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Da caça às bruxas na Europa à feiticaria na América portuguesa XVI-XVII

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1 
 
 
 
 
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA – UESB 
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA - DH 
 
 
 
JESSICA MACHADO SILVA 
 
 
 
 
 
 
A ESTIGMA DO MAL SOBRE A MULHER E O DISCURSO 
ECLESIÁSTICO: DA “CAÇA ÀS BRUXAS” NA EUROPA À 
FEITIÇARIA NA AMÉRICA PORTUGUESA (XVI-XVII). 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
VITÓRIA DA CONQUISTA – BAHIA 
SETEMBRO DE 2019 
 
2 
 
JESSICA MACHADO SILVA 
 
 
 
 
 
 
 
 
A ESTIGMA DO MAL SOBRE A MULHER E O DISCURSO 
ECLESIÁSTICO: DA “CAÇA ÀS BRUXAS” NA EUROPA À 
FEITIÇARIA NA AMÉRICA PORTUGUESA (XVI-XVII). 
 
 
 
Monografia apresentada ao curso de Licenciatura em 
História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 
como pré-requisito para a obtenção do título de 
Licenciatura em História. 
Orientadora: Grayce Mayre Bonfim Souza 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
VITÓRIA DA CONQUISTA – BAHIA 
SETEMBRO DE 2019 
 
3 
 
JESSICA MACHADO SILVA 
 
 
 
 
A ESTIGMA DO MAL SOBRE A MULHER E O DISCURSO 
ECLESIÁSTICO: DA “CAÇA ÀS BRUXAS” NA EUROPA À 
FEITIÇARIA NA AMÉRICA PORTUGUESA (XVI-XVII). 
 
 
 
Monografia apresentada ao curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual do 
Sudoeste da Bahia, como pré-requisito para a obtenção do título de Licenciatura em História. 
 
 
 
 
 
Orientadora: Profª. Drª. Grayce Mayre Bonfim Souza 
Departamento de História (UESB) 
 
 
 
 
 
Jessica Machado Silva (UESB) 
 
 
 
 
 
VITÓRIA DA CONQUISTA – BAHIA 
SETEMBRO DE 2019 
 
4 
 
RESUMO 
 
O objetivo deste trabalho é mostrar o discurso eclesiástico como legitimador do fenômeno 
conhecido como “Caça às Bruxas” e analisar o trajeto histórico que fez da mulher a figura 
estigmatizada e elevada à categoria de agente de Satã, passando pela institucionalização da 
sanha persecutória a partir da Inquisição, enfatizando o estabelecimento do Santo Ofício 
português e sua atuação na América portuguesa dentro de uma perspectiva que deixa evidente 
a relação intrínseca entre feitiçaria e sexualidade feminina. A proposta é fazer um balanço 
histórico a partir de uma abordagem que contextualmente se insere no Antigo Sistema Colonial, 
o que nos confere algumas especificidades sobre o tema, pois, embora a perseguição sistemática 
às feiticeiras seja uma característica da Europa Ocidental no período da Idade Moderna, nesta 
pesquisa, há um salto geográfico que possibilita uma análise da jurisdição do Santo Ofício 
português em outros domínios intercontinentais, o chamado Novo Mundo. 
 
 
PALAVRAS CHAVE: América portuguesa, Caça às Bruxas, Feitiçaria, Inquisição. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
5 
 
ABSTRACT 
 
The purpose of this work is to show the ecclesiastical discourse as a legitimizer of the 
phenomenon known as the “witch-hunt” and analyze the historical trajectory that made women 
the stigmatized figure and elevated to the category of agent of Satan, through the 
institutionalization of persecutory from the Inquisition, emphasizing the establishment of the 
Portuguese Holy Office and its performance in Portuguese America from a perspective that 
makes evident the intrinsic relationship between witchcraft and female sexuality. The proposal 
is to make a historical balance from an approach that contextually fits into the Old Colonial 
System, which gives us some specifics on the subject, because, although the systematic pursuit 
of witches is a feature of Western Europe in the period of the Modern Age In this research, 
there is a geographical leap that allows an analysis of the jurisdiction of the Portuguese Holy 
Office in other intercontinental domains, the so-called New World. 
 
 
KEYWORDS: Inquisition; Portuguese America; Witchcraft; Witch-hunt. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
6 
 
SUMÁRIO 
 
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 7 
 
2 DAS ORIGENS DA INQUISIÇÃO À HIERARQUIA DA IGREJA: A 
LEGITIMAÇÃO ATRAVÉS DO MEDO E AUTORITARISMO ................................. 9 
2.1 CONTEXTO SOCIAL E BRUXARIA: UM PANORAMA GERAL DA “CAÇA ÀS 
BRUXAS” NA EUROPA MODERNA DO SÉCULO XV À PRIMEIRA METADE DO 
SÉCULO XVIII ................................................................................................................... 10 
2.2 SUMMUS DESIDERANTIS AFFECTIBUS E O MALLEUS MALEFICARUM .... 11 
2.3 A INVENÇÃO DA BRUXA ........................................................................................ 13 
2.4 O “HEREGE COMO CRÍTICO DOS VALORES ESPIRITUAIS DE UMA 
SOCIEDADE” ..................................................................................................................... 17 
 
3 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O ESTABELECIMENTO DA INQUISIÇÃO EM 
PORTUGAL .................................................................................................................................. 18 
3.1 MODUS OPERANDI DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS ......................................... 20 
3.2 A ESPECIFICIDADE DA “CAÇA ÀS BRUXAS” EM PORTUGAL ........................ 23 
3.3 AS INSTITUIÇÕES REPRESSORAS E SUAS ATRIBUIÇÕES: A JUSTIÇA 
SECULAR, A JUSTIÇA INQUISITORIAL E A JUSTIÇA EPISCOPAL ........................ 25 
3.4 “O TERROR PSICOLÓGICO QUE ANIQUILA O ESPÍRITO É MUITAS VEZES 
MAIS EFICAZ QUE A VIOLÊNCIA FÍSICA”: OS AUTOS-DE-FÉ COMO RECURSO 
DE INTIMIDAÇÃO E HUMILHAÇÃO PÚBLICA .......................................................... 26 
3.5 A ATUAÇÃO DO DIABO DENTRO DO DEBATE TEOLÓGICO: 
ANTAGONISMO, COMUNICAÇÃO, INVOCAÇÃO E PACTO .................................... 28 
3.6 A PRESENÇA DA FEITIÇARIA NO REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO 
PORTUGUÊS DE 1640 ..................................................................................................... 29 
 
4 ASPECTOS GERAIS DA RELIGIOSIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA: 
ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO ............................................................................. 31 
4.1 O CASAMENTO COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE DA SEXUALIDADE 
FEMININA .......................................................................................................................... 33 
4.2 RELAÇÃO INTRÍNSECA ENTRE FEITIÇARIA E SEXUALIDADE FEMININA 
NA AMÉRICA PORTUGUESA......................................................................................... 34 
 
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 38 
 
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 39 
 
 
7 
 
1 INTRODUÇÃO 
 
Para que se entenda o fenômeno que é popularmente conhecido como “caça às bruxas” 
é necessário ressaltar o papel fundamental desempenhado por teólogos, pregadores e 
inquisidores da época moderna, especificamente nos séculos XVI e XVII, e como o discurso 
eclesiástico legitimou a perseguição de mulheres. No trabalho em questão, pretende-se de forma 
geral analisar a relação intrínseca que existe entre feitiçaria e bruxaria com a sexualidade 
feminina e buscar compreender-se porquê o sexo feminino era considerado “bode expiatório”. 
Os sermões dos clérigos traziam em seu discurso a predestinação natural que a 
mulheres tinham para o mal. Em História do Medo no Ocidente, Jean Delumeau vai afirmar 
que “embora a maior parte dos sermões de outrora esteja perdida, aqueles que nos restam 
deixam adivinhar bem que foram frequentemente os veículos e os multiplicadores de uma 
misoginia com base teológica: a mulher é um ser predestinado ao mal” (1987, p.320). 
Nessa atmosfera de repulsa e hostilidade à mulher, em que a mesma era considerada 
uma espécie de “diabo doméstico”, a literatura eclesiástica foi um dos mecanismos responsáveis 
por impulsionar a intolerância contra o gênero feminino, cabendo destacar o Malleus 
Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras), considerado o mais importante manual para 
identificaçãoe “Caça às Bruxas”1 e escrito em 1484 por Heinrich Kramer e James Sprenger. 
Outro instrumento ideológico, utilizado de forma eficaz para convencer mulheres de sua 
suposta inferioridade foi a Bíblia, o próprio mito da origem da humanidade, o Gênesis, traz em 
seu cerne o peso da desigualdade entre os sexos: Deus cria a partir do barro Adão, e só 
posteriormente, a partir de sua costela da origem à Eva, representando assim, a mulher como 
uma extensão do homem, um ser subalterno. Designada como a responsável por carregar o 
estigma da perdição, as considerações acerca das mulheres eram: “Mal magnifico, prazer 
funesto, venenosa” (DELUMEAU, 1987). Além do mais: 
 
[...] a mulher foi acusada pelo outro sexo de ter introduzido na terra o pecado, a 
desgraça e a morte. Pandora grega ou Eva judaica, ela cometeu a falta original ao abrir 
a urna que continha todos os males ou comer o fruto proibido. O homem procurou um 
responsável para o sofrimento, para o malogro, para o desaparecimento do paraíso 
terrestre, e encontrou a mulher. (DELUMEAU, 1987.p.314). 
 
