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PSICOLOGIA E PSICOTERAPIA TRANSPESSOAL CAMINHOS DE TRANSFORMAÇÃO FIGURA AURINO LIMA FERREIRA ELIÉGE CAVALCANTI BRANDÃO SALETE MENEZES AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar agradecemos à Natureza Ilimitada, a Deus, à Deusa, ao Grande Espírito, ao Eu Sou, ao Vazio e à Verdade sob qualquer forma ou nome. Que possa haver um mundo mais pacífico para todos os seres. Aos nossos pais, companheiros, filhos e netos, e amados familiares, vocês são a motivação principal do esforço constante de nossa transformação em prol da mudança do mundo em que habitamos. À Nakeida L. de Lima pela leitura cuidadosa e colaboração ativa na revisão das temáticas desenvolvidas no texto; seu pensamento sistêmico foi fundamental na costura da intertextualidade. À nossa amiga e ex-aluna Maria José Freitas (Zita) que, com sua arte, talento e sensibilidade, contribuiu com o desenho que ilustra a capa deste livro. Agradecimento a Dalva Araújo pelo empenho e dedicação na revisão deste livro e ousadia em aceitar fazê-la em tempo tão exíguo. Ao Atman-Centro de Desenvolvimento Transpessoal, lugar de construção e desafios, verdadeiro oásis para o exercício permanente da Psicologia Transpessoal. Às colegas Salomé Andrade, Ângela Dornelas, Taciana Dornelas, Adriana Dornelas, Luzia Compasso, Nakeida Lima, Vânia Araújo, Elny Banks, Alcileide Oliveira, Fátima Raposo, Lígia Feijó, Rúbia Tenório, Nazilda Coelho e Andreza Vieira, por compartilharem sonhos. Aos alunos que se foram e aos novos, vocês são a razão central deste livro, fonte primordial da nossa inspiração. Cada parte dele contém as inúmeras reflexões vividas e estão interdependentemente ligadas as suas consciências e corações. Aos clientes, por nos ensinar constantemente o valor de aprender sempre, quer seja com a dor quer seja com o amor; e a todos aqueles clientes em especial que nos contemplaram com seus casos, auxiliando-nos didaticamente a exemplificar neste livro o que ocorre no setting transpessoal. Aos professores e amigos: Léo Matos, Susan Andrews, Roger Woolger, Sofia Bauer, pelas aulas, supervisões e estímulos na senda transpessoal. Preito de gratidão a Sônia Pinto e Walter Barros, pelos caminhos apontados, e ao Professor Geraldo Leite (in memoriam), pela sua coragem de desbravar as vias transpessoais dentro da academia e pelo seu exemplo vivo de transpessoalidade. Aos mestres das mais diversas correntes espirituais em toda a história da humanidade, por sua proteção e assistência perene na nossa prática profissional e nos momentos da construção deste livro. Aurino Ferreira, Eliége Brandão e Salete Menezes Agradecimento Especial Ao meu orientador, Dr. José Policarpo Júnior, professor do Doutorado de Educação da UFPE, por ter acolhido um projeto de estudos na área da transpessoalidade humana: DO ENTRE-DEUX DE MERLEAU-PONTY À ATENÇÃO/CONSCIENTE DO BUDISMO E DA ABORDAGEM TRANSPESSOAL: A busca de uma pedagogia direcionada para a integralidade da formação. Bem como por ter possibilitado o uso de muitas das horas destinadas à disciplina de Estudos Programados para que fosse possível escrever e organizar este livro. A minha co-orientadora, Drª Nadja Acioly-Regnier, professora do IUFM (Institut Universitaire de Formation des Maîtres de Lyon) e Université Lyon 2, por abrir as portas da França para minha busca de transpessoalidade. Aurino Ferreira APRESENTAÇÃO Foi numa manhã de final do mês de março, bem na fase da lua cheia, que me chegou às mãos a versão deste livro ainda na gênese. Lembro-me que fiquei muito feliz e honrada pelo privilégio de conhecer o fruto de tão lindo trabalho de Aurino, Eliége e Salete. Sinto agora minha respiração bem presente, e convido aos que estão para iniciar esta leitura a observar também a própria respiração e, sustentando-a, dela usufruir enquanto lhes apresento o texto. Bem, posso dizer que a leitura inicial fez-me fluir agradavelmente nessa bem elaborada construção teórica, inclusive pela possibilidade de voltar à memória o meu próprio tempo de aprendiz principiante, nas indagações que hoje seriam mais facilmente respondidas através dessa leitura – os autores estão corajosamente se inserindo no processo de cura, no âmbito didático, das eventuais lacunas na formação profissional daqueles que não tiveram a oportunidade de ter como suporte de capacitação apoio literário nesse nível. O registro que aqui se descortina tem a marca da simplicidade, objetividade e coerência sem dispensar o respeito à boa técnica. Essa forma de perceber o livro consolidou-se quando no mês de agosto de 2005 veio o convite para a apresentação que ora disponho-me a fazer. Aceitei, não sem antes sentir e identificar a motivação para tanto, que tem contornos relevantes na honra de ter os autores como companheiros de jornada, bem como na crença sincera no trabalho transpessoal como viés psicoterapêutico que se firma cada vez mais como lastro à capacitação de profissionais, os quais, aprendendo e exercitando um competente e amoroso atendimento, situam-se à altura dos desafios que lhes estarão sendo propostos no contexto da atualidade. Serenamente reconheço que a vivência profissional de tantos anos consagra legitimidade aos autores para registrar de forma objetiva a prática procedimental, ao tempo em que no processo da leitura fica evidente uma certa reverência ao ato de saber fazer com atenção e dedicação no aprendizado de tão precioso exercício, o que lhes confere respeito, dignidade. Certamente a Psicologia Transpessoal ganha em muito com a inclusão deste livro no universo didático e psicoterapêutico. E digo mais: ao longo dos anos de experiência como psicoterapeuta clínica e consultora institucional, reconheço na prática como é essencial o aprofundamento e a teorização de procedimentos que atendam às peculiaridades do ofício. Com efeito, os autores, tal qual dedicados artesãos, demonstram habilidade didática ao dar forma expressiva à matéria prima com que trabalham: a psicoterapia. Observo seguramente que esse compêndio, na transparência de sua escrita, aponta para a necessidade do confronto paradigmático de aporte tradicional mecanicista/darwiniano com a referência holográfica/quântica mais progressista, perfilando um modelo holístico baseado na percepção de homem a partir de sua integralidade na dimensão de Ser, mais amplificada. Aqueles que puderem ler esse trabalho perceberão naturalmente que foi escrito com amor, e que a conexão entre a ciência e a espiritualidade, com clareza solar, abriga-se ao longo de suas páginas. O percurso da leitura possibilita abrir-se para um universo multidisciplinar, aprendendo, exercitando, desenvolvendo um caminho inclusivo para as mais recentes pesquisas, no que tange à apreciação do estado atual da consciência humana, convergindo saudavelmente para uma construção de conhecimento que, aliada à geração de sustentabilidade emocional, alcança saúde e cura psíquica, aprendendo sim, crescendo, e produzindo introvisões que paralelamente revelam a natureza da realidade ao tempo em que dão alicerce ao “edifício transpessoal”, ousando com firmeza e segurança. Resta, agora, manter-me atenta ao meu próprio respirar enquanto, mais uma vez, convido aqueles que lêem a fazer o mesmo para deixar que a expressão “este livro eu recomendo”, confortavelmente, encontre eco em cada um e se confirme, criando novas formas de fazer o saber se transformar e assim seguir trocando, compartilhando profissionalmente, amorosamente ... E assim será! Nakeida L. de Lima Psicoterapeuta Transpessoal ATMAN-Centro de DesenvolvimentoTranspessoal PREFÁCIO Nenhuma ciência objetiva, nenhuma psicologia, nenhuma filosofia tampouco, jamais abordou o reino do subjetivo, e por isso, não o descobriu realmente (Husserl). Desconfiem da verdade, ela sempre comete os mesmos erros (Romain Gary). Estou convencido de que as explicações dos fenômenos ‘emergentes’ de nossos cérebros, como as idéias, as esperanças, as imagens, as analogias, e por fim, a consciência e o livre arbítrio, baseiam-se numa espécie de anel estranho, uma interação entre níveis em que o nível superior desce rumo ao nível inferior, sendo também determinado pelo nível inferior. Haveria, portanto, em outras palavras, uma “ressonância” de fortalecimento entre diferentes níveis. O ego nasce assim que tem o poder de refletir-se (D.hofstadter). O livro de Salete, Eliége e Aurino é um presente há muito esperado por nós seus colegas, alunos e ex-alunos. Trata-se de um registro histórico importante, justamente porque ao passo em que pontua um momento importante da Transpessoal no Brasil, eterniza a trajetória da Transpessoal no Nordeste a partir de um fazer que em Pernambuco encontra guarida na trajetória dos três. Um fazer que é ricamente inventivo e arrojado, pois bebe em fontes muito diversas e encontra nessa diversidade um blending muito original. Podemos pensar o três como um movimento de síntese. Da unidade à fragmentação (representado pelo número dois), temos o número três como expressão do “terceiro incluído” ou uma “unidade complexa” como costuma chamar Edgar Morin. Um olhar que opera análise, sem disjunção, atento ao que une, ao que ata; abarcando Logos e Pathos, sensibilidade e racionalidadade, sagrado e profano, objetividade e subjetividade, espiritualidade e materialidade. Em uma de suas obras célebres, “O Pensamento Selvagem” Claude Lévi-Strauss descreve o que vem a ser uma “ciência do concreto”: trata-se de trabalhar a partir do sensível, do cotidiano, de operar “bricolagens”: juntar e rejuntar dando vida nova, estabelecendo uma nova simetria, buscando uma harmonia que se concretiza no dia-a-dia de