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O vestido sem costura de Boi Neon_FINAL

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Tainá Carvalho Ottoni de Menezes
Professores: Tunico Amâncio e Fabián Núñez
Disciplina: Metodologia e Análise Fílmica
O Vestido sem Costura de Boi Neon
Rio de Janeiro
Janeiro/2018
Universidade Federal Fluminense
Mestrado PPGCine
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................2
CONSIDERAÇÕES GERAIS.................................................................................................4
DECUPAGEM, DESCRIÇÃO E ANÁLISE DA SEQUÊNCIA INICIAL........................12
CONCLUSÃO.........................................................................................................................17
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA.........................................................................................19
Rio de Janeiro
Janeiro/2018
Universidade Federal Fluminense
Mestrado PPGCine
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INTRODUÇÃO
Em Boi Neon, o diretor pernambucano Gabriel Mascaro parece seguir a lei
estipulada pelo crítico francês André Bazin em seu célebre artigo ‘Montagem Proibida’:
“Quando o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou
mais fatores da ação, a montagem fica proibida”1. No filme em estudo, o respeito pelos
aspectos temporal e espacial, pelo desenrolar das ações e pelas interações entre os atores (e
muitas vezes entre atores e animais) parece se impor à urgência de se contar uma estória
dentro de um tempo determinado (e apressado). As cenas são construídas com longos planos-
sequências, aproximando a percepção do espectador dos acontecimentos cinematográficos, da
maneira empírica como se percebe os acontecimentos no mundo cotidiano. Obedecendo à lei
de “interdição” da montagem, Mascaro traz seu filme para dentro do debate, retomado pelo
cinema contemporâneo, sobre a produção de realidade. Segundo preceitos bazinianos, a busca
pelo realismo é questão ontológica na produção de imagem, no entanto, o realismo no cinema
se separa da mera réplica da realidade do mundo. Segundo o crítico, o que confere realismo
ao cinema é a preservação das ambivalências presentes na vida, possibilitando ao espectador a
capacidade de decifrar mistérios sem que seu olhar seja dirigido pela manipulação da
montagem. Contrariando outras correntes, influenciadas tanto pelas concepções soviéticas de
cinema, baseadas em uma montagem explícita, quanto pela decupagem clássica
hollywoodiana, ditada por uma montagem “imperceptível” — duas formas distintas de
transmitir ideologia (óbvia e dissimulada), mas que consideram ser através da montagem, e
não da mise en scene, que se pode criar algo cinemático — Bazin acredita que a função do
cinema é revelar a realidade do mundo sem a intervenção humana, ou seja, sem uma
interpretação sobreposta à verdade do mundo. Sendo assim, a montagem pode ser encarada
como uma traição desta vocação. “As coisas estão lá, por que manipulá-las?" Já dizia
Rossellini. Gabriel Mascaro parece ir em busca da especificidade fílmica conforme André
Bazin a definiu, décadas atrás, com seu conceito de “vestido sem costura da realidade”. Em
Boi Neon, a unidade semântica é o plano-sequência: existe o respeito pelo tempo e a fluência
da realidade. 
Para além do respeito pela duração dos acontecimentos e pela continuidade do
espaço dramático, outros procedimentos formais podem favorecer a aproximação da
1 BAZIN, André. “O Cinema, Ensaios”. In: Montagem Proibida, p. 62. São Paulo: Brasiliense, 1991.
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experiência empírica em busca do efeito de real2. A profundidade de campo (ressaltada pelo
crítico francês em diversas críticas), o enquadramento, o posicionamento e os movimentos de
câmera, a iluminação, a atuação, o figurino e o desenho sonoro são alguns exemplos.
Acreditando na influência que as reflexões bazinianas exerceram sobre a obra, este trabalho
busca identificar e analisar os procedimentos formais escolhidos por Mascaro para a
configuração de uma estilística de produção de realidade em Boi Neon. Para isto, partiremos
de questões que se relacionam com a preservação no cinema das ambivalências do mundo,
incluindo o debate sobre questões mais contemporâneas, muito presentes no filme, que giram
em torno do hibridismo e da dilatação de noções estereotipadas na representação
cinematográfica. Para tanto, analisaremos, de maneira geral, aspectos relacionados a questões
narrativas, simbólicas e principalmente formais de algumas sequências do filme que nos
parecem relevantes para se pensar as questões acima elencadas. Nos deteremos em analisar,
com mais atenção, a sequência inicial do filme. Embora a sequência inicial apresente
elementos mais discretos em relação à concepção formal do filme, acreditamos na
importância de analisá-la com menos pressa por ser uma sequência pouco comentada nos
debates já travados acerca deste filme, podendo aportar questões ainda inauditas. Sendo uma
sequência de apresentação de algumas personagens e do universo retratado, buscaremos
identificar de que maneira Mascaro apresenta as ambiguidades que irá trabalhar ao longo do
filme em relação às complexidades das personagens, e de que maneira busca, desde a primeira
sequência, estabelecer a forma do filme e sua estilística.