 
Em tese, Delumeau aponta também sobre a contribuição da imprensa na opressão da 
mulher e afirma que houve divulgação de uma propaganda que serviu para corroborar na 
 
1 Por se tratar especificamente desse delito. 
8 
 
construção da imagem feminina como um “Agente de Satã” (1987, p.322), além de elencar 
alguns pontos principais que foram base de argumentos teológicos para justificar tal 
demonização. De forma geral, os argumentos eram: Eva como “mãe do pecado”, “fonte de toda 
perdição”, e por isso suas descendentes estavam fadadas ao pecado; as mulheres atraem os 
homens para o “abismo da sensualidade”; são “advinhas ímpias”; “ministras da idolatria” pois 
fazem o homem cometer apostasia; a mulher é “insensata, inconstante, tagarela, ignorante”; 
passível de qualquer desconfiança; orgulhosas e impuras, trazem perturbações à Igreja (1987, 
p.323- 325). 
A obra de Delumeau da margem para que algumas questões sejam levantadas, tais 
como: o estigma do mal sobre a mulher e a literatura eclesiástica como legitimação desse 
discurso; uma análise para entender se a “misoginia” de alguma forma serviu de pano de fundo 
para a institucionalização da “Caça às Bruxas”; a necessidade de coagir as mulheres a serem 
dóceis e obedientes que em suma, está intimamente relacionado com a doutrinação e 
domesticação dos corpos femininos. No que tange ao assunto abordado, é perceptível que houve 
uma coalizão de forças, ou seja, teólogos e médicos se uniram para fornecer pressupostos que 
desvalorizavam as mulheres, logo, esses pressupostos serviram de suporte para os juristas. 
O presente trabalho se organiza estruturalmente da seguinte forma: o primeiro capítulo 
destina-se a tratar de forma introdutória as origens da Inquisição, trazer questões referentes ao 
contexto social da “Caça às Bruxas” na Europa Moderna, analisar a bula papal Summus 
desiderantis affectibus como documento legitimador da obra Malleus Maleficarum além de 
traçar os fundamentos eclesiásticos que possibilitaram a invenção da Bruxa. 
No segundo capitulo, a proposta é adentrar no caso específico de Portugal levando em 
consideração panorama geral do que foi a “Caça” na Europa Moderna, analisar as circunstâncias 
que possibilitaram Portugal se diferenciarem do restante do continente europeu no que tange o 
fenômeno das bruxas, ressaltando especificidades em relação as demais inquisições. Pretende-
se também, estudar o modus operandi da Inquisição portuguesa e a atuação na principal colônia, 
como se dava a organização, funcionamento e, sobretudo os motivos que impulsionaram suar 
fundação. 
No terceiro capítulo, ocorre um salto geográfico no recorte da pesquisa. Após 
passarmos pela Europa de forma geral e analisado o Santo Ofício em Portugal, o objetivo do 
capítulo em questão é analisar os aspectos sociais e religiosos da América portuguesa 
relacionando com as práticas de feitiçaria na Colônia, revelando o caráter sexual e feminino do 
universo mágico das crenças populares na chamada terra brasilis. 
 
9 
 
2 DAS ORIGENS DA INQUISIÇÃO À HIERARQUIA DA IGREJA: A LEGITIMAÇÃO 
ATRAVÉS DO MEDO E AUTORITARISMO 
 
A inquisição surge em 1232 quando o Imperador Frederico II divulga os editos de 
perseguição aos hereges em todo território do Sacro Império Romano-Germânico com o 
propósito de evitar divisões internas, pois, a fé cristã era um elemento que para além do caráter 
religioso cumpria também o papel de unificação política. Com o receio de haver ambições 
político-religiosas nesse processo de surgimento da Inquisição, o papa Gregório IX toma para 
si o encargo de organizar e estabelecer os inquisidores papais. Os inquisidores que foram 
convocados pertenciam a ordem dominicana, este fato se seu devido a sólida e rigorosa 
formação dos dominicanos, que sobretudo, tinha como base ideológica a tese tomista. 
Uma série de documentos pontifícios foram lançados a fim de legitimar as práticas 
persecutórias criando assim uma atmosfera de rígido controle das doutrinas. Em 1252. A bula 
de Inocêncio IV, a Ad extirpanda, concede autorização para torturar os acusados que 
oferecessem resistência. Quase trezentos anos depois, através do Papa Paulo III, em 1542 ocorre 
o estabelecimento da Sagrada Congregação da Inquisição Romana e Universal ou Santo Ofício, 
essa instituição passa a funcionar de acordo Boff “como corte suprema de resolução de todas 
as questões ligadas à fé e à moral”. 
Em 1578, sob a convocação de Thoma Zobbio, comissário geral da Inquisição romana, 
o canonista espanhol Francisco de La Peña, também pertencente à ordem dos dominicanos, teve 
como incumbência a revisão e ampliação do Manual dos Inquisidores escrito por Nicolau 
Eymerich em 1376. Nesse contexto, foi o surgimento de novas heresias no século XVI que fez 
surgir a necessidade de incorporar novas diretrizes ao Manual. 
A hierarquia da Igreja é inteiramente calcada no autoritarismo, o sistema adotado pela 
santa instituição consiste no domínio de uma minoria eclesiástica sobre uma imensa população 
que é condicionada a se submeter a um rígido controle social e moral. A doutrina se revela 
arbitrária, não há possibilidade para divergências, muito pelo contrário, tudo aquilo que 
questionasse a ordem vigente deveria ser recriminado, perseguido, extirpado e aniquilado. 
O cerne da questão é o poder, e o poder para que se consolide faz-se necessário do uso 
de um discurso deliberadamente elaborado a fim de convencer as pessoas, em suma, o medo é 
o principal recurso utilizado pela Igreja para que a palavra de Deus impregne a mentalidade dos 
fiéis. 
 
10 
 
2.1 CONTEXTO SOCIAL E BRUXARIA: UM PANORAMA GERAL DA “CAÇA ÀS 
BRUXAS” NA EUROPA MODERNA DO SÉCULO XV À PRIMEIRA METADE DO 
SÉCULO XVIII 
 
É substancial trazer à tona a conjuntura social em que se fez emergir a Bruxa, pois, 
apenas as transformações e conflitos religiosos característicos do início do período moderno 
não são suficientes para fornecer uma explicação satisfatória sobre o fenômeno em questão. A 
bruxaria é designada como um crime imaginário visto que, a partir de uma análise factual é 
inconcebível a ideia de que pessoas, majoritariamente mulheres, possuíam o dom de se 
comunicar com a entidade metafísica definida como Diabo com o propósito de evocar 
malefícios a quem bem entendesse e até mesmo se reunirem em sabás com o demônio para 
praticar rituais heréticos com banquetes e orgias quiméricas. 
Devido as condições postas, é tendência geral que tratemos deste fenômeno como um 
produto das profundas transformações sociais que ocorreram na Europa entre os séculos XV à 
primeira metade do século XVIII; nesse período ocorreu um enorme salto na densidade 
demográfica, desenvolvimento das cidades e mudanças significativas nas relações comerciais 
que definiram uma outra configuração econômicamercantil, as condições socioeconômicas 
devem ser consideradas com a finalidade de contextualizar as circunstâncias de uma 
determinada época, mas, segundo Levack: 
 
Surge um problema adicional quando se tenta abordar em termos gerais o contexto 
social dos julgamentos por bruxaria através da Europa por um período extenso de 
tempo. Ainda que muitos casos de bruxaria brotassem de circunstancias sócio-
econômicas semelhantes, as condições, obviamente, variavam de lugar para lugar e 
de época para época. Mesmo quando concentramos nossa atenção sobre uma área 
geográfica específica durante um período relativamente breve, descobrimos que as 
acusações e julgamentos de bruxaria refletiam geralmente uma grande gama de 
tensões sociais. (LEVACK, 1988, p.121) 
 
 
Não há como partir de uma única interpretação socioeconômica para descrever de 
forma generalizada um fenômeno que se manifestou de forma específica em cada localidade da 
Europa de forma mais veemente entre o XV ao XVII, o que se pode fazer é 
 
[…] descrever os ambientes em que as acusações de bruxaria mais comumente 
surgiam, estabelecer as características sociais mais comuns dos indivíduos escolhidos 
para serem julgados e explorar algumas das razões pelas quais tais indivíduos eram 
particularmente vulneráveis à acusação de bruxaria. (LEVACK, 1988, p.121) 
 
11 
 
Embora tais transformações sejam essenciais para delinear o contexto social da Europa 
moderna, muitas das condições sociais aqui colocadas não eram necessariamente novidade, 
muitas delas já eram inerentes às sociedades medievais pré-capitalistas. Em síntese, sobre o 
contexto socioeconômico da bruxaria, é importante reconhecer que “os conflitos sociais que 
culminaram nos julgamentos, ou os reforçaram, nem sempre foram produtos de grandes 
mudanças sociais” (LEVACK, 1988, p.123). Atribuir todas as questões quem envolvem o 
fenômeno da bruxaria como uma criação concebida exclusivamente por mudanças sociais pode 
ser equivocado por haver o risco da ausência de documentos que respaldem tal afirmação. 
 
2.2 SUMMUS DESIDERANTIS AFFECTIBUS E O MALLEUS MALEFICARUM 
 
Em 1484 a bula papal redigida por Inocêncio VIII inaugura um patamar ainda mais 
ostensivo da “caça”. A bula Summus desiderantis saffectibus2 é um documento que significa o 
verdadeiro aval para se declarar guerra às bruxas e todas as práticas mágicas que naquele 
contexto considerava-se realidade, além de servir de base para a elaboração do Malleus 
Maleficarum, considerada o grande tratado anti bruxaria da época moderna escrito pelos 
dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger. 
Inocêncio VIII delineia os objetivos da bula Summus desiderantis affectibus no 
seguinte tom: [...] que a Fé Católica, mormente em Nossos dias, cresça e floresça por todas as 
partes, e que toda depravação herética seja varrida de todas as fronteiras e de todos os recantos 
dos Fiéis [...]", a mensagem do pontífice foi direcionada à certas regiões da Alemanha do Norte 
e também nas províncias, nas aldeias, nos territórios e nas dioceses de Mainz, de Colònia, de 
Trèves, de Salzburg e de Bremen. Segundo ele, a população pertencente às essas localidades 
estava negligenciando a fé católica, o autor da bula demonstra incomodo e preocupação ao 
redigir: 
 
[...] entregaram-se a demônios, a Íncubos e Súcubos, e pelos seus encatamentos, pelos 
seus maleficios e pelas suas conjurações, e por outros encantos e feitiços 
amaldiçoados e por outras tambem amaldiçoadas monstruosidades e ofensas hórridas, 
têm assassinado crianças ainda no útero da mãe, além de novilhos, e têm arruinado os 
produtos da terra, as uvas das vinhas, os frutos das árvores, e mais ainda: têm destruido 
homens, mulheres, bestas de carga, rebanhos, animais de outras espécies, parreiras, 
pomares, prados, pastos, trigo e muitos outros cereais: estas pessoas miseraveis ainda 
afligem e atormentam homens e mulheres, animais de carga, rebanhos inteiros e 
muitos outros animais com dores terríveis e lastimáveis e com doenças atrozes, quer 
internas, quer externas; e impedem os homens de realizarem o ato sexual e as mulheres 
 
