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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA – UESB DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA - DH JESSICA MACHADO SILVA A ESTIGMA DO MAL SOBRE A MULHER E O DISCURSO ECLESIÁSTICO: DA “CAÇA ÀS BRUXAS” NA EUROPA À FEITIÇARIA NA AMÉRICA PORTUGUESA (XVI-XVII). VITÓRIA DA CONQUISTA – BAHIA SETEMBRO DE 2019 2 JESSICA MACHADO SILVA A ESTIGMA DO MAL SOBRE A MULHER E O DISCURSO ECLESIÁSTICO: DA “CAÇA ÀS BRUXAS” NA EUROPA À FEITIÇARIA NA AMÉRICA PORTUGUESA (XVI-XVII). Monografia apresentada ao curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, como pré-requisito para a obtenção do título de Licenciatura em História. Orientadora: Grayce Mayre Bonfim Souza VITÓRIA DA CONQUISTA – BAHIA SETEMBRO DE 2019 3 JESSICA MACHADO SILVA A ESTIGMA DO MAL SOBRE A MULHER E O DISCURSO ECLESIÁSTICO: DA “CAÇA ÀS BRUXAS” NA EUROPA À FEITIÇARIA NA AMÉRICA PORTUGUESA (XVI-XVII). Monografia apresentada ao curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, como pré-requisito para a obtenção do título de Licenciatura em História. Orientadora: Profª. Drª. Grayce Mayre Bonfim Souza Departamento de História (UESB) Jessica Machado Silva (UESB) VITÓRIA DA CONQUISTA – BAHIA SETEMBRO DE 2019 4 RESUMO O objetivo deste trabalho é mostrar o discurso eclesiástico como legitimador do fenômeno conhecido como “Caça às Bruxas” e analisar o trajeto histórico que fez da mulher a figura estigmatizada e elevada à categoria de agente de Satã, passando pela institucionalização da sanha persecutória a partir da Inquisição, enfatizando o estabelecimento do Santo Ofício português e sua atuação na América portuguesa dentro de uma perspectiva que deixa evidente a relação intrínseca entre feitiçaria e sexualidade feminina. A proposta é fazer um balanço histórico a partir de uma abordagem que contextualmente se insere no Antigo Sistema Colonial, o que nos confere algumas especificidades sobre o tema, pois, embora a perseguição sistemática às feiticeiras seja uma característica da Europa Ocidental no período da Idade Moderna, nesta pesquisa, há um salto geográfico que possibilita uma análise da jurisdição do Santo Ofício português em outros domínios intercontinentais, o chamado Novo Mundo. PALAVRAS CHAVE: América portuguesa, Caça às Bruxas, Feitiçaria, Inquisição. 5 ABSTRACT The purpose of this work is to show the ecclesiastical discourse as a legitimizer of the phenomenon known as the “witch-hunt” and analyze the historical trajectory that made women the stigmatized figure and elevated to the category of agent of Satan, through the institutionalization of persecutory from the Inquisition, emphasizing the establishment of the Portuguese Holy Office and its performance in Portuguese America from a perspective that makes evident the intrinsic relationship between witchcraft and female sexuality. The proposal is to make a historical balance from an approach that contextually fits into the Old Colonial System, which gives us some specifics on the subject, because, although the systematic pursuit of witches is a feature of Western Europe in the period of the Modern Age In this research, there is a geographical leap that allows an analysis of the jurisdiction of the Portuguese Holy Office in other intercontinental domains, the so-called New World. KEYWORDS: Inquisition; Portuguese America; Witchcraft; Witch-hunt. 6 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 7 2 DAS ORIGENS DA INQUISIÇÃO À HIERARQUIA DA IGREJA: A LEGITIMAÇÃO ATRAVÉS DO MEDO E AUTORITARISMO ................................. 9 2.1 CONTEXTO SOCIAL E BRUXARIA: UM PANORAMA GERAL DA “CAÇA ÀS BRUXAS” NA EUROPA MODERNA DO SÉCULO XV À PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII ................................................................................................................... 10 2.2 SUMMUS DESIDERANTIS AFFECTIBUS E O MALLEUS MALEFICARUM .... 11 2.3 A INVENÇÃO DA BRUXA ........................................................................................ 13 2.4 O “HEREGE COMO CRÍTICO DOS VALORES ESPIRITUAIS DE UMA SOCIEDADE” ..................................................................................................................... 17 3 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O ESTABELECIMENTO DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL .................................................................................................................................. 18 3.1 MODUS OPERANDI DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS ......................................... 20 3.2 A ESPECIFICIDADE DA “CAÇA ÀS BRUXAS” EM PORTUGAL ........................ 23 3.3 AS INSTITUIÇÕES REPRESSORAS E SUAS ATRIBUIÇÕES: A JUSTIÇA SECULAR, A JUSTIÇA INQUISITORIAL E A JUSTIÇA EPISCOPAL ........................ 25 3.4 “O TERROR PSICOLÓGICO QUE ANIQUILA O ESPÍRITO É MUITAS VEZES MAIS EFICAZ QUE A VIOLÊNCIA FÍSICA”: OS AUTOS-DE-FÉ COMO RECURSO DE INTIMIDAÇÃO E HUMILHAÇÃO PÚBLICA .......................................................... 26 3.5 A ATUAÇÃO DO DIABO DENTRO DO DEBATE TEOLÓGICO: ANTAGONISMO, COMUNICAÇÃO, INVOCAÇÃO E PACTO .................................... 28 3.6 A PRESENÇA DA FEITIÇARIA NO REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS DE 1640 ..................................................................................................... 29 4 ASPECTOS GERAIS DA RELIGIOSIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO ............................................................................. 31 4.1 O CASAMENTO COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE DA SEXUALIDADE FEMININA .......................................................................................................................... 33 4.2 RELAÇÃO INTRÍNSECA ENTRE FEITIÇARIA E SEXUALIDADE FEMININA NA AMÉRICA PORTUGUESA......................................................................................... 34 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 38 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 39 7 1 INTRODUÇÃO Para que se entenda o fenômeno que é popularmente conhecido como “caça às bruxas” é necessário ressaltar o papel fundamental desempenhado por teólogos, pregadores e inquisidores da época moderna, especificamente nos séculos XVI e XVII, e como o discurso eclesiástico legitimou a perseguição de mulheres. No trabalho em questão, pretende-se de forma geral analisar a relação intrínseca que existe entre feitiçaria e bruxaria com a sexualidade feminina e buscar compreender-se porquê o sexo feminino era considerado “bode expiatório”. Os sermões dos clérigos traziam em seu discurso a predestinação natural que a mulheres tinham para o mal. Em História do Medo no Ocidente, Jean Delumeau vai afirmar que “embora a maior parte dos sermões de outrora esteja perdida, aqueles que nos restam deixam adivinhar bem que foram frequentemente os veículos e os multiplicadores de uma misoginia com base teológica: a mulher é um ser predestinado ao mal” (1987, p.320). Nessa atmosfera de repulsa e hostilidade à mulher, em que a mesma era considerada uma espécie de “diabo doméstico”, a literatura eclesiástica foi um dos mecanismos responsáveis por impulsionar a intolerância contra o gênero feminino, cabendo destacar o Malleus Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras), considerado o mais importante manual para identificaçãoe “Caça às Bruxas”1 e escrito em 1484 por Heinrich Kramer e James Sprenger. Outro instrumento ideológico, utilizado de forma eficaz para convencer mulheres de sua suposta inferioridade foi a Bíblia, o próprio mito da origem da humanidade, o Gênesis, traz em seu cerne o peso da desigualdade entre os sexos: Deus cria a partir do barro Adão, e só posteriormente, a partir de sua costela da origem à Eva, representando assim, a mulher como uma extensão do homem, um ser subalterno. Designada como a responsável por carregar o estigma da perdição, as considerações acerca das mulheres eram: “Mal magnifico, prazer funesto, venenosa” (DELUMEAU, 1987). Além do mais: [...] a mulher foi acusada pelo outro sexo de ter introduzido na terra o pecado, a desgraça e a morte. Pandora grega ou Eva judaica, ela cometeu a falta original ao abrir a urna que continha todos os males ou comer o fruto proibido. O homem procurou um responsável para o sofrimento, para o malogro, para o desaparecimento do paraíso terrestre, e encontrou a mulher. (DELUMEAU, 1987.p.314). Em tese, Delumeau aponta também sobre a contribuição da imprensa na opressão da mulher e afirma que houve divulgação de uma propaganda que serviu para corroborar na 1 Por se tratar especificamente desse delito. 