2 Em termos barthesianos, efeito de real é quando a linguagem desaparece como mediação para surgir 
confundida com as coisas, em que é o próprio real que parece “falar” (BARTHES, 2004).
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CONSIDERAÇÕES GERAIS
Buscando informações sobre a trajetória cinematográfica de Gabriel Mascaro no
website oficial do diretor, encontro trabalhos realizados em múltiplos formatos: séries
fotográficas, instalações, documentários, longas-metragens de ficção e, o que me chamou
atenção, “obras híbridas”3, filmes que unem linguagens documentais e ficcionais. Sua
filmografia revela uma pesquisa formal que perpassa vários formatos e apresenta uma
inquietação, sobre a qual Boi Neon parece debruçar-se desde o título, o hibridismo. ‘Boi’ faz
referência ao campo, à tradição, a atividades pesadas, brutas e masculinas. Em oposição,
‘Neon’ é leve (um gás mais leve que o hélio). Etimologicamente de raiz grega, significa novo.
Está relacionado ao contexto urbano e moderno, sendo muito utilizado em letreiros luminosos
de hotéis e comércios. A aproximação das duas palavras se faz de forma anunciatória, que se
revelará no filme através da interação do universo da vaquejada com o do mundo da moda e
da cultura pop.
Boi Neon é o segundo longa-metragem de ficção dirigido pelo cineasta. Lançado em
2015 no festival de Veneza, conquistou o prêmio especial do júri. O filme percorreu diversos
outros festivais, nacionais e internacionais, obtendo uma série de prêmios. Tamanha
visibilidade e a quantidade de prêmios podem ser atribuídas ao fato de Boi Neon ser um filme
único que, apesar de seguir o protocolo de um ‘filme de estrada’ e tratar de vaqueiros, se
distancia dos esteriótipos de gênero cinematográfico que costumam rotular os road movies e
os westerns americanos. A trama do filme foge aos padrões clássicos narrativos, sem um
conflito central nem um protagonista definido e com personagens que não apresentam
motivações explícitas. O que, a princípio, pode parecer penoso, mas o filme se desenvolve
com fluidez, e, embora não desenvolva suas personagens de maneira que possamos conhecê-
las mais profundamente, nos identificamos e simpatizamos com elas.
O filme narra de maneira quase antropológica — apesar de se tratar de uma ficção
(que pode em alguns momentos beirar a estética surrealista) — o cotidiano de um grupo de
vaqueiros nos bastidores da tradicional festa nordestina, avaquejada, na qual um boi é
derrubado pelo rabo por dois vaqueiros montados a cavalo. Este grupo viaja e mora, de
maneira improvisada, em um caminhão, que transporta os bois, de vaquejada em vaquejada,
por diversas regiões no interior do Nordeste. Eles utilizam o caminhão em seu dia a dia como
3 http://pt.gabrielmascaro.com/
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dormitório, pendurando redes, improvisando cozinha, chuveiro, e até mesmo utilizando a
boleia para se depilar. O filme acompanha principalmente as seguintes personagens:
• Iremar, interpretado por Juliano Cazarré, um vaqueiro que trabalha cuidando dos bois
e preparando, com habilidade, os rabos desses animais para entrar “em cena” nas
arenas das vaquejadas. Embora viva naquele contexto, duro, em que executa um
trabalho rudimentar, se revela uma pessoa sensível, que tem o sonho de ser estilista de
moda, dividindo seu tempo livre entre croquis e a máquina de costura. A personagem
Iremar rompe com nossas expectativas a respeito da figura arquétipa do vaqueiro. Ao
contrário do filme hollywoodiano ‘O Segredo de Brokeback Mountain’, em que Ang
Lee tenta desconstruir a figura do macho cowboy criando personagens gays, aqui a
desconstrução não é binária. O vaqueiro de Boi Neon é um macho viril e bruto, mas é
também sensível e delicado. “Eu sou vaqueiro, mas gosto de coisa boa”, diz Iremar em
uma conversa com Geise, a vendedora de perfumes. Referido diálogo resume a
personalidade complexa da personagem. O hibridismo de Iremar aflora no contexto de
um Nordeste em desenvolvimento socioeconômico. É indissociável do choque entre
culturas a princípio distantes: as vaquejadas e o universo da moda;
• Galega, vivida por Maeve Jinkings, é uma caminhoneira que se defende da maneira
que pode, que entende de mecânica (é ela mesma quem faz a manutenção do
caminhão), sem deixar de ser feminina e delicada. Ela compra calcinhas sensuais e