2 A bula foi consultada no livro “Martelo das Feiticeiras”, a fonte se encontrada em forma de digitação. 
12 
 
conceberem [...] renunciam de forma blasfêma a Fé que lhes pertence pelo Sacramento 
do Batismo, e por instigação do Inimigo da Humanidade não se escusam de cometer 
e perpetrar as mais sórdidas abominações e os excessos mais asquerosos para o mortal 
perigo de suas almas, pelo que ultrajam a Majestade Divina e são causa de escândalo 
e de perigo para muitos. (KRAMER; SPRENGER, 2014, p.43-44)3 
 
 
Com a benção do papa, Kramer e Sprenger são autorizados a agirem de forma punitiva 
a fim extirpar qualquer traço de heresia que se colocasse como uma ameaça a fé católica. Cabe 
destacar o seguinte trecho escrito por Inocêncio VIII: 
 
[…] decretamos e estabelecemos que os mencionados Inquisidores têm o poder de 
proceder, para a justa correção, aprisionamento e punição de quaisquer pessoas, sem 
qualquer impedimento, de todas as formas cabíveis [...] damos permissão aos 
supracitados Inquisidores […] ou a qualquer outro notário público, que esteja com 
eles, ou com um deles, temporariamente designado para aquelas províncias, aldeias, 
dioceses, distritos e os supracitados territórios, para proceder conforme as normas da 
Inquisição contra quaisquer pessoas de qualquer classe ou condição social, corrigindo-
as, multando-as, prendendo-as, punindo-as, na proporção de seus crimes – e aos que 
forem considerados culpados que a pena seja proporcional à ofensa. (KRAMER; 
SPRENGER, 2014, p.44-45).4 
 
 
É concedido aos inquisidores poderes plenos e irrestritos, o direito de pregar a palavra 
de Deus, além de exercer qualquer liturgia sempre que apropriado em casos que foram 
mencionados acima. Nos trechos finais da bula, Inocêncio VIII proclama: 
 
[…] haverá de ameaçar a todos os que vierem a dificultar ou impedir a ação dos 
Inquisidores, a todos os que lhes opuserem, a todos os rebeldes, de qualquer categoria, 
estado, posição, proeminência, dignidade ou de qualquer condição que seja – não 
importando o privilégio de que disponha – haverá de ameaçá-lo com excomunhão, a 
suspensão, a interdição, e inclusive com as mais terríveis penas, as piores censuras e 
os piores castigos, como bem lhe aprouver, e sem qualquer direito de apelação, e se 
assim o desejar poderá, pela autoridade que lhe concedemos, agravar e renovar tais 
penas quantas vezes for necessário, recorrendo, se assim convier, ao auxílio do braço 
secular. (KRAMER; SPRENGER, 2014, p.45-46) 
 
 
O Malleus Maleficarum ou Martelo das Feiticeiras nos revela uma Inquisição que 
funcionava como uma instituição difusora do terror em nome da fé cristã mais precisamente 
entre nos séculos XV e XVI. É um tratado que se revela o verdadeiro compendio de leis que 
representam características de um Estado teocrático e deixa evidente a relação entre sexualidade 
feminina e pacto demoníaco, apontando certa necessidade de controle e domesticação dos 
corpos das mulheres. É dividido metodicamente em três partes: a primeira intitulada “Das Três 
Condições Necessárias para a Bruxaria: O Diabo, a Bruxa e a Permissão de Deus Todo-
 
3 Trecho da bula papal redigida por Inocêncio VIII retirado da obra “Martelo das Feiticeiras”. 
4 Idem. 
13 
 
Poderoso” são direcionados aos juízes, ensina como reconhecer características que define uma 
bruxa, exorta sobre a importância de acreditar no poder maléfico dessas mulheres e afirma a 
existência de demônios incubus e sucubus; a segunda parte, “Dos Métodos Pelos Quais se 
Infligem os Malefícios e de que Modo Podem ser Curados” tem como finalidade explicar e 
categorizar os tipos de malefícios disserta sobre como aniquilar e combater os poderes 
perniciosose descrevem as cerimonias e rituais conduzidos pelas bruxas; a terceira parte, “Que 
Trata de Medidas Judiciais no Tribunal Eclesiástico e no Civil a Serem Tomadas Contra as 
Bruxas e Também Contra Todos os Hereges”, trata de forma geral sobre métodos de como 
proceder legalmente contra as bruxas e das condições necessárias para condená-las. Laura de 
Mello e Souza ressalta a relevância do Malleus e faz a seguinte inferência: 
 
Tanto o Manual do inquisidor como o Malleus maleficarum tiveram grande influência 
sobre os procedimentos adotados no final do século XV e na primeira metade do 
século XVI pelas inquisições ibéricas, que em Portugal e na Espanha encetaram a 
perseguição a hereges- mouros, judeus, conversos, bruxos, magos adivinhos. Apesar 
de se ter originado em meio eclesiástico, esse tipo de procedimento ganhou também 
a Justiça Civil, sendo adotado pela maioria dos tribunais laicos que julgaram crimes 
de feitiçaria na Europa. (SOUZA. 1987, p.29) 
 
 
Entre os fins do século XVI a meados do XVIII a sanha persecutória foi um fenômeno 
generalizado. Em quase toda a Europa houve a repressão sistemática sobre o feminino, o corpo 
das mulheres era visto como algo a ser punido, sobretudo no que dizem respeito ao exercício 
da sexualidade, para além da questão do corpo, mulheres tinham afinidade com o uso de plantas, 
apresentavam alguns conhecimentos sobre medicina popular, o que nesse /período foi encarado 
como uma ameaça aos avanços da medicina tradicional ensinada nas universidades, locais estes 
cuja a presença dos homens era hegemônica. O Malleus maleficarum se torna o instrumento de 
repressão e perseguição, que foi escrito no ápice do pragmatismo ideológico da Inquisição a 
serviço do patriarcado atingindo de forma sistemática as mulheres. 
 
2.3 A INVENÇÃO DA BRUXA 
 
Embora os termos feitiçaria e bruxaria geralmente são explanados como se tivessem o 
mesmo sentido, inclusive na documentação de língua portuguesa essa diferenciação é 
meramente formal e tanto bruxas quanto feiticeiras são tratadas como sinônimos, é pertinente 
que aqui que seja abordado há diferença conceitual entre esses termos. A feitiçaria se refere as 
práticas mágicas em que o pacto demoníaco é inexistente, “a feiticeira se encarregaria 
individualmente de fabricar poções e filtros mágicos com vistas a solucionar problemas com as 
14 
 
quais se achasse envolvida” (SOUZA, 1987, p.12). No caso de bruxaria, além de existir um 
pacto com a figura satânica havia também a submissão ao dito “Príncipe das Trevas”, as 
atividades litúrgicas se davam em grupo “e as bruxas diferentemente das feiticeiras, integrariam 
uma espécie de seita demoníaca” (SOUZA, 1987, p.12). 
A invenção da Bruxa começa a se consolidar a partir da “caça”, foram os próprios 
perseguidores que traçaram estereótipos que serviam de suporte para denúncias e processos, 
incutindo assim o terror generalizado sobre a sociedade, colocando em suspeição mulheres 
cujas características contemplavam os estereótipos que foram deliberadamente construídos, 
como por exemplo: solteiras, viúvas; se fossem velhas e feias as suspeitas se tornavam ainda 
mais fortes. 
A conjuntura social da Época Moderna foi um subterfúgio que fez da bruxa o bode 
expiatório para justificar as mais variadas adversidades como infanticídio por exemplo. Dada 
as precariedades e a incidência da miséria sobre a população era comum a morte de crianças, 
sobretudo de recém-nascidos, no entanto, acreditava-se que a responsabilidade era das bruxas 
que sufocavam e enforcavam bebês ainda no berço, ou quando uma criança abandonava o leite 
materno significava que alguma uma bruxa havia sugado o peito da mãe. Crenças populares 
como zoomorfismo era recorrente o que significava atribuir às bruxas a capacidade de se 
transformar em animais: 
 
Velhas, feias, sozinhas, forasteiras, ou jovens, bonitas e capazes de passar à prole a 
vocação diabólica, as bruxas costumavam ainda se metamorfosear em animais. Gatos 
e corujas eram bichos demoníacos por excelência; dependendo da região, a bruxa 
tomava de empréstimo a forma de outros animais, como borboletas negras ou cães, 
que, no meio camponês, frequentemente tinham significado negativo. O zoomorfismo 
visava disfarçar a identidade da malfeitora e possibilitar-lhe maior liberdade nas ações 
perniciosas. (SOUZA, 1987, p. 19) 
 
 
O arquétipo da bruxa moderna e os mecanismos utilizados para a caça começam ser 
postulados no século XIV. Nicolau Eimeric em seu Manual do Inquisidor (1376) traçou um 
plano teórico, uma espécie de tratado que serviu de amparo legal para intensificar e consolidar 
a sanha persecutória, esse tipo de literatura tinha como objetivo discutir . 
 
[...] as possibilidades objetivas ou ilusórias de pacto demoníaco retomando a tese 
tomista da realidade dos fatos mágicos e, mais atrás ainda, a crença agostiniana nos 
fatos ligados a magia. São Tomás constitui um marco demonizador no seio do 
pensamento cristão: ‘ a fé católica firma que os demônios existem, que são capazes 
de causa dano e que impedem o ato carnal’, afirmava, ajuntando as práticas magicas 
não eram simples fantasmagorias, ao contrário do que diziam os dotados de pouca fé” 
(SOUZA, 1987, p. 27) 
 
15 
 
No que se refere ao tema proposto, é imprescindível que abordemos o que a 
historiografia já escreveu sobre a feitiçaria e bruxaria, em A Feitiçaria na Europa Moderna, a 
historiadora Laura de Mello e Souza faz uma explanação resumindo as considerações de 
algumas vertentes e aponta algumas diretrizes para nos esclarecer o que cada uma utiliza como 
argumentos para suas teses. A princípio, nos deparamos com a tese romântica que de forma 
geral defende a existência do Sabá como uma resistência de cultos de determinadas divindades 
pagãs. Como contraponto à tese romântica, temos a vertente racionalista, que em outras palavras 
afirma que a bruxaria não é nada mais que um produto de uma construção mental, mito e ilusão 
de uma determinada época. A última vertente abordada é a antropológica, vertente essa 
defendida pela própria autora em que pode se constatar que: 
 
No atual estágio das investigações, a abordagem antropológica parece ser a mais 
fecunda e promissora. Ela permite que se desvende a vida cotidiana das populações 
pré-industriais e que se avance no sentido de compreender o papel e o espaço nela 
assumidos pelas práticas mágicas e pela bruxaria.” (SOUZA, 1987, p.53) 
 
 
Como já sabemos, os dados coletados por historiadores revelam que o crime de 
bruxaria era potencialmente cometido por mulheres, mas não há definição de bruxa que exclua 
os homens, entretanto, trataremos aqui da construção do caráter feminino da bruxaria. Levack 
explica que 
 
[…] o protótipo da bruxa na cultura antiga e medieval, assim como na literatura e na 
arte, era sempre feminino, as mulheres estavam naturalmente mais expostas a serem 
suspeitas desse crime do que os homens. A imagem da bruxa era, entretanto, o produto 
e a fonte das acusações e processos por bruxaria. Se as mulheres não fossem muito 
mais comumente do que os homens suspeitas e julgadas por bruxaria, a imagem da 
bruxa não teria sido exclusivamente feminina. (LEVACK,1988, p.128). 
 
