria psicanalítica estabelecendo a 
relação entre o sujeito e a estrutura a partir das elaborações freudianas. Para esse autor, 
ao analisar as formações do inconsciente – lapsos, chistes, atos falhos, transferências, 
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sonhos e sintomas –, podemos identificar que a estrutura do inconsciente “é estruturada 
como uma linguagem” (Lacan, 1965/1998, p. 882). Já a linguagem é estruturada a partir 
da articulação dos significantes entre si com seus mecanismos de metáfora e metonímia. 
Por ser estruturada como linguagem, a lógica do inconsciente segue os mesmos 
mecanismos. Miller (1988) nos indica que a aproximação de Lacan com o estruturalismo 
é uma tentativa de 
[...] formalizar a estrutura que sustenta a fenomenologia da experiência analítica. É, 
evidentemente, uma estrutura complexa, pois os fenômenos que ocorrem na 
experiência analítica dão, à primeira vista, a impressão de que não podem estar 
estruturados, mas a metáfora [condensação] pode ser estruturada, a metonímia 
[deslocamento] pode estar estruturada, o equívoco pode estar estruturado, a função 
do Outro na delimitação do sentido pode estar estruturada (p. 44). 
Desse modo, a aproximação de Lacan com o movimento estruturalista tem como 
um dos frutos para a psicanálise o fato de esse autor conseguir explicar a lógica de 
funcionamento do inconsciente mediante a apropriação e ampliação de postulados do 
estruturalismo linguístico. 
Além da apropriação dos mecanismos da metáfora e metonímia, outra ideia 
tomada como empréstimo da linguística foi o conjunto dos significantes. Ferdinand de 
Saussure postulou o signo linguístico como sendo dividido em duas partes: o significado 
e o significante. O segundo seria a imagem acústica de um conceito e o primeiro, o 
conceito em si. Para Saussure, a palavra não remete diretamente à coisa, mas sim à ideia 
da coisa (significado) e a um som (significante). O signo linguístico de Saussure foi 
pensado com o significado acima do significante e separados pela barra de significação. 
Lacan apropriou-se do signo linguístico saussuriano e inverteu a posição conferida ao 
significante e ao significado dando maior ênfase ao primeiro. Lacan destacou em sua 
teoria que cada significante remete a outro significante formando, assim, uma cadeia. 
Deduziu, além disso, que o significante se separa do significado e continua sendo 
relevante para o desenvolvimento da cadeia de discurso promovendo significação para o 
sujeito (Roudinesco & Plon, 1944/1998). Por esse motivo, Lacan dá ao sujeito, em seu 
grafo do desejo, o mesmo lugar do significado. 
Em “Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano” 
(1960b/1998, p. 814), Lacan interroga: “Uma vez reconhecida a estrutura da linguagem 
no inconsciente, que tipo de sujeito podemos conceber-lhe?” O sujeito pode ser 
reconhecido no intervalo dos significantes, na descontinuidade da cadeia. Ele é efeito da 
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cadeia; é efeito da relação entre significantes. “Por esse efeito, ele não é causa dele 
mesmo, mas traz em si o germe da causa que o cinde. Pois sua causa é o significante sem 
o qual não haveria nenhum sujeito no real” (Lacan, 1964[1960]/1998, p. 849). Essa 
questão se apresenta como um ponto de distanciamento entre a estrutura lacaniana e a do 
movimento estruturalista, uma vez que, para Lacan, a estrutura é efeito e preexiste a cada 
sujeito, diferentemente para o movimento estruturalista, que a entende como uma 
construção (Martinho, 2012). 
Além disso, outra divergência entre essas duas correntes teóricas é que a estrutura 
dos estruturalistas não considera o Real como aquilo que resiste à simbolização. A ênfase 
dada ao registro do Real a partir de O Seminário 20 (Lacan, 1972-1973/1985) é um marco 
na teoria lacaniana. A transmissão desse registro passa a ser possível quando Lacan, em 
um diálogo com a matemática, faz uso da topologia dos nós. O recurso dos nós apresenta, 
conforme Lacan, a possibilidade de colocar o registro do Real em primeiro plano sem, no 
entanto, estabelecer hierarquia entre os registros. Nesta seção, em relação à topologia dos 
nós, o que nos interessa é que Lacan se refere ao nó como uma estrutura que comporta o 
Real. Essa colocação implica uma segunda ruptura entre a psicanálise e o estruturalismo. 
Por não considerar o Real, a estrutura para o movimento estruturalista traz a marca de 
uma completude entre o significante e o significado, não dando margem para o 
aparecimentodo sujeito do inconsciente. Dessa forma, o conceito de estrutura está 
relacionado à ideia de totalidade para o estruturalismo, sendo tal noção incompatível com 
a psicanálise. Por não incluir o sujeito em suas análises, a estrutura do movimento 
estruturalista faz referência à completude e à coerência. Por outro lado, a psicanálise, por 
levar em consideração, sobretudo, o sujeito do inconsciente, admite uma falta na 
estrutura, um Real que resiste à simbolização. Por isso, a estrutura que a abordagem 
psicanalítica considera é necessariamente incompleta. 
Todavia, apesar desses pontos de divergência, há uma característica fundamental 
da estrutura que está presente nas diferentes propostas teóricas: a pretensão da estrutura 
de manter uma constância. Cada estrutura apresenta características que tendem a se 
manterem e é o modo como essas características se articulam que particulariza cada 
estrutura. Vladimir Safatle (2000) formula, em seu artigo intitulado “O circuito fetichista 
do desejo e seus restos”, três fatores necessários para se construir uma estrutura. Para esse 
autor, o primeiro fator seria uma multiplicidade, isto é, um conjunto de elementos a serem 
estruturados, cujo estatuto poderá ser percebido por retroação. Nesse primeiro fator, 
Safatle (2000) destaca, portanto, que a estrutura é percebida somente a posteriori, assim 
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como a multiplicidade inconsistente é fundamental para a ação da estrutura. O segundo 
fator destacado diz respeito à necessidade de uma regra que seja capaz de estabelecer 
condições para que a multiplicidade de elementos inconsistentes passe a ser articulada 
tornando-se um conjunto consistente. O terceiro e último fator se refere a um fundamento 
para a regra, pois ela possui uma posição específica no interior da estrutura. Se, por um 
lado, a regra articula a estrutura desdobrando-a na multiplicidade, por outro, ela é 
exatamente o que não pode ser articulado no interior da estrutura. 
Por fim, Vladimir Safatle (2000) destaca dois procedimentos essenciais para se 
construir uma estrutura: uma articulação interna e uma fundamentação externa. Para esse 
autor, a metonímia faz a função do primeiro e a metáfora, do segundo, assim como o 
desejo e a função do sujeito podem exercer essas funções, respectivamente. Mas, afinal, 
o que seria uma estrutura aplicada ao campo analítico? Quais os elementos necessários 
para se pensar em uma estrutura psíquica? 
 