dança em um clube noturno animando vaqueiros ébrios com uma dança peculiar, que é
ao mesmo tempo sedutora, firme e potente e que se aproxima das performances
experimentais. Em suas apresentações, usa um figurino criado por Iremar — além da
roupa sensual — uma máscara de cabeça de cavalo e sapatos de casco de cavalo. O
figurino inusitado, a iluminação vermelha e a excentricidade da dança conferem às
cenas em que Galega aparece dançando uma estética surrealista, a princípio
confundindo-as com um sonho. A castração, oriunda das atividades necessárias à
sobrevivência, parece ter reduzido e limitado a personagem a viver segundo os
instintos de sobrevivência — mas ela não parece frustrada, nem parece fazer grandes
sacrifícios pela filha. A personagem também rompe com expectativas de gênero, bem
como em relação ao que comumente se espera da maternidade;
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• Cacá, interpretada pela jovem Alyne Santana, é filha de Galega, vive com a mãe na
estrada e com o grupo de vaqueiros, formando uma espécie de família. A menina
representa o sonho utópico, sonha com o retorno do pai, que parece não voltar mais, e
embora esteja entre estrume de boi, sonha com cavalos, símbolo de status e riqueza. É
como se os cavalos representassem algo maior do que aquela realidade. Porque,
naquela realidade, eles são sempre associados aos bois, e é o cavalo quem derruba o
boi nas vaquejadas;
• Zé e Mário, vividos respectivamente por Carlos Pessoa e Josinaldo Alves, são
personagens que reforçam o que se espera de um vaqueiro nordestino: brutos e
machos. Juntos, eles realçam a complexidade das personagens Iremar e Júnior; 
• Júnior, interpretado por Vinícius de Oliveira, é um vaqueiro que se une ao grupo para
substituir Zé. Júnior é muito vaidoso e alisa seus cabelos com chapinha, sem,
novamente, colocar em cheque a sexualidade da personagem;
• Geise, vivida por Samya de Lavor, é uma mulher que, apesar de se encontrar em um
estágio avançado de gravidez, exerce uma dupla jornada de trabalho. Durante o dia, é
vendedora de perfumes e, à noite, segurança em uma fábrica de roupas. Apesar do
uniforme e da arma que carrega na cintura, e enquanto grávida, é uma mulher muito
feminina e com sensualidade e sexualidade exacerbadas. A mulher grávida, símbolo de
pureza e que na cultura nordestina é intocável, se torna potencialmente sexual, sensual
e delicada como qualquer outra mulher, grávida ou não.
O filme faz um retorno ao ambiente rural do Nordeste, porém de uma maneira
particular, projetando um olhar contemporâneo sobre a região. Retrata um Nordeste que passa
por transformações econômicas e sociais, associando suas principais atividades. Por um lado,
a indústria da moda — introduzida pela implementação de fábricas têxteis (que ironicamente
produzem roupas de surfe na região do semiárido nordestino) — e, por outro, as atividades
ligadas ao agronegócio — cujo expoente são as vaquejadas, que, embora tradicionalmente
organizadas pelos proprietários de gado para a venda dos animais, adquiriram hoje uma
dimensão espetacular, movimentando grande parte da economia nordestina. A maneira como
Gabriel Mascaro retrata o Nordeste subverte o imaginário coletivo criado pelo Ciclo do
Cangaço e pelo Cinema Novo. Em Boi Neon, apesar da dura realidade na qual estão inseridas,
as personagens não sonham deixar a região em busca de oportunidades em grandes centros
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urbanos. Elas desejam transformar suas vidas ali mesmo onde estão, aproveitando o que este
novo cenário, de um Nordeste em transformação, oferece. A fotografia também faz
contraponto à maneira tradicional de se fotografar o Nordeste no cinema brasileiro. Em Boi
Neon, a superexposição — que salienta a temperatura sufocante — e a dessaturação de cores
— que ajuda a ilustrar a falta de vida e de alegria no ambiente — são substituídas pelos altos
contrastes e pela saturação das cores, realçando a presença de vida e de uma certa alegria no
lugar. As cenas noturnas são filmadas com muita luz e coloração, indicando a presença de
civilização, de ocupação daqueles espaços. Espaços tais que, apesar da aridez, são habitados e
vividos intensamente no cotidiano dessas pessoas, inclusive e especialmente de noite.