8 construção da imagem feminina como um “Agente de Satã” (1987, p.322), além de elencar alguns pontos principais que foram base de argumentos teológicos para justificar tal demonização. De forma geral, os argumentos eram: Eva como “mãe do pecado”, “fonte de toda perdição”, e por isso suas descendentes estavam fadadas ao pecado; as mulheres atraem os homens para o “abismo da sensualidade”; são “advinhas ímpias”; “ministras da idolatria” pois fazem o homem cometer apostasia; a mulher é “insensata, inconstante, tagarela, ignorante”; passível de qualquer desconfiança; orgulhosas e impuras, trazem perturbações à Igreja (1987, p.323- 325). A obra de Delumeau da margem para que algumas questões sejam levantadas, tais como: o estigma do mal sobre a mulher e a literatura eclesiástica como legitimação desse discurso; uma análise para entender se a “misoginia” de alguma forma serviu de pano de fundo para a institucionalização da “Caça às Bruxas”; a necessidade de coagir as mulheres a serem dóceis e obedientes que em suma, está intimamente relacionado com a doutrinação e domesticação dos corpos femininos. No que tange ao assunto abordado, é perceptível que houve uma coalizão de forças, ou seja, teólogos e médicos se uniram para fornecer pressupostos que desvalorizavam as mulheres, logo, esses pressupostos serviram de suporte para os juristas. O presente trabalho se organiza estruturalmente da seguinte forma: o primeiro capítulo destina-se a tratar de forma introdutória as origens da Inquisição, trazer questões referentes ao contexto social da “Caça às Bruxas” na Europa Moderna, analisar a bula papal Summus desiderantis affectibus como documento legitimador da obra Malleus Maleficarum além de traçar os fundamentos eclesiásticos que possibilitaram a invenção da Bruxa. No segundo capitulo, a proposta é adentrar no caso específico de Portugal levando em consideração panorama geral do que foi a “Caça” na Europa Moderna, analisar as circunstâncias que possibilitaram Portugal se diferenciarem do restante do continente europeu no que tange o fenômeno das bruxas, ressaltando especificidades em relação as demais inquisições. Pretende- se também, estudar o modus operandi da Inquisição portuguesa e a atuação na principal colônia, como se dava a organização, funcionamento e, sobretudo os motivos que impulsionaram suar fundação. No terceiro capítulo, ocorre um salto geográfico no recorte da pesquisa. Após passarmos pela Europa de forma geral e analisado o Santo Ofício em Portugal, o objetivo do capítulo em questão é analisar os aspectos sociais e religiosos da América portuguesa relacionando com as práticas de feitiçaria na Colônia, revelando o caráter sexual e feminino do universo mágico das crenças populares na chamada terra brasilis. 9 2 DAS ORIGENS DA INQUISIÇÃO À HIERARQUIA DA IGREJA: A LEGITIMAÇÃO ATRAVÉS DO MEDO E AUTORITARISMO A inquisição surge em 1232 quando o Imperador Frederico II divulga os editos de perseguição aos hereges em todo território do Sacro Império Romano-Germânico com o propósito de evitar divisões internas, pois, a fé cristã era um elemento que para além do caráter religioso cumpria também o papel de unificação política. Com o receio de haver ambições político-religiosas nesse processo de surgimento da Inquisição, o papa Gregório IX toma para si o encargo de organizar e estabelecer os inquisidores papais. Os inquisidores que foram convocados pertenciam a ordem dominicana, este fato se seu devido a sólida e rigorosa formação dos dominicanos, que sobretudo, tinha como base ideológica a tese tomista. Uma série de documentos pontifícios foram lançados a fim de legitimar as práticas persecutórias criando assim uma atmosfera de rígido controle das doutrinas. Em 1252. A bula de Inocêncio IV, a Ad extirpanda, concede autorização para torturar os acusados que oferecessem resistência. Quase trezentos anos depois, através do Papa Paulo III, em 1542 ocorre o estabelecimento da Sagrada Congregação da Inquisição Romana e Universal ou Santo Ofício, essa instituição passa a funcionar de acordo Boff “como corte suprema de resolução de todas as questões ligadas à fé e à moral”. Em 1578, sob a convocação de Thoma Zobbio, comissário geral da Inquisição romana, o canonista espanhol Francisco de La Peña, também pertencente à ordem dos dominicanos, teve como incumbência a revisão e ampliação do Manual dos Inquisidores escrito por Nicolau Eymerich em 1376. Nesse contexto, foi o surgimento de novas heresias no século XVI que fez surgir a necessidade de incorporar novas diretrizes ao Manual. A hierarquia da Igreja é inteiramente calcada no autoritarismo, o sistema adotado pela santa instituição consiste no domínio de uma minoria eclesiástica sobre uma imensa população que é condicionada a se submeter a um rígido controle social e moral. A doutrina se revela arbitrária, não há possibilidade para divergências, muito pelo contrário, tudo aquilo que questionasse a ordem vigente deveria ser recriminado, perseguido, extirpado e aniquilado. O cerne da questão é o poder, e o poder para que se consolide faz-se necessário do uso de um discurso deliberadamente elaborado a fim de convencer as pessoas, em suma, o medo é o principal recurso utilizado pela Igreja para que a palavra de Deus impregne a mentalidade dos fiéis. 10 2.1 CONTEXTO SOCIAL E BRUXARIA: UM PANORAMA GERAL DA “CAÇA ÀS BRUXAS” NA EUROPA MODERNA DO SÉCULO XV À PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII É substancial trazer à tona a conjuntura social em que se fez emergir a Bruxa, pois, apenas as transformações e conflitos religiosos característicos do início do período moderno não são suficientes para fornecer uma explicação satisfatória sobre o fenômeno em questão. A bruxaria é designada como um crime imaginário visto que, a partir de uma análise factual é inconcebível a ideia de que pessoas, majoritariamente mulheres, possuíam o dom de se comunicar com a entidade metafísica definida como Diabo com o propósito de evocar malefícios a quem bem entendesse e até mesmo se reunirem em sabás com o demônio para praticar rituais heréticos com banquetes e orgias quiméricas. Devido as condições postas, é tendência geral que tratemos deste fenômeno como um produto das profundas transformações sociais que ocorreram na Europa entre os séculos XV à primeira metade do século XVIII; nesse período ocorreu um enorme salto na densidade demográfica, desenvolvimento das cidades e mudanças significativas nas relações comerciais que definiram uma outra configuração econômicamercantil, as condições socioeconômicas devem ser consideradas com a finalidade de contextualizar as circunstâncias de uma determinada época, mas, segundo Levack: Surge um problema adicional quando se tenta abordar em termos gerais o contexto social dos julgamentos por bruxaria através da Europa por um período extenso de tempo. Ainda que muitos casos de bruxaria brotassem de circunstancias sócio- econômicas semelhantes, as condições, obviamente, variavam de lugar para lugar e de época para época. Mesmo quando concentramos nossa atenção sobre uma área geográfica específica durante um período relativamente breve, descobrimos que as acusações e julgamentos de bruxaria refletiam geralmente uma grande gama de tensões sociais. (LEVACK, 1988, p.121) Não há como partir de uma única interpretação socioeconômica para descrever de forma generalizada um fenômeno que se manifestou de forma específica em cada localidade da Europa de forma mais veemente entre o XV ao XVII, o que se pode fazer é […] descrever os ambientes em que as acusações de bruxaria mais comumente surgiam, estabelecer as características sociais mais comuns dos indivíduos escolhidos para serem julgados e explorar algumas das razões pelas quais tais indivíduos eram particularmente vulneráveis à acusação de bruxaria. (LEVACK, 1988, p.121) 11 Embora tais transformações sejam essenciais para delinear o contexto social da Europa moderna, muitas das condições sociais aqui colocadas não eram necessariamente novidade, muitas delas já eram inerentes às sociedades medievais pré-capitalistas. Em síntese, sobre o contexto socioeconômico da bruxaria, é importante reconhecer que “os conflitos sociais que culminaram nos julgamentos, ou os reforçaram, nem sempre foram produtos de grandes mudanças sociais” (LEVACK, 1988, p.123). Atribuir todas as questões quem envolvem o fenômeno da bruxaria como uma criação concebida exclusivamente por mudanças sociais pode ser equivocado por haver o risco da ausência de documentos que respaldem tal afirmação. 2.2 SUMMUS DESIDERANTIS AFFECTIBUS E O MALLEUS MALEFICARUM Em 1484 a bula papal redigida por Inocêncio VIII inaugura um patamar ainda mais ostensivo da “caça”. A bula Summus desiderantis saffectibus2 é um documento que significa o verdadeiro aval para se declarar guerra às bruxas e todas as práticas mágicas que naquele contexto considerava-se realidade, além de servir de base para a elaboração do Malleus Maleficarum, considerada o grande tratado anti bruxaria da época moderna escrito pelos dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger. Inocêncio VIII delineia os objetivos da bula Summus desiderantis affectibus no seguinte tom: [...] que a Fé Católica, mormente em Nossos dias, cresça e floresça por todas as partes, e que toda depravação herética seja varrida de todas as fronteiras e de todos os recantos dos Fiéis [...]", a mensagem do pontífice foi direcionada à certas regiões da Alemanha do Norte e também nas províncias, nas aldeias, nos territórios e nas dioceses de Mainz, de Colònia, de Trèves, de Salzburg e de Bremen. Segundo ele, a população pertencente às essas localidades estava negligenciando a fé católica, o autor da bula demonstra incomodo e preocupação ao redigir: [...] entregaram-se a demônios, a Íncubos e Súcubos, e pelos seus encatamentos, pelos seus maleficios e pelas suas conjurações, e por outros encantos e feitiços amaldiçoados e por outras tambem amaldiçoadas monstruosidades e ofensas hórridas, têm assassinado crianças ainda no útero da mãe, além de novilhos, e têm arruinado os produtos da terra, as uvas das vinhas, os frutos das árvores, e mais ainda: têm destruido homens, mulheres, bestas de carga, rebanhos, animais de outras espécies, parreiras, pomares, prados, pastos, trigo e muitos outros cereais: estas pessoas miseraveis ainda afligem e atormentam homens e mulheres, animais de carga, rebanhos inteiros e muitos outros animais com dores terríveis e lastimáveis e com doenças atrozes, quer internas, quer externas; e impedem os homens de realizarem o ato sexual e as mulheres 2 A bula foi consultada no livro “Martelo das Feiticeiras”, a fonte se encontrada em forma de digitação. 