1.2 A noção de estrutura na clínica 
 
Iremos percorrer neste tópico a noção de estrutura na clínica ao longo do ensino 
lacaniano e os elementos destacados como relevantes para se fazer um diagnóstico 
diferencial estrutural a partir do modo como Lacan pensa a constituição do sujeito. Assim 
sendo, é preciso destacar que, ao longo de seu ensino, há alterações fundamentais na 
forma como esse autor concebe a constituição do sujeito. Podemos situar que o ensino de 
Lacan pode ser dividido em três períodos conforme Miller (1996): o primeiro período, 
correspondendo ao ensino nos anos de 1950, chamado de campo da linguagem, época em 
que Lacan utilizava, sobretudo, o complexo de Édipo para trabalhar com a constituição 
subjetiva; o segundo período, nos anos de 1960, corresponde à época da invenção do 
objeto a e das operações de alienação e separação; por fim, o último período, nos anos de 
1970, Miller (1996) o caracteriza como o campo do gozo, época quando Lacan articulou 
a topologia dos nós. 
Além disso, é primordial destacar que a constituição do sujeito é um dos aspectos 
significativos para se discutir o diagnóstico diferencial-estrutural, mas não é o único. A 
relação transferencial e os efeitos terapêuticos são igualmente necessários para se 
empreender essa diferenciação. Por esse motivo, esses aspectos serão trabalhados no 
capítulo posterior, ficando este com o objetivo de discutir a diferenciação a partir da 
constituição subjetiva. 
18 
 
 
 
 
1.2.1 Diagnóstico diferencial estrutural nos anos de 1950 
 
De forma didática, podemos demarcar que, até os anos 1960, Lacan utilizava as 
categorias clássicas da psiquiatria, principalmente aquelas oriundas do ensino de 
Clérambault (Figueiredo & Machado, 2000). No entanto, Lacan trabalhava de modo 
peculiar com as categorias psiquiátricas, uma vez que fazia uso destas de maneira 
estrutural. Melhor dizendo, nessa época, Lacan tentava pensar a estrutura do sujeito a 
partir dos tipos descritivos segundo a nosografia/nosologia freudiana de modo a perceber 
como esse mesmo sujeito lidava com a castração e a norma fálica. Figueiredo e Machado 
(2000) destacam que Lacan, antes mesmo de se vincular ao movimento estruturalista, era 
um psicanalista freudiano; portanto, seu modo de entender as estruturas clínicas levava 
em conta o inconsciente e, consequentemente, o trabalho em análise por via 
transferencial. Dessa maneira, Figueiredo e Machado (2000, p. 70) enfatizam que a busca 
de Lacan pela estrutura “não era apenas uma veleidade teórica, uma tentativa de inserir a 
psicanálise na onda estruturalista. Esta preocupação revelava também um rigor teórico 
que implicava uma nova prática”. 
 Desse modo, Lacan toma de empréstimo as categorias clássicas da psiquiatria e as 
amplia aos postulados psicanalíticos reduzindo-as em grandes campos: neurose, psicose 
e perversão. O imenso destaque ao ensino de Lacan nessa época foi o fato de ele articular 
as categorias psiquiátricas aos termos pinçados dos textos freudianos, a saber: Verwerfung 
(foraclusão), Verdrangung (recalque) e Verneinung (desmentido). 
Lacan parte da teorização feita por Freud no que tange à formulação do complexo 
de Édipo. Se, em Freud, essa teoria é utilizada para dizer de uma representação 
inconsciente de um desejo e de sua necessária proibição, após a releitura do Édipo feita 
por Lacan, este ganha um destaque ainda maior como um momento crucial da 
constituição do sujeito. Será a partir da relação edípica que o sujeito, frente à identificação 
primordial com a mãe, se posicionará perante a lógica fálica e a proibição marcada pela 
lei do pai. Lacan, em sua teorização, vai formular que há três diferentes modos de defesa 
– a foraclusão, o recalque e o desmentido – frente ao insuportável da castração, e é 
utilizando-se destes que o psicanalista irá diferenciar as três estruturas. Assim, como 
enfatiza Lacan (1974/1993, p. 55), o mito edípico é “a tentativa de dar forma épica ao que 
se opera da estrutura”. 
Em sua releitura do Édipo, Lacan (1957-1958/1999) propõe três tempos para se 
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pensar uma constituição da posição subjetiva da criança frente ao desejo materno. Esse 
autor nos adverte que o primeiro tempo se trata de uma etapa fálica primitiva, em que a 
metáfora paterna age por si devido à primazia do falo que já está em voga. Entretanto, 
nesse tempo, a criança “só pesca o resultado” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 198); isto é, a 
metáfora do pai, apesar de já estar presente, ainda não é percebida pela criança. 
Nesse primeiro momento, a mãe, no lugar de primeiro Outro para a criança, lhe 
endereça os primeiros significantes, é responsável pela satisfação de suas necessidades e 
é com ela que se têm as primeiras trocas de carinho. Devido a essa proximidade, o bebê 
mantém com ela uma relação de sujeição. A criança assujeita o seu desejo ao desejo da 
mãe buscando identificar-se com o que supõe ser objeto de desejo dela. A criança entende 
apenas que, a fim de satisfazer a mãe, para ocupar o lugar de objeto do seu desejo, “é 
necessário e suficiente ser o falo” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 198). Portanto, o primeiro 
tempo do Édipo trata-se disto: a criança busca identificar-se com o que supõe ser objeto 
de desejo de sua mãe, o falo. 
No segundo tempo do complexo de Édipo, a criança percebe que há algo da ordem 
do pai que possa vir a fazer uma interdição. Lacan (1957-1958/1999, p. 171) nos adverte 
que “falar do Édipo é introduzir comoessencial a função do pai” na medida em que o pai, 
ou melhor, seu nome, marca a interdição desta relação fechada mãe-criança. Lacan (1957-
1958/1999) acrescenta: 
O Nome-do-Pai, no que ele funda como tal o fato de existir a lei, ou seja, a 
articulação numa certa ordem do significante – complexo de Édipo, ou lei do Édipo, 
ou lei da proibição da mãe. Ele é o significante que significa que, no interior desse 
significante, o significante existe (p. 153). 
Portanto, o Nome-do-Pai se constitui como uma metáfora na medida em que o pai 
não precisa estar presente materialmente para que a interdição seja feita, uma vez que ele 
se faz presente através do discurso da mãe. Dessa forma, nesse segundo tempo do 
complexo de Édipo, a função paterna introduz a castração realizando o corte na relação 
fusional mãe e filho. Esse corte se dá em dois planos: o pai interdita e proíbe a mãe; já a 
criança é frustrada e privada pelo pai. 
Em relação à interdição e privação da mãe, Lacan (1957-1958/1999) nos esclarece 
que o fundamento do complexo de Édipo se passa exatamente no nível da interdição que 
o pai faz à mãe, pois essa interdição se refere à proibição da lei do incesto. Assim, “é por 
toda a sua presença, por seus efeitos no inconsciente, que ele realiza a interdição da mãe” 
(Lacan, 1957-1958/1999, p. 174-175). Do mesmo modo, o pai proíbe a mãe. Proíbe na 
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medida em que, “como objeto, ela é dele, não é do filho” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 
178). É exatamente nesse ponto que o pai frustra e priva o filho, por demarcar que ele tem 
direito à mãe, gerando uma rivalidade. 
Eis um outro patamar, o da frustração. Nesse, o pai intervém como detentor de um 
direito, e não como um personagem real. (...) Nesse ponto, é o pai como Simbólico 
que intervém numa frustração, ato imaginário concernente a um objeto muito real, 
que é a mãe, na medida em que a criança necessita dela. (...) Trata-se então do pai 
como aquele que se faz preferir em lugar da mãe (...). É na medida em que o pai se 
torna um objeto preferível à mãe, seja por que vertente for, pelo lado da força ou 
pelo da fraqueza, que pode estabelecer-se a identidade final (Lacan, 1957-
1958/1999, p. 178-179). 
Assim, o segundo tempo do complexo de Édipo marca a intrusão da metáfora 
paterna na relação fusional mãe-filho característica do tempo anterior. Se, no início, a 
criança ocupa o lugar de objeto de desejo, de falo da mãe, no segundo tempo, com a 
entrada da metáfora, a criança vacila entre ser e ter o falo. Na medida em que a criança 
percebe que a própria mãe é dependente da lei, “a criança é, de agora em diante, forçada 
pela função paterna a aceitar não somente não ser o falo, mas também não tê-lo, assim 
como a mãe” (Dor, 1989, p. 87). É a partir do momento quando a criança percebe que a 
mãe também está submetida à lei do desejo e que o pai é suposto ter o falo que a criança 
é confrontada com a questão da castração, tendo, então, a possibilidade de aceder à 
simbolização da lei. 
O terceiro tempo é marcado pelo declínio do complexo de Édipo e pela 
simbolização da lei. Nesse tempo, a criança já reconhece que não pode ser o falo, 
passando a negociar a problemática do ter. Nesse momento, o pai não é mais visto como 
aquele que priva a mãe do falo, mas sim como aquele que o detém. Por conseguinte, tal 
como a mãe que não tem o falo, a criança tem a possibilidade de “cobiçá-lo lá onde ele 
se encontra” (Dor, 1989, p. 88). 
A problemática do ter o falo coloca em jogo a identificação com um dos sexos. 
No caso do menino, ao renunciar a problemática de ser o falo materno, ele tem a 
possibilidade de engajar-se na dialética do ter, identificando-se com o pai, que é suposto 
tê-lo. De outro modo, a menina, ao renunciar a dialética do ser o falo materno, depara-se 
com a dialética do ter sob a forma do não ter. Isto é, identifica-se com a mãe, que também 
não tem o falo, e irá buscar, como ela, no lugar onde é suposto tê-lo – ao lado do pai. 
21 
 