 
Um elemento preponderante para vincular a imagem feminina à bruxaria era a 
convicção de que as mulheres eram moralmente fracas e mais inclinadas a serem seduzidas 
pelas tentações diabólicas. Toda essa construção de narrativa foi endossada por clérigos, o 
discurso dos homens da Igreja girava em torno da seguinte questão: o desejo carnal das 
mulheres era o que as moviam para cometer crime de bruxaria, “pois a bruxa fazia 
frequentemente pacto com Diabo como resultado da tentação sexual, engajando-se então em 
atividade sexual promíscua no sabá” (LEVACK, 1988, p. 131). 
Sob as considerações de Levack, a explicação abordada pelo autor sobre a maior 
incidência de bruxas do sexo feminino é que as mulheres eram taxadascomo inferiores aos 
homens, tanto em aspectos físicos quanto em aspectos políticos, sendo assim, conjecturava-se 
16 
 
que por elas enfrentarem dificuldades para defenderem seus interesses era recorrente que 
mulheres se valessem da feitiçaria como um subterfúgio para vingança e proteção. As mais 
propensas à acusações eram as que exerciam funções comuns designadas para mulheres no 
início da sociedade moderna europeia tais como: 
 
[…] cozinheiras, curandeiras e parteiras […] Como cozinheiras elas não somente 
tinham a oportunidade de juntar ervas para fins mágicos, como também tinham a 
possibilidade de transformá-las em poções e unguentos. Não é por acaso que as bruxas 
são frequentemente retratadas junto a caldeirões […]. A imagem de um homem 
engajado nesse tipo de atividade é pelo menos implausível. (LEVACK, 1988, p.131). 
 
 
A Bruxa era o intermédio por onde Diabo gostava de operar, era a porta de entrada 
para os demônios praticarem malefícios segundo constatações de Kramer e Sprenger. Os 
dominicanos também apresentam no Malleus a seguinte consideração: 
 
Eis, então, nossa proposição: os demônios, pelo seu engenho, produzem efeitos 
maléficos através da bruxaria […] com a devida ajuda, conseguem provocar doenças 
e toda sorte de sofrimento e de padecimento humanos, reais e verdadeiros. (KRAMER 
e SPRENGER, 2014, p. 63) 
 
 
A Bruxa deveria não ser apenas evitada, mas em alguns casos os autores do Malleus 
Maleficarum recomendam a condenação à morte “embora só devam receber essa punição 
extrema se tiverem de fato pactuado com o diabo a fim causar males e injustiças verdadeiros 
(KRAMER;SPRENGER, 2014, p.52). A bíblia é citada por Kramer e Sprenger como 
justificativa plausível, os inquisidores mencionam o capítulo 18 de Deuteronômio em que se 
declara “que todos os magos e feiticeiros devem ser destruídos” e o capítulo 19 de Levíticos, 
“se alguma alma se dirigir aos magos e advinhos para com eles fornicar, voltarei contra ela o 
meu rosto e a arrancarei do meio do meu povo”. 
Ante uma perspectiva romântica, o protótipo da Bruxa nas palavras de Sallmann sobre 
Michelet é de uma “mulher revoltada contra uma sociedade que a oprimia” (SALLMANN, 
2002, p. 152). Para exemplificar a releitura romântica segue trecho escrito por Michelet: 
 
Ao nascer, a Bruxa não tem pai, nem mãe, nem filho, nem esposo, nem família. 
É um monstro, um aerólito, vindo não se sabe de onde. 
Quem ousaria, ó Deus, dela se aproximar? 
Onde está ela? 
Nos lugares impossíveis, na floresta das sarças, na charneca onde o espinho e o cardo 
enredados obstruem a passagem. […] 
Mesmo que a encontremos, continuará isolada pelo horror que provoca; ao seu redor, 
um círculo de fogo. 
Mas quem acreditará nisso? 
Continua a ser uma mulher. 
17 
 
Até mesmo essa vida terrível comprime e estende a sua energia de mulher, a 
eletricidade feminina. […] 
De uma espécie diferente, sai Satã do seio ardente da Bruxa, vivo, armado e pronto 
para atacar. [...] 
 
 
2.4 O “HEREGE COMO CRÍTICO DOS VALORES ESPIRITUAIS DE UMA SOCIEDADE” 
 
Não há como falar do Santo Ofício sem antes traçar um panorama geral sobre o 
conceito de heresia, pois, a Inquisição foi estabelecida com o objetivo mor de perseguição a 
qualquer criatura que ousasse questionar as normas vigentes impostas por uma sociedade 
majoritariamente religiosa e calcada nos princípios do catolicismo. 
“A palavra herege origina-se do grego hairesis e do latim haeresis e significa doutrina 
contrária ao que foi definida pela Igreja em matéria de fé” (NOVINSKY, 1985. p.10), em suma, 
herege é quem propaga ideias que contestam as doutrinas da Igreja de Cristo, é aquele subverte 
a ordem. Como bem define Novinsky: 
 
A heresia é uma ruptura com o dominante, ao mesmo tempo que é uma adesão a uma 
outra mensagem. É contagiosa e em determinadas condições dissemina-se facilmente 
pela sociedade. Daí o perigo que representa para a ordem estabelecida, sempre 
preocupada em preservar a estrutura social tradicional (NOVINKY, 1985, p.11). 
 
 
A Igreja enquanto porta-voz da verdade se manifestava através dos “pronunciamentos, 
admoestações, incíclicas, declarações dos sínodos e dos concílios, proclamação dos dogmas da 
fé”, se impôs como a institucionalização dessa verdade e se valia de todo um aparato legislativo 
para propagar a idéia de que a fé cristã fosse o único caminho possível. A hegemonia da palavra 
de Deus era a força motriz que a impulsionava perseguir dissidentes que ameaçasse a sua 
estrutura de detentora suprema da verdade absoluta, partindo desse pressuposto, Leonardo Boff, 
no prefácio do Manual dos Inquisidores nos traz a seguinte afirmação: “tudo já estava 
respondido pela instancia suprema e divina. Qualquer experiência ou dado que conflita com as 
verdades reveladas só pode significar um equívoco ou um erro. A Igreja detém o monopólio 
dos meios que abrem caminho para a eternidade” 
Dada a conjuntura do monopólio da fé e da verdade, a heresia era o perigo eminente, 
o seu combate era o instrumento necessário para salvaguardar a fé cristã e nesse sentido a Igreja 
fez-se imprescindível. Esse combate funcionava como uma espécie de “guerra” ideológica que 
se estendia à penalização dos corpos. Em suma, o herege era o arquiinimigo e deveria ser 
rechaçado como tal, “o herege é aquele que se recusa a repetir o discurso da consciência 
18 
 
coletiva”, o herege cria suas próprias narrativas a partir de uma nova interpretação sobre a 
religiosidade imposta. 
 
3 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O ESTABELECIMENTO DA INQUISIÇÃO EM 
PORTUGAL 
 
O processo de estabelecimento da Inquisição em Portugal se inicia em 23 de maio de 
1536 sob a égide da bula papal Cum ad nihilismagis nomeando três inquisidores gerais para 
jurisdição do tribunal de fé e concedendo ao rei D.João III a viabilidade de nomear um quarto 
inquisidor geral. Embora o foco nesta monografia seja discutir as práticas de feitiçaria, devemos 
destacar que a pretensa disseminação do judaísmo foi a justificativa legitimadora para a 
existência desse tribunal, pois, representava uma ameaça à dominação católica5. Em novembro 
do mesmo ano um monitório foi publicado prescrevendo quais crimes deveriam ser delatados 
ao tribunal, para além das práticas judaizantes características dos cristãos novos, outros 
possíveis delitos foram sugeridos, como: “luteranismo, o islamismo, as proposições heréticas e 
os sortilégios” (BETHENCOURT, 2000, p. 25) 
Desde o estabelecimento do Santo Ofício português a coroa estava engajada no 
processo, “o envolvimento do rei […] assumindo a responsabilidade da criação do tribunal e 
fazendo questão de estar presente na cerimônia de fundação da nova instituição 
(BETHENCOURT, 2000, p.25) é um dos aspectos relevantes que foi cautelosamente relatado 
nos documentos organizados pela própria Inquisição, ademais, em 1547 o Santo Ofício 
português passa definitivamente a ser tutelado pelo rei devido a autorização do papa Paulo III. 
As inquisições ibéricas apresentaram maiores traços de ruptura com a inquisição 
medieval em relação á inquisição romana. Os tribunais português e espanhol por exemplo, 
adquiriram 
 
[...] uma configuração coletiva e hierarquizada, liderada por um conselho geral 
composto de três, cinco ou mesmo sete membros (o número varia ao longo do tempo) 
e uma estrutura intermediaria de tribunais de distrito polarizada por dois ou três 
inquisidores assessorados por uma poderosa máquina burocrática com controle sobre 
uma extensa rede local [...]. (BETHENCOURT, 2000, p.29). 
 