12 conceberem [...] renunciam de forma blasfêma a Fé que lhes pertence pelo Sacramento do Batismo, e por instigação do Inimigo da Humanidade não se escusam de cometer e perpetrar as mais sórdidas abominações e os excessos mais asquerosos para o mortal perigo de suas almas, pelo que ultrajam a Majestade Divina e são causa de escândalo e de perigo para muitos. (KRAMER; SPRENGER, 2014, p.43-44)3 Com a benção do papa, Kramer e Sprenger são autorizados a agirem de forma punitiva a fim extirpar qualquer traço de heresia que se colocasse como uma ameaça a fé católica. Cabe destacar o seguinte trecho escrito por Inocêncio VIII: […] decretamos e estabelecemos que os mencionados Inquisidores têm o poder de proceder, para a justa correção, aprisionamento e punição de quaisquer pessoas, sem qualquer impedimento, de todas as formas cabíveis [...] damos permissão aos supracitados Inquisidores […] ou a qualquer outro notário público, que esteja com eles, ou com um deles, temporariamente designado para aquelas províncias, aldeias, dioceses, distritos e os supracitados territórios, para proceder conforme as normas da Inquisição contra quaisquer pessoas de qualquer classe ou condição social, corrigindo- as, multando-as, prendendo-as, punindo-as, na proporção de seus crimes – e aos que forem considerados culpados que a pena seja proporcional à ofensa. (KRAMER; SPRENGER, 2014, p.44-45).4 É concedido aos inquisidores poderes plenos e irrestritos, o direito de pregar a palavra de Deus, além de exercer qualquer liturgia sempre que apropriado em casos que foram mencionados acima. Nos trechos finais da bula, Inocêncio VIII proclama: […] haverá de ameaçar a todos os que vierem a dificultar ou impedir a ação dos Inquisidores, a todos os que lhes opuserem, a todos os rebeldes, de qualquer categoria, estado, posição, proeminência, dignidade ou de qualquer condição que seja – não importando o privilégio de que disponha – haverá de ameaçá-lo com excomunhão, a suspensão, a interdição, e inclusive com as mais terríveis penas, as piores censuras e os piores castigos, como bem lhe aprouver, e sem qualquer direito de apelação, e se assim o desejar poderá, pela autoridade que lhe concedemos, agravar e renovar tais penas quantas vezes for necessário, recorrendo, se assim convier, ao auxílio do braço secular. (KRAMER; SPRENGER, 2014, p.45-46) O Malleus Maleficarum ou Martelo das Feiticeiras nos revela uma Inquisição que funcionava como uma instituição difusora do terror em nome da fé cristã mais precisamente entre nos séculos XV e XVI. É um tratado que se revela o verdadeiro compendio de leis que representam características de um Estado teocrático e deixa evidente a relação entre sexualidade feminina e pacto demoníaco, apontando certa necessidade de controle e domesticação dos corpos das mulheres. É dividido metodicamente em três partes: a primeira intitulada “Das Três Condições Necessárias para a Bruxaria: O Diabo, a Bruxa e a Permissão de Deus Todo- 3 Trecho da bula papal redigida por Inocêncio VIII retirado da obra “Martelo das Feiticeiras”. 4 Idem. 13 Poderoso” são direcionados aos juízes, ensina como reconhecer características que define uma bruxa, exorta sobre a importância de acreditar no poder maléfico dessas mulheres e afirma a existência de demônios incubus e sucubus; a segunda parte, “Dos Métodos Pelos Quais se Infligem os Malefícios e de que Modo Podem ser Curados” tem como finalidade explicar e categorizar os tipos de malefícios disserta sobre como aniquilar e combater os poderes perniciosose descrevem as cerimonias e rituais conduzidos pelas bruxas; a terceira parte, “Que Trata de Medidas Judiciais no Tribunal Eclesiástico e no Civil a Serem Tomadas Contra as Bruxas e Também Contra Todos os Hereges”, trata de forma geral sobre métodos de como proceder legalmente contra as bruxas e das condições necessárias para condená-las. Laura de Mello e Souza ressalta a relevância do Malleus e faz a seguinte inferência: Tanto o Manual do inquisidor como o Malleus maleficarum tiveram grande influência sobre os procedimentos adotados no final do século XV e na primeira metade do século XVI pelas inquisições ibéricas, que em Portugal e na Espanha encetaram a perseguição a hereges- mouros, judeus, conversos, bruxos, magos adivinhos. Apesar de se ter originado em meio eclesiástico, esse tipo de procedimento ganhou também a Justiça Civil, sendo adotado pela maioria dos tribunais laicos que julgaram crimes de feitiçaria na Europa. (SOUZA. 1987, p.29) Entre os fins do século XVI a meados do XVIII a sanha persecutória foi um fenômeno generalizado. Em quase toda a Europa houve a repressão sistemática sobre o feminino, o corpo das mulheres era visto como algo a ser punido, sobretudo no que dizem respeito ao exercício da sexualidade, para além da questão do corpo, mulheres tinham afinidade com o uso de plantas, apresentavam alguns conhecimentos sobre medicina popular, o que nesse /período foi encarado como uma ameaça aos avanços da medicina tradicional ensinada nas universidades, locais estes cuja a presença dos homens era hegemônica. O Malleus maleficarum se torna o instrumento de repressão e perseguição, que foi escrito no ápice do pragmatismo ideológico da Inquisição a serviço do patriarcado atingindo de forma sistemática as mulheres. 2.3 A INVENÇÃO DA BRUXA Embora os termos feitiçaria e bruxaria geralmente são explanados como se tivessem o mesmo sentido, inclusive na documentação de língua portuguesa essa diferenciação é meramente formal e tanto bruxas quanto feiticeiras são tratadas como sinônimos, é pertinente que aqui que seja abordado há diferença conceitual entre esses termos. A feitiçaria se refere as práticas mágicas em que o pacto demoníaco é inexistente, “a feiticeira se encarregaria individualmente de fabricar poções e filtros mágicos com vistas a solucionar problemas com as 14 quais se achasse envolvida” (SOUZA, 1987, p.12). No caso de bruxaria, além de existir um pacto com a figura satânica havia também a submissão ao dito “Príncipe das Trevas”, as atividades litúrgicas se davam em grupo “e as bruxas diferentemente das feiticeiras, integrariam uma espécie de seita demoníaca” (SOUZA, 1987, p.12). A invenção da Bruxa começa a se consolidar a partir da “caça”, foram os próprios perseguidores que traçaram estereótipos que serviam de suporte para denúncias e processos, incutindo assim o terror generalizado sobre a sociedade, colocando em suspeição mulheres cujas características contemplavam os estereótipos que foram deliberadamente construídos, como por exemplo: solteiras, viúvas; se fossem velhas e feias as suspeitas se tornavam ainda mais fortes. A conjuntura social da Época Moderna foi um subterfúgio que fez da bruxa o bode expiatório para justificar as mais variadas adversidades como infanticídio por exemplo. Dada as precariedades e a incidência da miséria sobre a população era comum a morte de crianças, sobretudo de recém-nascidos, no entanto, acreditava-se que a responsabilidade era das bruxas que sufocavam e enforcavam bebês ainda no berço, ou quando uma criança abandonava o leite materno significava que alguma uma bruxa havia sugado o peito da mãe. Crenças populares como zoomorfismo era recorrente o que significava atribuir às bruxas a capacidade de se transformar em animais: Velhas, feias, sozinhas, forasteiras, ou jovens, bonitas e capazes de passar à prole a vocação diabólica, as bruxas costumavam ainda se metamorfosear em animais. Gatos e corujas eram bichos demoníacos por excelência; dependendo da região, a bruxa tomava de empréstimo a forma de outros animais, como borboletas negras ou cães, que, no meio camponês, frequentemente tinham significado negativo. O zoomorfismo visava disfarçar a identidade da malfeitora e possibilitar-lhe maior liberdade nas ações perniciosas. (SOUZA, 1987, p. 19) O arquétipo da bruxa moderna e os mecanismos utilizados para a caça começam ser postulados no século XIV. Nicolau Eimeric em seu Manual do Inquisidor (1376) traçou um plano teórico, uma espécie de tratado que serviu de amparo legal para intensificar e consolidar a sanha persecutória, esse tipo de literatura tinha como objetivo discutir . [...] as possibilidades objetivas ou ilusórias de pacto demoníaco retomando a tese tomista da realidade dos fatos mágicos e, mais atrás ainda, a crença agostiniana nos fatos ligados a magia. São Tomás constitui um marco demonizador no seio do pensamento cristão: ‘ a fé católica firma que os demônios existem, que são capazes de causa dano e que impedem o ato carnal’, afirmava, ajuntando as práticas magicas não eram simples fantasmagorias, ao contrário do que diziam os dotados de pouca fé” (SOUZA, 1987, p. 27) 15 No que se refere ao tema proposto, é imprescindível que abordemos o que a historiografia já escreveu sobre a feitiçaria e bruxaria, em A Feitiçaria na Europa Moderna, a historiadora Laura de Mello e Souza faz uma explanação resumindo as considerações de algumas vertentes e aponta algumas diretrizes para nos esclarecer o que cada uma utiliza como argumentos para suas teses. A princípio, nos deparamos com a tese romântica que de forma geral defende a existência do Sabá como uma resistência de cultos de determinadas divindades pagãs. Como contraponto à tese romântica, temos a vertente racionalista, que em outras palavras afirma que a bruxaria não é nada mais que um produto de uma construção mental, mito e ilusão de uma determinada época. A última vertente abordada é a antropológica, vertente essa defendida pela própria autora em que pode se constatar que: No atual estágio das investigações, a abordagem antropológica