 
 
Portanto, para que a dialética do ter o falo apareça, é imprescindível a entrada do Nome-
do-Pai na relação mãe-criança ocasionando um corte nessa relação. 
Do mesmo modo, a definição da estrutura subjetiva se dá frente à posição do 
sujeito perante o Nome-do-Pai. Se na neurose a metáfora paterna opera, sendo possível a 
efetivação dos três tempos do Édipo, com o recalque do significante do Nome-do-Pai, na 
psicose há um impasse no segundo tempo do Édipo: no momento em que o significante 
da lei do pai vem para barrar o desejo da mãe na neurose, na psicose esse significante não 
comparece, não opera. 
Lacan pinça dos textos freudianos o termo Verwerfung, do qual propõe a tradução 
definitiva de forclusion. Em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da 
psicose”, Lacan (1957-1958/1998) nos esclarece: 
A Verwerfung será tida por nós, portanto, como foraclusão do significante. No 
ponto em que veremos de que maneira é chamado o Nome-do-Pai, pode, pois, 
responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do efeito 
metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica (p. 
564). 
 O termo foraclusão, segundo Quinet (1997/2014), não é propriamente uma 
tradução do termo francês forclusion proposto por Lacan para equivaler ao termo 
freudiano Verwerfung, mas um neologismo utilizado na língua portuguesa para dizer que 
o significante da lei está incluído fora. Forclusion é do vocabulário jurídico e se refere a 
um processo que está acabado legalmente; isto é, que não se pode apelar por ter perdido 
o prazo legal (Quinet, 1997/2014). Assim, Lacan se apropria do termo para dizer da não 
inclusão do significante Nome-do-Pai no Simbólico. 
Sendo a simbolização decorrente da inscrição do Nome-do-Pai no Outro, sua não 
inscrição implica a abolição da lei simbólica. Devido a essa abolição, o sujeito não é 
submetido à castração, resultando, com isso, a impossibilidade de advir à significação 
fálica. O Nome-do-Pai é, além disso, o significante que proporciona ao sujeito a 
articulação da cadeia de significantes. Sua não inscrição ocasiona os distúrbios de 
linguagem, fenômeno que é marcante na psicose, em especial a alucinação. Em relação a 
isso, o que é destacado por Lacan é o fato de a alucinação psicótica ser verbal, pois se 
trata da alucinação do verbo, e não de um fenômeno meramente sensitivo. 
Quinet (1997/2014, p. 17) nos esclarece isso ao dizer que, na alucinação verbal, 
“a cadeia significante se impõe ao sujeito em sua dimensão voz, manifestando-se a partir 
de uma atribuição subjetiva”. Fica evidente, a partir dessas considerações, é que, 
22 
 
