Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE – UFF FACULDADE DE DIREITO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO MARIA SILVIA SILVESTRE DA MATTA DROGAS NO BRASIL: LEGISLAÇÃO E SELETIVIDADE PUNITIVA NITERÓI 2018 MARIA SILVIA SILVESTRE DA MATTA DROGAS NO BRASIL: LEGISLAÇÃO E SELETIVIDADE PUNITIVA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Ozéas Corrêa Lopes Filho NITERÓI 2018 Universidade Federal Fluminense Superintendência de Documentação Biblioteca da Faculdade de Direito M435 Matta, Maria Silvia Silvestre da. Drogas no Brasil: legislação e seletividade punitiva / Maria Silvia Silvestre da Matta. – Niterói, 2018. 48 f. Orientador: Prof. Ozéas Corrêa Lopes Filho. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade Federal Fluminense, 2018. 1. Entorpecente. 2. Política criminal. 3. Tráfico de droga. 4. Criminologia. 5. Legislação penal. I. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Direito, Instituição responsável. II. Título. CDD 341.5 MARIA SILVIA SILVESTRE DA MATTA DROGAS: LEGISLAÇÃO E SELETIVIDADE PUNITIVA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito. Aprovada em julho de 2018. BANCA EXAMINADORA Prof. Ozéas Corrêa Lopes Filho – Orientador UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Prof. Paola de Andrade Porto UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Prof. Gilvan Luiz Hansen UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Prof. Charles da Silva Nocelli UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Dedico este trabalho a todos usuários e comerciantes de drogas. AGRADECIMENTOS Agradeço meu pai pois sem você eu jamais estaria aqui. Obrigada por todo apoio, incentivo e confiança. À minha mãe por me ensinar que “conhecimento é o único bem que ninguém nunca te tira” e ser meu exemplo acadêmico. Às minhas muitas irmãs pelas alegrias. À Vó Julia por ser sempre meu porto seguro. À família e amigos pelo companheirismo. À UFF, aos estágios em São Gonçalo e professores pelo conhecimento. “ A proibição é um saco então / Drogas no saco e saco de drogas no saco e drogas no saco de pão / Drogas a vácuo e drogas na cara do século / Debaixo da barba do cego e na ponta do dedo da mão [...] / Armas não matam pessoas / Pessoas machucam pessoas por drogas / Drogas machucam pessoas só por diversão [...]/ No resto das notas pras crianças a escola dá / Bem mais opções que sua sacola dá / E ai que tá / Quem não tem escolha sabe bem aonde essa rua dá “ (Renato Froid) RESUMO O presente trabalho busca, por meio de um estudo histórico, legislativo, doutrinário, comparativo e crítico, apresentar o movimento proibicionista, elaborado pelos Estados Unidos da América, como uma política criminal, implementada ao longo do século XX, e disseminada mundialmente por diversas conferências internacionais, tendo maior incidência a partir da década de setenta. Apresenta também a adesão do Brasil a esse movimento, sua evolução legislativa, com análise das principais normas relativas ao assunto e a vigente Lei de Drogas Brasileira (Lei nº 11.343/06). Ademais, busca analisar os discursos fundamentadores desse movimento, sua origem xenofóbica, suas justificativas (ético-jurídico, médico-sanitarista e política), e a vinculação das drogas à estereótipos criminais (moral, dependência e político- criminoso). Por fim, aponta o encarceramento gerado no Brasil por tal política e os traços étnicos e econômicos destes presos, o que nos revela uma seletividade punitiva cruel e arbitrária, fazendo com que essa seja a principal consequência dessa política criminal adotada. Palavras-chave: Drogas. Legislação. Justificação. Seletividade. Punitiva. ABSTRACT The objective of this paper is, through a historical, legislative, doctrinal, comparative and critical study, to present the prohibitionist movement, a criminal policy elaborated and implemented by the United States of America during the 20th century. Additionally, it was spread worldwide by several international conferences, having a greater incidence since the seventies. It also presents Brazil's adhesion to this movement along with its legislative evolution, with an analysis of the main norms related to the subject and the current Brazilian Drug Law (Law 11.343 / 06). Moreover, it aims to analyze the main motivations of this movement, its xenophobic origin, its justifications (ethical-legal, medical-sanitarian and political) and the link between drugs and criminal stereotypes (moral, dependency and political-criminal). Finally, it points out the incarceration generated in Brazil by such policy and the ethnic and economic traits of the prisoners, which reveals a cruel and arbitrary punitive selectivity, therefore being the main consequence of this criminal policy adopted. Keywords: Drugs. Legislation. Justification. Punitive Selectivity. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 09 2 HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE DROGAS E SUAS INFLUÊNCIAS EXTERNAS 10 2.1 DA ORIGEM À DÉCADA DE SETENTA 10 2.2 DA DÉCADA DE SETENTA AO INÍCIO DOS ANOS DOIS MIL 14 2.3 DA ATUAL LEI DE DROGAS BRASILEIRA 25 3 DA SELETIVIDADE PUNITIVA NOS CRIMES DE DROGAS 32 3.1 DA JUSTIFICAÇÃO 32 3.1.1 Do discurso ético-jurídico e o estereótipo moral 34 3.1.2 Do discurso médico sanitarista e o estereótipo da dependência 35 3.1.3 Do discurso político e o estereótipo criminoso 36 3.2 DA CONSEQUENCIA IMEDIATA 39 4 CONCLUSÃO 43 REFERÊNCIAS 44 10 1 INTRODUÇÃO Sempre presentes na história da humanidade, as drogas passaram a ser objeto de direito, tal como conhecemos, a partir do século XX. A presente monografia buscou, por meio de análises legislativas, lições doutrinarias e dados empíricos investigar esse objeto. Pretendemos apresentar no primeiro capítulo o histórico da legislação brasileira relacionada às drogas e sua confluência com o movimento proibicionista inaugurado pelos Estados Unidos da América. Tendo como marco inicial a Conferência de Xangai (1909), o movimento proibicionista foi ganhando espaço no cenário mundial, sendo pela primeira vez positivado no Brasil em 1921. Com o passar dos anos, novas conferências internacionais e alterações legislativas. Contudo, o final da década de sessenta nota-se um recrudescimento do tratamento dado ao tráfico de drogas no globo, sendo esse adotado pelo Brasil por meio da Lei nº 6.368 de 1976. Com o estabelecimento de uma nova ordem constitucional em 1988 e alterações no cenário interacional, que passou a focar no narcotráfico, percebeu-se uma defasagem conceitual da lei supramencionada, fazendo com que a mesma desse lugar a vigente Lei nº 11.343 em 2006. Já no segundo capítulo, passaremos à análise dos discursos justificadores da proibição, que se inicia com um ideal moral e religioso, porém, mostra-se um subterfúgio para raízes xenofóbicas. Ademais, ao longo do século, desenvolve-se justificativas médicas e políticaspara sustentar a proibição. Por fim, apresentaremos uma das principais consequências da criminalização das drogas, o encarceramento, mostrando o número de presos no Brasil, e indicando suas características étnicas e econômicas, o que releva a principal conclusão deste trabalho: que a criminalização das drogas tem como alvo a população negra e pobre. 11 2 HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE DROGAS E SUAS INFLUÊNCIAS EXTERNAS 2.1 DA ORIGEM À DÉCADA DE 70 Uma apresentação linear dos sistemas jurídicos não se mostra suficiente para a compreensão do processo de criminalização das drogas. Salo de Carvalho afirma que “o processo criminalizador é invariavelmente um processo moralizador e normatizador, sua origem é fluida. ”1 Logo, a origem da criminalização das drogas per si não pode ser localizada. Contudo, apontar determinados momentos históricos mostra-se necessário à percepção da gênese deste processo punitivo. Sendo assim, passemos a essa. A primeira manifestação da criminalização de porte e comércio de substâncias entorpecentes de nosso ordenamento surge nas Ordenações Filipinas (Livro LXXXIV), vigentes a partir de 1603. Contudo, a mesma pode ser considerada singela e ineficaz, não chegando a ser sequer reiterada no Código Penal do Império (1830)2. No plano internacional, o império Chinês, buscando uma balança comercial favorável, estabeleceu, em 1729, a primeira proibição do ópio e de seu plantio. A proibição não impediu a importação do mesmo, fazendo com que, em 1779, a Companhia das Índias Orientais, monopolizasse o comércio da substância. Já em 1838, o governo chinês enrijece a fiscalização e fecha portos, lesando os interesses comerciais da Inglaterra. Essa, aliada a outros estados europeus, como França e Portugal, então, impõem a legalização e o comércio do ópio à China pela força das armas por meio das guerras do ópio (1839-40 e 1856-60). Do outro lado do mundo, em 1906, sob a presidência de Theodore Roosevelt, é instituída nos EUA a Lei Federal sobre Alimentos e Drogas (Food and Drug Act). Essa não proibiu qualquer substância psicoativa, mas regulava sua produção e comércio, sendo, então, o marco inaugural da intervenção estatal nesse campo. 