parece ser a mais fecunda e promissora. Ela permite que se desvende a vida cotidiana das populações pré-industriais e que se avance no sentido de compreender o papel e o espaço nela assumidos pelas práticas mágicas e pela bruxaria.” (SOUZA, 1987, p.53) Como já sabemos, os dados coletados por historiadores revelam que o crime de bruxaria era potencialmente cometido por mulheres, mas não há definição de bruxa que exclua os homens, entretanto, trataremos aqui da construção do caráter feminino da bruxaria. Levack explica que […] o protótipo da bruxa na cultura antiga e medieval, assim como na literatura e na arte, era sempre feminino, as mulheres estavam naturalmente mais expostas a serem suspeitas desse crime do que os homens. A imagem da bruxa era, entretanto, o produto e a fonte das acusações e processos por bruxaria. Se as mulheres não fossem muito mais comumente do que os homens suspeitas e julgadas por bruxaria, a imagem da bruxa não teria sido exclusivamente feminina. (LEVACK,1988, p.128). Um elemento preponderante para vincular a imagem feminina à bruxaria era a convicção de que as mulheres eram moralmente fracas e mais inclinadas a serem seduzidas pelas tentações diabólicas. Toda essa construção de narrativa foi endossada por clérigos, o discurso dos homens da Igreja girava em torno da seguinte questão: o desejo carnal das mulheres era o que as moviam para cometer crime de bruxaria, “pois a bruxa fazia frequentemente pacto com Diabo como resultado da tentação sexual, engajando-se então em atividade sexual promíscua no sabá” (LEVACK, 1988, p. 131). Sob as considerações de Levack, a explicação abordada pelo autor sobre a maior incidência de bruxas do sexo feminino é que as mulheres eram taxadascomo inferiores aos homens, tanto em aspectos físicos quanto em aspectos políticos, sendo assim, conjecturava-se 16 que por elas enfrentarem dificuldades para defenderem seus interesses era recorrente que mulheres se valessem da feitiçaria como um subterfúgio para vingança e proteção. As mais propensas à acusações eram as que exerciam funções comuns designadas para mulheres no início da sociedade moderna europeia tais como: […] cozinheiras, curandeiras e parteiras […] Como cozinheiras elas não somente tinham a oportunidade de juntar ervas para fins mágicos, como também tinham a possibilidade de transformá-las em poções e unguentos. Não é por acaso que as bruxas são frequentemente retratadas junto a caldeirões […]. A imagem de um homem engajado nesse tipo de atividade é pelo menos implausível. (LEVACK, 1988, p.131). A Bruxa era o intermédio por onde Diabo gostava de operar, era a porta de entrada para os demônios praticarem malefícios segundo constatações de Kramer e Sprenger. Os dominicanos também apresentam no Malleus a seguinte consideração: Eis, então, nossa proposição: os demônios, pelo seu engenho, produzem efeitos maléficos através da bruxaria […] com a devida ajuda, conseguem provocar doenças e toda sorte de sofrimento e de padecimento humanos, reais e verdadeiros. (KRAMER e SPRENGER, 2014, p. 63) A Bruxa deveria não ser apenas evitada, mas em alguns casos os autores do Malleus Maleficarum recomendam a condenação à morte “embora só devam receber essa punição extrema se tiverem de fato pactuado com o diabo a fim causar males e injustiças verdadeiros (KRAMER;SPRENGER, 2014, p.52). A bíblia é citada por Kramer e Sprenger como justificativa plausível, os inquisidores mencionam o capítulo 18 de Deuteronômio em que se declara “que todos os magos e feiticeiros devem ser destruídos” e o capítulo 19 de Levíticos, “se alguma alma se dirigir aos magos e advinhos para com eles fornicar, voltarei contra ela o meu rosto e a arrancarei do meio do meu povo”. Ante uma perspectiva romântica, o protótipo da Bruxa nas palavras de Sallmann sobre Michelet é de uma “mulher revoltada contra uma sociedade que a oprimia” (SALLMANN, 2002, p. 152). Para exemplificar a releitura romântica segue trecho escrito por Michelet: Ao nascer, a Bruxa não tem pai, nem mãe, nem filho, nem esposo, nem família. É um monstro, um aerólito, vindo não se sabe de onde. Quem ousaria, ó Deus, dela se aproximar? Onde está ela? Nos lugares impossíveis, na floresta das sarças, na charneca onde o espinho e o cardo enredados obstruem a passagem. […] Mesmo que a encontremos, continuará isolada pelo horror que provoca; ao seu redor, um círculo de fogo. Mas quem acreditará nisso? Continua a ser uma mulher. 17 Até mesmo essa vida terrível comprime e estende a sua energia de mulher, a eletricidade feminina. […] De uma espécie diferente, sai Satã do seio ardente da Bruxa, vivo, armado e pronto para atacar. [...] 2.4 O “HEREGE COMO CRÍTICO DOS VALORES ESPIRITUAIS DE UMA SOCIEDADE” Não há como falar do Santo Ofício sem antes traçar um panorama geral sobre o conceito de heresia, pois, a Inquisição foi estabelecida com o objetivo mor de perseguição a qualquer criatura que ousasse questionar as normas vigentes impostas por uma sociedade majoritariamente religiosa e calcada nos princípios do catolicismo. “A palavra herege origina-se do grego hairesis e do latim haeresis e significa doutrina contrária ao que foi definida pela Igreja em matéria de fé” (NOVINSKY, 1985. p.10), em suma, herege é quem propaga ideias que contestam as doutrinas da Igreja de Cristo, é aquele subverte a ordem. Como bem define Novinsky: A heresia é uma ruptura com o dominante, ao mesmo tempo que é uma adesão a uma outra mensagem. É contagiosa e em determinadas condições dissemina-se facilmente pela sociedade. Daí o perigo que representa para a ordem estabelecida, sempre preocupada em preservar a estrutura social tradicional (NOVINKY, 1985, p.11). A Igreja enquanto porta-voz da verdade se manifestava através dos “pronunciamentos, admoestações, incíclicas, declarações dos sínodos e dos concílios, proclamação dos dogmas da fé”, se impôs como a institucionalização dessa verdade e se valia de todo um aparato legislativo para propagar a idéia de que a fé cristã fosse o único caminho possível. A hegemonia da palavra de Deus era a força motriz que a impulsionava perseguir dissidentes que ameaçasse a sua estrutura de detentora suprema da verdade absoluta, partindo desse pressuposto, Leonardo Boff, no prefácio do Manual dos Inquisidores nos traz a seguinte afirmação: “tudo já estava respondido pela instancia suprema e divina. Qualquer experiência ou dado que conflita com as verdades reveladas só pode significar um equívoco ou um erro. A Igreja detém o monopólio dos meios que abrem caminho para a eternidade” Dada a conjuntura do monopólio da fé e da verdade, a heresia era o perigo eminente, o seu combate era o instrumento necessário para salvaguardar a fé cristã e nesse sentido a Igreja fez-se imprescindível. Esse combate funcionava como uma espécie de “guerra” ideológica que se estendia à penalização dos corpos. Em suma, o herege era o arquiinimigo e deveria ser rechaçado como tal, “o herege é aquele que se recusa a repetir o discurso da consciência 18 coletiva”, o herege cria suas próprias narrativas a partir de uma nova interpretação sobre a religiosidade imposta. 3 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O ESTABELECIMENTO DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL O processo de estabelecimento da Inquisição em Portugal se inicia em 23 de maio de 1536 sob a égide da bula papal Cum ad nihilismagis nomeando três inquisidores gerais para jurisdição do tribunal de fé e concedendo ao rei D.João III a viabilidade de nomear um quarto inquisidor geral. Embora o foco nesta monografia seja discutir as práticas de feitiçaria, devemos destacar que a pretensa disseminação do judaísmo foi a justificativa legitimadora para a existência desse tribunal, pois, representava uma ameaça à dominação católica5. Em novembro do mesmo ano um monitório foi publicado prescrevendo quais crimes deveriam ser delatados ao tribunal, para além das práticas judaizantes características dos cristãos novos, outros possíveis delitos foram sugeridos, como: “luteranismo, o islamismo, as proposições heréticas e os sortilégios” (BETHENCOURT, 2000, p. 25) Desde o estabelecimento do Santo Ofício português a coroa estava engajada no processo, “o envolvimento do rei […] assumindo a responsabilidade da criação do tribunal e fazendo questão de estar presente na cerimônia de fundação da nova instituição (BETHENCOURT, 2000, p.25) é um dos aspectos relevantes que foi cautelosamente relatado nos documentos organizados pela própria Inquisição, ademais, em 1547 o Santo Ofício português passa definitivamente a ser tutelado pelo rei devido a autorização do papa Paulo III. As inquisições ibéricas apresentaram maiores traços de ruptura com a inquisição medieval em relação á inquisição romana. Os tribunais português e espanhol por exemplo, adquiriram [...] uma configuração coletiva e hierarquizada, liderada por um conselho geral composto de três, cinco ou mesmo sete membros (o número varia ao longo do tempo) e uma estrutura intermediaria de tribunais de distrito polarizada por dois ou três inquisidores assessorados por uma poderosa máquina burocrática com controle sobre uma extensa rede local [...]. (BETHENCOURT, 2000, p.29). Por outro lado: 5A perseguição aos judeus foi o empreendimento que demandou maiores esforços no que concerne a atuação combativa do Santo Ofício. 