 
Por outro lado: 
 
5A perseguição aos judeus foi o empreendimento que demandou maiores esforços no que concerne a atuação 
combativa do Santo Ofício. 
19 
 
[...] a estrutura da Inquisição romana assenta-se no inquisidor local sediado no 
convento de respectiva ordem (dominicana ou franciscana), inquisidor que atua 
normalmentesozinho na instrução de processos e conta apenas com a presença do 
representante do bispo para a legitimação da sentença. (BETHENCOURT, 2000, p.29) 
 
 
Há semelhanças de jurisdição inquisitorial entre os tribunais romano, espanhol e 
português, contudo, existem pequenas variações como por exemplo a questão da sodomia 
“perseguida pelo ‘Santo Ofício em Aragão, em Portugal e nos Estados italianos, mas não em 
Castela, onde a jurisdição foi conservada pelos tribunais civis” (BETHENCOURT, 2000, p.30). 
Delitos de foro misto como feitiçaria e bigamia, para serem julgados deveriam estar sob forte 
presunção de heresia, no caso de feitiçaria, a sentença só seria levada a cabo caso fosse 
constatado alguma relação com o demônio, seja superstição ou adoração. Em relação à bigamia, 
a questão mais relevante a ser considerada seria o desrespeito aos sacramentos da Igreja além 
da transgressão do sacramento matrimonial. 
A construção da identidade eclesiástica desponta a fim de fomentar a uniformidade da 
jurisdição inquisitorial que estabelecesse uma interpretação correta das crenças desviantes, os 
manuais foram instrumentos imprescindíveis para definir as ditas heresias como bem aponta 
Bethencourt: 
 
Os manuais dos inquisidores dos inquisidores do século XIV são bastante mais 
simples, embora já se note um esforço de sistematização feito a partir de experiencias 
judiciarias concretas. O manual de Bernard Gui, por exemplo, está organizado em 
torno de uma classificação dos hereges da época: cátaros [...] valdenses, 
pseudoapóstolos, beguinos, judaizantes, feiticeiros, adivinhadores e invocadores de 
demônio. O manual de Nicolau Eymerich acrescenta outros delitos, como a blasfêmia, 
a vidência ou islamismo, propondo uma tipologia mais sutil e abstrata, na qual se 
inclui a definição de heresia [...] Francisco Peña, que reedita esse texto em 1578, não 
faz nenhum corte, acrescentando comentários de atualização de conteúdo. (2000, 
p.32) 
 
 
A mudança na estrutura dos fluxos de comunicação é um dos aspectos que representam 
uma ruptura do modelo de Inquisição do Antigo Regime com o da Inquisição Medieval. Sob o 
Antigo Regime as comunicações deixaram de ser predominantemente horizontais, isto é, 
reduziu-se a troca constante de correspondências entre inquisidores de uma mesma província6, 
reuniões informais entre inquisidores praticamente deixaram de existir ao passo que um maior 
controle de circulação de manuais foi estabelecido, perdendo assim “o caráter fluído e arbitrário 
da Inquisição medieval” (BETHENCOURT, 2000, p. 35). 
 
6para tratar de problemas processuais ou modos de agir em casos específicos. 
20 
 
O Santo Ofício português desde o início possuía uma administração centralizada, isso 
se explica pelo fato de que experiencia do tribunal espanhol, fundado 58 anos antes foi usado 
como exemplo no seu processo de fundação, no entanto, havia diferenças na regulamentação e 
nas práticas; no caso português, algumas medidas administrativas próprias foram incorporadas 
devido um contexto político e social diferente. Em relação a Espanha cabe evidenciar as 
seguintes diferenças: 
 
[...] o inquisidor-geral reservava para si todas as comutações de penas, bem como as 
apelações de sentenças de tortura e a conclusão de processos em que votos se dividiam 
entre os inquisidores e os representantes da diocese; os condenados com leve suspeita 
na fé não deviam abjurar publicamente, mas apenas perante o tribunal; no rito de 
fundação, os inquisidores deviam reunir as autoridades civis para apresentar a carta 
do rei e ordenar a publicação da Inquisição na igreja principal, proibindo outras 
pregações no mesmo dia [...](BETHENCOURT, 2000,p.45) 
 
 
A inquisição tinha como o estandarte moral o combate imanente às heresias, a estrutura 
do tribunal voltava-se para uma organização administrativa com foco em identificar tais práticas 
heréticas e valia-se de instrumentos que auxiliasse nessa identificação: “cadernos de denúncias, 
repertórios de presos, listas de condenação, registros dos sambenitos expostos no interior das 
igrejas, processos de habilitação, registros genealógicos” (BETHENCOURT, 2000, p.49). Essa 
quantidade de material produzido revela uma cultura manuscrita eclesiástica, um acervo 
considerável que possibilita fornecimento de fontes variadas para compreender a sistematização 
do tribunal, além de servir de base para entender a metodologia do direito penal do Antigo 
Regime. 
 
3.1 MODUS OPERANDI DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS 
 
No final do século XV (1478) é criado na Espanha o Tribunal do Santo Oficio da 
Inquisição, uma instituição que foi uma releitura daquela utilizada na Idade Média em boa parte 
do território europeu; tal releitura adquiriu um modo de funcionamento característico para 
atender as demandas da sociedade moderna. Em 1536, meio século depois, é a vez de Portugal 
estabelecer o seu próprio tribunal inquisitorial cuja ação se estendeu por todo império português 
inclusive sua principal colônia, o “Brasil”. 
Sob influência espanhola e com a justificativa de que a conversão compulsória dos 
judeus à fé católica não era verdadeira, D. Joao III pede ao papa a autorização para o 
funcionamento de um tribunal inquisitorial cujo os moldes seriam semelhantes ao tribunal de 
21 
 
Espanha. Disputas entre o rei e o papa se sucederam em torno de quem teria o aval da inquisição 
portuguesa. Segundo Novinsky: 
 
Todas as negociações mantidas entre Roma e Portugal para se estabelecer o Tribunal 
tiveram por base o poder do dinheiro. Os papas sabiam que os monarcas portugueses, 
possuindo o domínio sobre a Inquisição, enfraqueceriam politicamente Roma [...] D. 
João III venceu, oferecendo ao papa uma enorme fortuna troca da permissão para agir 
sem interferência de Roma. A bula papal de 23 de maio de 1536 autorizou a inquisição 
no reino lusitano, e em 1540 se realizou o primeiro auto-de-fé em Lisboa. Pela bula 
MedidatioCordis. De 16 de julho de 1547, o tribunal foi definitivamente estabelecido. 
(1985, p.36-37). 
 
 
A fé católica era hegemônica nos países ibéricos, sendo assim, seria um equívoco 
afirmar a existência de uma ameaça judaica ou moura sobre a doutrina cristã. Em suma a 
Inquisição portuguesa e sua necessidade de dominação e homogeneidade da fé iam além da 
questão moral, a busca pela consolidação da Igreja enquanto instituição suprema envolvia a 
ambição e poder, logo, no que tange a essa temática é imprescindível que tratemos o assunto 
para além da esfera religiosa e adentremos na singularidade política do tema. 
O Santo Ofício estava ligado ao funcionamento do Estado português e utilizava o medo 
como maior instrumento de submissão além de estar diretamente relacionado com as grandes 
instancias de poder, seja a coroa, a nobreza ou ao clero. A Inquisição lusitana agia conforme a 
demandas políticas e financeiras da classe dominante, assegurava os interesses dessas instâncias 
pois mantinha a estrutura do regime vigente em total funcionamento. 
Os crimes julgados pelo Tribunal eram categorizados em dois tipos, primeiro, contra 
a fé; segundo, contra a moral e os costumes. A gravidade do primeiro era maior que a dos 
segundo e isso se refletia nas severas penas aplicadas a esse tipo infração. Eram designados 
delitos contra a fé o “[...] judaísmo, protestantismo, luteranismo, deísmo, libertisnimo, 
molinismo, maometismos, blasfêmias, desacatos, críticas aos dogmas” (NOVISNKY, 1985, 
p.56). A feitiçaria, no entanto, era um crime de foro misto e se enquadrava nos crimes contra a 
moral e os costumes juntamente com a bigamia e sodomia. 
Na tentativa de salvar a própria pele das malhas da Inquisição, os réus eram coagidos 
a confessar a culpa, além de acusar pessoas próximas e do seu convívio. Os inquisidores 
utilizavam-se de recursos de caráter despótico como por exemplo a ameaça de tortura, com o 
objetivode incutir medo e manipular os acusados de forma que fosse mais conveniente para o 
Tribunal. Novinsky nos explica que: 
 
Muitas vezes, atormentado pela sua consciência, arrependia-se de ter implicado 
inocentes e voltava à mesa inquisitorial para negar tudo. Com medo de ser queimado, 
22 
 
pedia novamente para ser ouvido e ratificava as denúncias primeiras, implicando 
ainda mais gente. Debatia-se num labirinto sem saída. Quanto mais denúncias 
recebiam, mais satisfeitos ficavam os inquisidores. Assim aumentava o número de 
futuros réus e dos futuros confiscos. (1985, p. 59) 
 
 
Para além de uma abordagem religiosa e cultural, o Santo Ofício nos mostra a 
possibilidade de analisar o assunto sob um viés político e econômico, sobretudo no que se refere 
a questão do confisco de bens. O Santo Ofício era benéfico para o Estado posto que o confisco 
angariava fundos para o funcionamento da Coroa, em síntese era uma máquina de arrecadar 
dinheiro para a própria manutenção do Estado, que nesse contexto estava sob a égide Antigo 
Regime. É imprescindível considerar que a Igreja era um dos seus sustentáculos, implicando 
assim uma relação mutua entre poder político e poder eclesiástico, afinal de contas 
 
A propaganda construída pelo Clero católico criou mentiras que justificaram usar 
judeus como bodes expiatórios; porém, os inquisidores não tinha a intenção de mata-
los todos, nem acabar com as heresias e os hereges- pois eles provinha principalmente 
sua maior fonte de renda, e os sustento da maior burocracia do país. (NAZÁRIO, 
2005.p.14) 
 
 
A caça às bruxas está inserida em um contexto histórico em que a instituição do Estado 
centralizado e o estabelecimento da Inquisição da época moderna ocorreram quase que 
simultaneamente e são fenômenos intrinsecamente relacionados. Quando nos debruçamos 
sobre o tema da feitiçaria na América portuguesa, mais especificamente no “Brasil Colônia”, 
não há como desvincular do Antigo Sistema colonial e isso nos confere certa especificidade no 
que se refere a tal abordagem por dois motivos: 1) a perseguição sistemática às feiticeiras 
ocorreram pela Europa sendo um fenômeno característico do continente, no entanto, dentro do 
nosso enfoque há um salto geográfico. 2) analisaremos a jurisdição do Santo Oficio sobre os 
novos domínios intercontinentais, neste caso, trataremos da expansão dos domínios portugueses 
na América. 
 