1 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06 – 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 46 2 Ibid., p. 48 12 Com o ideário de consolidação global de uma política proibicionista, os EUA organizam a Conferência de Xangai em 1909 para reunir as potências da época e debater sobre o ópio, tendo como resultado um acordo pela restrição da droga aos seus usos medicinais. Todavia, ações práticas para efetivação do tratado nos países europeus foram obstadas pelas grandes indústrias farmacêuticas. Já em 1912, realiza-se um novo encontro internacional para o debate sobre o tema, a Conferência de Haia. Nessa foi consolidada a posição americana pela proibição, incluído a cocaína no rol de substâncias a serem regulamentadas e reforçado a necessidade do uso apenas para fins medicinais. Considerando que a legislação vigente nos EUA divergia do que foi convencionado em Haia, o país teve que adequar sua legislação interna, aprovando, em 1914, a Lei Harrison (Harrison Narcotic Act). Essa proibia expressamente o uso de substâncias psicoativas sem propósito medicinal e, pela primeira vez, houve a distinção dicotômica entre traficante e viciado, cabendo ao primeiro o encarceramento e ao segundo tratamento3. Ora em 1919, o congresso americano aprovou a 18ª emenda à Constituição, fazendo com que fosse instituída a proibição do álcool. Também conhecida como Lei Seca, essa estabeleceu que “the manufacture, sale, or transportation of intoxicating liquors within, the importation thereof into, or the exportation thereof from the United States and all territory subject to the jurisdiction thereof for beverage purposes is hereby prohibited.”4 Retornado ao panorama nacional, percebe-se que até a década de 1920, parca era nossa legislação em relação ao tema, possuindo alguns artigos no Código Penal de 1890, afinal, o consumo de substâncias como a cocaína e morfina eram restritos aos círculos intelectuais e aos filhos da oligarquia paulista. Contudo, o crescimento do uso das substâncias por camadas mais populares, aumento do estigmatização da maconha como a droga de negros e o comparecimento à Conferência de Haia, geraram mudanças em nossa legislação. Em 1921, Epitácio Pessoa, então presidente, baixa o Decreto n° 4.294 em 06 de julho, esse consistiu na primeira legislação específica sobre drogas do Brasil, o mesmo estabelecia: 3 VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. 2. ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017. p. 59. 4 ESTADOS UNIDOS DA AMERICA. Constituição dos Estados Unidos. Disponível em: https://www.senate.gov/civics/constitutionitem/constitutio.htm Acesso em 02/11/2017. https://www.senate.gov/civics/constitutionitem/constitutio.htm 13 Estabelece penalidades para os contraventores na venda de cocaina, opio, morphina e seus derivados; crêa um estabelecimento especial para internação dos intoxicados pelo alcool ou substancias venenosas; estabelece as fórmas de processo e julgamento.5 Sob o governo provisório de Getúlio Vargas a matéria passa a se expandir. A Consolidação das Leis Penais em 1932 trouxe maior rijeza ao tratamento sancionatório, sendo acrescentado à pena de multa a prisão celular. De volta ao plano internacional, verifica-se que a Primeira Guerra Mundial (1914-18) fez com que os debates diplomáticos sobre o assunto tivessem uma pausa, mas com o fim da dessa, estes foram retomados. A Liga das Nações organizou em Genebra três convenções, sendo que essas ocorreram em 1925, 1931 e 1936 respectivamente, tendo a última maior destaque. Também conhecida como Convenção para a Repressão do Tráfico Ilícito das Drogas Nocivas, a Convenção de Genebra de 1936 inaugurou uma nova fase na política proibicionista pois aumentou o número de substâncias proibidas, definiu punições para o tráfico dessas substâncias e fez nascer, internacionalmente, um tipo penal de tráfico de entorpecente abrangendo uma pluralidade de verbos incriminadores, sendo definida por Valois como “a certidão de batismo do tráfico internacional. ”6 Concomitantemente, aqui no Brasil, os Decretos nº. 780/36 e nº. 2.953/38 vêm para balizar um novo sistema de gestão, estabelecendo formalidades para venda de substâncias entorpecentes e dando ao Departamento Nacional de Saúde Pública poderes para sua administração. Já a internalização da Convenção veio por meio do Decreto-Lei nº 891/38. Cumpre observar que em 1940 há a publicação do Código Penal, cujo artigo 281 tipificou o “Comércio clandestino ou facilitação de uso de entorpecentes”. O delito possuía onze núcleos, sendo a pena cominada de um a cinco anos de reclusão, tendo a seguinte redação: Art. 281. Importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou, de qualquer maneira, entregar a 5 BRASIL. Decreto nº. 4.294 de 06 de julho de 1921. Estabelece penalidades para os contraventores na venda de cocaína, opio, e seus derivados (...) Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/ decret/1920-1929/decreto-4294-6-julho-1921-569300-publicacaooriginal-92525-pl.html Acesso em 02/11/2017. 6 VALOIS, 2017, p. 255. http://www2.camara.leg.br/legin/fed/%20decret/1920-1929/decreto-4294-6-julho-1921-569300-publicacaooriginal-92525-pl.html http://www2.camara.leg.br/legin/fed/%20decret/1920-1929/decreto-4294-6-julho-1921-569300-publicacaooriginal-92525-pl.html 14 consumo substância entorpecente,sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.7 A respeito, Nilo Batista tece os seguintes comentários: Sobrevém o CP 1940, que confere à matéria uma disciplina equilibrada, não só optando por descriminalizar o consumo de drogas, mas também com um sóbrio recorte dos tipos legais observando-se inclusive uma redução do número de verbos em comparação com o antecedente imediato (Dec. 891, art. 33), redução tanto mais admirável quando se observa a fusão, no artigo 281, do tráfico e da posse ilícita no mesmo dispositivo.8 Haviam também quatro parágrafos que qualificavam, equiparavam ou majoravam o crime. O Código, seguindo o ideário da Consolidação das Leis Penais, fez com que a matéria fosse recodificada, unificada e estabelecida em consonância às regras gerais. Todavia, tal unificação não se manteve, por razões que passaremos a demonstrar. Dois anos depois, em 1942, é publicado o Decreto-Lei nº. 4.720 que dispõe sobre as “normas gerais para o cultativo de plantas entorpecentes e para a extração, transformação e puruficação dos seus princípios ativo-terapêuticos. ”9 No plano internacional, a partir das décadas de quarenta e cinquenta inicia- se o delineamento da geopolítica das drogas, no qual “os países industrializados de ponta exigem maior rigidez no controle de opiácios, maconha, cocaína, produzidos pelos países menos desenvolvidos”10 enquanto as drogas sintéticas produzidas pelos países centrais industrializados eram parcamente regulamentadas. Em 1961 ocorre em Nova York a Convenção Única sobre Entorpecentes realizada pelas Organizações das Nações Unidas (ONU), essa “tinha em seu preâmbulo expressa preocupação com a ‘saúde e moral da humanidade”11, sendo reconhecida por setenta e quatro países signatários. Já a internalização dessa Convenção se deu por meio do Decreto nº. 54.216/64, poucos meses após a ocorrência do Golpe Militar. 7 BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940. Estabelece o Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-lei/Del2848.htm Acesso em 11/11/2017. 8 BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, v. 3, 5/6, p. 77-94, 1998. Disponível em: http://201.23.85.222/ biblioteca/index.asp?codigo_sophia=18351 Acesso em: 11/11/2017. p. 84. 9 BRASIL. Decreto-Lei nº 4.720 de 21 de setembro de 1942. Fixa normas gerais para o cultativo de plantas entorpecentes e para a extração, transformação e puruficação dos seus princípios ativo- terapêuticos.. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4720- 21-setembro-1942-414751-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em 11/11/2017. 10 D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Acionistas do nada: quem são os traficantes de droga. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 85 11 VALOIS, 2017, p. 255. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-lei/Del2848.htm http://201.23.85.222/%20biblioteca/index.asp?codigo_sophia=18351 http://201.23.85.222/%20biblioteca/index.asp?codigo_sophia=18351 http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4720-21-setembro-1942-414751-publicacaooriginal-1-pe.html http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4720-21-setembro-1942-414751-publicacaooriginal-1-pe.html 15 Ainda no ano de 1964, foi editada a Lei nº 4.451, sendo tal diploma alterador do delito previsto no artigo 281 do Código Penal, adicionando-se o verbo plantar ao caput desse e se revogando as disposições em contrário (Decreto-Lei nº. 4.720/42). Em 1968 entra em vigor o Decreto nº. 385, atribuindo ao artigo 281 do Código Penal sua terceira redação e dando “... destaque para o endurecimento nas penas nas penas para traficantes e usuários.”12 Verifica-se, então, uma dicotomização das práticas punitivas, equiparando a conduta do usuário ao traficante. Ocorre então, em 1967, a edição do Decreto 159, “que iguala aos entorpecentes as substâncias capazes de determinar dependência física e/ou psíquica. ”13 O referido decreto vigorou por três anos até a publicação da Lei nº 5.726/71, sendo definida por Salo de Carvalho como a lei que “adequa o sistema repressivo brasileiro às orientações nacionais, marcando, definitivamente, a descodificação da matéria. ” 14 Convém ressaltar que a mencionada lei “redefine as hipóteses de criminalização e modifica o rito processual.”15 O crime de posse se manteve equiparado ao de tráfico.16 Contudo, a dicotomização das práticas punitivas é atenuada pela previsão de medida de segurança (tratamento psiquiátrico) para os “infratores viciados”17 que, caso passassem pela “recuperação completa”, teriam extinta sua punibilidade. 2.2 DA DÉCADA DE SESSENTA AO INÍCIO DOS ANOS 2000 No que concerne ao cenário internacional, desde a Convenção Única (1961) já havia discussões quanto à inclusão de drogas sintéticas no rol de substâncias controladas. Contudo, considerando que essas são produzidas por grandes indústrias farmacêuticas nos países desenvolvidos e exportadas para os países mais pobres (caminho oposto das substâncias até então proibidas), tal inclusão não 12 RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desatino, 2003. p. 78 13 CARVALHO, 2016, p.56 14 Ibid., p. 57. 15 Ibid., p. 57. 16 Conforme artigo 23 do diploma legal, que alterava a redação do artigo 281 do CP, onde a conduta de posse de substância entorpecente equiparava-se ao tráfico, assim como o inciso III do §1º desse artigo. 17 Conforme artigo 9º e 10 do mencionado diploma legal. 16 prosperou. Porém, “em meados da década de 1960 a Organização Mundial de Saúde publicava estudos indicando possuírem algumas anfetaminas características similares à cocaína e certos alucinógenos propriedades parecidas com as da maconha.”18 Dessa forma, a ONU, em fevereiro de 1971, organiza em Viena a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas. ” O resultado da conferência não podia ser outro: regras administrativas de controle de psicotrópicos; um tratado bem diferente dos demais, nos quais abundavam expressões e normas penais. ”19 Quanto ao âmbito nacional, a Convenção de 1971 foi aqui ratificada em 1973, ingressando em nossa legislação mediante o Decreto nº. 79.388/77. A alteração do modelo repressivo se dá em 1976, com a decretação da Lei nº. 6.368. Essa “instaura no Brasil modelo inédito de controle, acompanhando as orientações político-criminais dos países centrais refletidas nos tratados e convenções internacionais. ”20 Revoga-se, então, o artigo 280 do Código Penal, optando o legislador por uma lei especial para tratar das drogas, marcando um movimento de descodificação sobre o assunto. A nova lei “Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. ”21 O marco diferencial dessa para a legislação anterior não reside nas figuras típicas, que substancialmente se mantiveram, mas sim na quantidade de pena aplicada e seu modo de execução, representando um enorme agravamento ao tratamento das pessoas que ali se enquadravam. O primeiro capítulo da nova lei cuida “da prevenção”, estabelecendo em seu primeiro artigo que “É dever de toda pessoa física ou jurídica colaborar na prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica. ”22 18 VALOIS, 2017, p. 279 19 Ibid., p. 284 20 Ibid., p. 59 21 BRASIL. Lei nº 6.368 de 21 de outubro de 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes (...). Disponível em: http://www2.camara. leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-6368-21-outubro-1976-357249-publicacaooriginal-1-pl.htmlAcesso em 12/11/2017. 22 Caput do artigo 1º da Lei nº 6.368 de 21 de outubro de 1976. 17 Em comparação à legislação anterior temos que “Aquele dever jurídico genérico do artigo 1º permaneceu, porém, a palavra ‘combate’ foi substituída pela expressão ‘prevenção e repressão. ’”23 Vemos, assim, que há uma pretensão de mobilização nacional, contudo, “apesar de apresentar-se como integrante das políticas preventivas, projeta um sistema repressivo autoritário típico dos modelos penais de exceção. ”24 O artigo 3º do mencionado diploma legal institui o Sistema Nacional Antidrogas, que recebe a função legal de exercer atividades relacionadas à prevenção e repressão do uso indevido de entorpecentes, nos âmbitos federal, estadual, distrital e municipal, para que se tenha uma unificação das diretrizes formuladas, fazendo com que haja “a criação de uma infraestrutura capaz de sustentar o mecanismo legal de que o Estado se armou e se propõe a acionar. ”25 Salo de Carvalho também assinala duas perspectivas inseridas na Lei nº 6.368/76, sendo essas a perspectiva sanitarista e a jurídico-política. A primeira compete ao capítulo II do diploma legal, consistente em “tratamento e recuperação. ”Insta salientar que a lógica sanitarista adotada se consubstancia no “tratamento e recuperação dos dependentes, independentemente da prática do delito” em razão da “intensa periculosidade social”. Trata-se de uma “espécie de criminalização adicção”, tendo como consequência a “aplicação de medida de segurança atípica, independente da instauração do devido processo legal. ”26 Logo, “o dependente será recebido nos hospitais oficiais, ainda se absolvido fora da previsão do artigo 29, isto é, quando a dependência não constituir a causa de sentença absolutória, ou mesmo que não esteja respondendo a inquérito ou processo por crimes de tóxicos. ”27 No que concerne à perspectiva jurídico-política, tem-se uma intensificação da repressão. O crime de tráfico (art. 12) ganha novos verbos nucleares, tais como “remeter”, “fabricar” “adquirir” e “prescrever”, dando maior amplitude ao tipo. No caso das condutas equiparadas, previstas no §1º do artigo 12, o núcleo “semear” é nesse 23 BATISTA, 1998, p. 87. 24 CARVALHO, 2016, p. 66. 25 MENNA BARRETO, João de Deus Lacerda. Estudo geral da nova lei de tóxicos – 4ª ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1988. p. 38. 26 CARVALHO, 2016, p. 66-67. 27 MENNA BARRETO, 1988, p. 57. 18 inserido. Assim, “existe uma gama diversificada de situações a merecer o exame criterioso do aplicador da lei, em ada caso concreto. ”28 Ademais, a pena cominada em abstrato passa a ser de 3 a 15 anos de reclusão, representando um agigantamento da escala penal quando comparada a anterior (1 a 6 anos). Tem-se, também, a emancipação do crime de “associação para o tráfico”, que, mediante o artigo 14, comina uma pena de reclusão de 3 a 10 anos e, ainda, permite a aplicação de concurso material com o crime de tráfico. Quanto à punição do usuário, resta clara a ausência de tipificação específica da conduta de uso, porém, em vista da enorme quantidade de núcleos empregados no tipo de tráfico, o mesmo acabava, por caminhos indiretos, sofrendo sanções. E, caso não seja possível a subsunção do usuário no tipo penal do tráfico, a lei dispôs, em seu artigo 16, quanto ao uso próprio, sendo esse: “Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. ”29 Dessa forma, “a lei só incrimina o uso se concomitante com a posse, em qualquer de suas formas. ”30 Dessa forma, “A posse para uso próprio, entretanto, recebeu uma disciplina a parte, cominando-lhe uma pena privativa de liberdade (detenção de 6 meses a 2 anos e multa - art. 16) só excepcionalmente executada. ”31 Prosseguindo, logo no artigo 18, vemos que o legislador manteve a causa especial de aumento de pena quando o crime envolver menor de 21 anos (inciso III). Não obstante, o legislador aumentou o rol de majorantes, fazendo com que o mesmo tivesse a seguinte redação: I - no caso de tráfico com o exterior ou de extra-territorialidade da lei penal; II - quando o agente tiver praticado o crime prevalecendo-se de função pública relacionada com a repressão à criminalidade ou quando, muito embora não titular de função pública, tenha missão de guarda e vigilância; III - se qualquer deles decorrer de associação ou visar a menores de 21 (vinte e um) anos ou a quem tenha, por qualquer causa, diminuída ou suprimida a capacidade de discernimento ou de autodeterminação; 28 MENNA BARRETO, 1988, p. 61. 29 Caput do artigo 16 da Lei nº 6.368 de 21 de outubro de 1976. 30 MENNA BARRETO, 1988, p. 54. 31 BATISTA, 1998, p. 87. 