19 [...] a estrutura da Inquisição romana assenta-se no inquisidor local sediado no convento de respectiva ordem (dominicana ou franciscana), inquisidor que atua normalmentesozinho na instrução de processos e conta apenas com a presença do representante do bispo para a legitimação da sentença. (BETHENCOURT, 2000, p.29) Há semelhanças de jurisdição inquisitorial entre os tribunais romano, espanhol e português, contudo, existem pequenas variações como por exemplo a questão da sodomia “perseguida pelo ‘Santo Ofício em Aragão, em Portugal e nos Estados italianos, mas não em Castela, onde a jurisdição foi conservada pelos tribunais civis” (BETHENCOURT, 2000, p.30). Delitos de foro misto como feitiçaria e bigamia, para serem julgados deveriam estar sob forte presunção de heresia, no caso de feitiçaria, a sentença só seria levada a cabo caso fosse constatado alguma relação com o demônio, seja superstição ou adoração. Em relação à bigamia, a questão mais relevante a ser considerada seria o desrespeito aos sacramentos da Igreja além da transgressão do sacramento matrimonial. A construção da identidade eclesiástica desponta a fim de fomentar a uniformidade da jurisdição inquisitorial que estabelecesse uma interpretação correta das crenças desviantes, os manuais foram instrumentos imprescindíveis para definir as ditas heresias como bem aponta Bethencourt: Os manuais dos inquisidores dos inquisidores do século XIV são bastante mais simples, embora já se note um esforço de sistematização feito a partir de experiencias judiciarias concretas. O manual de Bernard Gui, por exemplo, está organizado em torno de uma classificação dos hereges da época: cátaros [...] valdenses, pseudoapóstolos, beguinos, judaizantes, feiticeiros, adivinhadores e invocadores de demônio. O manual de Nicolau Eymerich acrescenta outros delitos, como a blasfêmia, a vidência ou islamismo, propondo uma tipologia mais sutil e abstrata, na qual se inclui a definição de heresia [...] Francisco Peña, que reedita esse texto em 1578, não faz nenhum corte, acrescentando comentários de atualização de conteúdo. (2000, p.32) A mudança na estrutura dos fluxos de comunicação é um dos aspectos que representam uma ruptura do modelo de Inquisição do Antigo Regime com o da Inquisição Medieval. Sob o Antigo Regime as comunicações deixaram de ser predominantemente horizontais, isto é, reduziu-se a troca constante de correspondências entre inquisidores de uma mesma província6, reuniões informais entre inquisidores praticamente deixaram de existir ao passo que um maior controle de circulação de manuais foi estabelecido, perdendo assim “o caráter fluído e arbitrário da Inquisição medieval” (BETHENCOURT, 2000, p. 35). 6para tratar de problemas processuais ou modos de agir em casos específicos. 20 O Santo Ofício português desde o início possuía uma administração centralizada, isso se explica pelo fato de que experiencia do tribunal espanhol, fundado 58 anos antes foi usado como exemplo no seu processo de fundação, no entanto, havia diferenças na regulamentação e nas práticas; no caso português, algumas medidas administrativas próprias foram incorporadas devido um contexto político e social diferente. Em relação a Espanha cabe evidenciar as seguintes diferenças: [...] o inquisidor-geral reservava para si todas as comutações de penas, bem como as apelações de sentenças de tortura e a conclusão de processos em que votos se dividiam entre os inquisidores e os representantes da diocese; os condenados com leve suspeita na fé não deviam abjurar publicamente, mas apenas perante o tribunal; no rito de fundação, os inquisidores deviam reunir as autoridades civis para apresentar a carta do rei e ordenar a publicação da Inquisição na igreja principal, proibindo outras pregações no mesmo dia [...](BETHENCOURT, 2000,p.45) A inquisição tinha como o estandarte moral o combate imanente às heresias, a estrutura do tribunal voltava-se para uma organização administrativa com foco em identificar tais práticas heréticas e valia-se de instrumentos que auxiliasse nessa identificação: “cadernos de denúncias, repertórios de presos, listas de condenação, registros dos sambenitos expostos no interior das igrejas, processos de habilitação, registros genealógicos” (BETHENCOURT, 2000, p.49). Essa quantidade de material produzido revela uma cultura manuscrita eclesiástica, um acervo considerável que possibilita fornecimento de fontes variadas para compreender a sistematização do tribunal, além de servir de base para entender a metodologia do direito penal do Antigo Regime. 3.1 MODUS OPERANDI DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS No final do século XV (1478) é criado na Espanha o Tribunal do Santo Oficio da Inquisição, uma instituição que foi uma releitura daquela utilizada na Idade Média em boa parte do território europeu; tal releitura adquiriu um modo de funcionamento característico para atender as demandas da sociedade moderna. Em 1536, meio século depois, é a vez de Portugal estabelecer o seu próprio tribunal inquisitorial cuja ação se estendeu por todo império português inclusive sua principal colônia, o “Brasil”. Sob influência espanhola e com a justificativa de que a conversão compulsória dos judeus à fé católica não era verdadeira, D. Joao III pede ao papa a autorização para o funcionamento de um tribunal inquisitorial cujo os moldes seriam semelhantes ao tribunal de 21 Espanha. Disputas entre o rei e o papa se sucederam em torno de quem teria o aval da inquisição portuguesa. Segundo Novinsky: Todas as negociações mantidas entre Roma e Portugal para se estabelecer o Tribunal tiveram por base o poder do dinheiro. Os papas sabiam que os monarcas portugueses, possuindo o domínio sobre a Inquisição, enfraqueceriam politicamente Roma [...] D. João III venceu, oferecendo ao papa uma enorme fortuna troca da permissão para agir sem interferência de Roma. A bula papal de 23 de maio de 1536 autorizou a inquisição no reino lusitano, e em 1540 se realizou o primeiro auto-de-fé em Lisboa. Pela bula MedidatioCordis. De 16 de julho de 1547, o tribunal foi definitivamente estabelecido. (1985, p.36-37). A fé católica era hegemônica nos países ibéricos, sendo assim, seria um equívoco afirmar a existência de uma ameaça judaica ou moura sobre a doutrina cristã. Em suma a Inquisição portuguesa e sua necessidade de dominação e homogeneidade da fé iam além da questão moral, a busca pela consolidação da Igreja enquanto instituição suprema envolvia a ambição e poder, logo, no que tange a essa temática é imprescindível que tratemos o assunto para além da esfera religiosa e adentremos na singularidade política do tema. O Santo Ofício estava ligado ao funcionamento do Estado português e utilizava o medo como maior instrumento de submissão além de estar diretamente relacionado com as grandes instancias de poder, seja a coroa, a nobreza ou ao clero. A Inquisição lusitana agia conforme a demandas políticas e financeiras da classe dominante, assegurava os interesses dessas instâncias pois mantinha a estrutura do regime vigente em total funcionamento. Os crimes julgados pelo Tribunal eram categorizados em dois tipos, primeiro, contra a fé; segundo, contra a moral e os costumes. A gravidade do primeiro era maior que a dos segundo e isso se refletia nas severas penas aplicadas a esse tipo infração. Eram designados delitos contra a fé o “[...] judaísmo, protestantismo, luteranismo, deísmo, libertisnimo, molinismo, maometismos, blasfêmias, desacatos, críticas aos dogmas” (NOVISNKY, 1985, p.56). A feitiçaria, no entanto, era um crime de foro misto e se enquadrava nos crimes contra a moral e os costumes juntamente com a bigamia e sodomia. Na tentativa de salvar a própria pele das malhas da Inquisição, os réus eram coagidos a confessar a culpa, além de acusar pessoas próximas e do seu convívio. Os inquisidores utilizavam-se de recursos de caráter despótico como por exemplo a ameaça de tortura, com o objetivode incutir medo e manipular os acusados de forma que fosse mais conveniente para o Tribunal. Novinsky nos explica que: Muitas vezes, atormentado pela sua consciência, arrependia-se de ter implicado inocentes e voltava à mesa inquisitorial para negar tudo. Com medo de ser queimado, 22 pedia novamente para ser ouvido e ratificava as denúncias primeiras, implicando ainda mais gente. Debatia-se num labirinto sem saída. Quanto mais denúncias recebiam, mais satisfeitos ficavam os inquisidores. Assim aumentava o número de futuros réus e dos futuros confiscos. (1985, p. 59) Para além de uma abordagem religiosa e cultural, o Santo Ofício nos mostra a possibilidade de analisar o assunto sob um viés político e econômico, sobretudo no que se refere a questão do confisco de bens. O Santo Ofício era benéfico para o Estado posto que o confisco angariava fundos para o funcionamento da Coroa, em síntese era uma máquina de arrecadar dinheiro para a própria manutenção do Estado, que nesse contexto estava sob a égide Antigo Regime. É imprescindível considerar que a Igreja era um dos seus sustentáculos, implicando assim uma relação mutua entre poder político e poder eclesiástico, afinal de contas A propaganda construída pelo Clero católico criou mentiras que justificaram usar judeus como bodes expiatórios; porém, os inquisidores não tinha a intenção de mata- los todos, nem acabar com as heresias e os hereges- pois eles provinha principalmente sua maior fonte de renda, e os sustento da maior burocracia do país. (NAZÁRIO, 2005.p.14) A caça às bruxas está inserida em um contexto histórico em que a instituição do Estado centralizado e o estabelecimento da Inquisição da época moderna ocorreram quase que simultaneamente e são fenômenos intrinsecamente relacionados. Quando nos debruçamos sobre o tema da feitiçaria na América portuguesa, mais especificamente no “Brasil Colônia”, não há como desvincular do Antigo Sistema colonial e isso nos confere certa especificidade no que se refere a tal abordagem por dois motivos: 1) a perseguição sistemática às feiticeiras ocorreram pela Europa sendo um fenômeno característico do continente, no entanto, dentro do nosso enfoque há um salto geográfico. 