um pensamento que não se poda em esquemas apriorísticos. Para mostrar os resquícios desta ciência do concreto entre nós ‘civilizados’, Lévi-Strauss lembra-nos da existência do bricoleur, que “é o que executa um trabalho usando meios e expedientes que denunciam a ausência de um plano pré-concebido e se afastam dos processos e normas adotados pela técnica. Caracteriza-o especialmente o fato de operar com materiais fragmentários já elaborados, ao contrário, por exemplo, do engenheiro que, para dar execução ao seu trabalho, necessita de matéria-prima”. Em conclusão, Lévi-Strauss pode comparar os dois tipos de conhecimento, o do engenheiro, (metáfora do modo de operação da ciência moderna) e o do bricoler (metáfora do modo de operação do pensamento mítico da ciência do concreto): “Tanto quanto o bricoler, posto em presença de uma dada tarefa, ele [o cientista, o engenheiro], [...] ele também deverá começar inventariando um conjunto predeterminado de conhecimentos teóricos e práticos e de meios técnicos que limitam as soluções possíveis”. Para o autor, a diferença entre os dois tipos de conhecimento “não é tão absoluta quanto seríamos tentados a imaginar”, as limitações de cada um “resumem um estado de civilização” diferenciado: “o engenheiro sempre procura abrir uma passagem e situar-se além, ao passo que o bricoler, de bom ou mau-grado, permanece aquém, o que é uma outra forma de dizer que o primeiro opera através de conceitos e, o segundo, através de signos” (p.35). Enquanto o conceito “se pretende integralmente transparente em relação à realidade” [pretensão da ciência moderna], o signo “aceita, exige mesmo, que uma certa densidade de humanidade seja incorporada ao real”(p.35). Podemos deduzir daí que a ciência moderna, buscando a objetividade do conhecimento (por diferentes vias metodológicas/abordagens teóricas) pretendeu expulsar a subjetividade de suas investidas ao conhecimento da realidade, enquanto na ciência do concreto a subjetividade é parte integrante da relação de conhecimento da realidade, como fica bem claro nesta passagem: o bricolage “não se limita a cumprir ou executar, ele não ‘fala’ apenas com as coisas [...] mas também através das coisas: narrando, através das escolhas que faz entre possíveis limitados, o caráter e a vida de seu autor. [...]. Sem jamais completar seu projeto, o bricoler sempre coloca nele alguma coisa de si” (p.37). Bebendo em fontes diversas da Filosofia Perene que no Oriente passam pelas milenares tradições do Yoga, do Budismo, do Tantra e outros, e no Ocidente trilham pelas escolas terapêuticas e seus legados preciosos (seja na abordagem ao trauma, na compreensão do dinamismo psíquico, etc..), os autores desembocam em Pernambuco a se fazerem foz, fonte, afluente e nascente. A medida da bricolagem não é uma empiria, um aprender pelo fazer aleatório. É preciso se fazer justiça no esforço criterioso de análise e crítica com que a tríade tem se debruçado tanto pelos modernos sistemas da psicologia ocidental quanto pelas tradições sapienciais do Oriente. Eles escapam ao ecletismo das colchas de retalho, de um holismo ingênuo e romântico. Há crítica, humor e até um ceticismo saudável nesse fazer. Há um pensamento que não mimetiza simplesmente o legado dessas tradições, mas que busca uma identidade muito própria. Talvez, essa seja uma das razões de tanta admiração por parte de seus alunos, entre eles eu próprio. A marca do pioneirismo é carregada no primeiro instante pelo signo da incompreensão, do olhar que não comporta a alteridade. Sustentar essa posição não é fácil. Por essa razão, o nascimento desta obra tem um sabor muito especial também para nós. É o índice do campo simbólico da Transpessoal que vem em busca de seu reconhecimento. Mas para buscarmos o reconhecimento do outro é necessário que possamos igualmente olhar a nós mesmos. Identificarmos nossa própria história, sermos capazes de contá-la. Nesse olhar, encontramo-nos através de nossas narrativas e definimos o nosso próprio lugar. E assim é possível ir ao encontro do outro. É imperioso informar que o livro em suas mãos é uma expressão de um movimento engajado de afirmação de um espaço sócio-político no âmbito da psicologia brasileira. Cumpre plenamente o caráter de divulgação da assim chamada “quarta força” convidando o leitor a empreender uma viagem segura pela sua epistemologia e também pelas suas técnicas. Tenhamos tranqüilidade perante nossos guias. Ao longo do caminho, perceberemos o coro de muitas vozes que os ajudaram nesse empreendimento titânico. Esta obra começou a ser escrita há mais de uma década e se hoje vem a lume é que este é um momento histórico em que suas formulações encontrarão guarida nas consciências (e corações) de quantos se dispuserem a lê-la despojadas de pré-concepções (como já aconselhava Èmile Durkheim acerca das regras que deveriam pautar o fazer do pesquisador em ciências humanas). Conheci os autores deste livro em 1999. Naquele ano, este livro já estava sendo escrito. Sinto-me parte desta construção, pois estudei com eles durante aquele ano e na virada do milênio, vi-os coordenando esforços para a construção do ATMAN como espaço de referência da Transpessoal em Pernambuco. Vejo-os como uma família que comporta divergências, que demanda estilos próprios, mas que encontra sua força justamente nesse movimento. Guardo profunda admiração pela amorosidade de Salete, pela espirituosidade de Eliége e pela intelectualidade “astuciosa” de Aurino. Pressinto nesta obra um novo momento de expansão, agora ancorado no acúmulo de experiências que fornece a sustentação para novos empreendimentos solo ou em novas parcerias. E torna fecundo o solo para que muitosoutros autores possam fazer germinar seus trabalhos. Finalizando, este não é um livro de auto-ajuda, mas espero que possa inspirar você a refletir-se, cuidando mais de si, atento à presença dos outros em sua vida, e preocupando-se com a Terra que é nossa pátria-mãe. Marlos Alves Bezerra. Doutorando em Ciências Sociais, UFRN. Membro fundador da ANPPT (Associação Norte Rio-Grandense de Psicologia e Psicoterapia Transpessoal). Pesquisador associado à Rede Internacional de Sociologia Clínica. Coordenador Geral da Rede Nordestina de Psicologia Transpessoal (RETRANS). ÍNDICE AGRADECIMENTOS ............................................................................................. APRESENTAÇÃO ................................................................................................. PREFÁCIO ............................................................................................................ INTRODUÇÃO ....................................................................................................... CAPÍTULO I: O QUE É PSICOLOGIA TRANSPESSOAL? .................................. 1.1. Origens históricas da Psicologia Transpessoal ......................... 1.1.1. Raízes históricas no contexto internacional ............................ 1.1.2. Raízes históricas no Brasil ..................................................... 1.2. Objeto de Estudo ................................................................ 1.3. Conceitos básicos em Psicologia Transpessoal .... 1.3.1. Visão de mundo/realidade ................................ 1.3.2. Visão de homem ........................................................ 1.3.3. Cartografias da consciência ................................. 1.3.3.1. Stanislav Grof – O modelo holotrópico da consciência ............... 1.3.3.2. Ken Wilber – O espectro da consciência ................................. 1.3.3.3. Roger Woolger – A cartografia da Flor de Lótus ......................... 1.4. A/cientificidade da Psicologia Transpessoal ........................... CAPÍTULO II: CAMPOS DE ABRANGÊNCIA. ..................................................... 2.1. Psicologia Comportamental (Behaviorista) ............................. 2.2. Psicanálise ................................................................................... 2.3. Psicologia Existencial e Humanista ............................................... 2.4. Psicologia Evolutiva ................................................. 2.5. Psicometria ....................................................................... 2.6. Psicofisiologia .................................................. 2.7. Farmacopsicologia ..................................................... 2.8. Psicopatologia ............................................................. 2.9. Psicossociologia .................................................. 2.10. Hipnologia ..................................................................... 2.11. Tanatologia .................................................................. 2..12. Onirologia ..................................................... CAPÍTULO III: AS PSICOTERAPIAS TRANSPESSOAIS .............................. 3.1. Os pressupostos básicos da psicoterapia transpessoal ........................... 3.2. Os sistemas psicoterapêuticos transpessoais .................................. 3.2.1. Respiração Holotrópica - Stanislav Grof .......................... 3.2.2. Terapia de Arte Transpessoal do Mandala - Léo Matos .......... 3.2.3. Terapia Regressiva Integral -Roger Woolger .......................... 3.2.4. Biopsicologia, transcendendo rumo à espiritualidade - Prabhat Rainjan Sarkar e Susan Andrews ................................................... CAPÍTULO IV: O PSICOTERAPEUTA TRANSPESSOAL ................................... 4.1. O tripé formador: teoria, trabalho transpessoal e supervisão experencial .... 4.1.1. A Teoria Transpessoal ........................ 4.1.2. A Supervisão Experencial .................... 