As inquisições ibéricas foram regidas por manuais: a Practica inquisitionis haereticae 
pravilatis, redigida no primeiro quartel do século XIV por Bernard Gui, e o 
Directorum inquisitorum, do catalão Nicolas Eymeric (Nicolau Emérico), escrito 
cerca de cinquenta anos depois). Preocupados com a questão herética, inquisidores e 
manuais contribuíram, entretanto, à construção de um modelo simbólico da feitiçaria; 
atribuindo aos hereges culpas milenarmente imputadas a minorias ou a grupos 
marginalizados, possibilitaram que, organizadas em modelo, elas fossem, como as 
normas inquisitoriais, associadas à feitiçaria (SOUZA,1986, p.370) 
 
 
A promoção e divulgação da feitiçaria serviu para exercer o controle e autoridade sobre 
a população, 
23 
 
exorcizando demônios, os europeus impunham melhor um modelo de dominação 
política e ideológica: as novas formas jurídicas que buscavam vigiar as populações e 
unificar as penas serviam à recente organização do Estado e afiavam suas garras ao 
vasculhar, encarcerar e supliciar feiticeiras (SOUZA,1986, p.373) 
 
 
Em O Diabo na Terra de Santa Cruz, é levantada uma questão relevante para 
compreender ainda mais o contexto histórico das inquisições modernas: a relação existente 
entre Abslutismo monárquico e obsessão demoníaca. Souza afirma que “na península Ibérica, 
a Inquisição foi elemento essencial à consolidação do aparelho do Estado: foi ‘o melhor auxiliar 
de Leviatã’, instrumento da monarquia e elemento regulador das relações entre o poder real e 
poder inquisitorial (1986, p.377). 
O Brasil não possuía um Tribunal, sendo assim, quando havia a necessidade de um 
julgamento o réu ficava sob jurisdição do Tribunal de Lisboa. A incumbência de rastrear 
possíveis infratores era dada aos familiares e comissários do Santo Oficio. Do ponto de vista 
das inquisições ibéricas, os crimes relacionados à feitiçaria e as práticas magicas eram 
considerados menos rentáveis em relação às práticas judaicas por exemplo, pois, umas das 
sanções inquisitoriais era o confisco de bens, as feiticeiras geralmente pertenciam às camadas 
sociais menos abastadas. 
 
3.2 A ESPECIFICIDADE DA “CAÇA ÀS BRUXAS” EM PORTUGAL 
 
No que se refere às práticas mágicas, José Pedro Paiva suscita a questão acerca de uma 
inexistente “caça” generalizada em Portugal, embora houvesse aspectos e condições necessárias 
para isso. Em Bruxaria e Perseguição num país sem caça às bruxas Paiva afirma que: 
 
As populações portuguesas tinham, neste domínio, práticas e crenças muito 
semelhantes às que foram perseguidas no resto da Europa. Ora, de acordo com muitos 
historiadores que se tem dedicado ao estudo deste fenômeno no cenário europeu, estes 
eram o tipo de pré-requisitos necessários para que um movimento de violenta 
repressão destes agentes pudesse dar-se, como de facto se deu, na Europa Central e 
do Norte, entre os inícios do século XVI e o final da centúria seguinte. (PAIVA, 2002, 
p.11) 
 
 
A partir da perspectiva historiográfica, o fenômeno da bruxaria pode ser concebido em 
dois vieses antagônicos, sendo eles: a análise das instituições repressoras e todo o seu aparato 
e na contrapartida, o estudo sobre as vítimas da Inquisição e os motivos que ocasionaram as 
suas devidas acusações. Existe também, a possibilidade de uma abordagem a partir de outros 
duas antíteses: primeiro; as crenças e práticas magicas de acordo a concepção dos doutos, em 
24 
 
suma, uma elite composta por homens eclesiásticos ou laicos que se dedicavam a escrever 
sobre o temática, a fim de redigir manuais de comportamento sob a égide de um padrão moral 
e religioso (característico da época moderna) que influenciasse a população; do lado oposto 
estava essa população, uma grande massa predisposta a se sujeitar a essas normas de conduta 
impostas pelos doutos. No entanto, o que nos interessa são os dissidentes, aqueles ou aquelas 
que por rebeldia, convicção ou persistência violaram as tais das normas redigidas e como 
consequência de seus atos eram submetidos à sanções e penas. 
O fenômeno da Caça às Bruxas começa a se consolidar no século XVI, o período de 
maior efervescência da sanha persecutória foram os anos entre 1580-1660. O surgimento do 
fenômeno de modo geral tem como marco 1560, entretanto, a repressão não ocorreu de modo 
homogêneo em toda Europa, Paiva afirma que: 
 
Houve regiões em que a severidade foi mais precoce, como a Suíça, Alemanha, 
Holanda e França, outras onde a repressão foi mais tardia e se deu apenas a partir dos 
primórdios do século XVII, como a Escócia e a Inglaterra (aqui apenas um brevíssimo 
período), outras que viram eclodir o surto só na segunda metade de Seiscentos, como 
a Austria, a Transilvania e a Suecia, sendo, portanto, que o quadro não foi igualmente 
feroz e duradouro em todo lado”. (PAIVA, 2002, p.189) 
 
 
Por via de regra, a derrocada da perseguição às bruxas ocorreu a partir da segunda 
metade dos Seiscentos e em regiões onde a caça se deu de forma mais implacável como a 
Holanda, França, Alemanha, Luxemburgo, Escócia e Inglaterra. 
Um marco importante que dá início ao declínio da repressão às práticas mágicas é a 
reforma da inquisição promulgada pelo Marquês de Pombal em 1774, Paiva declara que 
 
A partir desse momento a inquisição persegue os mágicos não já por supor que eram 
agentes diabólicos, como até então sucedera, mas apenas porque os considera 
impostores e ignorantes que deviam era ser desprezados e ridicularizados, como 
mostrava a experiencia das nações maispolidas da Europa. (2002, p.194) 
 
 
O discurso do regimento de 1774 passa a ter um caráter quase que pedagógico, 
incitando os inquisidores difundirem a ideia de que essas práticas não passavam de superstições 
e charlatanismo. Com essa nova “roupagem”, aconselhava-se que réus que persistissem na ideia 
de pacto com diabo fossem internados em hospitais sob alegação de não estarem em pleno 
funcionamento das suas faculdades mentais, além disso, “regula a forma do processo nestes 
casos, onde desparece a tortura e [...] a pena de morte é abolida [...] (PAIVA, 2002, p.194). 
 
25 
 
3.3 AS INSTITUIÇÕES REPRESSORAS E SUAS ATRIBUIÇÕES: A JUSTIÇA SECULAR, 
A JUSTIÇA INQUISITORIAL E A JUSTIÇA EPISCOPAL 
 
As instituições repressoras operavam em três instancias diferentes: a justiça secular, a 
justiça inquisitorial e a justiça episcopal (PAIVA, 2002, p.191). Como citado anteriormente, 
feitiçaria era considerada um crime de foro misto, ou seja, um crime que estava sob a jurisdição 
de qualquer um desses tribunais e seria julgado de acordo a instancia que desse o pontapé inicial 
para o processo, entretanto, uma regra geral estabelecia que a instancia inquisitorial se 
responsabilizasse no acompanhamento de processos em caso de heresia. 
A atuação dos tribunais seculares é pouco factual embora exista elementos que deixam 
evidente a jurisdição secular no campo da feitiçaria. Segundo Paiva, “[...] não há dados que 
permitam avaliar os resultados concretos a que essa actuação conduziu” (2002, p.196). A falta 
desta comprovação de dados se deve ao fato de que parte dos processos judiciais se perderam, 
contudo, são as Ordenações do reino que conjecturam a existência de uma atuação judicial sob 
o respaldo da justiça secular. Paiva ainda argumenta que: 
 
Além da legislação existente, algumas cartas de perdão dadas pelos monarcas, de que 
as mais antigas datam de 1435, provam a acção nesta esfera do poder secular. 
Confirmam-no ainda a noticia de feiticeiras presas por ordem regia, no reinado de D. 
João III e D. Sebastião. [...] Há outra documentação que prova que a justiça do rei 
julgou e prendeu indivíduos que cometeram delitos de feitiçaria. Numa lista de 294 
presos da cadeia de relação de Lisboa entre 1694 e 1696, dois eram feiticeiros. (2002, 
p.196-97). 
 
 
Conforme dados limitados disponíveis dos séculos XVII e XVIII, as punições regias 
consistiam em prisão, degredo e açoites, como exemplo, Paiva faz referência ao caso de cinco 
bruxas que foram degredadas em 1627 em uma denúncia apresentada à Inquisição de Coimbra 
(PAIVA, 2002). Em suma, não há conclusões definitivas no que diz respeito a atuação secular, 
não há como afirmar de modo preciso a intervenção ou não da coroa, o que se torna plausível é 
apenas levantar um esboço a partir desses indícios, a ideia de que a efetivação da justiça secular 
operou de maneira incisiva em relação aos tribunais inquisitoriais e episcopais ainda não se 
sustenta como um todo. 
Em contrapartida aos tribunais seculares, os inquisitoriais foram os tribunais que mais 
deixaram evidências no que diz respeito ao seu modo de atuação, a forma como se desenrolaram 
os processos inquisitoriais se desdobraram em fases que vão desde recolhimento de provas, 
detenção de réus e interrogatórios até a utilização da tortura como método de confissão de 
culpas. 
26 
 
Os tribunais episcopais eram os que possuíam maior abrangência territorial e que 
através das visitas pastorais constantes exerciam uma pratica persecutória mais contundente se 
comparado as instancias secular e inquisitorial. A partir das visitações resultavam devassas 
especificas com o propósito de apurar a existência de feiticeiros, segundo Paiva,” criou-se uma 
rede bastante apertada de controle” (2002, p.205). Devido a eficácia em adentar territórios, os 
visitadores conseguiam coletar uma quantidade relevante de material para acusações. 
A inquisição portuguesa contava com efetivação de mecanismos para fazer com que 
sua mensagem fosse propagada até chegar ao conhecimento da população, Paiva vai elencar 
esses mecanismos em quatros etapas: a realização das visitas pelo território nacional7; os editos 
de fé8, que eram lidos e também fixados nas portas das igrejas; os comissários, ou seja, agentes 
eclesiásticos cuja a finalidade era garantir uma maior abrangência no que diz respeito à 
cobertura da atuação inquisitorial em todo território, ressaltando o fato de que essa rede de 
comissários cresceu de maneira abrupta durante o século XVII; e por fim os autos-de-fé, que se 
concretizavam em atos de humilhação pública que exercia um duplo papel: primeiro, utilizar a 
humilhação pública para entreter as massas; segundo, usar como subterfúgio a punição aos 
inimigos como instrumento de intimidação. 
 