19 IV - se qualquer dos atos de preparação, execução ou consumação ocorrer nas imediações ou no interior de estabelecimento de ensino ou hospitalar, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas, esportivas ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo de estabelecimentos penais, ou de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, sem prejuízo da interdição do estabelecimento ou do local.32 Outra questão relevante consiste na ausência de causas especiais de diminuição de pena (com exceção da semi-imputabilidade, prevista no parágrafo único do artigo 19). Deve-se apontar também que não há diferenciação de tratamento penal entre os grandes traficantes e os varejistas, pois inexiste um tipo penal que individualize a conduta do pequeno vendedor. A igualdade de tratamento poderia ser amenizada dentro do caso concreto, afinal, a previsão da pena comida possuía grande elasticidade, fazendo com que houvesse a possibilidade do magistrado, sob o lume dos princípios da individualização da pena33 e dos critérios de retribuição e prevenção,34 fixar uma pena mais branda ao traficante varejista. Contudo, “a prática forense acabou por revelar aplicação genérica de penalidades severas, sem a diferenciação do pequeno e do grande traficante de drogas. ”35 As regras processuais também sofreram modificações para o procedimento dos crimes ali previstos, sendo os pontos mais relevantes: a abolição da audiência de apresentação e, por consequência, a impossibilidade de denúncia oral; a criação de um exame preliminar para constatação da materialidade, fazendo com que haja maior celeridade para a instauração do processo; a imposição ao juiz durante o interrogatório de questionar o réu sobre possível dependência; a prerrogativa do réu menor de 21 ao recolhimento domiciliar sem condições de prestar fiança, desde que referendado pelo juiz; a possibilidade de decretação de internamento do réu que frustrou o tratamento ambulatorial ou reincidente; e, por fim, a previsão do artigo 35, que vinculava o recurso do eventual condenado por tráfico ou pelo crime de petrechos para o tráfico (artigos 12 e 13 da Lei nº 6.386/76) ao recolhimento em prisão. 32BATISTA, 1998, p. 87. 33Vigente à época por força do §13 do artigo 150, da Constituição de 1967, e que foi mantido pela Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969. Atualmente integra o inciso XLVI do artigo 5º da CRFB/1988. 34Critérios adotados para a fixação da pena pelo nosso ordenamento segundo GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – 15ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013. p. 477. 35CARVALHO, 2016, p.69 20 No mesmo ano foram sancionados dois decretos que tratavam sobre a matéria, sendo esses o Decreto nº 6.368 e o Decreto nº 78.992. Sobre esse vemos as marcas do regime imposto à época por meio do comentário de Nilo Batista, que segue: ... além da vedação de amostras grátis (art.13), proibia qualquer‘texto, cartaz, representação em curso, seminário ou conferência’ sobre o tema sem prévia autorização (art. 8º), bem como recomendava a fiscalização rigorosa pelas 'autoridades de censura', sobre espetáculos públicos, para 'evitar representações, cenas ou situações que possam, ainda que veladamente, suscitar interesse' pelo tema (art. 9º). 'A liberdade artística - dizia um dos elaboradores dessa legislação - precisa ser controlada. ’36 Mais adiante, em 1977, o Código Penal sofre uma reforma por meio da Lei nº 6.416. Tal, apesar de não trabalhar especificamente com a temática das drogas, institui os atuais regimes penitenciários e cria a suspensão condicional da pena menor de 02 anos. Essa tem reflexo direto para os condenados pelo artigo 16 da Lei de Tóxicos, pois sua escala penal era de 06 meses a 02 anos. Com o fim da Ditadura Militar em 1985 e o início do processo formal de redemocratização adveio “inspirada no desejo de ruptura com as políticas autoritárias dos sucessivos Governos Militares”. Contudo, a Magna Carta promulgada em 1988 manteve o escopo a política de guerra às drogas vigente no período ditatorial. “A Constituição recepcionou anseios punitivos colocando em xeque seus próprios princípios de contenção da violência punitiva. Tem-se, [...], a formação de núcleo constitucional-penal-dirigente. ”37 Observe-se que a Constituição, como regra, veda a extradição do brasileiro, e estabelece duas hipóteses de cabimento, sendo relevante ao nosso tema uma delas, que consiste na possibilidade de extradição do brasileiro naturalizado, caso comprovado seu envolvimento com o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. Para Salo de Carvalho “a exceção demonstra a importância da diferenciação no tratamento desta espécie de delito em relação aos demais. ”38 Outro ponto relevante consiste na apresentação de uma norma constitucional de eficácia limitada inserida no inciso XLIII do artigo 5º da Lei Maior, sendo essa: 36BATISTA, 1998, p.87 37CARVALHO, 2016, 39-40. 38 Ibid., p. 41. 21 a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá- los, se omitirem.39 Tem-se, assim, a determinação da criação de uma lei que define crimes não passíveis de fiança, graça ou anistia, sendo o tráfico de drogas equiparado à esses. Nesse passo, o legislador infraconstitucional, cumprindo com o papel a ele designado, edita a Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90). Contudo, verifica-se um excesso de sua parte, pois, além das vedações constitucionais, houve a determinação de impossibilidade de liberdade provisória, indulto e progressão de regime aos crimes nela previstos. O legislador também optou pela ampliação dos prazos da prisão temporária e para o livramento condicional. Ademais, a Constituição, em seu artigo 243, comanda a expropriação de terras onde forem localizadas culturas ilegais de substâncias psicotrópicas, o que veio a ser regulamentado pela Lei nº 8.257/1992. Ao mesmo tempo da promulgação de nossa Carta, a ONU organiza em Viena a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas, essa seguiu os padrões das convenções realizadas em 1971 e 1961, contudo, com um enfoque maior nas medidas repressivas. Sobre essa, Valois faz as seguintes observações: Não há mais preocupação com o usuário. Inclusive, na Convenção, a posse para consumo é criminalizada pela primeira vez (art. 3º, 2). Nem com medidas de tratamento. O que importa é avançar e, se instituir um quadro de combate às drogas internacional. Interessante é que a Convenção cria uma legislação policial internacional, repleta de medidas repressivas, procedimentos a serem tomados entre governos, como se fosse uma norma procedimental a ser observada dentro de um único país, como se ignorando as soberanias, como se existisse, de fato e de direito, uma polícia mundial.40 A adesão do Brasil à Convenção de Viena de 1988 adveio por meio do Decreto 154 em 1991. 39 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Artigo 5º, inciso XLIII. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/ constituicao-1988-5-outubro- 1988-322142-publicacaooriginal-1-pl.html Acesso em 13/11/2017. 40 VALOIS, 2017, p. 292-293. http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/%20constituicao-1988-5-outubro-1988-322142-publicacaooriginal-1-pl.html http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/%20constituicao-1988-5-outubro-1988-322142-publicacaooriginal-1-pl.html 22 Entre o fim dos anos 80 e início da década de 90 o “conceito de centralização do tráfico colombiano ganhou difusão através dos relatórios do DEA41 [...] a crença de que os grandes narcotraficantes colombianos erguiam impérios internacionais foi alimentada. ”42 Tem-se, então, um “discurso econômico- transnacional [...] centrado no controle geopolítico dos cartéis colombianos”.43 No Brasil, devido à reflexos, é editada a Lei nº. 9.034/95, conhecida como a Lei do Crime Organizado. Essa, apesar de inspirada “nos modelos normativos italianos de repressão às organizações mafiosas”44 sofreu alterações, adequando-se à realidade nacional, tendo como foco o tráfico de drogas e armas. A Lei de Crime Organizado representa uma ”reestruturação no processo penal relativo ao tráfico de entorpecentes. ”45 O sistema processual inquisitorial, onde o juiz é o grande gestor de provas, constitui a grande marca da mencionada lei. Além do mais, por se tratar de uma legislação emergencial, há uma ruptura com direitos e garantia fundamentais cabendo destacar: Art. 2o Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas: I - (Vetado). II - a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações; III - o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais. IV – a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial; V – infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial. Parágrafo único. A autorização judicial será estritamente sigilosa e permanecerá nesta condição enquanto perdurar a infiltração. Art. 5º. A identificação criminal de pessoas envolvidas com a ação praticada por organizações criminosas será realizada independentemente da identificação civil. Art. 6º. Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um a dois terços, quando a colaboração 41 Drug Enforcement Administration é um órgão de polícia federal do Departamento de Justiça dos Estados Unidos encarregado da repressão e controle de narcóticos. 42 RODRIGUES, 2003, p. 62-63. 43 CARVALHO, p. 94 44 Ibid., p, 94. 45 Ibid., p. 96. 23 espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria. Art. 7º. Não será concedida liberdade provisória, com ou sem fiança, aos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa. Art. 9º. O réu não poderá apelar em liberdade, nos crimes previstos nesta lei. 46 Ainda na década de noventa, a contrariosensu da onda de repressão penal para os crimes hediondos e também o tráfico, ocorreu um movimento de despenalização de condutas de menor potencial ofensivo e do uso de entorpecentes. Isso porque, em 1995, houve a publicação da Lei dos Juizados Especiais (Lei nº. 9.099), que trouxe em seu bojo a transação penal e o sursis processual para os crimes com pena máxima não superior a 1 ano (artigos 76 e 89, respectivamente). Porém, com o advindo da Lei nº. 10.259/01, que instituiu os Juizados Especiais no âmbito federal, teve-se uma ampliação do conceito de crime de menor potencial ofensivo, pois o artigo 2º da mencionada lei os definiu como aqueles cuja a pena máxima não for superior a 2 anos. Por consequência, houve um avanço para os que respondiam pelo crime do artigo 16 da Lei nº. 6.368/76, pois agora eram suscetíveis a este beneplácito e, após o cumprimento das condições impostas, haveria a extinção da punibilidade e mantida a primariedade do agente. A defasagem conceitual e operacional da Lei nº. 6.368/76 integrou constantemente os debates do Congresso Nacional na década de 90. Críticas antiproibicionistas e apelo ao incremento da punitividade fizeram com que diversos projetos de lei tramitassem simultaneamente nas Casas Legislativas. O destaque foi para o Projeto Murad (PL 1.873/91). Sobre esse Salo de Carvalho comenta que “o projeto marcou a política de recrudescimento do sistema de controle de teias de comércio, estabelecendo novas categorias de delitos, sobretudo daquelas condutas associadas às organizações criminosas e suas políticas de financiamento. ” 47 Em consequência da diversidade de projetos de lei, o Projeto Murad sofreu diversas alterações, dando lugar a Lei nº 10.409/02. Essa inicialmente objetivava a 46 BRASIL. Lei nº 9.034 de 03 de maio de 1995. Dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/ fed/lei/1995/lei-9034-3-maio-1995-348988-publicacaooriginal-1- pl.html Acesso em 21/11/2017. 47 CARVALHO, 2016, p. 91. http://www2.camara.leg.br/legin/%20fed/lei/1995/lei-9034-3-maio-1995-348988-publicacaooriginal-1-pl.html http://www2.camara.leg.br/legin/%20fed/lei/1995/lei-9034-3-maio-1995-348988-publicacaooriginal-1-pl.html 24 distinção da reprovabilidade aplicada ao comércio da do uso. Quanto ao tráfico, as penas foram mantidas como as previstas na Lei nº 6.368/76, sejam pela quantidade, sejam pela espécie. Todavia, a inovação consistiu em um novo tipo penal, o do agente financiador de grupo ou associação destinada ao tráfico. Urge salientar que, para o delito de uso, a supramencionada lei positivou o entendimento jurisprudencial da época, explicitando o cabimento das medidas previstas no âmbito dos Juizados ao crime de posse para uso pessoal. Apesar disso, ao fim do processo legislativo, o projeto de lei, que possuía 59 artigos, foi parcialmente vetado pelo Presidente da República, à época Fernando Henrique Cardoso. Desse modo, “a nova lei de tóxicos foi tida por alguns autores como ‘verdadeiro monstrengo jurídico’, diante dos 35 vetos da Presidência da República, que atingiram cerca de 83% do texto, ”48 tendo maior destaque o veto integral do Capítulo III, que fazia a definição “dos crimes e das penas”. Vale ressaltar que a mencionada Lei acabou por não revogar a Lei nº 6.863/76, pois, o dispositivo que expressamente previa tal revogação (artigo 59) também fora vetado pelo Presidente. Sendo assim, a inovação legislativa trazida pela Lei nº 10.409/02 limitou-se ao procedimento processual, fazendo com que a matéria penal permanecesse regulada pela Lei nº 6.863/76, como mostra Salo de Carvalho: O veto da matéria penal derivou, na prática forense, situação anômala e inédita: a aplicação conjugada de dois textos com fundamentos e historicidade diversas. Assim, no que tange ao processo penal, a Lei 10.409/02 obteve plena vigência, restando a estrutura material do direito penal (delitos e penas) atrelada.49 “Tal solução, no entanto, não foi unânime. Havendo vários autores que entendem dever ser aplicada integralmente a lei de tóxicos anterior, diante da impossibilidade de se esfacelar uma lei penal. ”50 Assim temos a Lei nº 6.863/76 definindo os tipos penais relacionados ao tráfico, a Lei n° 10. 409/02 estruturando o procedimento processual, que, no que concerne às Organizações Criminosas, combina-se com a Lei n° 9.034/95, e a Lei 48 RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. São Paulo, 2006. 273 f. Tese ( Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Direito. Área de Concentração: Direito Penal, Medicina Legal e Criminologia) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006. p. 178. 49 CARVALHO, 2006, p. 93. 50 RODRIGUES, 2006, p. 177. 25 de Crimes Hediondos estabelecendo a restrição de direitos como a fiança, liberdade provisória, indulto e progressão de regime Nesse passo, em 2003, edita-se a Lei nº 10.792, que altera a Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/84) instituindo o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), onde se cria a possibilidade de isolamento do preso considerado “ameaça à segurança nacional. ” O RDD consiste, basicamente, no recolhimento do preso em cela individual e restrições de visitação e banho de sol, sendo uma medida administrativa cabível ao preso que apresentar “alto risco para ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade. ”51 Para Salo de Carvalho, o RDD foi “nitidamente voltado à segregação e ao isolamento dos presos identificados como membros de organizações com participação no narcotráfico. ” 52 O combate ao narcotráfico e suas organizações criminosas ganha nova ferramenta em 2004 com a edição do Decreto nº 5.114, também conhecido como “Lei do Abate”. “Este Decreto estabelece os procedimentos a serem seguidos com relação a aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins, levando em conta que estas podem apresentar ameaça à segurança pública. ” 53 O Decreto define as hipóteses de aeronave “suspeita”, e para essas, apresenta medidas coercitivas fundadas em “averiguação, intervenção e persuasão”. Caso as medidas não sejam suficientes, a aeronave ganha o status de “hostil” e fica sujeita às medidas de destruição. A respeito deste Decreto, Salo de Carvalho afirma: A harmonização dos meios operacionais das agências punitivas brasileiras à política transnacional de guerra às drogas legitima medidas de coação direita típicas de períodos de exceção nos quais se manifesta o terrorismo de Estado. [...] O quadro das políticas da repressão às drogas demonstra, sem tergiversações e para além da retórica, a incorporação formal e 51 BRASIL. Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Artigo 52, §1º com redação dada pela Lei 10.792 de 1º de dezembro de 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/2003/L10.792.htm Acesso em 21/11/2017. 52 CARVALHO, 2016, p. 100. 53 BRASIL. Decreto nº 5.144 de 16 de julho de 2004. Regulamenta os §§ 1o, 2o e 3o do art. 303 da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986, que dispõe sobre o Código Brasileiro de Aeronáutica, no que concerne às aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins. Caput do artigo 1º. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_ 03/_ato2004- 2006/2004/decreto/d5144.htm Acesso em 21/11/2017. http://www.planalto.gov.br/%20ccivil_03/leis/2003/L10.792.htm http://www.planalto.gov.br/%20ccivil_03/leis/2003/L10.792.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_%2003/_ato2004-2006/2004/decreto/d5144.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_%2003/_ato2004-2006/2004/decreto/d5144.htm26 substancial da lógica beligerante (militarizada) na gestão da segurança pública nacional.54 Devido ao amplo processo de descodificação do direito penal ocorrido na década de 90 e a renovação da legislação sobre drogas trazida pela Lei nº 10.409/02, constatou-se que as definições dos crimes relacionados às drogas, previstos na Lei nº 6.368/76 e vigentes por trinta anos não mais mostravam-se adequados, visto que “ratificaram a ambiguidade e contrariedade dos mecanismos de criminalização primária e secundária”, fazendo com que houvesse uma “dificuldade das agências governamentais de desenvolvimento de política criminal razoavelmente coerente sobre drogas,”55 mostrando-se necessária uma renovação na legislação pátria, como se mostra a seguir. 