4.1.3. O Trabalho Transpessoal .......................... 4.2. O papel do terapeuta transpessoal ..................................... CAPÍTULO V: AS TÉCNICAS TERAPÊUTICAS TRANSPESSOAIS ................... 5.1. Clarificação e Leitura do Processo Terapêutico dentro das Cartografias Transpessoais ......................... 5.2. Técnicas envolvendo morte-e-renascimento psicológico do ego ..................... 5.2.1. Morrer e renascer ........................................ 5.2.2. Psicodrama do nascimento ............................... 5.2.3. Visualização do próprio esqueleto ......................................... 5.3. Meditação ........................................... 5.3.1. O tigre .................. 5.3.2. O uso da meditação com mantras em terapia ............ 5.3.3. Redução da ansiedade, redirecionamento motivacional e contato com a sombra ....................... 5.3.3.1. Os obstáculos-pedra como feedback para o crescimento ......... 5.3.3.2. Tocando e liberando amorosamente a experiência de ansiedade ... 5.3.3.3. Amplie o contato com o corpo .......................................... 5.3.3.4. Exercício de ampliação da percepção ............................ 5.4. Exercícios psicofisicos. ......................... 5.4.1. Asanas ................................. 5.4.2. Toques corporais .............................. 5.4.3. Manobras de desbloqueio .............................. 5.5. Sonhos Inacabados ....................... 5.6. Jornadas de Fantasia .............. 5.6.1. Técnica da fogueira ................... 5.6.2. Técnica Isto é Real X Isto é Fantasia ................ 5.6.3. Técnica do túnel .................. 5.6.4. Vivências da semente no seio da terra .................... 5.6.5. Vivência da programação da própria morte ......... 5.6.6. A impermanência e a interdependência .............. 5.6.7. A mensagem do mito ............ 5.6.8. O templo interior ............. 5.6.9. Desidentificação dos corpos ou centramento no eu superior .... 5.6.10. Jornada para além do jardim ........................ 5.6.11. Curando e ampliando os vínculos familiares ................ 5.6.12. Identificando recursos ........................................................... 5.6.13. Exercitando o desapego do ego .............................................. 5.6.14. Focalizando um problema I e II 5.6.15. Trabalhando a culpa 5.6.16. Vivência de perda de uma situação 5.6.17. Trabalhando bloqueios, gestalts abertas 5.7. Técnicas Regressivas ........... 5.7.1. Regressão baseada em associações ......................... 5.7.2. Regressão a partir de sintomas físicos e psíquicos ....................... 5.8. Técnicas envolvendo práticas respiratórias. ..................... 5.8.1. Técnicas respiratórias redutoras de ansiedade e estresse .......... 5.8.1.1. Dissolver tensões, dores, desconforto ou incômodos localizados 5.8.1.2. Adote expirações regulares 5.8.1.3. Três respirações calmantes 5.8.1.4. Concentração sustentada na respiração 5.8.1.5. Primeira respiração, última respiração 5.8.1.6. Respiração para cura de si mesmo e controle das emoções 5.8.2. Técnicas respiratórias ativadoras de energia ............... 5.8.2.1. Respiração de poder ............................... 5.8.2.2. Respiração para soltar e ativar tensões 5.8.2.3. Hiperventilação .................................................... 5.9. Desenho do mandala como recurso na Psicoterapia Transpessoal 5.9.1. A técnica do desenho do mandala no contexto da psicoterapia transpessoal......................5.10. Exercícios de desindentificação da auto-imagem ....................... 5.10.1. Exercício da berlinda ................................................ 5.10.2. Exercício de projeção dos cinco papéis .................................... 5.10.3. Desidentificação de personagens internalizados ou sub-personalidades CAPÍTULO VI: CONCLUSÃO ............................................................................. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. ..................................................................... INTRODUÇÃO Aqueles que conhecem os outros são sábios. Aqueles que se conhecem são iluminados. Lao Tsu1 Há uma lenda milenar que por um movimento sincrônico veio parar em nossas mãos. Ela estava escrita em um pedaço de jornal que alguém apressado, por causa da chuva torrencial que caía sobre a cidade, acabou deixando preso ao teto de um veículo. Esta lenda falava de um rei frígio chamado Górdio que lançara um desafio aos habitantes de sua cidade: desatar o nó que ligava a direção de seu veículo. Muitas foram as tentativas para desatá-lo, tendo diversos homens perdido a honra por não haver conseguido. No entanto, certo dia, apareceu um jovem chamado Alexandre, conhecido mais tarde na História como “Alexandre, o Grande”, que, com sua espada, cortou o nó ao meio. Da platéia surpresa, ouviu-se dizer que aquela forma não era válida, já que o nó não tinha sido desatado e sim cortado. Ao que Alexandre sabiamente respondera: - Para desafios novos temos que usar novas soluções. Assim, também surgiu a Psicologia Transpessoal: uma nova solução para um novo desafio que eclodiu nos Estados Unidos com os movimentos da “Nova Era” expressos no mergulho no mundo dos alucinógenos - amplificadores e alargadores dos estados de consciência - nas amplas perspectivas terapêuticas alcançadas com o uso de práticas orientais, bem como na busca de sentido para uma gama de fenômenos que até então estiveram fora do âmbito do estudo da psicologia ou foram catalogados como patológicos. Em termos mais amplos, a Psicologia Transpessoal aparece como a espada de Alexandre2, ajudando a abrir um imenso flanco na cultura newtoniana-cartesiana, rompendo com os modelos dominantes em psicologia, no que diz respeito à redefinição do homem e sua relação com o meio, implementando assim as sementes da integralidade, no qual as divisões são substituídas por uma visão integrada da realidade e o homem compreendido numa rede ecológica que em suas últimas conseqüências ampliar-se-ia até o Kosmos3. Em diversos pontos e em várias áreas do saber humano “a espada” continuou a desfazer “os nós górdios”, criando uma verdadeira “conspiração aquariana”, conforme está descrito por Ferguson (1981). Avaliando as profundas mudanças que ocorreram a partir da virada do século XIX, mais pronunciadamente dos anos 50 em diante, percebemos, no contexto social, político e em todos 1 Citado em Perry, W. (1981). 2 A “espada de Alexandre” é usada aqui para simbolizar “um clarão de gênio”, conforme indica Chevalier e Gheebrant (1989). 3 Kosmos com “K” é utilizado para indicar Totalidade conforme aponta Wilber (2002). os campos da atuação humana, que se iniciou uma corrida louca para assegurar o direito de ser feliz e saudável. A Sociedade Ocidental, conforme destaca Vasconcelos (1992), gradativamente redefiniu a saúde mental como uma necessidade social global e imediata, e não uma conquista particular de um indivíduo ou de possíveis ganhos imaginários apoiados em sonhos futuros. A necessidade de presentificar a saúde mental em estratégias concretas no nível de políticas públicas tornou-se pauta de discussões. Como podemos perceber, iniciou-se de forma ampla e dinâmica um repensar da concepção de cidadania: organizaram-se movimentos políticos sociais em defesa das classes consideradas oprimidas expressos em defesa da mulher, do homo-erotismo, dos negros, e outros. As camadas populares, sempre excluídas pela classe dominante do processo de construção social, organizam-se em comissões de bairros e conselhos de moradores numa tentativa de emergirem da alienação e passarem a participantes do processo sócio-político. Ergueram-se escolas com uma política de resgate da identidade popular e de valorização do indivíduo, sendo posta abaixo a tese da evasão escolar, ficando demonstrado que as crianças não se evadiam e sim eram expulsas por não se adaptarem à ideologia dominante que as preparava para servidão. Em meio a esses profundos vieses transformadores, tivemos no Brasil a regularização da Psicologia como profissão em 1962, copiando os padrões hegemônicos europeus e norte- americanos, privilegiando o modelo do profissional liberal clássico. Modelo este que no presente momento se encontra em crise devido à mobilização das camadas sociais provocada, por sua vez, pelas mudanças econômicas e políticas que repercutem no contexto sócio- relacional, suscitando mudanças e exercendo, de certa forma, uma pressão sobre os poderes públicos no sentido de redefinir o atendimento das necessidades coletivas no âmbito das políticas sócio-administrativas, principalmente no que se refere à saúde numa visão mais ampla, à educação e a outras áreas essenciais para qualificar as condições de vida a nível físico e mental. Como podemos perceber, é dentro destas profundas transformações globais, talvez estimuladas por elas, que a Psicologia Transpessoal desponta. E por sincronicidade de movimento isto ocorreu no momento em que a psicologia no Brasil surgia como profissão. Sendo assim, de um lado, vemos o nascimento de uma “nova era” com o paradigma transpessoal e do outro, a busca da afirmação de um espaço sócio-político, manifesto na consolidação da psicologia como profissão. Neste sentido, o presente livro busca circunscrever o espaço da Psicologia Transpessoal, seja definindo-a, historiando-a ou levantando pontos centrais no seu já extenso corpo teórico, ao mesmo tempo em que busca consolidá-la no espaço sócio-político da psicologia brasileira. Com estes objetivos, o primeiro capítulo busca responder o que é a Psicologia Transpessoal, situando suas origens históricas