O filme busca, a partir da ritualização do ordinário, não fazer dos deslocamentos de
gênero algo sensacionalista, mas sim normalizar contrastes. É um filme de personagens
complexos, pouco sabemos sobre elas e não sabemos ao certo por que nos envolvemos com
elas. O filme registra o cotidiano e as contradições mínimas da rotina desses trabalhadores.
Em uma sequência no início do filme, terminados os trabalhos após a apresentação da
vaquejada, Iremar está próximo ao caminhão, onde vemos os pés de outros vaqueiros
terminando de lavar a carroceria. Ele veste um chapéu para se proteger do Sol e sai pela
porteira por onde passam os bois antes de entrarem “em cana”, na arena do parque da
vaquejada. Em um plano aberto, vemos Iremar cruzar a arena, caminhando de uma
extremidade a outra. A câmera o acompanha em uma pan — ele pula a cerca demarcatória da
arena e sai de quadro. A câmera faz um movimento de till up mostrando painéis que anunciam
cavalos. Simbolicamente, pode representar o caminho que Iremar está percorrendo. Saindo do
curral dos bois, onde leva uma vida de gado, e se movendo em direção a uma melhoria de
vida, representada pelas imagens dos cavalos, que na região simbolizam prestígio e opulência.
No plano seguinte, vemos Iremar caminhando em uma espécie de lixão, onde as fábricas de
roupas locais descartam restos de tecidos e manequins velhos. Ele caminha no lodo para
recolher alguns pedaços de manequins velhos e quebrados para vestir suas criações. Esta
sequênciarevela a personagem Iremar, que acumula uma dupla jornada, que mistura no ofício
a força e a delicadeza, a bravura e a sensibilidade, a violência e o afeto.
Sem seguir a trajetória de uma personagem protagonista, aposta na experiência
performática. A câmera toma uma determinada distância que, ao mesmo tempo em que nos
permite observar de longe, nos aproxima afetivamente das personagens. A distância
proporciona uma liberdade de atuação dos intérpretes, com espontaneidade, conseguindo
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alcançar alto nível de verossimilhança e nos fazendo simpatizar com aquelas pessoas, que se
tornam cada vez mais reais, mais humanas, conforme o transcorrer do filme.
Boi Neon é um filme em que não há pressa. Os longos planos-sequências respeitam o
tempo da vida, muitas vezes narrando cenas banais do cotidiano das personagens, como na
cena em que Iremar urina em uma árvore. Cenas como esta não possuem uma função
narrativa específica, não fazem avançar o relato. Os planos demoram o suficiente para que as
situações se naturalizem, permitindo que as personagens sejam observadas sem julgamento. 
Em uma sequência, situada no meio do filme, as personagens estão em deslocamento
na estrada. Um plano aberto exibe a paisagem árida, quase desértica, do sertão, e,
ironicamente, um homem pintando uma onda do mar em uma pedra. O caminhão para,
quando então vemos se tratar da publicidade de uma confecção de roupas de praia. Iremar
pergunta ingenuamente ao pintor se ele é o dono da confecção. O pintor responde que não,
que é “só pintor mesmo”. À primeira vista, parece uma situação bastante improvável de se
crer — um homem pintando o mar em uma pedra no meio do sertão; uma imagem quase
surreal. Porém a sequência dura um tempo suficiente para, primeiro, nos permitir
compreender a situação e, logo, para naturalizá-la, desfazendo nosso julgamento em relação a
aspectos aparentemente anômalos da situação como apresentada no início da sequência. O que
de fato presenciamos na cena é o encontro entre o pintor e Iremar e de que maneira se cria a
rápida relação entre ambos. Apesar de a câmera estar registrando a cena a uma distância
considerável — o que nos faz observar as personagens de um modo distante — nos sentimos
próximos. O áudio possui um ponto de escuta4 (próximo às personagens) diferente do ponto
de vista da câmera (distante). Aproximamo-nos delas pelo som. Esta cena nos permite
conhecer um pouco mais sobre a personagem Iremar e suas aspirações em relação ao trabalho
com a moda.