2) analisaremos a jurisdição do Santo Oficio sobre os novos domínios intercontinentais, neste caso, trataremos da expansão dos domínios portugueses na América. As inquisições ibéricas foram regidas por manuais: a Practica inquisitionis haereticae pravilatis, redigida no primeiro quartel do século XIV por Bernard Gui, e o Directorum inquisitorum, do catalão Nicolas Eymeric (Nicolau Emérico), escrito cerca de cinquenta anos depois). Preocupados com a questão herética, inquisidores e manuais contribuíram, entretanto, à construção de um modelo simbólico da feitiçaria; atribuindo aos hereges culpas milenarmente imputadas a minorias ou a grupos marginalizados, possibilitaram que, organizadas em modelo, elas fossem, como as normas inquisitoriais, associadas à feitiçaria (SOUZA,1986, p.370) A promoção e divulgação da feitiçaria serviu para exercer o controle e autoridade sobre a população, 23 exorcizando demônios, os europeus impunham melhor um modelo de dominação política e ideológica: as novas formas jurídicas que buscavam vigiar as populações e unificar as penas serviam à recente organização do Estado e afiavam suas garras ao vasculhar, encarcerar e supliciar feiticeiras (SOUZA,1986, p.373) Em O Diabo na Terra de Santa Cruz, é levantada uma questão relevante para compreender ainda mais o contexto histórico das inquisições modernas: a relação existente entre Abslutismo monárquico e obsessão demoníaca. Souza afirma que “na península Ibérica, a Inquisição foi elemento essencial à consolidação do aparelho do Estado: foi ‘o melhor auxiliar de Leviatã’, instrumento da monarquia e elemento regulador das relações entre o poder real e poder inquisitorial (1986, p.377). O Brasil não possuía um Tribunal, sendo assim, quando havia a necessidade de um julgamento o réu ficava sob jurisdição do Tribunal de Lisboa. A incumbência de rastrear possíveis infratores era dada aos familiares e comissários do Santo Oficio. Do ponto de vista das inquisições ibéricas, os crimes relacionados à feitiçaria e as práticas magicas eram considerados menos rentáveis em relação às práticas judaicas por exemplo, pois, umas das sanções inquisitoriais era o confisco de bens, as feiticeiras geralmente pertenciam às camadas sociais menos abastadas. 3.2 A ESPECIFICIDADE DA “CAÇA ÀS BRUXAS” EM PORTUGAL No que se refere às práticas mágicas, José Pedro Paiva suscita a questão acerca de uma inexistente “caça” generalizada em Portugal, embora houvesse aspectos e condições necessárias para isso. Em Bruxaria e Perseguição num país sem caça às bruxas Paiva afirma que: As populações portuguesas tinham, neste domínio, práticas e crenças muito semelhantes às que foram perseguidas no resto da Europa. Ora, de acordo com muitos historiadores que se tem dedicado ao estudo deste fenômeno no cenário europeu, estes eram o tipo de pré-requisitos necessários para que um movimento de violenta repressão destes agentes pudesse dar-se, como de facto se deu, na Europa Central e do Norte, entre os inícios do século XVI e o final da centúria seguinte. (PAIVA, 2002, p.11) A partir da perspectiva historiográfica, o fenômeno da bruxaria pode ser concebido em dois vieses antagônicos, sendo eles: a análise das instituições repressoras e todo o seu aparato e na contrapartida, o estudo sobre as vítimas da Inquisição e os motivos que ocasionaram as suas devidas acusações. Existe também, a possibilidade de uma abordagem a partir de outros duas antíteses: primeiro; as crenças e práticas magicas de acordo a concepção dos doutos, em 24 suma, uma elite composta por homens eclesiásticos ou laicos que se dedicavam a escrever sobre o temática, a fim de redigir manuais de comportamento sob a égide de um padrão moral e religioso (característico da época moderna) que influenciasse a população; do lado oposto estava essa população, uma grande massa predisposta a se sujeitar a essas normas de conduta impostas pelos doutos. No entanto, o que nos interessa são os dissidentes, aqueles ou aquelas que por rebeldia, convicção ou persistência violaram as tais das normas redigidas e como consequência de seus atos eram submetidos à sanções e penas. O fenômeno da Caça às Bruxas começa a se consolidar no século XVI, o período de maior efervescência da sanha persecutória foram os anos entre 1580-1660. O surgimento do fenômeno de modo geral tem como marco 1560, entretanto, a repressão não ocorreu de modo homogêneo em toda Europa, Paiva afirma que: Houve regiões em que a severidade foi mais precoce, como a Suíça, Alemanha, Holanda e França, outras onde a repressão foi mais tardia e se deu apenas a partir dos primórdios do século XVII, como a Escócia e a Inglaterra (aqui apenas um brevíssimo período), outras que viram eclodir o surto só na segunda metade de Seiscentos, como a Austria, a Transilvania e a Suecia, sendo, portanto, que o quadro não foi igualmente feroz e duradouro em todo lado”. (PAIVA, 2002, p.189) Por via de regra, a derrocada da perseguição às bruxas ocorreu a partir da segunda metade dos Seiscentos e em regiões onde a caça se deu de forma mais implacável como a Holanda, França, Alemanha, Luxemburgo, Escócia e Inglaterra. Um marco importante que dá início ao declínio da repressão às práticas mágicas é a reforma da inquisição promulgada pelo Marquês de Pombal em 1774, Paiva declara que A partir desse momento a inquisição persegue os mágicos não já por supor que eram agentes diabólicos, como até então sucedera, mas apenas porque os considera impostores e ignorantes que deviam era ser desprezados e ridicularizados, como mostrava a experiencia das nações maispolidas da Europa. (2002, p.194) O discurso do regimento de 1774 passa a ter um caráter quase que pedagógico, incitando os inquisidores difundirem a ideia de que essas práticas não passavam de superstições e charlatanismo. Com essa nova “roupagem”, aconselhava-se que réus que persistissem na ideia de pacto com diabo fossem internados em hospitais sob alegação de não estarem em pleno funcionamento das suas faculdades mentais, além disso, “regula a forma do processo nestes casos, onde desparece a tortura e [...] a pena de morte é abolida [...] (PAIVA, 2002, p.194). 25 3.3 AS INSTITUIÇÕES REPRESSORAS E SUAS ATRIBUIÇÕES: A JUSTIÇA SECULAR, A JUSTIÇA INQUISITORIAL E A JUSTIÇA EPISCOPAL As instituições repressoras operavam em três instancias diferentes: a justiça secular, a justiça inquisitorial e a justiça episcopal (PAIVA, 2002, p.191). Como citado anteriormente, feitiçaria era considerada um crime de foro misto, ou seja, um crime que estava sob a jurisdição de qualquer um desses tribunais e seria julgado de acordo a instancia que desse o pontapé inicial para o processo, entretanto, uma regra geral estabelecia que a instancia inquisitorial se responsabilizasse no acompanhamento de processos em caso de heresia. A atuação dos tribunais seculares é pouco factual embora exista elementos que deixam evidente a jurisdição secular no campo da feitiçaria. Segundo Paiva, “[...] não há dados que permitam avaliar os resultados concretos a que essa actuação conduziu” (2002, p.196). A falta desta comprovação de dados se deve ao fato de que parte dos processos judiciais se perderam, contudo, são as Ordenações do reino que conjecturam a existência de uma atuação judicial sob o respaldo da justiça secular. Paiva ainda argumenta que: Além da legislação existente, algumas cartas de perdão dadas pelos monarcas, de que as mais antigas datam de 1435, provam a acção nesta esfera do poder secular. Confirmam-no ainda a noticia de feiticeiras presas por ordem regia, no reinado de D. João III e D. Sebastião. [...] Há outra documentação que prova que a justiça do rei julgou e prendeu indivíduos que cometeram delitos de feitiçaria. Numa lista de 294 presos da cadeia de relação de Lisboa entre 1694 e 1696, dois eram feiticeiros. (2002, p.196-97). Conforme dados limitados disponíveis dos séculos XVII e XVIII, as punições regias consistiam em prisão, degredo e açoites, como exemplo, Paiva faz referência ao caso de cinco bruxas que foram degredadas em 1627 em uma denúncia apresentada à Inquisição de Coimbra (PAIVA, 2002). Em suma, não há conclusões definitivas no que diz respeito a atuação secular, não há como afirmar de modo preciso a intervenção ou não da coroa, o que se torna plausível é apenas levantar um esboço a partir desses indícios, a ideia de que a efetivação da justiça secular operou de maneira incisiva em relação aos tribunais inquisitoriais e episcopais ainda não se sustenta como um todo. Em contrapartida aos tribunais seculares, os inquisitoriais foram os tribunais que mais deixaram evidências no que diz respeito ao seu modo de atuação, a forma como se desenrolaram os processos inquisitoriais se desdobraram em fases que vão desde recolhimento de provas, detenção de réus e interrogatórios até a utilização da tortura como método de confissão de culpas. 