no contexto internacional e nacional, o seu objeto de estudo, apontando ainda os conceitos básicos e discutindo sua cientificidade. O campo de abrangência da psicologia transpessoal encontra-se delineado no segundo capítulo. No terceiro capítulo, explicitamos alguns sistemas psicoterapêuticos transpessoais e seus pressupostos básicos e no quarto capítulo abordamos o tripé formador: teoria, trabalho transpessoal e supervisão experiencial na formação profissional e o papel do psicoterapeuta transpessoal. O quinto capítulo trata das técnicas psicoterapêuticas, sendo apresentadas aquelas mais utilizadas pelos autores. Por fim, este trabalho propõe-se à introdução no mundo regulamentar da Psicologia Transpessoal, esclarecendo o que lhe pertence e rompendo com suas distorções. É a materialização de sonhos pelos frutos concretos de anos de experiência profissional: clínica, hospitalar, ambulatorial, comunitária, e de ensino desta especialidade; também de contínua vivência terapêutica no papel de cliente e permanente aprendiz da abordagem transpessoal como norte existencial. Supõe-se ter havido uma "conspiração cósmica" na concretização deste trabalho, haja vista que a sua proposta parece atender à semeadura de uma nova civilização, em um tempo de mudanças. A revolução interior em busca do Ser Integral tem na Psicologia e Psicoterapia Transpessoal um veículo acionador, e urge divulgá-la e esclarecê-la para que mais pessoas venham a se beneficiar desta abordagem nos novos tempos. CAPÍTULO IO QUE É PSICOLOGIA TRANSPESSOAL? Ao Mestre Interior Oh, Ser alado de luz! Minha alma sedenta Eterno viajante Te busca por eons sem fim Entre miríades de galáxias Perambulando por espaços estelares E por caminhos diversos Andei te procurando Agora, não te ocultes mais de mim. Não viverei sem tua presença Estou renascendo das cinzas de tantas mortes remanescentes da luta inglória Recebe agora meu corpo frágil Como um cálice aberto A ti me entrego apenas para servir Derrama o néctar sagrado Do teu infinito amor Invade sem demora as entranhas do meu ser Não me deixes perder nesta noite escura Deixa-me alçar o vôo celeste Nas asas luminosas das tuas vestes Para o espaço vazio do meu Ser - eterna e imortal chama Divina. ( Eliége Brandão ) O interesse do homem por conhecer-se vem das mais remotas eras. Desde as culturas pré-históricas, passando pela Grécia antiga até os dias atuais, trilhando os mais diversos caminhos e usando das mais variadas formas, o ser humano busca compreender a si mesmo e resgatar sua origem, perseguindo o estado de plenitude. Como na escalada de uma montanha, o indivíduo veio subindo passo a passo, buscando atingir sua completude. Embora a cada passo vislumbrasse uma parte do enigma, não consegue desvendar o "Todo". Como na metáfora dos cegos que buscam definir o que é um elefante a partir do contato limitado com apenas uma de suas partes, cada aspecto percebido configura-se como verdadeiro, mas não revela a totalidade. Procurando a cura para seus males, o homem dividido, sentindo-se distanciado da sua essência, tentou juntar seus “pedaços” dispersos nos entremeios da visão dualista, newtoniano- cartesiana, e, então, nas igrejas, nos templos, nas sinagogas, nos mosteiros e nos terreiros tentava reencontrar sua fatia divina (transcendente) através de ritos considerados sagrados. Cônscio de que não é apenas a conseqüência de instintos e pulsões (Freud) nem somente o resultado dos condicionamentos (Skinner) tampouco manietado pelas satisfações meramente sociais (Adler), seus anseios se aprimoraram da direção horizontal à vertical para daí ampliar a consciência na abrangência de todos os sentidos e dimensões, como tão bem definiram os estudiosos Freud, Skinner e Adler, cada um a seu tempo, enquanto expoentes da ciência. Investigando e estudando cientificamente os variados estados de consciência, os teóricos da Psicologia Transpessoal a colocam como uma das áreas mais novas da ciência do comportamento, embora e de certa forma já fosse praticada há mais de 5.000 anos pelos antigos egípcios, pelas civilizações pré-colombianas na América, também na Índia e no Tibete. O pragmatismo desses povos antigos, porém, não conferia condição de ciência às práticas denominadas hoje transpessoais. Coube, então, a psicologia como ciência decodificar, experimentar, observar, catalogar e tratar dentro do aprouch científico para novamente codificar a partir do contexto da ciência do comportamento, e sistematizar aquelas técnicas que interferem no estado mental das pessoas, ampliando e transformando suas consciências no sentido de proporcionar equilíbrio mental, saúde, bem estar, senso de plenitude e, sobretudo, uma nova percepção de si próprio, do mundo e da realidade no âmbito das percepções holográficas ou integrais. É inegável a grande influência que as disciplinas e práticas orientais como o yoga, a meditação e as práticas budistas trouxeram para a Psicologia Transpessoal, desde os anos sessenta, quando a cultura ocidental foi, beneficamente, contagiada pelas filosofias asiáticas. Nesse período, também as técnicas corporais em psicoterapia foram grandemente enfatizadas, validando-se, sobremaneira, a liberação do prazer sensorial, sem incluir, no entanto, a dimensão espiritual do indivíduo. E, quanto mais reforço se imprimiu à personalidade, à persona, mais identificação com o ego e a auto-imagem; mais apego e mais sofrimento pelo medo da perda, da morte, da finitude do ser biológico, quando se lhe exclui a capacidade de transcendência. Na visão dualista corpo versus mente, a dimensão espiritual continuava alijada do contexto humano. E as terapias psicológicas ainda seguiam a dicotomia espírito versus matéria como dois departamentos isolados entre si; esquecidos, como enfatiza Ram Dass4, de que não somos um corpo que tem um espírito, mas sim, um espírito que temporariamente possui um corpo. A Psicologia Transpessoal nada exclui, pelo contrário, inclui todas as dimensões do ser humano, propiciando-lhe, enquanto abordagem psicoterápica, meios para enfrentar o sofrimento e transcender sua identidade egóica, fonte permanente desse sofrimento. Admitimos que a dificuldade existente ainda hoje das universidades brasileiras adotarem a Psicologia Transpessoal em seus currículos, nos cursos de formação de psicólogos, resulta não apenas da desinformação nos meios acadêmicos, mas, principalmente, da mudança de paradigma, no que se refere ao conhecimento da dinâmica psíquica, e da visão de mundo propostas pelas visões não-duais. 4 Richard Alpert, mais conhecido no meio transpessoal como Ram Dass, comunicação no Congresso de Manaus-AM. Não obstante essa resistência, é notório que a atual vigência do novo paradigma científico, com o advento da Física Quântica, vem respaldar a visão integral da Psicologia Transpessoal, conferindo-lhe o escopo de credibilidade nos meios científicos mais adiantados. Como antes já referido, o interesse do homem pelo mundo mental sempre esteve presente ao longo da história da humanidade; as manifestações mais antigas da presença humana sobre a terra expressam a busca pela compreensão desta área desconhecida e fascinante da vida. O mito grego de Eros e Psique5 talvez traduza uma das metáforas mais bem trabalhadas pela cultura ocidental para simbolizar a mente humana. Interpretemo-lo, sucintamente, sob a ótica transpessoal, mais especificamente a partir da cartografia wilberiana (ver item 1.3.3. deste livro), de forma a percebermos que os constructos téoricos que sustentam as “psicologias”, através de suas visões de mundo e dos sentidos atribuídos ao ser humano e, conseqüentemente, ao seu funcionamento mental, refletem as possibilidades de expressão oferecidas pelos aparatos simbólicos, bem como pelo nível de consciência possível dentro de uma rede cultural de relações que privilegia determinados aspectos como foco de estudo em detrimento de outros. De início, é importante salientar que este mito traduz um percurso da dualidade (divisão Eros x Psique) para unidade (casamento Eros x Psique), expressando o percurso de tomada de consciência ou jornada rumo a níveis de funcionamento psíquico mais harmonioso. Vejamo-lo: “A beleza de Psiqué fez com que se esquecesse Afrodite. Seus templos foram fechados e abandonados e de todas as partes acudiam forasteiros para ver e reverenciar não mais a mãe do Amor, mas uma mera princesa. Irritada com a competição e com o desleixo de seu culto, a deusa pediu a seu filho Eros para vingá-la e destruir a jovem beldade, fazendo-a casar-se com o mais repulsivo dos homens.” Neste ponto do mito, os gregos expressam a dimensão inicial da construção egóica, a partir dos espelhamentos dos desejos dos outros. Dimensão que assusta e desperta, nos forasteiros, amor, mas ao mesmo tempo atrai a ira das “deusas”, que buscam confrontar os mortais, impondo-lhes provas necessárias às transformações egóicas. Ainda neste ponto, Psiqué, por se encontrar dividida, metaforicamente incorpora o lugar do ego, fruto das identificações imaginárias, portanto miragem de ilusão e sedução que, quando tem necessidade de encontro com o oposto (sombra), aqui representado pelo mais “repulsivo dos homens”, sente-se ameaçado de morte. O nível do ego encontra-se aqui manifesto em Psiquécomo a faixa da consciência que compreende o nosso papel, a auto-imagem com os seus aspectos conscientes e inconscientes, bem como a natureza analítica e discriminativa do intelecto, da nossa mente, e daquilo que sentimos quando nos identificamos com qualquer papel ou imagem particular. Temendo pela filha, o rei consultou o oráculo e este a condenou às núpcias da morte: Sobre um rochedo escarpado, suntuosamente ataviada, expõe, ó rei, tua filha, para as núpcias da morte... 