 
 
diferentemente da neurose em que o Outro se apresenta de modo velado, inconsciente, o 
Outro, na psicose, se manifesta de maneira maciça, uma vez que este não foi barrado pelo 
significante da castração. Assim, devido à carência desse significante, o Outro ao qual o 
sujeito psicótico está submetido é um Outro absoluto, não barrado; daí, o gozo do Outro 
como característico da psicose. Por isso, diferentemente do neurótico que habita na 
linguagem, o sujeito psicótico é habitado, possuído por esta (Quinet, 1997/2014). 
 Frente a esse Outro absoluto, vazio de significação, o sujeito psicótico constrói 
sua própria realidade para dar conta da significação inexistente e, então, explicar a sua 
experiência. Lacan apoia-se na perspectiva de Freud (1911/2010) de que o delírio seria 
uma tentativa de cura, a fim de embasar sua teoria de que o delírio se constitui como uma 
alternativa de trabalho encontrada pelo sujeito psicótico, que, portanto, deve ser escutado, 
e não abolido. 
No texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível na psicose” 
(1957-1958/1998), Lacan ampara-se na construção do sistema delirante do presidente 
Schreber, para nos indicar que a estabilização na psicose se apresenta como uma 
possibilidade via metáfora delirante. Esse autor nos explicaque a estabilização se torna 
possível quando há uma construção de uma nova realidade a partir do delírio. Por esse 
motivo, a estabilização se apresenta como “uma operação que circunscreve, localiza, 
deposita, separa ou apazigua o gozo, correlativa de uma entrada em algum tipo de 
discurso, por mais precário que ele seja” (Alvarenga, 2000, p. 18). Portanto, a 
estabilização é o que há de mais próximo de uma cura possível da psicose. 
 Diante do que foi apresentado acerca do primeiro momento do ensino lacaniano 
no que diz respeito à constituição subjetiva amparada na teoria do complexo de Édipo, o 
que se evidencia neste são as diferenciações ressaltadas por Lacan entre o mecanismo da 
psicose e da neurose, entre o recalque e a foraclusão. O eixo central dos estudos se refere 
às articulações com o significante Nome-do-Pai. É o fato deste o significante retornar a 
partir de fora do Simbólico, ou seja, do Real, que sustenta o jargão psicanalítico do 
“inconsciente a céu aberto” na psicose. 
 
 
 
 
 
 
23 
 
 
 
1.2.2 Década de 1960: As operações de alienação e separação e o objeto a 
 
O “Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais” (Lacan, 1964/1988) 
representa um marco na teoria lacaniana por, principalmente, três motivos. Primeiro, 
porque este foi lançado em 1964, cerca de um mês após Lacan deixar a International 
Psychoanalytical Association (IPA). O segundo motivo deve-se ao fato de esse Seminário 
demarcar o início do que Lacan chama de “seu ensino”. Esse Seminário demarca também 
o momento quando Lacan, por intermédio do recurso à topologia, passa a transmitir a 
clínica do Real. Além disso, nesse Seminário, Lacan apresenta uma nova elaboração para 
se pensar a constituição do sujeito a partir de duas operações fundamentais, denominadas 
alienação e separação. 
No Seminário 11, a operação da alienação fica apenas melhor demarcada do ponto 
de vista lógico, porque esta já havia sido dita em trabalhos anteriores. Nesse Seminário, 
o que é realmente nova é a introdução da separação. Essa última operação põe em cena o 
desejo do sujeito: “requer que o sujeito ‘queira’ se separar da cadeia significante” como 
aponta Soler (1997, p. 62). Essas operações são destacadas como uma nova possibilidade 
de leitura da constituição do sujeito em que o Nome-do-Pai perde a centralidade para o 
sujeito. 
A fim de elucidar essas operações, faz-se necessário enfatizar a importância da 
relação que se estabelece entre o sujeito e o Outro. Em “Posição do inconsciente no 
Congresso de Bonneval” (Lacan, 1964[1960]/1998, p. 849), Lacan enfatiza que “o efeito 
da linguagem é a causa introduzida no sujeito. Por esse efeito, ele não é causa dele mesmo, 
mas traz em si o germe da causa que o cinde”. Nessa colocação, Lacan ressalta que não é 
possível ao sujeito ser causa de si mesmo, mas que é essencial uma iniciativa vinda do 
Outro. O sujeito, ainda em iminência de aparecer, é inicialmente suposto, desejado e 
falado pelo Outro. Esse primeiro Outro pode ser encarnado na figura dos pais, ao passo 
que, na grande maioria das vezes, estes desejam a criança, endereçam-lhe significantes 
antes mesmo de esta nascer, dando-lhe um nome, falando de suas expectativas e do que 
esperam dela. Aos poucos, os pais vão delimitando um lugar no campo da linguagem para 
essa criança; um lugar singular que não poderia ser ocupado por outro sujeito. Sobre isso, 
Lacan (1964/1988, p. 207) nos indica que “o sujeito aparece primeiro no Outro, no que o 
primeiro significante, o significante unário, surge no campo do Outro, e no que ele 
representa o sujeito para um outro significante”. Dessa forma, é no campo do Outro – 
como lugar dos significantes, da fala e da linguagem – que o sujeito se constitui. 
24 
 
 
 
 
Figura 1. Representa o Outro endereçando significantes ao campo do Sujeito. 
 
Fonte: Baseado em Lacan (1968/1988, p. 201). 
 
Esse primeiro tempo, quando o Outro endereça significantes ao sujeito, equivale 
ao momento de alienação elementar do sujeito à linguagem, ao primeiro significante. 
Pode-se dizer que, nessa situação, o sujeito já está inserido na linguagem mesmo que 
ainda não articule um discurso –, pois, para isso, é preciso um deslizamento na cadeia do 
significante, que só será possível com o advento do S2. 
 
Figura 2. O Sujeito está alienado ao primeiro significante, enquanto que o S2 surge no 
campo no Outro. 
 
Fonte: Soller (1997, p. 61). 
 
Visando a ilustrar a escolha na qual o sujeito é convocado a fazer na alienação, 
Lacan (1964/1988) faz uso de um exemplo denominado “A bolsa ou a vida”. Esse 
exemplo se refere à situação de um assalto quando o sujeito é impelido a fazer uma 
escolha entre a bolsa ou a vida. Trata-se, portanto, de uma escolha forçada, que, de todo 
modo, implicará uma perda para o sujeito, uma vez que, se o sujeito escolhe a vida, perde 
a bolsa. Se o sujeito escolher a bolsa, perde ambas, pois não estará vivo para poder fazer 
uso dela. Lacan (1964/1988, p. 200) nos adverte que, “qualquer que seja a escolha que se 
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opere, há por consequência nem um, nem outro. A escolha aí é apenas a de saber se a 
gente pretende guardar uma das partes, a outra desaparecendo em cada caso”. 
 
Figura 3. Lacan ilustra a alienação a partir do exemplo “a bolsa ou a vida”. 
 
Fonte: Lacan (1964/1988, p. 202). 
 
Lacan (1964/1988) faz uso desse exemplo para explicar que, na alienação, trata-
se de uma escolha forçada entre o ser – situado no campo do Sujeito – e o sentido – 
situado no campo do Outro –, pois não há possibilidade de o sujeito escolher um sem 
abdicar do outro. Qualquer que seja a escolha que o sujeito realize, sempre haverá uma 
perda; “de qualquer modo, fica desfalcado” (Lacan, 1964[1960]/1998). 
Figura 4. A interseção representa a perda do Sujeito em qualquer uma das escolhas. 
 
Fonte: Baseado em Lacan (1968/1988, p. 201). 
 