2.3 DA ATUAL LEI DE DROGAS BRASILEIRA Em agosto de 2006 publica-se uma nova lei de drogas, a Lei nº 11.343, sendo seus eixos principais, nas palavras de Luiz Flávio Gomes, definidos como: a) pretensão de se introduzir no Brasil uma sólida política de prevenção ao uso de drogas, de assistência e reinserção social; b) eliminação da pena de prisão ao usuário (ou seja, em relação a quem tem a posse de droga para consumo pessoal); c) rigor punitivo contra o traficante e o financiador do tráfico; d) clara distinção entre o “traficante profissional” e o ocasional; e) louvável clareza na configuração do rito procedimental e f) inequívoco intuito de que sejam apreendidos, arrecadados e, quando o caso, leiloados os bens e as vantagens obtidos com a prática dos delitos de drogas.56 Assim como as demais legislações sobre o tema, a Lei nº 11.343/06 mantém os padrões internacionais estabelecidos pela ONU. Nesse sentido, Maria Lúcia Karam afirma: A nova lei brasileira em matéria de drogas — Lei nº 11.343/06 — não traz qualquer alteração substancial, até porque, como suas antecessoras, suas novas ou repetidas regras naturalmente seguem as diretrizes dadas pelas proibicionistas convenções internacionais de que o Brasil, como quase todos os demais Estados nacionais, é signatário. A nova lei é apenas mais uma dentre as mais diversas legislações internas que, reproduzindo os dispositivos criminalizadores das proibicionistas convenções da ONU, conformam a globalizada intervenção do sistema penal sobre produtores, 54 CARVALHO, 2016, p. 102-103 55 CARVALHO, 2016, p. 102-103 56 GOMES, Luiz Flávio et al. Lei de drogas comentada artigo por artigo: Lei 11.343, de 23/08/2006. 5. ed. rev. atual. ampl. - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 7. 27 distribuidores e consumidores das drogas qualificadas de ilícitas, com base em uma sistemática violação a princípios e normas assentados nas declarações universais de direitos e nas Constituições democráticas, com base na supressão de direitos fundamentais e suas garantias.57 O artigo 1º da Lei nº 11.343/06 nos apresenta uma espécie de sumário do texto legal, tendo a redação reproduzida sua própria ementa, sendo essa: Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.58 Observa-se que texto normativo não mais utiliza a nomenclatura “substância entorpecente”, utilizando agora o vocábulo “droga”. A definição desse termo trazida pelo legislador por meio do parágrafo único do artigo 1º consiste em “substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”. 59Vemos, portanto, que, assim como na Lei nº 6.368/76, novamente o legislador opta pela utilização de uma norma penal em branco, sendo que essa “é caracterizada por preceitos incompletos que requerem o preenchimento por terceiros dispositivos, normalmente de cunho extrapenal”, fazendo com que haja um “esvaziamento do direito penal e processual penal codificado”, pois, “a parte integradora do tipo não segue, [...], o rigoroso procedimento de criação da lei penal. Contudo, produz os mesmos efeitos incriminadores. ”60 Prosseguindo, temos, no artigo 2º da supramencionada lei, as exceções à proibição, sendo essas as de uso exclusivo para fins medicinais e científicos, com a devida licença prévia da autoridade competente, e a de uso ritualístico-religioso. Cumpre ressaltar que “pela primeira vez a legislação brasileira faz referência a 57 KARAM, Maria Lúcia. A Lei nº 11.343/06 e os repetidos danos do proibicionismo. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (167). São Paulo: IBCCrim, 2006. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/3312-A-Lei-no-1134306-e-os-repetidos-danos-do- proibicionismo Acesso em 28/11/2017. 58 BRASIL. Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (...) Ementa da lei. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004- 2006/2006/lei/l11340.htm Acesso em 22/11/17. 59 Ibid., artigo 1º, parágrafo único. 60 CARVALHO, 2016, p. 255-257 https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/3312-A-Lei-no-1134306-e-os-repetidos-danos-do-proibicionismo https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/3312-A-Lei-no-1134306-e-os-repetidos-danos-do-proibicionismo http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm 28 plantas de uso estritamente ritualístico-religioso”61, o que já era defeso pela Convenção de Viena desde 1971. Já no Título II da Lei nº. 11.343/06 há a apresentação do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), onde são traçados seus princípios e objetivos gerais. “A criação de tal sistema vai ao encontro de uma política criminal de drogas mais consentânea com aquelas modernamente recomendadas”62, isso porque no plano administrativo adotou-se uma “organização sistêmica” onde “exerce papel relevante a atividade de informações, para que as decisões tenham consistência. ”63 Quanto à sua regulamentação e organização, essas se deram por meio do Decreto nº. 5.912 de setembro do mesmo ano. Passemos, então, ao Título III, sendo esse: “Das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas”. Esse título se subdivide em três capítulos, sendo esses: 1) Da prevenção; 2) Das atividades de atenção e de reinserção social de usuários ou dependentes de drogas; e, 3) Dos crimes e das penas. Quanto aos dois primeiros capítulos é de se verificar que são temas que já haviam sido tratados nas legislações anteriores, contudo, a Lei nº 11.343/06 apresenta um detalhamento jamais visto antes no Brasil. Ambos se “encontram na linha mais moderna de políticas públicas de prevenção. Pecam, todavia, por serem apenas hipotéticas, porque, como costuma acontecer no país, não vêm acompanhadas dos meios para serem implementadas. ”64 No que tange ao capítulo III (dos crimes e penas), vemos que o legislador insisti na ausência de denominação jurídica para os tipos penais ali apresentados. O primeiro crime revela-se no artigo 28, sendo esse: Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. § 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de 61 GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos:prevenção, repressão. Comentários à Lei n. 11.343/2006 – Lei de Drogas. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 104 62 GOMES, 2013, p. 29 63 GRECO FILHO, 2009, p. 109 64 Ibid., p. 115 29 pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. § 2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.65 A lei continua não criminalizando o uso, contudo, “para usar, alguém necessariamente deveria ter trazido consigo”. Porém, tendo em vista que “a Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961, recomendou às partes que a simples posse de entorpecente fosse controlada”, a punição para a posse se manteve na Lei nº 11.343/06, como acima exposto. Cumpre ressaltar que a Lei “não descriminalizou nem despenalizou a conduta [...] nem a transformou em contravenção”, apenas deu ao tipo penas criminais próprias e específicas.66 O animus do agente é essencial para a subsunção neste tipo, sendo o consumo pessoal sua elementar subjetiva, pois, “requer a vontade específica, ou seja, o particular fim de agir para uso próprio”67, sendo essa a distinção o delito do artigo 28 com o tráfico de drogas previsto no artigo 33 desta Lei, que veremos mais adiante. Não obstante, a lei, em seu §2º do supracitado artigo define critérios objetivos para definir a elementar subjetiva. Há inúmeros questionamentos quanto à constitucionalidade desse artigo, sendo que, atualmente, a mesma encontra-se em debate no Supremo Tribunal Federal, por meio do Recurso Extraordinário nº 635-659, que está com o julgamento suspenso. Já no Título IV da Lei nº 11.343/06 temos “Da repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas”, que se inicia ressaltando a necessidade de licença prévia para o manejamento de drogas ou matéria prima destinada à sua preparação, estabelece a destruição das plantações que inobservem as exigências legais e, cumprindo o mandamento Constitucional previsto no artigo 243 da CRFB/88, determina a expropriação das terras onde se encontrarem os cultivos ilícitos. 65 BRASIL. Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (...) Artigo nº 28. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004- 2006/2006/lei/l11340.htm Acesso em 22/11/17. 