5 Os trechos do mito “Eros e Psiqué” citados no texto encontram-se em Brandão, 1992, pp. 220 - 221. Em obediência ao oráculo, os pais abandonaram a jovem às núpcias da morte com o monstro, mas surpreendentemente Psiqué é levada pelo vento Zéfiro para um palácio encantado, onde passa a desfrutar uma vida paradisíaca com Eros, seu amante invisível. As irmãs mais velhas, corroídas de ciúme e inveja, resolvem destruir o idílio da caçula. Não obstante as contínuas advertências do marido, ela decide, a conselho das irmãs, surpreender o monstro dormindo e matá-lo. A passagem de nível de ego para o existencial, no mito, dá-se quando Psiqué levada a um casamento com sua sombra, vivencia uma experiência de morte e renascimento psicológico (Rapto de Zéfiro), consolidando o princípio do surgimento de uma visão de organismo total (encontro com Eros). No entanto este “encontro” não propicia um casamento (quebra da dualidade), ao contrário solidifica um sentimento persistente e irredutível de que existe uma consciência separada de suas experiências, Psique apesar de estar junto a Eros não consegue percebê-lo. O nível existencial não exclui as manifestações egóicas anteriores que continuam a existir (aqui representadas pelas irmãs mais velhas de Psique) e buscam apontar a dualidade ainda presente em Psique que não consegue perceber seu amante invisível. Executado o plano diabólico, Psiqué vê a seu lado o próprio Eros, por quem se apaixona loucamente. Uma gota de azeite fervente, porém, lhe cai no ombro. O deus desperta e, sem dizer palavra, abandona a amante. Segue-se a busca de Psiqué, sua luta contra a crescente ira de Afrodite e a execução das quatro tarefas que a deusa lhe impõe. Abrindo a caixinha que lhe entregara Perséfone, a esposa do filho de Afrodite mergulha num sono letárgico. Eros a salva, e, imortalizada por Zeus, é festejada no Olimpo como esposa eterna do eterno Amor.” Psiqué na busca pela integração e conhecimento do que já estava com ela (Eros) entra em um longo processo de transformação, de enfrentamentos, até que a morte psicológica do ego (sono letárgico) a conduz ao nível transpessoal da mente, ou seja, identificação com o Kosmos, aqui representado pelo casamento com Eros e os festejos no Olimpo. Assim, este mito pode ser visto como a forma de dar sentido a um mundo de crenças e desejos do povo grego ao mesmo tempo em que o ajudou a construí-lo como tal. Ao longo da história, diversas formas de compreender a mente humana foram elaboradas, e estas sempre estiveram atreladas a uma forma de conceber o mundo. Sendo assim, pode-se dizer que “as psicologias”, nas suas já clássicas divisões, surgiram atreladas a uma determinada visão de mundo. Mundo este que precisa de sentidos para existir enquanto construção cultural. Analisando como a cultura ocidental tem organizado sua concepção de mundo, Matos (1992) destaca: “No mundo ocidental científico atual reconhecemos a existência de duas realidades básicas: a realidade cartesiano-newtoniana que assume que o universo é composto por uma quase infinidade de objetos mais ou menos separados uns dos outros; e a realidade da Física Moderna que assume e prova que o universo é como uma teia de aranha gigantesca e dinâmica. Em outras palavras, que nesta realidade mais profunda expressa pela Física Moderna, não existe a separação Sujeito x Objeto, mas que tudo é simplesmente uma unidade dinâmica.” (p. 9) Esta visão não dualista da relação sujeito x objeto, destacada pela Física Moderna, rompe com as construções cartesiano-newtonianas que deram base à atual sustentação de mundo da cultura ocidental, assim como serviram de alicerce para elaboração das diversas “psicologias”. Os trabalhos da Física Moderna possibilitaram o surgimento de novas questões, até então não levantadas dentro da perspectiva dualista, tais como: qual o impacto da quebra da divisão sujeito x objeto sobre a mente humana? E em que tal impacto alteraria a construção de mundo? Que concepções de subjetividade emergem de uma visão de mundo não dual? A primeira reflexão que surgiu destas questões indicou a impossibilidade de compreender a “unidade dinâmica”, apontada pelo modelo da Física Moderna, a partir do nível de consciência ordinário (construído dentro do modelo dualista). Neste sentido, surgiram as pesquisas (Grof, 2000 e Wilber, 1996) sobre os diferentes níveis de consciência, apontando que a superação dos limites impostos pela nossa personalidade - construída de identificações imaginárias, portanto fruto de divisões - a partir de tecnologias alteradoras da consciência, possibilitavam o acesso a níveis de relações mais holísticas com o mundo e consigo mesmo, propiciando, com isso, níveis de saúde mental mais satisfatórios. Beneficiando-se das descobertas da nova Física e buscando analisar seu impacto na mente humana - principalmente no que diz respeito aos diferentes níveis de consciência produzidos pela presença de determinada forma de ver o mundo (cartesiana-newtoniana x “unidade dinâmica” da Física Moderna), bem como às tecnologias alteradoras de consciência e suas repercussões na construção de um novo sentido para o mundo - organizou-se a Psicologia Transpessoal, como um ramo da Psicologia especializado no estudo dos estados de consciência, mais especificamente da “consciência cósmica”, ou estados ditos “superiores”, “ampliados” ou "transpessoais" da consciência que podem ser compreendidos como: “... entrada numa dimensão fora do espaço-tempo tal como costuma ser percebida pelos nossos cinco sentidos. É uma ampliação da consciência comum com visão direta de uma realidade que se aproxima muito dos conceitos da física moderna” (Weil, 1990a, p.9) Como se pode perceber, a Psicologia Transpessoal surgiu em resposta às incongruências dentro do modelo tradicional, numa tentativa de integrar possibilidades de uma maior capacidade humana na corrente principal das disciplinas comportamentais e de saúde mental do Ocidente. Tendo como alvo expandir o campo da pesquisa psicológica, incluindo áreas da experiência e do comportamento humano associadas à saúde e ao bem-estar extremo, a Psicologia Transpessoal desponta como movimento sistematizado a partir de 1969. Com a formação da Associação de Psicologia Transpessoal e a publicação de sua revista, nasceu uma primeira definição de Psicologia Transpessoal; assim expressa Sutich (1969) apud Weil (1990a): “Psicologia Transpessoal (ou “Quarta Força”) é o título dado a uma força emergente no campo da psicologia, representada por um grupo de psicólogos e profissionais de outras áreas, de ambos os sexos, que estão interessados naquelas capacidades e potencialidades ÚLTIMAS que não possuem um lugar sistemático na teoria positivista ou behaviorista (“Primeira Força), na teoria psicanalítica clássica (“Segunda Força”), ou na psicologia humanística (“Terceira Força”). (P.29) Para sintetizar a definição dada por Sutich, Matos (1992) assim se expressa: “A Psicologia Transpessoal estuda especialmente estados de consciência e se interessa especialmente pelo estudo de estado de consciência transpessoal.” (p. 9) O termo transpessoal6, cuja origem é atribuída a Carl Jung e Roberto Assagioli, foi adotado depois de uma considerável deliberação em torno dos relatos de praticantes de várias disciplinasda consciência que falavam de experiência de uma extensão da identidade para além da individualidade e da personalidade. Sendo assim, a Psicologia Transpessoal é, antes, um instrumento de pesquisa da natureza essencial do ser, e “... não é um ramo da Psicologia que lida com o misticismo, cristais, florais, tarô e outras práticas. É um desdobramento histórico-científico das três escolas (Behaviorismo, Psicanálise e Humanismo) que a precederam.” (Gonçalves Filho, 1995 p. 9) Conforme indica Vaughan e Walsh (1995): “A psicologia transpessoal está voltada para a expansão do campo da pesquisa psicológica a fim de incluir o estudo da saúde e do bem-estar psicológico ótimos. Ela reconhece o potencial da vivência de uma ampla gama de estudos de consciência, em alguns dos quais a identidade pode estender-se para além dos limites usuais do ego e da personalidade.” (p.18) No que diz respeito à psicoterapia transpessoal, os autores citados por último concluem que ela: “... inclui áreas e preocupações tradicionais, às quais acrescenta o interesse em facilitar o crescimento e a percepção para além dos níveis de saúde tradicionalmente reconhecidos. Reiteram-se nela a importância da modificação da consciência e a validade da experiência e da identidade transcendentais.” (p.18) Ainda na lição de Vaughan e Walsh (1995) quando destaca as pesquisas de Stanislav Grof acerca das experiências transpessoais, têm-se que: 6 Para maiores detalhes sobre a história da evolução do termo Transpessoal, ver Cap.I, item 1.1. “...essas experiências envolvem uma expansão da consciência para além das fronteiras costumeiras do ego e para além das limitações comuns de tempo e de espaço. Em suas pesquisas com a psicoterapia do LSD, Grof observou que todos os sujeitos terminavam por transcender o nível psicodinâmico e penetravam nos domínios transpessoais. Esse potencial também pode ser alcançado sem produtos químicos, seja espontaneamente, pela prática de várias disciplinas da consciência - por exemplo, meditação e ioga -, ou na psicoterapia avançada” (pp.18 e 19) Tem-se assim de forma resumida a definição do que os autores entendem por “identidades transcendentais”, que seria a “expansão da consciência para além das fronteiras costumeiras do ego e para além das limitações comuns de tempo