Para Lacan, na operação de alienação, o que está em jogo é o sentido ou o não 
sentido/não senso, derivados da articulação da cadeia significante, do S1-S2. Se o sujeito 
escolher o ser, perde o sentido, uma vez que só é possível obter o sentido na relação com 
o Outro, já que é no campo do Outro que há o advento do S2 (significante que vem 
significar o S1). Soler (1997, p. 61) esclarece isso ao dizer que “o sujeito tem uma só 
escolha entre petrificar-se num significante ou deslizar no sentido, porque, quando se tem 
26 
 
 
 
um elo entre os significantes (S1 e S2), tem-se sentido”. Desse modo, ao escolher o ser, 
o sujeito escolhe não se alienar ao Outro enquanto desejo, petrificando-se no significante 
unário. 
Figura 5. Ilustração de quando o sujeito escolhe o ser e petrifica-se no primeiro 
significante. 
 
Fonte: Baseado em Soller (1997, p. 61) 
 
Por outro lado, se o sujeito aceita se alienar ao Outro, perde o ser. Isso porque, 
como consequência de escolher o sentido, o sujeito torna-se uma falta a ser, pois essa 
assujeição ao Outro implica ao sujeito a perda do ser – da consciência de si. Além disso, 
é importante destacar que, apesar da assujeição ao sentido, não é possível ao sujeito 
aceder a um sentido pleno na medida em que há um ponto de sem-sentido oriundo do 
Outro. Como destaca Lacan (1964/1988, p. 200), “escolhemos o sentido, e o sentido só 
subsiste decepado dessa parte de não senso que é, falando propriamente, o que constitui 
na realização do sujeito, o inconsciente”. 
Figura 6. O sentido, por surgir no campo do Outro, carrega um ponto de sem-sentido, de 
não senso. 
 
Fonte: Lacan (1964/1988, p. 201). 
27 
 
 
 
O sentido emerge, portanto, com o surgimento do S2, significante que vem prover 
significação ao desejo do Outro. Com o surgimento desse segundo significante, ocorre a 
queda do S1 no sem-sentido – caracterizando a repressão primária e constituindo o núcleo 
do inconsciente. 
Diante disso, Bruce Fink (1956/1998) nos indica que surge uma faltano sujeito 
devido à sua impossibilidade de ser totalmente representado no Outro. Esse autor nos 
revela que, após a escolha forçada da alienação ao Outro, há um encontro da falta do 
sujeito com a falta do Outro, uma “justaposição” das faltas. A princípio, o sujeito tenta 
instalar “sua falta a ser naquele lugar onde o Outro estava faltando” (Fink, 1956/1998, p. 
76); isto é, o sujeito se coloca como objeto do desejo do Outro. 
Figura 7. Há uma justaposição de faltas: tanto o Sujeito quanto o Outro estão barrados 
pela falta. 
 
Fonte: Baseado em Soller (1997, p. 63) 
 
Se na alienação o sujeito percebe a falta no Outro e tenta ocupar o lugar de objeto 
de desejo deste, na separação há uma tentativa do sujeito de se afastar. A separação só é 
possível devido às vacilações do discurso do Outro. É nas faltas, nas entrelinhas do 
discurso, que o sujeito vai perceber que há algo desse desejo do Outro que escapa, que 
não é possível saná-lo (Fink, 1956/1998). Lacan (1964/1988) nos esclarece: 
O desejo do Outro é apreendido pelo sujeito naquilo que não cola, nas faltas do 
discurso do Outro, e todos os porquês? Da criança testemunham menos de uma 
avidez da razão das coisas do que constituem uma colocação em prova do adulto, 
um por que será que você me diz isso? Sempre ressuscitado de seu fundo, que é o 
enigma do desejo do adulto (p. 203, grifos do autor). 
Ao perceber que o desejo do Outro vai além dele, o sujeito assume uma posição 
de separação. Essa posição implica ao sujeito tentar se afastar do lugar de objeto de desejo 
do Outro para assumir a posição de sujeito desejante. Colette Soler (1997, pp. 62-63) faz 
28 
 
 
 
sua contribuição ao dizer que a “separação supõe uma vontade de sair, uma vontade de 
saber o que se é para além daquilo que o Outro possa dizer, para além daquilo inscrito no 
Outro”. Segundo Lacan (1964[1960]/1998), a separação representa a “torção essencial”, 
o “retorno da alienação”, na medida em que na alienação o sujeito se coloca como objeto 
de desejo do Outro operando com a falta do Outro. Mas na separação, Lacan 
(1964[1960]/1998, p. 858, grifos do autor) explica que o sujeito passa a “operar com sua 
própria perda, a qual reconduz a seu começo”. Nessa última operação, ao mesmo tempo 
em que o sujeito se separa do Outro, da cadeia significante, ele tem a possibilidade de 
encontrar aí o seu lugar próprio entre os significantes, lugar onde ele terá a possibilidade 
de se haver com seu desejo até então desconhecido. 
Ao se separar da posição de objeto de desejo do Outro, há a queda do objeto a 
causa de desejo. Esse objeto a manifesta-se quando o S2 surge para significar 
retroativamente o primeiro significante, o S1. No entanto, apesar de aparecer com o 
surgimento do S2, somente há a queda do objeto a quando há um corte na relação do 
sujeito com o Outro, quando ocorre a separação. Nesse contexto, portanto, o objeto a 
pode ser entendido como um resto produzido a partir do corte desta relação do sujeito 
com o Outro. A queda desse objeto demarca a divisão do sujeito pela sua inserção na 
linguagem, na qual passará, a partir de então, a ser um sujeito faltoso. 
No Seminário 8, Lacan explica o objeto a usando como exemplo a fascinação de 
Alcibíades pela denominada “agalma” em Sócrates no texto “O Banquete”. Para Lacan, 
a agalma pode ser entendida como o objeto a, pois Lacan a interpreta como sendo a 
capacidade de Sócrates de desejar. Assim, na medida em que a agalma é entendida como 
uma certa coisa que desperta o desejo, ela pode servir como exemplo para explicar o que 
Lacan chama de objeto a causa do desejo. Fink (1956/1998, p. 84) ressalta que “o objeto 
a é o complemento do sujeito, um parceiro fantasmático que sempre desperta o desejo do 
sujeito”. 
 É na relação com o objeto a que o sujeito tem a ilusão fantasmática de 
completude. A fantasia, enquanto efeito da separação, proporciona para o sujeito uma 
“quantidade módica do que Lacan chama de ser” (Fink, 1956/1998, p. 84). Dessa forma, 
na análise de sujeitos neuróticos, o objeto a é evidenciado no discurso quando estes falam 
sobre o modo como desejam estar relacionados com o Outro. Se, na neurose, o sujeito se 
relaciona com o objeto a enquanto “parceiro fantasmático”, na psicose, a relação é de 
outra ordem (Fink, 1956/1998, p. 84). Isso porque, para que esse objeto advenha como 
resto da relação do sujeito com o Outro, é preciso que haja um corte nessa relação. Corte 
29 
 
 
 
que não acontece na psicose, pois o significante do Nome-do-Pai, aquele que barra a 
relação do sujeito com o Outro, não comparece e, por isso, a interdição simbólica não 
acontece. Assim, o sujeito psicótico permanece ocupando a posição de objeto de desejo 
do Outro. 
Por permanecer nessa posição, o objeto a – diferentemente da neurose que aponta 
a falta constituinte – para a psicose, irá demarcar o contrário: o excesso de presença, 
excesso de gozo do Outro, que não foi diluído nas redes do simbólico, devido à não 
efetivação da operação de separação na psicose. 
Após essa explanação das operações de alienação e separação, na neurose e na 
psicose, passaremos para o terceiro período da teoria lacaniana, no qual é o Real que se 
sobressai dando margem a um novo modo de se pensar não somente a constituição do 
sujeito, mas também a estruturação subjetiva. 
 