Em outra cena, já quase no final do filme, Iremar vai até a fábrica de roupas onde
Geise trabalha como segurança. Geise é mais uma personagem complexa, que aparece em um
estágio já avançado do filme. Embora o filme faça uma pausa na narrativa do cotidiano do
grupo de vaqueiros para contar a estória paralela do encontro entre Geise e Iremar, isso se dá
me maneira fluida, sem causar estranhamento ao espectador. Na fábrica de roupas — uma
espécie de templo sagrado para Iremar, que sonha se tornar costureiro — eles se encontram; e
4 Michel Chion (2011), aproximando do que se entende por ‘ponto de vista’ em relação à imagem, define 
‘ponto de escuta’ como o lugar em que o espectador se situa na cena.
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uma cena de sexo, rodada em um longo e único plano-sequência, dura o suficiente (8 minutos)
para naturalizar assim qualquer estranheza possível. A síntese de elementos opostos —
gravidez avançada, perfumes, farda e a arma que a personagem carrega — se processa de
maneira completamente pacífica na diegese, sem haver, por parte das personagens, e de
alguma maneira do espectador, qualquer percepção de anomalia do universo representado.
Tudo é encarado com muita naturalidade.
Outro momento que naturaliza “estranhezas” é a aparição da personagem Júnior,
interpretada por Vinícius de Oliveira, um vaqueiro que vem para substituir Zé. Júnior é muito
vaidoso e alisa seus cabelos com chapinha. Sem colocar novamente a sexualidade da
personagem em cheque, em um momento muito natural em que Júnior está em frente ao
espelho alisando os cabelos, Galega o observa, aparentemente sem julgamento, mas um olhar
muito sutil nos indica, pelo menos aos espectadores mais atentos aos detalhes — já que se
trata de um plano aberto com vários elementos em seu interior — que Galega está interessada
por Júnior. A cena seguinte é uma cena de sexo, muito mais discreta que a do final do filme,
entre Iremar e Geise, mas também rodada em um só plano. No entanto, nesta cena, o plano é
aberto. As personagens são colocadas ao fundo no canto esquerdo do quadro, cercadas pelos
animais, associando, de maneira simbólica, a vida humana à condição animalesca dos bois
que os rodeiam. O plano é longo, e possui diversos elementos em seu interior. Apesar da
câmera estática, consegue-se um efeito de real — é como se estivéssemos observando a cena
de longe.
O hibridismo perpassa diversos aspectos do filme, trazendo para o cinema questões
relacionadas às complexidades e ambiguidades que a vida nos apresenta, surpreendendo
nossas expectativas, rompendo com estereótipos, dilatando noções de gênero e de opções
estilísticas — conferindo realismo cinematográfico à ficção. Mascaro parte do contexto
peculiar em que as personagens estão submergidas para conjugar um olhar, por um lado quase
antropológico, e por outro ficcional (beirando o surrealismo), esmaecendo as linhas
demarcatórias da ficção e do documentário.
Como vimos, a abordagem naturalista vai além das opções estilísticas formais que
levam a uma impressão de observação das cenas cotidianas vividas pelas personagens. O
filme faz uma aproximação inusitada associando o ser humano à natureza. Em diversos
planos, vemos as personagens ao lado dos animais, vivendo com (e como) os animais. Isto
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imanta a ideia de que aquela realidade dura em que vivem reduz esses indivíduos a tal
condição animalesca, levando-os muitas vezes a agir mais por instinto que por razão —
inclusive nas cena que se distanciam de uma estética naturalista, aproximando-se de um
surrealismo, como naquelas em que Galega dança no clube noturno calçando cascos e cabeça
de cavalo. Outra cena que se aproxima de uma estética surrealista e que faz uma aproximação
entre o animal e o humano é a em que um vaqueiro acaricia, de forma bastante sensual, um
cavalo. Estas cenas não estão totalmente soltas na narrativa. Elas se inserem como um respiro,
mas Mascaro nos sugere ligações com o relato e nos deixa livres para interpretação. A cena do
vaqueiro com o cavalo pode ser um sonho de Cacá, já que esta possui uma paixão especial por
cavalos. Na cena, o vaqueiro atua de forma também apaixonada, beirando o sexual. Outro
indicativo que esta cena é um sonho da personagem está relacionado a uma questão formal,
neste caso, referente à montagem do filme, que aqui sim cria um significado externo aos
fragmentos, provocado pela a aproximação deles. A cena do vaqueiro e do cavalo corta para
um primeiro plano do rosto da personagem dormindo. São apenas sugestões, mas de fato o
diretor nos deixa livres para interpretação. 