e de espaço”. O que permite transcender o nível psicodinâmico e penetrar nos “domínios transpessoais”. Como se pode perceber não é algo sobrenatural, ou seja, de ordem não humana. Os produtos químicos, a prática de várias disciplinas da consciência - por exemplo: meditação e yoga -, ou a psicoterapia avançada, são alguns modificadores da consciência apontados. Conforme indica Tabone (1995): “O reconhecimento da existência do nível transpessoal da consciência e das experiências ligadas a esse nível, entendidas como aspectos intrínsecos da natureza humana e de que todo indivíduo tem o direito de escolher ou de modificar o seu “caminho” para atingir os objetivos transpessoais, foi fundamental para o desenvolvimento da “quarta-força”. (p. 97) Analisando os estudos de Grof (1984a), Tabone destaca que o enfoque na experiência de ordem espiritual, compreendida por nós como o estudo do sagrado, marcaram o ponto de transição entre a psicologia humanista e a transpessoal, e apresenta-se como um dos interesses de pesquisa desta última. “Como conseqüência dessa aceitação e da importância atribuída à dimensão espiritual da vida humana, vários psicólogos humanistas passaram a se interessar por uma série de estudos até então negligenciados pela Psicologia Humanista, tais como: o êxtase, as experiências místicas, a transcendência, a consciência cósmica, a teoria e a prática de meditação e a sinergia interindividual e interespécies.” (Grof, 1984, apud Tabone, 1995, p. 97) O estudo do sagrado, como ponte de transição entre a psicologia humanística e a transpessoal, caracteriza-se por outra forma de compreender o surgimento da Quarta Força em Psicologia. Palco de imenso cabedal de práticas, estudos e pesquisa, o sagrado esteve por muitos séculos como foco central de inúmeras reflexões filosóficas e religiosas. O campo científico também não ficou insensível a tal dimensão, podendo-se destacar na área psicológica as contribuições de Maslow (1964),Viktor Frankl (1971), Jung (1979), Rogers (1983), William James (1991), Assagioli (1992), entre outros. Desvinculando-se da religião, o conceito de sagrado, conforme se encontra apresentado por Mircea Eliade, no prólogo de sua “História das Crenças e das Idéias Religiosas”, defende que: “... é difícil imaginar como poderia a consciência aparecer sem conferir uma significação aos impulsos e às experiências do homem. A consciência de um mundo real e significativo está intimamente ligada à descoberta do sagrado. Pela experiência do sagrado, o espírito humano captou a diferença entre o que se revela como real, poderoso, rico e significativo, e o que é carente dessas qualidades, ou seja, o fluxo caótico e perigoso das coisas, seus aparecimentos e desaparecimentos fortuitos e vazios de sentido... Em suma, o ‘sagrado’ é um elemento na estrutura da consciência, e não uma fase da história dessa consciência”. (Eliade, Mircea; apud Omnés, Roland, 1996) E isto nos possibilita o rompimento com as dicotomias que põem sagrado e científico em pólos opostos, de forma que o primeiro fica a cargo dos religiosos e o segundo dos homens de ciência. Neste sentido, considerando-se o sagrado como “elemento na estrutura da consciência”, surgiu a Psicologia Transpessoal com um corpo teórico que busca dar conta de uma imensa gama de fenômenos, até então não valorizados pelas teorias que lhe antecederam. Estes fenômenos encontram-se catalogados em inúmeros estudos, e seus discursos encontram ressonância nos conceitos apresentados pela Física Moderna (Weber, 1989; Capra, 1983). Sem cair nos reducionismos ou mesmo no corporativismo que marcam a maioria das tendências em psicologia, a Psicologia Transpessoal busca fazer uma síntese das diversas contribuições das tendências terapêuticas. Seguindo esse curso, ela abriga no seu bojo os diferentes ramos do saber psicológico donde se destacam aspectos da psicologia no âmbito experimental, fisiológica, patológica, clínica, evolutiva, behaviorista, gestaltista, psicanalítica, existencial e humanística. Esta integração propõe uma conexão, na qual os recursos destas disciplinas com suas respectivas tecnologias são agregados sem esfacelamentos. Desse modo, foge-se do ecletismo, que poderia ser identificado como o uso isolado de técnicas e recursos de diversas disciplinas sem fins de conectividade. Na Psicologia Transpessoal, por reconhecer-se a amplitude do mundo psíquico com uma cartografia que abrange desde o nível perinatal ao nível transpessoal, busca-se romper com uma visão fragmentada de mundo, herança do pensamento newtoniano-cartesiano que gera onipotência e isolacionismos entre os diversos ramos do saber. No que diz respeito a seu modelo adotado, se pode entender que: “... psicologia transpessoal é muito semelhante ao modelo quantum-relativismo da Física moderna sub-atômica..., modelos que procuram apresentar um ponto de vista integrado da teoria de quantum e relatividade.... O universo todo (matéria/energia) é uma entidade dinâmica em constante mudança num todo indivisível.” (Matos, 1992, p.11) Dessa visão emerge uma proposição holística de mundo, de tal forma que a colaboração entre escolas tradicionalmente oponentes incorpora-se no cenário transpessoal. No trabalho transpessoal, quanto mais ampla e integrada for a visão do terapeuta acerca das possibilidades disponíveis nos diversos ramos do saber, mais ampla será sua possibilidade de atuação. Uma marca do terapeuta transpessoaldeve ser a flexibilidade e a capacidade de abertura para o novo, mesmo que este desafie suas idéias correntes. Tendo ressonância num paradigma emergente, a Psicologia Transpessoal não se propõe a ser um sistema fechado, nem um substituto para o velho, isto é, não tem como objetivo fechar- se ou dominar frente a uma visão de mundo que sustente uma verdade única. O auto- enriquecimento, através da autocrítica, marca seu modo de produzir o saber, de forma que a expansão de novas tecnologias no estudo do homem são requeridas e experienciadas. Por esse caminho, mesmo as construções cartográficas já estabelecidas, como as de Grof (1988), Assagioli (1992), Wilber (1996) são vistas como norteadoras de processos, e não como verdades a serem seguidas rigidamente. Elas apresentam seus valores a partir do momento em que ampliam as perspectivas de trabalho e sistematizam uma gama imensa de fenômenos. Mas, por serem elaboradas em determinado nível de consciência, atendem a uma faixa de experiência, não se propondo a dar conta de todo o fenômeno humano. Em síntese, a Psicologia Transpessoal surgiu como um desdobramento histórico das psicologias anteriores, mais especificamente da Psicologia Humanística, de onde saiu a maioria de seus fundadores. Propondo-se ao estudo dos estados de consciência, com ênfase nos estados de consciência transpessoal, este novo ramo da psicologia, também denominado “Quarta Força em Psicologia”, estabelece uma conexão entre existencialismo, fenomenologia, humanismo e as mais recentes descobertas nos diversos campos do saber humano. Quanto às pesquisas desenvolvidas, estas buscam resgatar o ser humano em sua dimensão de totalidade (ser bio-psico-social, cósmico e espiritual). Para tanto, adota uma larga faixa de possibilidades de aplicação, incluindo as áreas tradicionais da psicologia (industrial, clínica, escolar, social), nas quais abre novos leques com estudos nas áreas comunitária, hospitalar, ambulatorial, tanatológica, ecológica, além da educação para a paz. 1.1. Origens Históricas da Psicologia Transpessoal O passado é história. O futuro, mistério. Este momento é uma dádiva. E por essa razão o chamamos “o presente”. - Autor desconhecido A breve análise histórica das origens da Psicologia Transpessoal será feita com a ajuda do mito de Psiqué, anteriormente relatado, de forma que a passagem de uma época para outra será marcada por um subtítulo que tenta expressar o percurso do nascimento até o casamento de Psiqué. A metáfora deste casamento será utilizada, aqui, para expressar o surgimento da Psicologia Transpessoal. 1.1.1. Raízes históricas no contexto internacional DA PRÉ-HISTÓRIA AO MUNDO ANTIGO: PSIQUÉ VAGUEIA SEM NOME E SENTA-SE EMBAIXO DA ÁRVORE BODHI A busca pela transcendência sempre ocupou um largo espaço nas manifestações culturais humanas. As pinturas rupestres nas cavernas de Altamira e Lescaux, datadas de 20.000 a.C., assim como os ritos religiosos de sociedades primitivas orientais e ocidentais são marcas que refletem esta preocupação. Os antropologistas catalogaram diversas dessas manifestações ao longo da História, formando um largo acervo que busca dar conta da relação do homem com o que hoje se denominam valores de transcendência. Entre estes achados, destacamos as sepulturas do homem de Neanderthal (100.000 a.C.), a partir das famosas escavações na caverna de Shanidar, no Iraque, que mostraram evidências de ritos funerários dos neandertaleses os quais incluíam festas, flores e alimentos, assim como túmulos cuidadosamente preparados e assinalados. Jones (1976) assinala a descoberta de esqueletos do Homem do Cro-Magnon, enterrados na posição fetal. Após a analise de tal prática, chegou-se à conclusão de que a forma do enterro estava vinculada à crença de que tal posição facilitaria o retorno do espírito do morto, bem como servia para estabelecer vínculos emocionais e de pertencimento entre a comunidade e um aplacamento da ansiedade frente à finitude. Os xamãs sempre ocuparam um lugar de destaque entre as culturas antigas como responsáveis pela saúde mental e espiritual da população, usando para isso o contato com as entidades supranormais, sejam estas fantasmas dos mortos, espíritos das plantas, animais, rios ou montanhas. Em reforço a esta idéia destacamos o trabalho de Gould (1968), no qual o autor cita as observações do antropólogo Andrew Lang e do etnólogo Max Lang em tribos da Polinésia, bem como o trabalho de Eliade (1998) considerado clássico nessa área. Entre os antigos babilônios, egípcios e persas, há a presença marcante de fenômenos que hoje seriam denominados de consciência transpessoal. O “Livro Egípcio dos Mortos” com seus textos fúnebres (escritos para NesiQuensu, Querasher e Taquert-p-uru-abt), hinos, orações e palavras de poder é um verdadeiro tratado de tanatologia e de valorização da vida, a partir do encontro com a morte e a transformação que ela provoca. No hino de louvor a Rá, Osíris, o escriba Ani, assim expressa esta transformação: “Homenagem a ti, (2) ó Rá, quando te levantas. ...