3.4 “O TERROR PSICOLÓGICO QUE ANIQUILA O ESPÍRITO É MUITAS VEZES MAIS 
EFICAZ QUE A VIOLÊNCIA FÍSICA”: OS AUTOS-DE-FÉ COMO RECURSO DE 
INTIMIDAÇÃO E HUMILHAÇÃO PÚBLICA 
 
Os autos-de-fé, estudados por Luiz Nazário tão criteriosamente sob a perspectiva de 
um fenômeno que se apresenta sob a forma de espetáculo de massas, é peça fundamental para 
compreender o funcionamento do Santo Ofício português. Como recurso principal, os autos-
de-fé se valiam da humilhação pública como “técnica de dominação e pressupõe uma intima 
cumplicidade entre o poder que a promove e o público que a goza” (NAZARIO, 2005, p.17), 
em suma, os autos-de-fé desempenhava também o papel de entretenimento e satisfação coletiva 
e funcionavam também como uma espécie de intimidação. Ainda nesse sentido, Nazário vai 
dizer que: 
 
A humilhação pública possui uma história, e seus métodos foram desenvolvidos com 
o máximo rigor nos autos-de-fé promovidos pela Inquisição, desde tempos medievais, 
 
7 Ver também Paiva (2002, p.198) segundo o autor, essas visitas não duram muito tempo, a última foi realizada 
em 1637. 
8 “nos quais discriminavam os comportamentos que se deviam delatar no tribunal do Santo Ofício”. 
27 
 
e que atingiram a plenitude de sua forma entre os séculos XVI e XVIII na Península 
Ibérica, em espetáculos de massa que inauguraram uma estética totalitária (2005, 
p.18). 
 
 
Além de se caracterizar como uma técnica “sofisticada” de humilhação pública, os 
Autos-de-Fé se constitui também como um evento de elementos variados que mesclam “ritual 
primitivo, festa nacional, celebração religiosa, julgamento público e teatro de crueldade” 
(NAZÁRIO, 2005:20) segundo Luiz Nazário, autor de “Autos-de-Fé como Espetáculos de 
Massa”, existe uma lacuna acerca de uma abordagem sob um viés político e antropológico, as 
pesquisas sobre essa temática costumam priorizar os aspectos processuais da Inquisição. 
As principais fontes que traçam as peculiaridades dos Autos-de-Fé são coletadas 
através de uma documentação composta por leis, decretos e/ ou regimentos que foram 
moldados conformes os procedimentos designados pelo Santo Ofício, possibilitando assim que 
o fenômeno fosse esquematizado em diversas fases: a propaganda antijudaica, a violência 
praticada pela massa aberta, os hereges como verdadeiros inimigos, mediação entre a massa 
revoltada e os alvos potenciais, satisfação da massa em acompanha o espetáculo de humilhação 
pública- uma verdadeira catarse coletiva, uso de violência sob o pretexto de purificação através 
do sagrado. 
A massa desempenhou um papel elementar no que tange a legitimação e durabilidade 
de uma instituição repressora que em contrapartida oferecia uma espécie de entretenimento para 
a população: 
 
Durante toda sua existência, a Inquisição contou com forte apoio popular, alicerçando 
seu poder sobre uma cumplicidade de origem, periodicamente renovada por meio de 
delações anônimas, juramentos de fidelidade, frequência constante às cerimonias 
religiosas e assistência ativa durante os autos-de-fé, com participação jubilosa no 
lançamentode insultos e pedras aos hereges condenados, na humilhação dos 
sambenitados e nas corridas ao queimadeiro. (NAZARIO, 2005, p.32) 
 
 
A espetacularização da barbárie estabelecia a institucionalização da violência por meio 
de uma aliança entre Estado e Igreja, “a massa servia de sustentáculo à ordem político-religiosa, 
que satisfazia sua necessidade de descarga de forma oficial, objetiva e limpa, através do 
aparato” (NAZARIO,2005, p.34). A Inquisição através dos autos-de-fé se estabelecia como o 
aval legitimo para promover o linchamento público perante uma aura de combate e aniquilação 
do inimigo, que no caso poderia ser o cristão novo ou a feiticeira, inimigos esses que foram 
deliberadamente definidos como transgressores da fé a partir do discurso eclesiástico. 
 
28 
 
3.5 A ATUAÇÃO DO DIABO DENTRO DO DEBATE TEOLÓGICO: ANTAGONISMO, 
COMUNICAÇÃO, INVOCAÇÃO E PACTO 
 
Dentro do espectro da religiosidade popular, a linha entre a magia natural e a magia 
diabólica poderia ser tênue e fluída, não obstante, Deus e Diabo se mostravam um antagonismo 
presente em denúncias referentes a adivinhadores e feiticeiros em Portugal do século XVI. Era 
de consenso geral a credibilidade na existência de uma onipresença demoníaca, o que em termos 
práticos abriria margem para uma interpretação coletiva de que as adversidades cotidianas 
significavam que o demônio poderia ser de certa forma ser superior a Deus. No que tange a essa 
interpretação, Bethencourt cita três casos que exemplificam esse descontentamento para com a 
figura Divina versus a capacidade superior do Mal: 
 
Leonor Velha, cujo marido lhe dava maus tratos e andava amancebado com uma 
negra, dizia com rancor que o Demonio podia mais que Deus. A mesma expressão se 
encontrava em Madalena d’Aguiar, cujo irmão casara contra sua vontade, dizendo ela 
publicamente que ‘seu irmão casa com Antonia Mendes com feitiços porque o 
demônio podia mais que Deus’. João Heredia, soldado castelhano que perdera no jogo 
mais de duzentos reis, blasfemara cego de cólera: ‘mais valia o diabo que Deus’. 
(2004, p. 175) 
 
 
O centro do debate teológico buscava repostas sobre a atuação do demônio, a questão 
girava em torno de duas proposições: se o Diabo possuía poderes e capacidade para alterar a 
ordem dos acontecimentos ou se o seu poder se restringia apenas a enganar, iludir ou seduzir 
os mortais. A opinião mais difundida entre clérigos portugueses endossa o caráter enganador 
do Diabo “cujo poder entre os homens é limitado pela autoridade divina e cuja índole não é 
totalmente malévola” (BETHENCOURT, 2004, p. 177). 
A comunicação com a entidade das trevas era considerada uma pratica corriqueira no 
século XVI, sob a perspectiva da demonologia, bruxas e feiticeiras eram responsáveis por 
mediarem o contato dos demônios com o mundo terreno, além disso, na própria concepção 
cristã, o Diabo é tratado como uma espécie de deus caído cuja existência se faz componente 
substancial à fé católica, em suma, sem a dicotomia Deus e Diabo o cristianismo não se sustenta. 
De acordo “relatos”, as invocações ocorriam ao ar livre e a noite e por cautela seria 
vedado o uso do espaço doméstico para o ritual mesmo sob proteção, pois, a liturgia em questão 
poderia colocar em perigo os moradores mais indefesos como exemplo crianças. Nas supostas 
aparições, a representação do demônio era descrita “por vozes e zunidos, redemoinhos, de vento 
e vapores de enxofre” (BETHENCOURT, 2004, p.182, sob forma física era frequentemente 
narrado como ser zoomórfico, mais especificamente um bode de cor preta. Para além da 
29 
 
aparição zoomórfica, nos processos inquisitoriais constavam relatos de “ajuntamento carnal” 
entre humanos e demônios, eram os ditos íncubos e súcubos; o primeiro se refere a demônios 
sexuais com traços femininos, o segundo diz respeito a demônios de aspecto masculino. 
O Diabo persuadia os seus invocadores a fim de convencê-los a firmar um pacto, como 
vantagem, prometia conceder aos seus fiéis certos caprichos como: sabedoria, poder, riqueza e 
sedução erótica. A consagração do pacto geralmente consistia em 
 
[...] dar um pedaço de carne do corpo ou em dar sangue de um membro (a mão 
esquerda ou o pé esquerdo), sangue esse que era chupado pelo diabo ou aproveitado 
por ele para redigir um termo escrito de concerto. Os sinais do corpo (situado nos 
referidos membros) testemunham os sacrifícios diabólicos[...] (BETHENCOURT, 
2004, p.188) 
 
 
Em troca, o Diabo exigia a renegação da fé em Deus, nos anjos e santos; a quebra desse 
pacto provocaria no demônio uma reação colérica, como exemplo, Bethencourt traz relatos de 
um certo homem chamado Simão Pinto, o mesmo afirmava ter visto o demônio enquanto 
aprendia o padre nosso e ave Maria, “o demônio ter-lhe-ia aparecido em forma de homem muito 
grande, que o lançou à agua e só parou de o tentar afogar quando o rapaz lhe prometeu que as 
não aprenderia e assim o cumpriu” (2004, p. 190). 
 
3.6 A PRESENÇA DA FEITIÇARIA NO REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS 
DE 1640 
 
Foram quatro regimentos do Santo Ofício: um no século XVI, dois no século XVII e 
um no século XVIII, sendo o mais importante o de 1640, o quarto na ordem cronológica e o 
que serve de base para analisar o funcionamento do tribunal na América portuguesa. A estrutura 
do Regimento da Inquisição (1640)9 é composto por três livros, o primeiro é intitulada de “Dos 
ministros, e officiaes do Santo Ofício; e das cousas, que nelle ha de haver para a expedição do 
seu ministério”; o segundo livro “Da forma, e ordem, de que hão de ser processados os Reos de 
Delictos, que pertencem ao conhecimento do Santo Officio” e por fim, o terceiro livro que não 
tem denominação alguma mas que é a parte do regimento que consta em um dos tópicos a 
descrição da feitiçaria enquanto crime. 
 
9Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal ordenado com o Real Beneplacito, e Região 
Auxílio pelo Eminentíssimo, e Reverendíssimo Senhor Cardeal da Cunha, dos Conselhos do Estado, e Gabinete, 
de sua Majestade e Inquisidor Geral nestes Reinos, e em Todos os seus Domínios. 
30 
 
O titulo XI10 do livro III faz todo um preambulo enaltecendo a sólida doutrina da 
Igreja, dos grandes teólogos e a erudição e qualificação dos autores eclesiásticos, disserta sobre 
o caráter demoníaco dos feiticeiros reafirmado por meio de pacto com espíritos malignos e 
chama atenção sobre esses tais espíritos estarem sempre enfurecidos contra miserável 
humanidade, coloca em questão o argumento teológico “de que pode haver alguns casos, nos 
quaes os referidos espíritos diabólicos, que nada podem por si mesmos, possam atormentar as 
Creaturas Humanas, se Deos lho permitir” além de trazer à tona a seguinte exortação: 
 
Se ha no Mundo huma Arte, que pelas vias de evocações dos mesmos Demonios[..] 
ensine a transportar velozmente os corpos humanos pelo ares de humas partes do 
Mundo para outras remotas, a fazer dóceis animais ferozes, a escurecer o Sol, as 
Estrellas [...]e com mortes barbaras, e cruéis ao arbítrio dos Professores de tão nociva 
Arte: Porque quem tal cresse, incorreria em absurdos taes [...] de querer dar ao 
Demonio os Attributos, que só pertencem ao Deos de Jacob; outro de confundir os 
milagres da Onnipotencia Divina com as operações do Inferno; outro o de suppôr com 
offensa da Divina bondade, que esta poderia permitir a huma vil feiticeira [...] que 
com figuras de tinta , ou de carvão; com cozimento de ervas; com Blasfemias, e outras 
semelhantes superstições; pudessem privar as gentes da fazenda, da saúde, e até da 
mesma vida [...]. (CUNHA, 1640, p.119).11 
 
 
O título XI conclui “teológica, jurídica e geometricamente” que os feitiços, sortilégios 
e adivinhações eram obras forjadas por pessoas poderosas que se servia dos “magos” e 
utilizavam dessas manipulações como estratégia para estabelecera ignorância e o fanatismo 
sobre os povos; ou invenção de gente pobre ou mendicante que recorriam às superstições 
utilizando as mesmas para “matar a fome sem fatigarem o corpo com trabalho”; ou a 
imaginação fértil das mulheres, traçando aqui uma relação entre magia e o feminino. 
 
 
10 “Dos Feiticeiros, Sortilegos, Advinhadores, Astrologos, Judiciarios e Maleficos”. 
11 Trecho retirado da p. 119 do Regimento de Inquisição. 
31 
 
4 ASPECTOS GERAIS DA RELIGIOSIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA: ENTRE O 
PÚBLICO E O PRIVADO 
 
O exercício da fé católica não se restringia apenas ao âmbito privado e doméstico, as 
cerimonias sacras eram comunitárias e faziam parte do cotidiano da vida pública local. Partindo 
desse pressuposto, é possível constatar que rituais públicos religiosos poderiam servir como um 
eficiente mecanismo de controle social, segundo Luiz Mott: 
 
[...] as cerimonias e os rituais públicos sempre tiveram uma função catalisadora do 
etos comunitário, funcionando igualmente como eficiente mecanismo de controle 
social e manutenção da rígida hierarquia social da igreja militante. Assim, a missa 
obrigatória aos domingos e dias santos de guarda [...] a indispensabilidade da 
frequência aos sacramentos, são algumas das praticas religiosas amalgamadoras do 
corpo místico no Brasil de antanho, um contrapeso socializador significativo para 
compensar a dispersão espacial e isolamento social dos colonos na imensidão da 
América portuguesa. (2010, p. 159) 
 
 
Cerimonias e rituais públicos faziam parte da cultura portuguesa, ao inserir a 
religiosidade na colônia, a Igreja teve de se adaptar as condições urbanas que estavam postas 
no período seiscentista: 
 
[...] ruas inóspitas pela muita poeira no verão e lama na estação chuvosas, as praças 
ameaçadoras pela presença de animais selvagens, índios e negros indômitos, muitas 
das celebrações religiosas que no Velho Mundo tinham lugar ao ar livre, na America 
portuguesa ou foram abandonadas ou tiveram de se transferir para dentro dos templos 
ou, ainda, ficar restrita à celebração doméstica. (MOTT, 2010, p.160-161) 
 
 
Para fins de contextualização, é importante destacar que as desigualdades 
socioeconômicas na América portuguesa eram profundas e entranhadas nas próprias estruturas 
de funcionamento da sociedade colonial ao passo que os dízimos e demais benesses materiais 
serviam como pano de fundo que justificava o incentivo à vida clerical comunitária. É a partir 
da arrecadação dessas benesses que a manutenção da riqueza do culto e da vida confortável dos 
clérigos se torna plausível e sustentável. 
As disparidades sociais refletiam diretamente no modo de práticas religiosas da 
Colônia, ao chegar na América portuguesa o colono se deparou com uma estrutura 
organizacional diferente; um elemento crucial para exemplificar as disparidades entre os grupos 
sociais na América portuguesa no que se refere a religiosidade era o fato de que as elites locais 
“branca, minoritária demograficamente” optava por um culto mais restrito ao âmbito 
doméstico, “os mais esnobes e elitistas[...] construíam seus próprios locais de culto [...] no 
32 
 
interior ou anexos às suas moradias, evitando assim o convívio com os fiéis de outras raças ou 
de estratos inferiores” (MOTT, 2010, p.161). 
As nossas igrejas foram visitadas por cronistas e viajantes, uma observação recorrente 
nesses relatos eram a falta de compostura por parte dos participantes e dos celebrantes dos 
cultos, 
 
[...] clérigos e leigos ávidos de aproveitar aqueles preciosos momentos de convívio 
intersexual a fim de fulminarem olhares indiscretos, trocarem bilhetes furtivos e, os 
mais ousados, tocarem maliciosamente o corpo das nem sempre circusnspectas 
donzelas ou matronas. Os volumosos Cadernos e Processos dos Solicitantes, 
conservados na Torre do Tombo, onde estão arrolados detalhes sobre os namoricos e 
“assedio sexual” dos sacerdotes no próprio confessionário, comprovam que muitos 
lobos estavam disfarçados de cordeiros, fazendo do tribunal da penitencia alcova para 
pecaminosas imoralidades. (MOTT, 2010, p. 161-162). 
 
 
A partir de um panorama sobre a fé no Novo Mundo o quadro que pode se traçar é a 
existência de alguns tipos de fieis que vão desde os mais fervorosos, os católicos praticantes 
autênticos, que de forma convicta se colocava sob os ensinamentos e dogmas infringidos pela 
hierarquia da Igreja Católica; passando pelos católicos praticantes superficiais, que de forma 
conveniente exerciam a fé praticando os rituais obrigatórios apenas para a validação social e 
chegando até os indiferentes às liturgias, os católicos displicentes; sobre este último tipo Mott 
afirma que 
 
[...] evitavam os sacramentos e demais cerimonias sacras não por convicção 
ideológica, mas por indiferença e descaso espiritual, muitas vezes incluindo em seu 
cotidiano “sincretismos” heterodoxos; pseudocatólicos: boa parte dos cristãos-novos, 
animistas, libertinos e ateus, que apenas por conveniência e camuflagem, para evitar 
a repressão inquisitorial, frequentavam os rituais impostos e controlados pela 
hierarquia eclesiatica, mas que mantinham secretamente crenças heterodoxas ou 
sincréticas. (MOTT, 2010, p.175). 
 
 
No Brasil colônia a fundação de conventos ocorreu tardiamente em relação ao Peru e 
México, por exemplo. Com a ausência de instituições religiosas onde pudessem se consagrar 
as donzelas mais fervorosas se dedicavam à devoção fazendo de suas casas os próprios 
claustros. Para exemplificar, usaremos o caso de duas mulheres oriundas da comarca de 
Alagoas e sete irmãs de Recifes, ambos do mesmo período: 
 
Na comarca de Alagoas[...] nos inicios dos setecentos, as donzelas Maria de Castro e 
Beatriz da Costa viveram em perpetua clausura dentro da casa de seus pais, e “se 
condenaram inocentes a um cárcere de que não rairam senão para o cárcere da 
sepultura, debilitando o corpo com rigorosos açoites, usando penetrantes espinhos em 
lugar de cilícios, passavam os dias e as noites em continuas orações”. No Recife, à 
33 
 
mesma época, viveram sete irmãs, filhas de Francisco Mendes de Oliveira e Leonor 
de Almeida, pessoas nobres e ricas. “Mortos os pais, se conservaram na própria casa 
com os resguardos de um mosteiro observante. A sua ordinária habitação era em um 
oratório que havia na mesma casa, nele perseveraram muitas horas de joelhos, orando 
mental e vocalmente, derramando muitas e copiosas lagrimas. De sua casa as irmãs 
saiam somente a ouvir missa, confessar e comungar [...] na igreja mais vizinha, e 
vinham tão modestamente cobertas, que não se acha quem lhes visse o rosto. (MOTT, 
2010, p.179-180). 
 
 
Neste contexto, a religiosidade fervorosa era supervalorizada a ponto de que ter em 
casa algum parente voltado à vida devocional era sinônimo de prestigio e garantia de bens 
materiais, com isto, começaram a vir à tona casos de falsas beatas que caíram nos processos da 
Inquisição portuguesa por “forjar visões e dons preternaturais com vistas ao reconhecimento 
social e ao usufruto das mordomias proporcionadas pelos devotos” (MOTT, 2010, p.182). 
Muitas delas foram punidas com o degredo sendo enviadas para o Rio de Janeiro ou Bahia. 
Em toda colônia, mas sobretudo no Nordeste, eram frequentes as denúncias contra 
pessoas que recorriam aos trabalhos das feiticeiras mesmo com a Igreja Católica exercendo de 
forma ostensiva sua função institucional de maior hierarquia e se opondo incisivamente “desde 
os tempos apostólicos, a todas as religiões não cristãs, rebaixando-as à condição de idolatria, 
superstição e feitiçaria [...]” (MOTT, 2010, p.192). 
 
4.1 O CASAMENTO COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE DA SEXUALIDADE 
FEMININA 
 
As mulheres eram domesticadas para reprimir seus desejos, o casamento precoce era 
estimulado pela própria Igreja com o objetivo de evitar que as moças se corrompessem antes

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