Outro dispositivo utilizado por Gabriel Mascaro para conseguir um efeito de real em
Boi Neon foi o trabalho com os atores. Mascaro não inaugura uma forma de se dirigir a
atuação em busca de credibilidade. O filme ‘Iracema, uma transa amazônica’ (1976), de Jorge
Bodanzky e Orlando Senna, parece ter influenciado Mascaro em sua escolha de trabalhar a
interação de atores e não atores. Em 2002, Fernando Meirelles contratou atores oriundos de
um universo próximo ao representado em ‘Cidade de Deus’. Elementos como a gesticulação e
a maneira de falar deles conferiramao filme uma verossimilhança raramente atingida no
cinema brasileiro. Não se pode afirmar uma influência direta, mas Gabriel Mascaro escolheu
um dispositivo semelhante para trabalhar com os intérpretes em Boi Neon. Ele selecionou
pelo menos dois atores não profissionais, oriundos do universo das vaquejadas — Josinaldo
Alves, que interpreta Mário, e Carlos Pessoa, que interpreta Zé — para contracenarem com
atores profissionais. A maneira como falam, como gesticulam, o trato com os animais dão
ainda mais naturalidade às cenas. Os atores profissionais, juntamente com os não
profissionais, foram preparados pela mesma preparadora de elenco de Cidade de Deus, Fátima
Toledo, marca de uma aproximação de ambas as obras nesta busca por verossimilhança a
partir da interpretação dos atores. 
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A presença dos animais confere ainda mais uma camada de verossimilhança e
naturalidade às encenações. Os planos são longos, Gabriel Mascaro deixa as cenas
acontecerem, os atores não parecem apressados para dizerem suas falas. Muitas vezes, são
interrompidos por interferência dos bois que estão ao seu redor. Uma cena em que essa
interação com os animais é flagrante, trazendo mais uma vez a observação documental para
dentro da encenação ficcional, é a de um momento de traslado no caminhão em que estão
sentados na carroceria Iremar, Zé, Mário e Cacá. Iremar explica a ela que os cavalos podem
até ser mais bonitos, mas que não são tão úteis como os bois... Neste instante, um boi solta um
mugido ao lado de Iremar, que interrompe o diálogo com Cacá para interagir com o animal,
retomando em seguida.
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DECUPAGEM, DESCRIÇÃO E ANÁLISE DA SEQUÊNCIA INICIAL
SEQUÊNCIA 1 EXTERIOR/DIA
Plano 1 — plano fechado / traveling lateral / 40 segundos
O primeiro plano do filme é um traveling lateral, longo e lento, com a câmera
posicionada rente ao chão. Vemos bois amontoados uns por cima dos outros, impossibilitados
de se moverem, atrás de uma cerca de madeira. Um dos animais tem a cabeça colada no chão,
achatada por outro. Ouve-se o som em off da voz dos vaqueiros gritando com os bois: “Bora
boi! Bora boi!” E os bois mugindo. Ao fundo, se escuta a voz amplificada por um microfone
narrando o que acontece no parque da vaquejada. Toca uma corneta, se ouve aplausos vindos
de longe, provavelmente da arena. De repente, sem que saibamos ao certo o motivo, os bois
começam a se movimentar, saindo uns de cima dos outros. Eles se levantam e finalmente
começam a andar (provocando uma sensação de alívio) — vemos apenas as patas deles
correndo.
Este plano é um plano-sequência, a evolução da situação acontece em seu interior
pela própria movimentação dos animais sem lançar mão da montagem. Podemos interpretar
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este primeiro plano do filme como uma metáfora da dura realidade em que vivem as
personagens, aproximando suas vidas à vida de gado. Em termos formais, este plano, desde
logo, aproxima a ficção de uma observação documental. Apesar da visível orquestração
interna, para que os bois possam começar a andar no momento adequado, além do movimento
de câmera ser extremamente preciso, colocando-o dentro do terreno ficcional, o plano, tal
como registrado e montado no filme, com a duração que tem, preserva a riqueza da
indeterminação do acontecimento, assegurando um resultado imprevisível (já que não se pode
prever a reação de um animal não adestrado), aproximando-o, desta maneira, da observação
documental. Outro aspecto que merece ser destacado aqui em relação à produção de efeito de
realidade é o som. Ouvimos em “primeiro plano” o som do que acontece nos bastidores — a
voz em off de Iremar gritando com os bois — e ao fundo, “em segundo plano”, o som da voz
do narrador, saindo provavelmente das caixas de som espalhadas pela arena. Pouco importa
aqui se este áudio foi construído na edição de som ou se foi captado in loco tal qual, mas o
efeito transmitido é realista, ou seja, aproxima nossa percepção auditiva da maneira como
percebemos o som no mundo cotidiano. O ponto de escuta é bem definido, é como se
estivéssemos próximos dos bois e dos vaqueiros (nos bastidores) e distantes da arena.