1.2.3 Década de 1970: a topologia dos nós 
 
Como é possível perceber, na década de 1950, a teoria lacaniana deu grande ênfase 
ao Simbólico. Era o momento marcado pela máxima do “inconsciente estruturado como 
linguagem” (Lacan, 1964/1988, p. 25) do foco no significante Nome-do-Pai enquanto 
decisivo para a constituição psíquica. Nessa época, a dimensão do Real já perpassava no 
ensino de Lacan, mas sua formalização se deu nos anos de 1970 quando o recurso à 
topologia, por meio dos nós, foi relevante para a inserção do Real junto ao imaginário e 
ao simbólico. Em “Simbólico, Imaginário e Real” (Lacan, 1953/2005), Serge Leclaire 
interroga Lacan sobre o Real pelo fato de este não ter sido apresentado tal como os outros 
dois registros. Em resposta, Lacan (1953/2005, p. 45) lhe diz que o Real “na experiência 
analítica, para o sujeito, é sempre o choque com alguma coisa, por exemplo, o silêncio do 
analista”. Parece-nos notório é que, nessa época, Lacan ainda não havia formulado um 
modo de transmissão do Real devido, principalmente, às características do Real de ser da 
ordem do impossível de ser apreendido pela linguagem, do que resiste à simbolização. 
Por isso, essa transmissão passou a ser possível somente por intermédio do recurso à 
topologia, particularmente a topologia dos nós. 
Lacan faz uso da linguagem matemática e da topologia, a fim de atingir o que não 
é possível apenas com o discurso. A topologia se apresenta como uma escritura que dá 
conta da experiência analítica e suporta o Real (Rodrigues, 2014). Além de tornar possível 
o enlaçamento dos três registros, a topologia dos nós possibilita a Lacan situar o Real na 
30 
 
 
 
medida em que “só a matematização atinge um real” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 178). 
Rodrigues (2014, p. 80) nos revela que “cada um dos registros do nó borromeano traz 
implicitamente propriedades como a ex-sistência que se refere ao Real, ou seja, ao não 
simbolizável, à não possibilidade de ter um Outro que seja consistente, sem furo”. 
Portanto, o nó borromeano é um tipo de escritura que transmite por “mostração” as 
possíveis relações entre o Real, o Simbólico e o Imaginário. 
Sobre esse nó, Lacan (1972-1973/1985) nos aponta que as rodelas estão 
superpostas, e não entrecruzadas, sendo enodadas de forma que as duas rodelas estão 
livres uma da outra; portanto, é necessária a terceira rodela para que haja a amarração. É 
a partir do momento quando o Real é enodado borromeanamente que os três registros se 
unem. Sobre isso, é importante salientarmos que, ao mesmo tempo que é preciso do Real 
para quehaja a amarração, o Real também só tem ex-sistência por encontrar nos outros 
dois registros seu limite (Guerra, Figueiredo, Borçato, Souza, & Andrada, 2008). Por esse 
motivo, Lacan afirma que o Real não se apresenta apenas como um terceiro nó, mas como 
um efeito da forma como essa amarração se dá. 
Em seu Seminário 22, Lacan (1974-1975) apresenta um quarto elemento 
necessário para que o nó se faça, postulado como nomeação. Esse elemento vem de 
encontro à necessidade de surgir no Simbólico algo que nomeia, que sustente o RSI. É o 
Nome-do-Pai, o pai enquanto nome, que surge como nomeador. 
Ainda nesse Seminário 22, Lacan (1974-1975) postula o Real, o Simbólico e o 
Imaginário como sendo Nomes-do-Pai, passando a grafá-los em maiúsculo. Além disso, 
articula os três registros à tríade freudiana – Angústia, Sintoma e Inibição –, para dizer 
das formas de nominação do que não funcionou a partir da função paterna, no caso da 
neurose, denominando a nomeação do Real como angústia, a nomeação Simbólica como 
sintoma e a nomeação Imaginária como inibição (Lacan, 1974-1975, p. 70). Desse modo, 
o quarto elemento – que pode ser a Angústia, o Sintoma ou a Inibição – possibilita o 
enlaçamento dos três registros funcionando como um Nome-do-Pai. Nesse momento do 
ensino de Lacan é importante destacar que apesardo Nome-do-Pai perder a centralidade 
no seu ensino, não há o abandono deste significante. Pelo contrário, Lacan faz questão de 
salientar que podemos prescindir do Nome-do-Pai “com a condição de nos servirmos 
dele” (Lacan, 1975-76, p. 132). Por isso, a partir desse entendimento, Lacan entende que 
não há somente um Nome-do-Pai, mas Nomes-do-Pai, passando a grafá-lo no plural. 
No caso da psicose, cabe ao sujeito inventar sua própria nomeação, denominada 
por Lacan como sinthoma. Essa nova grafia sinthoma é usada para demarcar uma 
31 
 
 
 