26 Os tribunais episcopais eram os que possuíam maior abrangência territorial e que através das visitas pastorais constantes exerciam uma pratica persecutória mais contundente se comparado as instancias secular e inquisitorial. A partir das visitações resultavam devassas especificas com o propósito de apurar a existência de feiticeiros, segundo Paiva,” criou-se uma rede bastante apertada de controle” (2002, p.205). Devido a eficácia em adentar territórios, os visitadores conseguiam coletar uma quantidade relevante de material para acusações. A inquisição portuguesa contava com efetivação de mecanismos para fazer com que sua mensagem fosse propagada até chegar ao conhecimento da população, Paiva vai elencar esses mecanismos em quatros etapas: a realização das visitas pelo território nacional7; os editos de fé8, que eram lidos e também fixados nas portas das igrejas; os comissários, ou seja, agentes eclesiásticos cuja a finalidade era garantir uma maior abrangência no que diz respeito à cobertura da atuação inquisitorial em todo território, ressaltando o fato de que essa rede de comissários cresceu de maneira abrupta durante o século XVII; e por fim os autos-de-fé, que se concretizavam em atos de humilhação pública que exercia um duplo papel: primeiro, utilizar a humilhação pública para entreter as massas; segundo, usar como subterfúgio a punição aos inimigos como instrumento de intimidação. 3.4 “O TERROR PSICOLÓGICO QUE ANIQUILA O ESPÍRITO É MUITAS VEZES MAIS EFICAZ QUE A VIOLÊNCIA FÍSICA”: OS AUTOS-DE-FÉ COMO RECURSO DE INTIMIDAÇÃO E HUMILHAÇÃO PÚBLICA Os autos-de-fé, estudados por Luiz Nazário tão criteriosamente sob a perspectiva de um fenômeno que se apresenta sob a forma de espetáculo de massas, é peça fundamental para compreender o funcionamento do Santo Ofício português. Como recurso principal, os autos- de-fé se valiam da humilhação pública como “técnica de dominação e pressupõe uma intima cumplicidade entre o poder que a promove e o público que a goza” (NAZARIO, 2005, p.17), em suma, os autos-de-fé desempenhava também o papel de entretenimento e satisfação coletiva e funcionavam também como uma espécie de intimidação. Ainda nesse sentido, Nazário vai dizer que: A humilhação pública possui uma história, e seus métodos foram desenvolvidos com o máximo rigor nos autos-de-fé promovidos pela Inquisição, desde tempos medievais, 7 Ver também Paiva (2002, p.198) segundo o autor, essas visitas não duram muito tempo, a última foi realizada em 1637. 8 “nos quais discriminavam os comportamentos que se deviam delatar no tribunal do Santo Ofício”. 27 e que atingiram a plenitude de sua forma entre os séculos XVI e XVIII na Península Ibérica, em espetáculos de massa que inauguraram uma estética totalitária (2005, p.18). Além de se caracterizar como uma técnica “sofisticada” de humilhação pública, os Autos-de-Fé se constitui também como um evento de elementos variados que mesclam “ritual primitivo, festa nacional, celebração religiosa, julgamento público e teatro de crueldade” (NAZÁRIO, 2005:20) segundo Luiz Nazário, autor de “Autos-de-Fé como Espetáculos de Massa”, existe uma lacuna acerca de uma abordagem sob um viés político e antropológico, as pesquisas sobre essa temática costumam priorizar os aspectos processuais da Inquisição. As principais fontes que traçam as peculiaridades dos Autos-de-Fé são coletadas através de uma documentação composta por leis, decretos e/ ou regimentos que foram moldados conformes os procedimentos designados pelo Santo Ofício, possibilitando assim que o fenômeno fosse esquematizado em diversas fases: a propaganda antijudaica, a violência praticada pela massa aberta, os hereges como verdadeiros inimigos, mediação entre a massa revoltada e os alvos potenciais, satisfação da massa em acompanha o espetáculo de humilhação pública- uma verdadeira catarse coletiva, uso de violência sob o pretexto de purificação através do sagrado. A massa desempenhou um papel elementar no que tange a legitimação e durabilidade de uma instituição repressora que em contrapartida oferecia uma espécie de entretenimento para a população: Durante toda sua existência, a Inquisição contou com forte apoio popular, alicerçando seu poder sobre uma cumplicidade de origem, periodicamente renovada por meio de delações anônimas, juramentos de fidelidade, frequência constante às cerimonias religiosas e assistência ativa durante os autos-de-fé, com participação jubilosa no lançamentode insultos e pedras aos hereges condenados, na humilhação dos sambenitados e nas corridas ao queimadeiro. (NAZARIO, 2005, p.32) A espetacularização da barbárie estabelecia a institucionalização da violência por meio de uma aliança entre Estado e Igreja, “a massa servia de sustentáculo à ordem político-religiosa, que satisfazia sua necessidade de descarga de forma oficial, objetiva e limpa, através do aparato” (NAZARIO,2005, p.34). A Inquisição através dos autos-de-fé se estabelecia como o aval legitimo para promover o linchamento público perante uma aura de combate e aniquilação do inimigo, que no caso poderia ser o cristão novo ou a feiticeira, inimigos esses que foram deliberadamente definidos como transgressores da fé a partir do discurso eclesiástico. 28 3.5 A ATUAÇÃO DO DIABO DENTRO DO DEBATE TEOLÓGICO: ANTAGONISMO, COMUNICAÇÃO, INVOCAÇÃO E PACTO Dentro do espectro da religiosidade popular, a linha entre a magia natural e a magia diabólica poderia ser tênue e fluída, não obstante, Deus e Diabo se mostravam um antagonismo presente em denúncias referentes a adivinhadores e feiticeiros em Portugal do século XVI. Era de consenso geral a credibilidade na existência de uma onipresença demoníaca, o que em termos práticos abriria margem para uma interpretação coletiva de que as adversidades cotidianas significavam que o demônio poderia ser de certa forma ser superior a Deus. No que tange a essa interpretação, Bethencourt cita três casos que exemplificam esse descontentamento para com a figura Divina versus a capacidade superior do Mal: Leonor Velha, cujo marido lhe dava maus tratos e andava amancebado com uma negra, dizia com rancor que o Demonio podia mais que Deus. A mesma expressão se encontrava em Madalena d’Aguiar, cujo irmão casara contra sua vontade, dizendo ela publicamente que ‘seu irmão casa com Antonia Mendes com feitiços porque o demônio podia mais que Deus’. João Heredia, soldado castelhano que perdera no jogo mais de duzentos reis, blasfemara cego de cólera: ‘mais valia o diabo que Deus’. (2004, p. 175) O centro do debate teológico buscava repostas sobre a atuação do demônio, a questão girava em torno de duas proposições: se o Diabo possuía poderes e capacidade para alterar a ordem dos acontecimentos ou se o seu poder se restringia apenas a enganar, iludir ou seduzir os mortais. A opinião mais difundida entre clérigos portugueses endossa o caráter enganador do Diabo “cujo poder entre os homens é limitado pela autoridade divina e cuja índole não é totalmente malévola” (BETHENCOURT, 2004, p. 177). A comunicação com a entidade das trevas era considerada uma pratica corriqueira no século XVI, sob a perspectiva da demonologia, bruxas e feiticeiras eram responsáveis por mediarem o contato dos demônios com o mundo terreno, além disso, na própria concepção cristã, o Diabo é tratado como uma espécie de deus caído cuja existência se faz componente substancial à fé católica, em suma, sem a dicotomia Deus e Diabo o cristianismo não se sustenta. De acordo “relatos”, as invocações ocorriam ao ar livre e a noite e por cautela seria vedado o uso do espaço doméstico para o ritual mesmo sob proteção, pois, a liturgia em questão poderia colocar em perigo os moradores mais indefesos como exemplo crianças. Nas supostas aparições, a representação do demônio era descrita “por vozes e zunidos, redemoinhos, de vento e vapores de enxofre” (BETHENCOURT, 2004, p.182, sob forma física era frequentemente narrado como ser zoomórfico, mais especificamente um bode de cor preta. Para além da 29 aparição zoomórfica, nos processos inquisitoriais constavam relatos de “ajuntamento carnal” entre humanos e demônios, eram os ditos íncubos e súcubos; o primeiro se refere a demônios sexuais com traços femininos, o segundo diz respeito a demônios de aspecto masculino. O Diabo persuadia os seus invocadores a fim de convencê-los a firmar um pacto, como vantagem, prometia conceder aos seus fiéis certos caprichos como: sabedoria, poder, riqueza e sedução erótica. A consagração do pacto geralmente consistia em [...] dar um pedaço de carne do corpo ou em dar sangue de um membro (a mão esquerda ou o pé esquerdo), sangue esse que era chupado pelo diabo ou aproveitado por ele para redigir um termo escrito de concerto. Os sinais do corpo (situado nos referidos membros) testemunham os sacrifícios diabólicos[...] (BETHENCOURT, 2004, p.188) Em troca, o Diabo exigia a renegação da fé em Deus, nos anjos e santos; a quebra desse pacto provocaria no demônio uma reação colérica, como exemplo, Bethencourt traz relatos de um certo homem chamado Simão Pinto, o mesmo afirmava ter visto o demônio enquanto aprendia o padre nosso e ave Maria, “o demônio ter-lhe-ia aparecido em forma de homem muito grande, que o lançou à agua e só parou de o tentar afogar quando o rapaz lhe prometeu que as não aprenderia e assim o cumpriu” (2004, p. 190). 3.6 A PRESENÇA DA FEITIÇARIA NO REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS DE 1640 Foram quatro regimentos do Santo Ofício: um no século XVI, dois no século XVII e um no século XVIII, sendo o mais importante o de 1640, o quarto na ordem cronológica e o que serve de base para analisar o funcionamento do tribunal na América portuguesa. A estrutura do Regimento da Inquisição (1640)9 é composto por três livros, o primeiro é intitulada de “Dos ministros, e officiaes do Santo Ofício; e das cousas, que nelle ha de haver para a expedição do seu ministério”; o segundo livro “Da forma, e ordem, de que hão de ser processados os Reos de Delictos, que pertencem ao conhecimento do Santo Officio” e por fim, o terceiro livro que não tem denominação alguma mas que é a parte do regimento que consta em um dos tópicos a descrição da feitiçaria enquanto crime. 9Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal ordenado com o Real Beneplacito, e Região Auxílio pelo Eminentíssimo, e Reverendíssimo Senhor Cardeal da Cunha, dos Conselhos do Estado, e Gabinete, de sua Majestade e Inquisidor Geral nestes Reinos, e em Todos os seus Domínios. 