Plano 2 — plano aberto / traveling lateral / 7 segundos
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O plano aberto com um traveling lateral, na mesma velocidade do anterior, confere
uma fluidez agradável proporcionada pelo raccord de movimento de câmera. Com grande
profundidade de campo, apresenta, em três camadas de situações independentes, algumas
personagens e um pouco da maneira como vivem. À frente, vemos Cacá, debruçada em uma
cerca onde os bois estão passando. Ela grita e bate nos animais para que eles andem depressa.
Em um momento, ela se desequilibra e cai, mas em seguida volta a se debruçar e continua a
bater nos bois. A menina está em um ambiente masculino e bruto, ajudando no trabalho dos
vaqueiros, mas ela parece ter intimidade com os animais (e com o trabalho). A apresentação
de Cacá rompe com expectativas em relação a uma menina de sua idade (Cacá deve ter entre
nove e dez anos). No meio, vemos Galega, cozinhando cercada pelos bois. Embora seja um
ambiente esdrúxulo para se cozinhar, ela é apresentada, a principio, executando uma função
típica do que se espera comumente de uma mulher. Ao fundo, vemos o vaqueiro Mário, com
uma vara na mão, debruçado na cerca de outra fileira de bois, também batendo nos animais
para que eles caminhem. Mário também executa uma função prevista de um vaqueiro,
reforçando o contraste em relação a Cacá. Esse plano, apesar de ser rápido, dura apenas sete
segundos. Trata-se de um plano complexo, que apresenta diversas camadas de leitura, tanto
ópticas quanto de interpretação. Com as diferentes situações se dando de maneira simultânea,
o plano preserva em seu interior as ambivalências do mundo (neste caso, o mundo ficcional,
posto em cena), conferindo autonomia de percepção ao espectador. Autonomia esta que,
segundo as concepções de André Bazin, brevemente revisadas na introdução deste trabalho,
conferem realismo ao plano. Outro fator agregado que intensifica o efeito de realidade no
plano é a interpretação da menina. Além de lidar com o imprevisto com naturalidade, dando
verossimilhança à sua atuação, ela o utiliza (sob as diretrizes de Mascaro) de modo a ampliar
a potência de realidade da cena, trazendo para a ficção elementos incontroláveis,
característicos do documentário.
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Plano 3 — plano fechado / traveling lateral e fixo / 1 segundo
O terceiro plano da sequência inicial começa em um traveling lateral, na mesma
velocidade dos dois planos anteriores, conferindo unidade e fluidez aos três planos, através da
velocidade do movimento da câmera. Vemos uma porteira de madeira que se abre, um boi a
atravessa e ela volta a se fechar. Acompanhando a ordem narrativa, entendemos agora o que
fez com que os bois se mexessem no primeiro plano que abre a sequência. A câmera faz um
till up e se fixa, revelando, por trás das toras de madeira da cerca, Iremar, em um primeiro
plano da personagem. A montagem aqui é feita no interior do plano, respeitando a unidade
espacial. Iremar puxa o rabo do boi, passa cal e penteia a ponta do rabo. Sua interpretação é
natural e convincente — por um lado, brutal, pela maneira como puxa e joga cal no o rabo do
boi e como grita com o animal, e, por outro, sensível, pelo modo como olha para o rabo, com
um discreto sorriso ao pentear de maneira carinhosa a ponta do rabo do boi. Escutamos em off
a voz de um vaqueiro falando para ele mandar logo o boi. (Vamos entender mais adiante a
configuração especial na qual Iremar prepara os rabos dos bois nacoxia e os vaqueiros falam
com ele através de uma pequena janela). O boi sai de quadro. Iremar abre a porteira
novamente e repete a ação.