diferenciação em relação ao uso que Lacan faz do sintoma até então em seu ensino. Com 
essa nova grafia, Lacan aponta para a articulação entre a fala e o gozo, questão 
fundamental nesse último ensino. Se, na década de 1950, havia um destaque para a 
linguagem, nessa época, a própria concepção de linguagem se modificou na medida em 
que o gozo adquiriu prioridade sobre a estrutura da linguagem e, com isso, na década de 
1970 houve um destaque para a fala (Freire & Bastos, 2007). Em meio a essas novas 
conceituações, Lacan articula a fala que se encontra a serviço do gozo, que é destituída 
de sentido, nomeado por ele como lalíngua1. São os sons, os balbucios sem sentido, 
anteriores à própria linguagem, que inserem gozo no corpo do sujeito e deixam as marcas 
dos traços primordiais. Portanto, o sinthoma foi definido por Lacan como um 
acontecimento de corpo resultante das marcas deixadas pelos traços primordiais. 
Desse modo, o sinthoma se refere à nomeação primordial do sujeito, é o que dá 
sentido a existência do sujeito, é o que faz a função de enlaçar os três registros. No 
Seminário 23, intitulado “O Sinthoma” (1975-1976/2007, p. 21), Lacan faz uso desta 
figura apresentada a seguir, a fim de explicar que, “à esquerda, esquematiza o Imaginário, 
o Simbólico e o Real como separados uns dos outros. Vocês têm a possibilidade de ligá-
los. Com o quê? Com o sinthoma, o quarto”. A partir dessa nova leitura, as três rodelas 
estão sobrepostas, livres umas em relação às outras. O que dará sustentação ao nó 
borromeano será o quarto elemento, o sinthoma. Lacan (1975-1976/2007) explica que o 
sinthoma é uma forma de reparar um erro em que os aros não formam mais uma cadeia. 
Como é possível verificar na Figura 8, o sinthoma é o que está permitindo que os registros 
se mantenham unidos ao servir de suplemento ao Simbólico. Por isso, o sinthoma é 
conceituado por Lacan a partir de três funções: em sua função de enlaçar os três registros, 
como um acontecimento de corpo e, ao mesmo tempo, o sinthoma define a maneira de 
cada um gozar do inconsciente (Lacan, 1974-1975). Assim, o que se destaca nessa nova 
formulação, nesse último ensino, é que esse quarto elemento é uma invenção de cada 
sujeito. 
 
 
 
 
 
 
1 “Jacques Lacan inventou o termo ‘lalingua’ para tornar palpável o modo como a carne é tatuada pelo 
verbo muito antes que ele se estruture gramaticalmente em linguagem” (Ramirez, 2016 p. 191). 
32 
 
 
 
 
 
 
Figura 8. Os três anéis separados e, depois, ligados pelo sinthoma, o quarto anel. 
 
 
Fonte: Lacan (1975-1976/2007, p. 21). 
 
 Guerra et al. (2008) nos esclarecem que Lacan não chegou a uma definição quanto 
à formação do nó borromeano específico da psicose. Esses autores nos indicam que, ao 
discutir sobre a psicose, ora Lacan a relacionava ao nó do trevo (nó da paranoia), ora ao 
nó trivial (nó do trevo com erro), que carecia de uma suplência, ora a um nó a quatro, tal 
como o nó joyciano, em que o Imaginário se encontrava livre, e o Simbólico e o Real 
entrecruzados. Nesse último caso, a escrita literária de Joyce teria formulado um quarto 
nó, que possibilitou agregar ao seu nó características borromeanas. 
 
Figura 9. Nó de trevo (nó da paranoia), nó trivial (nó de trevo com erro) e nó joyciano. 
 
 
Fonte: Guerra et al. (2008). 
 
 Lacan, nesse Seminário 23 (1975-1976/2007), enfatiza que o nó borromeano não 
se constitui como um modelo a ser alcançado por meio da prática clínica, mas, antes, 
conforme pontuado por Guerra et al. (2008), como uma ferramenta para o manejo clínico. 
Assim, o nó borromeano se constitui como um recurso topológico encontrado por Lacan, 
33 
 
 
 
para a prática clínica, quando possibilita que o sujeito faça suas próprias amarrações. O 
que isso implica no caso da psicose? Esse desenvolvimento da teoria lacaniana reflete 
uma mudança de posição da psicose na medida em que não cabe mais explicá-la com base 
em uma carência do Nome-do-Pai, pois se trata, na psicose, de uma amarração singular 
tal como acontece na neurose e na perversão. Desse modo, o que fica evidente nesse 
terceiro período é algo de uma implicação do sujeito perante sua estruturação subjetiva. 
Após essa explanação acerca da questão estrutural da psicanálise e sua relação 
direta com o modo de pensar a constituição do sujeito, poderemos agora discutir a questão 
estrutural, especificamente, do autismo, com suas aproximações e distanciamentos com 
a psicose. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
34 
 
 
 
 
 
CAPÍTULO 2 – AUTISMO: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS PARA 
COM A CLÍNICA DA PSICOSE 
 
Este capítulo tem como objetivo central compreender algumas das concepções 
sobre o autismo propostas por autores do campo psicanalítico e, da mesma forma, analisar 
as aproximações e distanciamentos teóricos acerca do autismo e da psicose. Frente a esse 
objetivo, iremos nos deter nos estudos de Éric Laurent e Jean-Claude Maleval. O 
primeiro, Éric Laurent, é psicanalista, psicólogo e doutor em psicanálise, foi aluno de 
Lacan e atualmente é membro da Escola da Causa Freudiana e docente no Departamento 
de Psicanálise da Universidade de Paris VIII. Além de sua rica trajetória de estudos, 
Laurent carrega uma extensa experiência clínica. Ele se dedicou a debater e a formular 
pontos essenciais sobre essa temática após o autismo, que até então era um diagnóstico 
raro, se tornar um diagnóstico preferencial em detrimento das psicoses. Laurent 
empreende um trabalho que reivindica a singularidade do autismo e a pluralidade de 
abordagens. 
Jean-Claude Maleval, do mesmo modo, não se cansa de problematizar o singular 
da clínica do autismo. Psicanalista, professor de Psicologia Clínica na Universidade 
Rennes-II e membro da Escola da Causa Freudiana e da Associação Mundial de 
Psicanálise, Maleval interroga, em seus textos e conferências, o funcionamento subjetivo 
singular dos sujeitos autistas, apoiando suas teorizaçõesem depoimentos e fragmentos 
clínicos desses sujeitos. A escolha por discutir a questão estrutural do autismo a partir das 
proposições desses dois autores se deu devido ao fato de eles se apresentarem como 
pesquisadores que são referência internacional no trabalho com sujeitos autistas pela 
orientação lacaniana. Por esse motivo, pretende-se trabalhar neste capítulo o modo como 
Maleval e Laurent discutem a estruturação subjetiva no autismo, em seus pontos de 
aproximação e distanciamento com a psicose. 
 
2.1 Como o autismo é abordado por Maleval? 
 
 É com a colocação de que “o autismo não é mais uma psicose” que Maleval (2015, 
p. 1) inicia seu artigo, o qual discute especificamente a hipótese estrutural do autismo, 
intitulado “Por que a hipótese de uma estrutura autística?” Nesse artigo e em outros textos 
35 
 
 
 
– a grande maioria reunidos no livro “O autista e sua voz”–, Maleval (2009/2017, p. 188) 
apresenta o modo como entende a relação do sujeito autista com o Outro, seus 
mecanismos de defesa e em quais aspectos aproxima e distancia a “estrutura autística” – 
tal como ele nomeia – da estrutura psicótica. Assim sendo, esta seção será embasada nos 
argumentos reunidos por Maleval nesses textos e também na Conferência “A estrutura 
autística”, proferida em 12 de agosto de 2017 em Bogotá, a fim de discutirmos a questão 
estrutural do autismo e suas aproximações e distanciamentos com a clínica da psicose. 
 Maleval apresenta concepções importantes acerca do autismo, perpassando desde 
teorias a respeito da constituição do sujeito autista a características consideradas por ele 
como sendo próprias dessa estrutura, a saber: retenção inicial dos objetos pulsionais, 
estruturação do sujeito a partir dos signos e aparelhamento do gozo pela borda. Essas três 
características foram destacadas por Maleval em sua conferência em Bogotá como sendo 
os elementos possíveis de apreender a estrutura autística. Isso posto, iniciaremos 
perpassando os postulados desse autor acerca dessas três características destacadas, a fim 
de entendermos a particularidade dessa estrutura. 
 