30 O titulo XI10 do livro III faz todo um preambulo enaltecendo a sólida doutrina da Igreja, dos grandes teólogos e a erudição e qualificação dos autores eclesiásticos, disserta sobre o caráter demoníaco dos feiticeiros reafirmado por meio de pacto com espíritos malignos e chama atenção sobre esses tais espíritos estarem sempre enfurecidos contra miserável humanidade, coloca em questão o argumento teológico “de que pode haver alguns casos, nos quaes os referidos espíritos diabólicos, que nada podem por si mesmos, possam atormentar as Creaturas Humanas, se Deos lho permitir” além de trazer à tona a seguinte exortação: Se ha no Mundo huma Arte, que pelas vias de evocações dos mesmos Demonios[..] ensine a transportar velozmente os corpos humanos pelo ares de humas partes do Mundo para outras remotas, a fazer dóceis animais ferozes, a escurecer o Sol, as Estrellas [...]e com mortes barbaras, e cruéis ao arbítrio dos Professores de tão nociva Arte: Porque quem tal cresse, incorreria em absurdos taes [...] de querer dar ao Demonio os Attributos, que só pertencem ao Deos de Jacob; outro de confundir os milagres da Onnipotencia Divina com as operações do Inferno; outro o de suppôr com offensa da Divina bondade, que esta poderia permitir a huma vil feiticeira [...] que com figuras de tinta , ou de carvão; com cozimento de ervas; com Blasfemias, e outras semelhantes superstições; pudessem privar as gentes da fazenda, da saúde, e até da mesma vida [...]. (CUNHA, 1640, p.119).11 O título XI conclui “teológica, jurídica e geometricamente” que os feitiços, sortilégios e adivinhações eram obras forjadas por pessoas poderosas que se servia dos “magos” e utilizavam dessas manipulações como estratégia para estabelecera ignorância e o fanatismo sobre os povos; ou invenção de gente pobre ou mendicante que recorriam às superstições utilizando as mesmas para “matar a fome sem fatigarem o corpo com trabalho”; ou a imaginação fértil das mulheres, traçando aqui uma relação entre magia e o feminino. 10 “Dos Feiticeiros, Sortilegos, Advinhadores, Astrologos, Judiciarios e Maleficos”. 11 Trecho retirado da p. 119 do Regimento de Inquisição. 31 4 ASPECTOS GERAIS DA RELIGIOSIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO O exercício da fé católica não se restringia apenas ao âmbito privado e doméstico, as cerimonias sacras eram comunitárias e faziam parte do cotidiano da vida pública local. Partindo desse pressuposto, é possível constatar que rituais públicos religiosos poderiam servir como um eficiente mecanismo de controle social, segundo Luiz Mott: [...] as cerimonias e os rituais públicos sempre tiveram uma função catalisadora do etos comunitário, funcionando igualmente como eficiente mecanismo de controle social e manutenção da rígida hierarquia social da igreja militante. Assim, a missa obrigatória aos domingos e dias santos de guarda [...] a indispensabilidade da frequência aos sacramentos, são algumas das praticas religiosas amalgamadoras do corpo místico no Brasil de antanho, um contrapeso socializador significativo para compensar a dispersão espacial e isolamento social dos colonos na imensidão da América portuguesa. (2010, p. 159) Cerimonias e rituais públicos faziam parte da cultura portuguesa, ao inserir a religiosidade na colônia, a Igreja teve de se adaptar as condições urbanas que estavam postas no período seiscentista: [...] ruas inóspitas pela muita poeira no verão e lama na estação chuvosas, as praças ameaçadoras pela presença de animais selvagens, índios e negros indômitos, muitas das celebrações religiosas que no Velho Mundo tinham lugar ao ar livre, na America portuguesa ou foram abandonadas ou tiveram de se transferir para dentro dos templos ou, ainda, ficar restrita à celebração doméstica. (MOTT, 2010, p.160-161) Para fins de contextualização, é importante destacar que as desigualdades socioeconômicas na América portuguesa eram profundas e entranhadas nas próprias estruturas de funcionamento da sociedade colonial ao passo que os dízimos e demais benesses materiais serviam como pano de fundo que justificava o incentivo à vida clerical comunitária. É a partir da arrecadação dessas benesses que a manutenção da riqueza do culto e da vida confortável dos clérigos se torna plausível e sustentável. As disparidades sociais refletiam diretamente no modo de práticas religiosas da Colônia, ao chegar na América portuguesa o colono se deparou com uma estrutura organizacional diferente; um elemento crucial para exemplificar as disparidades entre os grupos sociais na América portuguesa no que se refere a religiosidade era o fato de que as elites locais “branca, minoritária demograficamente” optava por um culto mais restrito ao âmbito doméstico, “os mais esnobes e elitistas[...] construíam seus próprios locais de culto [...] no 32 interior ou anexos às suas moradias, evitando assim o convívio com os fiéis de outras raças ou de estratos inferiores” (MOTT, 2010, p.161). As nossas igrejas foram visitadas por cronistas e viajantes, uma observação recorrente nesses relatos eram a falta de compostura por parte dos participantes e dos celebrantes dos cultos, [...] clérigos e leigos ávidos de aproveitar aqueles preciosos momentos de convívio intersexual a fim de fulminarem olhares indiscretos, trocarem bilhetes furtivos e, os mais ousados, tocarem maliciosamente o corpo das nem sempre circusnspectas donzelas ou matronas. Os volumosos Cadernos e Processos dos Solicitantes, conservados na Torre do Tombo, onde estão arrolados detalhes sobre os namoricos e “assedio sexual” dos sacerdotes no próprio confessionário, comprovam que muitos lobos estavam disfarçados de cordeiros, fazendo do tribunal da penitencia alcova para pecaminosas imoralidades. (MOTT, 2010, p. 161-162). A partir de um panorama sobre a fé no Novo Mundo o quadro que pode se traçar é a existência de alguns tipos de fieis que vão desde os mais fervorosos, os católicos praticantes autênticos, que de forma convicta se colocava sob os ensinamentos e dogmas infringidos pela hierarquia da Igreja Católica; passando pelos católicos praticantes superficiais, que de forma conveniente exerciam a fé praticando os rituais obrigatórios apenas para a validação social e chegando até os indiferentes às liturgias, os católicos displicentes; sobre este último tipo Mott afirma que [...] evitavam os sacramentos e demais cerimonias sacras não por convicção ideológica, mas por indiferença e descaso espiritual, muitas vezes incluindo em seu cotidiano “sincretismos” heterodoxos; pseudocatólicos: boa parte dos cristãos-novos, animistas, libertinos e ateus, que apenas por conveniência e camuflagem, para evitar a repressão inquisitorial, frequentavam os rituais impostos e controlados pela hierarquia eclesiatica, mas que mantinham secretamente crenças heterodoxas ou sincréticas. (MOTT, 2010, p.175). No Brasil colônia a fundação de conventos ocorreu tardiamente em relação ao Peru e México, por exemplo. Com a ausência de instituições religiosas onde pudessem se consagrar as donzelas mais fervorosas se dedicavam à devoção fazendo de suas casas os próprios claustros. Para exemplificar, usaremos o caso de duas mulheres oriundas da comarca de Alagoas e sete irmãs de Recifes, ambos do mesmo período: Na comarca de Alagoas[...] nos inicios dos setecentos, as donzelas Maria de Castro e Beatriz da Costa viveram em perpetua clausura dentro da casa de seus pais, e “se condenaram inocentes a um cárcere de que não rairam senão para o cárcere da sepultura, debilitando o corpo com rigorosos açoites, usando penetrantes espinhos em lugar de cilícios, passavam os dias e as noites em continuas orações”. No Recife, à 33 mesma época, viveram sete irmãs, filhas de Francisco Mendes de Oliveira e Leonor de Almeida, pessoas nobres e ricas. “Mortos os pais, se conservaram na própria casa com os resguardos de um mosteiro observante. A sua ordinária habitação era em um oratório que havia na mesma casa, nele perseveraram muitas horas de joelhos, orando mental e vocalmente, derramando muitas e copiosas lagrimas. De sua casa as irmãs saiam somente a ouvir missa, confessar e comungar [...] na igreja mais vizinha, e vinham tão modestamente cobertas, que não se acha quem lhes visse o rosto. (MOTT, 2010, p.179-180). Neste contexto, a religiosidade fervorosa era supervalorizada a ponto de que ter em casa algum parente voltado à vida devocional era sinônimo de prestigio e garantia de bens materiais, com isto, começaram a vir à tona casos de falsas beatas que caíram nos processos da Inquisição portuguesa por “forjar visões e dons preternaturais com vistas ao reconhecimento social e ao usufruto das mordomias proporcionadas pelos devotos” (MOTT, 2010, p.182). Muitas delas foram punidas com o degredo sendo enviadas para o Rio de Janeiro ou Bahia. Em toda colônia, mas sobretudo no Nordeste, eram frequentes as denúncias contra pessoas que recorriam aos trabalhos das feiticeiras mesmo com a Igreja Católica exercendo de forma ostensiva sua função institucional de maior hierarquia e se opondo incisivamente “desde os tempos apostólicos, a todas as religiões não cristãs, rebaixando-as à condição de idolatria, superstição e feitiçaria [...]” (MOTT, 2010, p.192). 4.1 O CASAMENTO COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE DA SEXUALIDADE FEMININA As mulheres eram domesticadas para reprimir seus desejos, o casamento precoce era estimulado pela própria Igreja com o objetivo de evitar que as moças se corrompessem antes
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