66 GRECO FILHO, 2009, p. 126-133 67 CARVALHO, 2016, p. 264 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm 30 Passa-se, então, a definir os tipos penais concernentes ao tema, sendo o primeiro desses previsto no artigo 33 da mencionada lei, que possui a seguinte redação: Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas; II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas; III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas. § 2o Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga: (Vide ADI nº 4.274) Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa. § 3o Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28. § 4o Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.68 Logo, percebe-se que, em relação à legislação anterior (Lei nº 6.368/76), repetiram-se os dezoito verbos nucleares do tipo. Não obstante, houve notável aumento na pena mínima cominada, passando agora ser de 5 anos. A ausência de vontade específica marca este tipo penal, distinguindo-o do previsto no artigo 28, pois aqui não há delimitação da intenção do agente, fazendo com que “estaria caracterizado o delito independente de sua destinação ao comércio ilícito”.69 68 BRASIL. Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006. Artigo nº 33. 69 CARVALHO, 2016, p. 265 http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4274&processo=4274 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Congresso/RSF-05-2012.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Congresso/RSF-05-2012.htm 31 Já o §2º do artigo acima transcrito dá uma nova escala penal, mais branda, às condutas de induzimento, instigação ou auxílio ao uso indevido de entorpecentes, o que na lei revogada consistia em crime equiparado ao tráfico. Outro ponto relevante reside no §3º do artigo 33, que se refere ao consumo compartilhado. Este é definido por Salo de Carvalho como “o único tipo penal intermediário entre o tráfico e o porte” Ainda para o professor, “a estrutura do tipo penal incriminador, em seus preceitos primários e secundários, descaracteriza qualquer possibilidade de qualificação do delito como hediondo”.70 A inovação legislativa trazida pelo §4º é a causa especial de diminuição de pena, também conhecida como “tráfico privilegiado”, no qual o réu “primário, de bons antecedentes, que não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”, popularmente conhecido como “traficante de primeira viagem”, deverá (inobstante a redação legal, visto que é direito subjetivo) ter sua pena reduzida de 1/6 a 2/3. No que tange ao artigo 34, vemos a tipificação do “tráfico de maquinários”. Esse é um crime subsidiário e já era previsto na Lei 6.368/76, estando em consonância com a Convenção Única de 1961. Contudo, Salo de Carvalho advoga por sua inconstitucionalidade, sob os seguintes argumentos: Em modelos de direito penal de fato, regrados processualmente pela presunção constitucional de inocência e pelo devido processo legal, descarta-se a criminalização dos atos de preparação por não representarem perigo concreto ao bem jurídico e estarem distantes do início da realização do verbo do tipo. [...] O art. 34 da Lei de Entorpecentes não apenas expões sua natureza de ato preparatório ao vincular os verbos nucleares aos instrumentos e objetos de destinação à produção de drogas, violando o princípio da lesividade, como cria um tipo penal vago e impreciso, em frontal ofensa à taxatividade.71 Prosseguindo, vemos o artigo 35 que reproduz o disposto no artigo 14 da lei vigente anteriormente, sendoesse o crime de “associação para o tráfico”. Esse exige um animus associativo entre dois ou mais agentes para prática, reiterada ou não, do tráfico de drogas. Mais uma inovação legislativa é a expressa pelo artigo 36 da Lei nº 11.343/06, isso porque esse traz um novo tipo autônomo de crime, o sustento do tráfico. Antes dessa inovação, aquele que financiasse ou custeasse o tráfico 70 Ibid., p. 287-288 71 Ibid., p. 300-301 32 respondia pelo crime de tráfico, geralmente na condição de partícipe. Já o artigo 37 prevê o crime de colaboração ao tráfico e o 38 constituí o crime próprio de profissionais da saúde que prescrevem ou ministram, culposamente, drogas desnecessárias a pacientes. Em seguida, temos sete causas especiais de aumento de pena, sendo essas: Outrossim, o artigo 41 estabelece uma causa especial de diminuição de pena para àqueles agentes que colaborem com a investigação, identificando os demais autores do fato e ajudando na recuperação dos produtos do crime. Em seguida, o artigo 44 ratifica a lei de crimes hediondos e estabelece a inafiançabilidade e insuscetibilidade de sursis, conversão em penas restritivas de direito, graça, indulto, anistia, liberdade provisória e, ainda, impõe o cumprimento de 2/3 a pena para o livramento condicional (vedando-o aos reincidentes específicos) aos crimes previstos nos artigos 33, caput e § 1o, e 34 a 37 da Lei nº 11.343/06. No que concerne à inimputabilidade do agente dependente e à semi- imputabilidade como causa de diminuição de pena, ambas foram mantidas pela atual lei (art. 45 e 46), sendo também mantida a previsão de tratamento àqueles que comprovadamente necessitarem (art. 47). Já em relação às medidas processuais mostra-se necessário o laudo prévio de constatação da natureza e quantidade da droga para a lavratura do auto de prisão (art. 50, §1º); os prazos para a conclusão do inquérito policial são maiores (art. 51); há a possibilidade do flagrante diferido (art. 53, inciso II); tem-se a notificação do acusado e apresentação de defesa prévia antes do recebimento da denúncia (art. 55); inverte-se a ordem de inquirição na AIJ, sendo o interrogatório do réu o primeiro ato a ser realizado; e, no que tange à regra de recolhimento à prisão como condição à apelação do condenado, essa fora atenuada, dispensando o recolhimento caso o réu seja reconhecido pela sentença condenatória como primário e de bons antecedentes. Isso posto, aqui se encerra um breve relatório sobre as principais legislações brasileiras concernentes às drogas e suas influências externas. 33 3 DA SELETIVIDADE PUNITIVA NOS CRIMES DE DROGAS No capítulo anterior buscamos analisar a evolução da legislação pátria referente à proibição das drogas e algumas de suas influências externas. Vimos então que a partir do século XX às drogas passaram a ser objeto do direito penal, sendo o grande incentivador da proibição dessas os Estados Unidos da América. Resta agora traçar breves pontos quanto à justificação deste ideal proibicionista, algumas de suas consequências e funções. 3.1 DA JUSTIFICAÇÃO Como já visto, condutas relacionadas às drogas foram definidas como crimes, sendo que esse é a institucionalização punitiva de uma conduta desviante. Uma conduta é tida como desviante quando “varia excessivamente em relação à média. ”72 Sendo assim, uma conduta é desviante por “consequência das reações dos outros ao ato de uma pessoa. ”73 Becker nos apresenta a ideia de que “o desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa que comente um ato e aquelas que reagem a ele. ”74 Logo, ”o desvio é apontado por uma pessoa, indicando a estranheza sobre a ação de outra. ”75 “O certo é que toda sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que dominam e grupos que são dominados”76 e, busca-se a “expansão dos valores do grupo que se pretende hegemônico sobre aquele que deve ser dominando”77, mantendo-se, assim, esse seu caráter dominante. Afinal, “o ato de um grupo que, ao delimitar atitudes aceitas e desviantes, afirma, antes de mais nada, 72 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar editora, 2009. p. 18. 73 Ibid., p. 22. 74 Ibid., p. 27. 75 BIAR, Marcelo. Arquitetura da dominação: o Rio de Janeiro, suas prisões e seus presos. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2016. p 51. 76 ZAFFARONI, Raúl Eugênio e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal – parte geral – 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 62. 77 BIAR, 2016, p. 36. 34 padrões que acabam privilegiando seu próprio grupo”78 e, “aqueles grupos cuja posição social lhe dá armas e poder são mais capazes de impor suas regras. ” 79 A imposição da cultura dominante se dá por meio do controle social, que é a “influência da sociedade delimitadora do âmbito da conduta do indivíduo. ”80 Essa delimitação pode ser implícita ou explícita, institucionalizada ou não, punitiva ou não punitiva. Para desvios mais acentuados se opta pelo controle punitivo, que é a forma de controle social onde se institucionaliza e pune os praticantes das condutas assim qualificadas. Ou seja, criam-se regras formais para inibir que tal conduta seja realizada, e caso essa ocorra, pune-se quem as cometeu. “O Estado, ao monopolizar toda forma de reação contra o delito, necessitaria de orientações político-criminais como pauta programática das agências de punitividade. ”81 A institucionalização formal de uma conduta pelo Estado se dá por meio do sistema penal, “englobando a atividade do legislador, do público, da polícia, dos juízes, promotores e funcionários da execução penal. ”82 A primeira etapa do sistema penal, chamada de seletividade punitiva primária, se externa por meio da atividade legiferante e o direito penal, consistindo em “sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas. ”83 Becker também afirma que “Para que uma regra seja criada, alguém deve chamar atenção do público para esse assunto, dar o impulso necessário para que as coisas sejam realizadas e dirigir as energias suscitadas na direção certa. ”84 Nessa linha de pensamento, o tráfico de drogas não é uma conduta desviante em si, mas, por ter sido apontada como tal, por uma força política como os Estados Unidos da América, passou-se a ser visto dessa maneira, e como forma de coibir sua prática, exerceu-se o controle social, na forma de controle punitivo, institucionalizando-se o tráfico como crime e cominando punição à sua prática. 