2.1.1 Retenção dos objetos pulsionais 
 
 Um dos conceitos primordiais na teoria freudiana é o conceito de pulsão. Quando 
Freud (1915/1996) postulou a pulsão como sendo o correspondente psíquico das 
excitações derivadas do corpo, acabou por conceituar um limite entre o psíquico e o 
somático. Em 1964, em seu Seminário 11, Lacan destacou a pulsão como um dos quatro 
conceitos fundamentais da psicanálise. No entanto, se em Freud o conceito de pulsão diz 
respeito a uma articulação entre o psíquico e o somático, em Lacan o conceito faz uma 
articulação entre o significante e o corpo. 
Como postulou Freud (1915/1996), as pulsões perpassam um circuito em que há 
um impulso derivado de uma fonte de excitação corporal localizada. Esse impulso está 
em constante busca pela satisfação do encontro com o seu objeto. Porém, esse encontro 
não é possível, uma vez que esse objeto é sempre perdido e, por isso, a satisfação está em 
percorrer esse trajeto circular que retorna sempre à fonte. Embora o circuito pulsional 
vise à satisfação completa, Lacan nos esclareceu que a única satisfação possível é a 
parcial. Se Freud já havia isolado os objetos anal, oral e fálico como objetos das pulsões, 
Lacan acrescentou o olhar e a voz a essa série. 
Em 1964, Lacan destacou os objetos anal, oral, voz e olhar como os quatro apoios 
36 
 
 
 
do objeto a no corpo; ou seja, objetos a primordiais. Os dois primeiros são os objetos em 
que o sujeito perde por imposição da linguagem: no caso do objeto oral, a questão 
perpassa o desmame, pois o seio é um objeto que o sujeito precisa abandonar; e no que 
se refere ao objeto anal, a questão se situa em torno de uma demanda vinda do campo do 
Outro para que o sujeito abandone os excrementos. Os dois últimos objetos, a voz e o 
olhar, são destacados por Lacan como os suportes que o sujeito encontra para o desejo do 
Outro. 
Em sua conferência sobre a estrutura autística, Maleval (2017) explica que todos 
os primeiros objetos que realizam um intercâmbio na relação do bebê com os pais são 
rejeitados pela criança autista. Maleval (2017) cita os objetos voz, olhar, excrementos e 
comida como exemplos desses primeiros objetos de troca e nos lembra de que desde os 
estudos de Kanner já haviam relatos de como as crianças rejeitam esses tipos de objetos. 
Em Kanner (1943/1997), há um destaque, principalmente, para a recusa de maneira 
precoce dos alimentos por parte dessas crianças. Do mesmo modo que os alimentos são 
rechaçados, o objeto anal, o olhar e a voz são retidos, não postos no intercâmbio de trocas 
com o Outro. 
Na relação com o Outro, a voz e o olhar demandam duplamente do sujeito: o 
Outro, além de olhar para ele e lhe direcionar a fala, também demanda que este o olhe e 
lhe responda. No que concerne ao objeto voz, Maleval (2017) dá ênfase sobre a sua 
importância na estruturação autística, chegando a se destacar como uma das principais 
características dessa estruturação, seja pelo mutismo, pela verborreia ou pela evitação de 
interlocução. 
No Seminário, Livro 10 (1962-1963/2005), Lacan explica que é pela incorporação 
da voz do Outro que se opera a identificação primordial; ou seja, é pela incorporação da 
voz do Outro que a criança aceita o investimento libidinal que o Outro lhe direciona, 
assim como tem a possibilidade de corresponder a esse investimento. Então, o que se 
destaca de peculiaridade do objeto voz em relação aos outros objetos pulsionais é o fato 
de ele ser o objeto do desejo do Outro. A consequência disso é que o sujeito é chamado a 
responder ao Outro, já que é através da voz que o Outro lhe direciona seus desejos e suas 
demandas. 
Algo importante a ser destacado a respeito do objeto voz é o que Lacan 
(1964/1988, p. 184) enfatiza referindo-se aos ouvidos: “Os ouvidos são, no campo do 
inconsciente, o único orifício que não pode se fechar”. Com essa afirmação lacaniana, 
algumas questões podem ser pensadas: por um lado, se os ouvidos não se fecham, não há 
37 
 
 
 
possibilidade de a criança “não ouvir”, mas a criança pode recusar a voz mesmo assim; 
por outro lado, se a incorporação da voz do Outro depende da aceitação do investimento 
libidinal direcionado, podemos questionar quais são as consequências quando a criança 
recusa esse investimento não incorporando o objeto voz? Seguindo o que foi proposto por 
Maleval (2017), as consequências seriam próprias da ordem da estruturação do sujeito 
autista. 
Os autistas demonstram o que acontece quando os sujeitos não assumem a 
incorporação do objeto voz, mas são obrigados a ouvir, são invadidos pela voz do Outro. 
É o que Lacan já falava em 1975 ao dizer que os autistas tapam as orelhas, porque estão 
escutando, porque estão se protegendo do verbo. Maleval (2017) enfatiza que alguns 
autistas testemunharam que, para eles, soltar a voz é vivenciado como uma angustiante 
perda, equivalendo a uma sensação de mutilação. 
Dessa forma, a retenção dos objetos pulsionais é entendida por Maleval como uma 
recusa de entrar no intercâmbio de relação com o Outro. Frente a essa recusa dos objetos 
pulsionais, a voz é destacada por Maleval no processo de constituição do sujeito como o 
objeto primeiro, pois é através do consentimento da criança a esse objeto que se dá a 
encarnação da linguagem e que se opera a identificação primordial. Maleval (2009/2017, 
p. 96) salienta que a identificação primordial do sujeito autista é afetada pela recusa do 
sujeito em ceder o gozo vocal, pois é a voz que o prende ao Outro. É por isso que os 
autistas “rejeitam toda e qualquer dependência com relação ao Outro: recusam ceder o 
objeto do seu gozo vocal, de modo que resistem radicalmente à alienação do seu ser na 
linguagem” (Maleval, 2009/2017, p. 94). Assim, ao não abrir mão do gozo vocal, o sujeito 
acaba por não incorporar

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