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Plano 4 — plano geral / fixo / 27 segundos
Em um plano geral, vemos a arena da vaquejada. Dois vaqueiros montados a cavalo
estão posicionados um em cada lado de uma pequena porta. Vemos duas pequenas janelas,
através das quais os vaqueiros falavam com Iremar. O boi sai pela pequena porta, a montagem
dos dois planos evidencia o raccord de movimento do boi. No plano anterior, ele sai de
quadro, e, neste, ele entra em quadro, continuando o movimento iniciado no plano em que ele
sai de quadro. Muda-se o ponto de escuta: o som do narrador ganha agora presença,
deslocando o espectador dos bastidores para a arena do parque da vaquejada. De maneira
documental, em um só plano, observamos a performance completa dos vaqueiros, que
emparelham o boi e terminam por derrubá-lo pelo rabo, sob o som em off dos aplausos da
plateia (nunca vemos a plateia, ela é inserida no filme apenas pelo áudio em off). No final do
plano, o boi se levanta, fora de quadro, e passa correndo em frente à câmera, próximo o
bastante a ponto de inclusive poder tê-la derrubado. Mais uma vez, o inesperado acontece
frente à câmera, conferindo um efeito de realidade e aproximando a cena da observação
documental.
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CONCLUSÃO
Acreditando que o cinema é uma forma de arte relativamente nova e que sua
linguagem ainda está em construção, o filme contribui para expandir noções em torno das
gramáticas cinematográficas buscando soluções pouco usuais para a realização da obra.
Analisando aspectos em torno da montagem, enquadramentos, movimentos de câmera e
outros aspectos cinematográficos em conjunção com questões temáticas caras ao realizador do
filme, podemos atestar que o filme quebra paradigmas — sexuais, sociais, cinematográficos
— e utiliza o tempo como instrumento político para quebrar expectativas, para tornar naturais
e livres de julgamento situações a priori chocantes. Através da aproximação do filme de
Gabriel Mascaro das ideias concebidas por André Bazin nos anos 50, verificamos que Boi
Neon alcança um realismo cinematográfico através da preservação das ambivalências do
mundo, consideradas pelo crítico francês como especificidade cinemática (e não o fragmento,
posto que o mundo não nos oferece a vida fragmentada e recortada). Podemos assim concluir
que o filme toma uma direção contrária à da montagem, respeitando o tempo e a fluência da
realidade. No entanto, claro é que existe uma montagem geral do filme, separada da
montagem interna das sequências. É essa montagem, que vamos a priori chamar de
montagem total, que ordena a sucessão das sequências. Ela é evidente e abrupta. O que
confere fluidez ao filme é o ritmo interno dos planos, os movimentos de câmera e a atuação
dos atores. A montagem total do filme — embora ainda falte um estudo mais detalhado, que
este trabalho não faz — parece buscar uma forma narrativa — ainda que tímida, já que o
filme se propõe a representar momentos de experiências cotidianas. Mais do que contar uma
estória com uma trama estruturada nos moldes clássicos dos manuais de roteiro, a montagem
total interrompe a narrativa das cenas, passando de uma situação a outra, sem a fluidez
defendida por Bazin em seu ‘vestido sem costura da realidade’, mas preservando certa
continuidade e avanço na narrativa, apesar de não buscar construir um arco dramático
definido para suas personagens.
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Ficha técnica
Direção | Gabriel Mascaro
Produção | Rachel Ellis
Coprodução | Sandino Saravia e Marleen Slot
Produção executiva | Rachel Ellis, Sandino Saravia Vinay e Marleen Slot
Preparação de elenco | Fátima Toledo
Produtor associado | Tiago Melo
Roteiro | Gabriel Mascaro
Colaboração de roteiro | Marcelo Gomes, César Turim e Daniel Bandeira
Direção de fotografia | Diego Garcia
Assistência de direção | Marcelo Caetano
Edição | Fernando Epstein & Eduardo Serrano
Direção de produção | Lívia de Melo
Direção de arte | Maíra Mesquita
Figurino | Flora Rebollo
Som direto | Fabian Oliver
Trilha sonora original | Otávio Santos, Cláudio N. e Carlos Montenegro
Edição e design de som | Mauricio d'Orey
Mixagem | Vincent Sinceretti
Elenco
Juliano Cazarré | IREMAR
Alyne Santana | CACA
Carlos Pessoa | ZÉ
Maeve Jinkings | GALEGA
Vinícius de Oliveira | JÚNIOR
Josinaldo Alves | MÁRIO
Samya de Lavor | GEISE
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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BAZIN, André. “O cinema, ensaios”. In: Montagem proibida. São Paulo: Brasiliense, 1991.
BARTHES, Roland. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes,
2004.
CHION, Michel. A audiovisão: som e imagem no cinema. Lisboa: Edições Texto & Grafia
Lda., 2011.
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	Introdução
	Considerações gerais
	Decupagem, descrição e análise da sequência inicial
	Conclusão
	BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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