És adorado [por mim quando] tua pulcritude está diante dos meus olhos e [quando teus] (3) raios [caem] sobre o [meu] corpo. ...Ó tu que és belo de manhã e à tarde, ó tu que vives e estás instalado, ó meu senhor! Homenagem a ti, ó tu que és Rá quando te levantas, e (7) Tem quando te pões magnífico. Levantas-te e brilhas nas costas de tua mãe [Nut], ó tu que foste coroado rei (8) dos deuses! ...Brilha com teus raios de luz sobre o meu corpo dia após dia (15)...” (Budge, 1985, pp. 160, 161) Vem da Índia antiga o cenário onde Psiqué surge, sendo o Tantrismo Shivaista um berço fecundo para seu desenvolvimento, inclusive do modelo de consciência a partir da noção de Chakras, vórtices energéticos de natureza psicofísica responsáveis pelos processos mentais, emocionais e sutis. A sofisticação destes modelos de consciência tem sido resgatada pelas pesquisas transpessoais, na atualidade, numa tentativa impar de romper com o silêncio etnocêntrico em relação a outros modelos de mente diferentes dos ocidentais. Na cidade de Bodhigaia, sob o sol brilhante da manhã indiana, o jovem príncipe Sidharta senta-se debaixo de uma árvore da espécie Bodhi e faz a motivação de só levantar depois de ter compreendido o funcionamento de Psiqué. Ele que tinha experienciado os extremos, do hedonismo à negação completa dos sentidos, tem sua noite povoada de encontros com os conteúdos de sua mente, até que ao alvorecer toca na estrutura produtora de Psiqué, apontando o caráter ilusório desta. O jovem “desperta”, daí ter recebido o nome de Buda, o desperto, ou seja, aquele que vê além das construções ilusórias, além de maya (a dimensão ilusória). Quando o Buda se levanta, passa a dedicar-se ao ensinamento sobre a origem, a causa e a cessação do sofrimento, apontando ao final um caminho de oito passos para sua superação. Desta experiência, brota uma das mais sofisticadas formas de compreensão da mente humana e talvez um dos primeiros tratados sobre a mente com uma compreensão transpessoal: O Abhidharma. Já no Abhidharma, Psiqué é representada em seus processos de construção e desconstrução denominados “Os doze elos da originação interdependente”. Nele os níveis transpessoais de desenvolvimento da consciência são delineados, oferecendo uma visão das emoções destrutivas e o percurso da formação da noção de identidade. Uma longa tradição de filósofos orientais debruçou-se sobre a mente, produzindo uma longa literatura que só agora começa a chegar ao ocidente através dos teóricos transpessoais. Os trabalhos de Wilber (2002), Varela, F.J. & Thompson, E. e Rosch, E. (2003), Goleman (1999a, 1999b) e Epstein (2001, 2003) são exemplos da riqueza teórica oferecidas pelas tradições budistas no contato com a cultura ocidental. No Ocidente, contudo,o etnocentrismo, aliado à dificuldade de acesso à literatura oriental, tem nos conduzido a uma visão de que Psiqué teve seu nascimento junto com a filosofia grega. No entanto, os modelos de desenvolvimento e as teorias da mente produzidas nos meios transpessoais apontam para riqueza das teorias orientais, que precisam ser revistas de forma autêntica e livre de preconceitos. A GRÉCIA: O NASCIMENTO DE PSIQUÉ É na Grécia que nasce a idéia de Psiqué, alma, através do contato com as experiências de morte e nascimento, sonhos e sono, contato com os antepassados, consultas a oráculos etc. Aqui ainda prevalece a atitude animista de atribuir um poder mágico às forças da natureza. Contudo, a idéia reducionista de que estes pensamentos são simplórios desvaloriza o poder criador destas culturas nascentes. A partir do século VII, a cultura grega vai assumir uma distinção muito particular em relação a outras culturas. Se lembrarmos das culturas antigas que habitavam o mar Egeu, vemos que elas tinham uma ligação muito grande com o pensamento oriental. Na verdade, a maneira deles abordarem a natureza era muito semelhante. Não havia uma distinção, por exemplo, entre a idéia de Psiqué (idéia de subjetividade, de ser) e a natureza. Havia uma ligação intrínseca entre esses dois conceitos – psiqué e natureza. De certa forma tinha-se um pensamento místico, mágico, porém de aproximação, de não distinção, entre o psiqué e o cosmos. Tanto que os primeiros filósofos, os pré-socráticos, tinham como ponto inicial de reflexão a natureza. E é somente a partir dos séculos V e VI, quando começa a filosofia clássica, que ocorre uma reflexão sobre o ser humano dissociada da reflexão sobre o cosmos, sobre o mundo natural. Quando os gregos começam a filosofar, eles fazem isso em busca de um princípio unificador para a existência do mundo e a perspectiva de que Psiqué já estava inserido dentro desse cosmos. A partir do século V começa a haver uma separação. Ao mesmo tempo em que se assiste no Oriente, mais especificamente com a iluminação do Buda, a um florescimento dessa tentativa de pensar a existência humana dentro da sua lógica mais ampla, mais cósmica, no Ocidente vai-se fazer o caminho inverso. No século V, encontramos um conjunto de filósofos que ao invés de perguntarem sobre a questão da origem do princípio unificador da natureza, do cosmos de um modo geral, estão demarcando o pensamento filosófico em áreas e apontando para uma reflexão mais voltada para a interioridade, mas não a interioridade em busca da integração que seria a marca do pensamento oriental (você interioriza para integrar, e não para promover um afastamento do mundo, da natureza). No Ocidente, a busca de interiorização, que é uma busca filosófica de si, do conhecimento de si, é de uma interiorização para marcar uma distância, para marcar uma diferenciação, um espaçamento entre o ser humano e os demais seres que compõem o cosmos. É uma tentativa de buscar o conhecimento interior, mas um conhecimento interior que vai favorecer essa dinâmica do domínio, essa dinâmica da separatividade, do distanciamento. É uma reflexividade muito diferente da reflexividade oriental, ou seja, você está se conhecendo mais para se autonomizar, para se separar, você está refletindo sobre si, mas para demarcar uma fronteira entre Eu e o Outro, Eu e o Mundo. No caso da Grécia, por exemplo: quem é grego e quem não é; quem é civilizado e quem é bárbaro; quem é que domina os códigos de um determinado padrão cultural e quem não domina. PSIQUÉ SOCRÁTICA: CONHECE-TE A TI MESMO Sócrates desloca o eixo reflexivo da natureza para o ser humano, dando surgimento a uma virada antropológica. Ao contrário daqueles que lhe antecederam, ele move toda a produção mental para os seus próprios mecanismos de pensamento, de fundamentação. Interioriza a reflexão filosófica num desenho preliminar de subjetividade, ao mesmo tempo antropologiza. Desse modo, Sócrates coloca o homem como o eixo dessa reflexão mais ampla da filosofia que é o que vai marcar todo pensamento ocidental, o que modernamente chamamos a Filosofia do Sujeito, embora os gregos não tivessem essa idéia de sujeito. Na verdade a idéia de subjetividade é uma idéia moderna. Mas essa percepção de que a compreensão do mundo, do universo, passa por uma compreensão do sujeito, não seria tão complicada se não tivéssemos antropologizando o pensamento filosófico. Esse filósofo contribuiu ainda delineando uma dimensão que podemos chamar de holística, quer dizer, o ser humano ainda não está completamente dissociado das demais esferas. Já em Platão, seu discípulo direto, isso não ocorre como veremos mais à frente. O Oráculo de Delfos é um dos maiores exemplos da riqueza do uso dos estados ampliados de consciência dentro da cultura grega no período socrático, mantendo-se importante desde o período do Helenismo até a época de Alexandre, o Grande, um dos seus mais assíduos consultores. Os diálogos de Sócrates e seu daimon já se tornaram clássicos, sendo famoso o diálogo com o discípulo Mnéias. Neste, Sócrates aconselha o discípulo a não ir à corrida de bigas em Charmides, posto que fora informado da sua morte, por seu daimon. Mnéias despreza os conselhos do filósofo, vindo a falecer, como que cumprindo o anunciado. PSIQUÉ VAGUEIA DIVIDIDA NAS SOMBRAS DA CAVERNA Em Platão temos uma demarcação de fronteiras que vai produzir um forte impacto na cultura ocidental: seu idealismo muito acentuado. Como Sócrates, ele vai partir dessa reflexão do ser humano, mas aí ele cinde o ser humano, coisa que Sócrates não fazia. Platão vai produzir uma teoria da alma, da psique, que tem uma dupla face: 1. Por um lado, a alma, a psique, não seria acessível completamente ao pensamento, porque estaria associada à idéia universal (a idéia do arquétipo); logo não poderia ser alcançada diretamente. Ao mesmo tempo ele transfere o domínio da alma para o domínio do inteligível onde não conseguimos acessá- la diretamente, entretanto ele também afirma que, quando essa alma encarna, fica sujeita às questões do mundo sensível, sobretudo às questões do corpo. E, quando encarna, ela tende a se corromper em função desse contato com o mundo corporal. É nesse mergulho da alma dentro do corpo e com todos os desafios que essa encarnação acarreta é que ele vai produzir uma outra teoria da alma. 2. A alma subdividida, em estando na esfera do sentido, ali fica e passa a assumir como objeto um trabalho de auto-educação. Ele diz que a alma é dividida em três camadas, três partes. Essa segunda teoria de alma platônica está situada do ponto de vista morfológico: - a alma instintiva, localizada na região do baixo ventre; está encarregada dos apetites, do sexo e da alimentação; - uma segunda alma, localizada na região cardíaca; responde pela proteção, pela segurança, está associada às emoções: ira, dor, coragem, nessa dimensão afetiva volitiva; - alma racional, aquela que de fato faria a ponte, a ligação com a alma em si, a psique; estaria ligada ao intelecto. O papel dessa alma racional seria exatamente colocar esses dois extratos inferiores sob o controle da razão. A alma, por fazer parte do mundo inteligível, também faz parte das estruturas racionais. A alma é sinônima de razão. Em Platão temos então uma idéia de Psique ao mesmo tempo racionalizada, ou seja, reduz-se à psique à dimensão racional, e uma psique cindida, dividida em si mesmo, em função do contato com a dimensão sensível, com a dimensão corporal que na filosofia platônica recebe uma valorização negativa, a menor. A idéia do corpo como corrupção, como uma fração animal instintiva, devendo ser necessariamente objeto de um controle, um domínio. Então na Grécia, lidar com a Psiqué implica lidar, sobretudo com uma dimensão que não deixa de ser uma dimensão disciplinar, que é a dimensão dessa alma tentandocontrolar a si mesma, dominar a si mesma, no momento em que ela se percebe, em que ela tem uma consciência do contato dela com essa dimensão material, essa dimensão da corrupção, essa dimensão sensível. Temos então um esforço que não só vai marcar o pensamento grego, mas vai, de certa forma, inclusive em função do contato com o cristianismo e com a tradição judaico-cristã, que também desvaloriza a dimensão sensível, a dimensão do corpo, se repetindo e se consolidando numa abrangência máxima com Descartes, na modernidade. Temos de fato, então, uma noção de alma completamente desvinculada, um pensamento do sujeito em si mesmo descolado de qualquer esfera superior. Os gregos tentam sair do ciclo de vida e morte, mas tentam fazer isso através de um mecanismo de abstração, criando uma psique completamente abstrata que poderia em seu próprio pensamento lidar com vida e morte. Esta é uma estratégia pouco suficiente porque tende a reprimir uma série de outras dimensões da própria psique que ficam soterradas porque os gregos não conseguiram fazer esse processo de integração plena. Ao invés de assumir a dimensão trágica como parte de sua própria existência, eles preferiram fazer essas hierarquizações, de forma que transcendência passa a ser transcender o mundo, transcender aquilo que é. Os gregos contam com uma rica tradição histórica e mitológica, sendo o culto a Dionísio um dos mais disputados. Neste mito temos uma das primeiras tentativas de encarnar Psique, de trazê-la ao mundo material. Ainda dentro do mundo mitológico pode-se destacar a figura de Quíron, o centauro professor de Asclépio, o patrono dos curadores e o arquétipo orientador dos terapeutas modernos. Na Grécia antiga o processo de cura era sacerdotal, ou seja, comandado por um sacerdote que estava a serviço de algum templo. Este processo foi rompido com o surgimento de Hipócrates, pai da medicina, que estabeleceu o início do processo de cura fora do contexto religioso. A atitude de Hipócrates é vista como uma tentativa de estabelecer uma idéia mais próxima do que temos hoje como científico, ou seja, deve ser dissociado do espiritual, contudo sua atitude não excluía o caráter espiritual envolvido no processo de cura. Por mais que pese as críticas socráticas contra os sofistas, são inegáveis suas contribuições para circunscrever o que hoje denominamos subjetividade humana. Pesquisadores da história da Psicologia, como Mueller, indicam que é pouco provável que, antes deles, tenha havido uma verdadeira compreensão da realidade subjetiva humana. CRISTIANISMO: PSIQUÉ CRUCIFICADA O cristianismo primitivo não tem a dimensão de dualidade. Não achamos nos evangelhos, ensinamentos originais do Cristo, nenhum tipo de fracionamento, pelo contrário, vemos uma busca pela recomposição do humano em sua totalidade. É com Paulo de Tarso que temos, de fato, a primeira grande crucificação de Psiqué, pois sua leitura maniqueísta do cristianismo primitivo introduz uma grande divisão: o corpo passa a ser foco do pecado e alvo do controle da alma, do espírito ou da racionalidade, enquanto a alma é glorificada. E é esta versão da tradição cristã que temos hoje. Uma versão, digamos, cristianizada mas também já aculturada pela visão grega e que posteriormente Roma assumirá como interpretação oficial. A crucificação do Cristo é uma metáfora do que é feito com aqueles que apontam para uma visão não dual e propõem uma ética equânime. Psiqué crucificada é dividida pelo poderio romano e perde o doce encanto integral dos pensamentos do Galileu. De Tomás de Aquino a Santo Agostinho a história de Psique passa a ser atrelada à divisão, a medida que os ensinamentos originais do Cristo passam cada vez mais a servir a ideologia católica do bem e do mal. A voz integral de Psique é reencontrada em Plotino através de seus escritos, e, na modernidade foi resgatada em sua originalidade nos textos espíritas de Kardec (1985). A DEMONOLOGIA DA IDADE MÉDIA A Idade Média é marcada por um movimento de recuo histórico; ao invés das grandes expansões, volta-se para o campo, criam-se muralhas e feudos na tentativa de lidar com os problemas e a violência devastadora causados pelas invasões bárbaras no fim do império Romano. Não se conseguindo deter as invasões, a violência aumenta em níveis fora do comum, então a alternativa à violência foi a reclusão. O catolicismo tem um grande peso nesse processo de reclusão, exatamente por favorecer um discurso de decadência, de fim do mundo, de corrupção humana pelas forças demoníacas em que a única possibilidade de saída é o isolamento, o distanciamento do mundo. Para alcançar a salvação Psiqué precisa se distanciar do mundo. O pensamento ocidental, sobretudo no início do século XX, criticava o Oriente ao dizer que ele tinha uma visão passiva da presença do homem no mundo, em função do ideal ascético – a idéia de ascetismo como reclusão do mundo. No entanto, podemos ver que o Ocidente também tem isso de forma bem marcada. O período medieval é todo isso – essa tentativa de fugir do mundo, como se você ao se afastar desse espaço mundano, o espírito pudesse então plenificar-se, exercer-se com todas as suas potências. Então, em termos de Psiqué o que vamos ter, talvez, seja uma dificuldade dessa psique em lidar com essas questões intramundanas, essa dificuldade de conseguir uma relação harmônica com o mundo. A metáfora que melhor define Psiqué na Idade Média é a de uma criadora de muralhas. Ela cria muralhas em volta de si para se proteger dos ataques do mundo, do demônio. Uma psique que faz um esforço impressionante, quer dizer, direciona todas as suas energias para um processo de interiorização, mas que não é de harmonização, porém um processo de interiorização para fugir, ou seja, recorrer à transcendência como fuga. Nega-se toda a dimensão corporal e se trabalha sobre a alma, mas na perspectiva dela escapar do mundo que a persegue. Ou seja, há uma criação de fronteiras, de barreiras. A Igreja tem um peso no controle da produção do conhecimento, e a Idade Média é toda marcada por este privilégio na construção e guarda do saber, excluindo as possibilidades de críticas ou de novas elaborações. Na verdade, a partir da idéia cristã de revelação, de que tudo que deveria ser conhecido já está dito na Bíblia, o livro central, não cabe mais se deter nesse processo de especulação. É também uma diferenciação em relação à cultura grega. Perde-se o movimento especulativo: a filosofia torna-se, nesse período, serva da teologia – o filósofo não tem mais autonomia para produzir um pensamento, ou seja, as reflexões filosóficas precisam estar ancoradas num norte já revelado – essa é que é a verdade primordial. Então, rompe-se com o movimento especulativo da racionalidade, mas, ao mesmo tempo, isso não desencadeia nenhum processo de integralidade porque o que vai ser feito em termos de psique é essa reclusão e uma tentativa de parada ou de simplesmente adotar uma dimensão da verdade já revelada. Entretanto, a aceitação de uma visão como verdade única constitui-se em uma negação do que seria o impulso de desenvolvimento natural humano quando a consigna traz que “eu preciso escapar, me proteger dessa dimensão mundana”. Então, temos muito mais a Igreja como uma instituição que controla e que desvia os saberes que circulam na sociedade para o bem ou para o mal. Foi essa função que permitiu a preservação ao longo desse período de conflitos e turbulências no continente europeu de um conjunto de conhecimentos que de outra forma a ele não teríamos acesso, porque a aristocracia medieval não tinha nenhuma ligação com essa dimensão do saber. De certa forma, eles retornam a uma concepção aristocrática antiga onde a virtude está baseada na idéia de força, na idéia de sobrepujar o outro fisicamente através de violência e de poder. Na aristocracia medieval era o Clero na verdade
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