78 BIAR, 2016, p. 33. 79 BECKER, 2009, p. 30. 80 ZAFFARONI, 2015, p. 62. 81 CARVALHO, 2016, p. 132. 82 ZAFFARONI, 2015, p. 70. 83 D’ELIA FILHO, 2007, p. 16. 84 BECKER, 2009, p. 167. 35 Rosa del Olmo aponta que a legitimação do controle social formal se deu por meio de “discursos construídos em torno da droga que permitiram, por sua vez, a criação de estereótipos”85. Passemos então à análise desses: 3.1.1 Do discurso ético-jurídico e o estereótipo moral No que concerne à sua gênese, o discurso pró-criminalização difundido possuía “fundamento moral diretamente trazido da moral protestante do século XIX, que vê na abstinência um ideal de virtude”.86 No mesmo sentido afirma-se que “o movimento proibicionista tinha raízes na tradição puritana do protestantismo, interpretação do cristianismo radicalmente contrária à busca do prazer em vida”.87 Contudo, “a política de proibição, desde o início, já revelava as condicionantes socioeconômicas da reação ao uso e comércio de algumas drogas”88 Thiago Rodrigues ressalta que a proibição das drogas e seu discurso moralista serviam de disfarce à um discurso xenofóbico, sendo esse: Nos Estados Unidos, a reprovaçãomoral ao uso de substâncias psicoativas – representado pelas abstêmias ligas puritanas – foi tradicionalmente acompanhado pela associação entre determinadas drogas e grupos sociais. Os chineses vindos em larga escala para trabalhar na construção de estradas de ferro no oeste nos EUA, trouxeram o hábito de fumar ópio e a esse psicoativo foram ferrenhamente associados. A maconha era considerada, em princípios do século XX como droga de mexicanos, grupo visto pelos brancos estadunidenses como indolentes, preguiçosos e, por vezes, agressivos. Aos negros, parcela da população lançada em miseráveis condições de vida, atribuía-se o uso de cocaína, prática que supostamente os tornava sexualmen te agressivos. Por fim, o álcool era percebido como uma droga abusada pela comunidade de imigrantes irlandeses. Nos quatro casos, uma mesma lógica: minorias e imigrantes portavam comportamentos moralmente reprováveis que ameaçavam valores profundos dos Estados Unidos.89 No mesmo sentido, Rosa del Olmo reconhece: Nos Estados Unidos, os opiácios [...] estavam muito mais confinados aos guetos urbanos e, em especial vinculados aos negros e porto- riquenhos. Por sua vez, a maconha também era própria de grupos marginais, fundamentalmente emigrantes mexicanos. Era chamada 85 OLMO, Rosa del. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 23. 86 RODRIGUES, 2006, p. 47. 87 RODRGUES, 2003, p. 26. 88 D’ELIA FILHO, 2007, p. 79. 89 RODRIGUES, 2003, p. 31. 36 de “erva assassina” porque era associada à violência, agressividade e criminalidade.90 Em sentido convergente, Vera Malaguti Batista conecta o discurso proibicionista e o enfoque da população por ele alcançada ao nível econômico, sendo assim por ela descrito: A primeira lei federal contra a maconha tinha como carga ideológica a sua associação com imigrantes mexicanos que ameaçavam a oferta de mão-de-obra no período da Depressão. O mesmo ocorreu com a migração chinesa na Califórnia, desnecessária após a construção das estradas de ferro, que foi associada ao ópio. No Sul dos Estados Unidos, os trabalhadores negros do algodão foram vinculados a cocaína, criminalidade e estupro, no momento de sua luta por emancipação. O medo do negro drogado coincidiu com o auge dos linchamentos e da segregação social legalizada. Estes três grupos étnicos disputavam o mercado de trabalho nos Estados Unidos, dispostos a trabalhar por menores salários que os brancos.91 Percebe-se então que, até a década de cinquenta, o discurso proibicionista se corporificava com um discurso jurídico e fundava-se em um “estereótipo moral, que considerava a droga fundamentalmente sinônimo de periculosidade”.92 Criou-se, portanto, um vínculo formal entre esses grupos e a ilegalidade, permitindo que os mesmos fossem passivos de maior vigilância. “Sua associação com as drogas que passavam à ilegalidade criava possibilidades concretas para que tais comunidades fossem assediadas pelos braços policiais do Estado, sob a justificativa de combate ao tráfico”,93 mostrando que “o problema do sistema não é a droga em si, mas o controle específico daquela parcela [...] considerada perigosa. ”94 3.1.2 Do discurso médico sanitarista e estereótipo da dependência Com o passar dos anos, já na década de 60, houve uma explosão do consumo de drogas pois essas foram vinculadas aos movimentos de contestação, “agrupados sob o nome da contracultura, [...] o uso de drogas ilícitas esteve 90 OLMO, 1990, p. 29. 91 BATISTA, Vera Malaguiti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e a juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan: 2003. p. 81. 92 OLMO, 1990, p. 30. 93 RODRIGUES, 2003, p. 32. 94 BATISTA, 2003, p. 134. 37 presente como ato de sublevação contra a autoridade estatal”95, surgindo como “instrumento de protesto contra políticas belicistas e armamentistas. ”96 O uso de entorpecentes agora conectados aos movimentos de contracultura e pacificação, fizeram com que o espaço público fosse tomado pelo consumo de drogas “aumentado sua visibilidade e, consequentemente, gerando ‘pânico moral’, que deflagrará intensa produção legislativa em matéria penal. ”97 Houve, portanto, uma alteração do público consumidor dessas substâncias, do espaço onde elas se inseriam e até as substancias em si (surgimento do LSD por exemplo). O consumo não mais se restringia à guetos urbanos, não sendo os usuários apenas imigrantes e negros, como também de jovens brancos, membros da classe média norte-americana. De tal forma, fez-se necessária uma adequação do discurso proibicionista, por meio da criação do estereótipo de dependência para o consumidor, mormente na Convenção Única de Entorpecentes de 1961, na qual foi “a toxicomania considerada perigo social e econômico para a humanidade. ”98 Insta salientar que o surgimento do discurso médico-sanitário não aboliu o discurso moral, fazendo com que ambos estivessem presentes na legislação vigente, seja nas convenções Internacionais, seja nas leis pátrias, que foram alteradas à época, conforme visto no capítulo anterior. Estabeleceu-se, assim, uma “ideologia de diferenciação”99, onde coexistiam dois tratamentos legais para dois estereótipos distintos, um para o traficante e um para o consumidor. 3.1.3 Do discurso político da droga e o estereótipo político-criminoso Já na década de setenta, a heroína ganha maior destaque, visto que seu uso se popularizou entre os veteranos que retornavam da Guerra do Vietnã aos EUA. Logo, o espaço para essa também se ampliou pois, “até então se limitava aos 95 RODRGUES, 2003, p. 40. 96 CARVALHO, 2016, p. 52. 97 Ibid., p. 52-53. 98 Ibid., p 54. 99 Ibid., p. 54. 38 guetos urbanos e não havia chegado à juventude branca”100, fazendo com que, em junho de 1972, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, declarasse “guerra às drogas”, sendo essas eleitas como inimigos nº 1 da América. A declaração de guerra às drogas permitiu que essas fossem percebidas como uma “ameaça à ordem”101 e se iniciasse o discurso político. Esse tinha como base e a existência de um inimigo externo, quem seja, os países produtores das drogas. Sobre o tema, pertinente é a colocação do professor Rodrigues: Essa guerra, longe se ser apenas uma metáfora, significa a intenção de aprofundar as medidas repressivas por meio do crescimento das ações policiais de busca e apreensão de drogas ilegais e combate a grupos clandestinos e redes de tráfico. Aceitava-se oficialmente a existência de países produtores de drogas ilícitas e países consumidores, atitude que cumpriria o papel de exteriorizar o problema do tráfico de drogas colocando os Estados e regiões do Terceiro Mundo como agressores e os Estados Unidos na posição de vítima.102 Nessa linha de pensamento temos também a fala do magistrado Valois, consistente em: A guerra às drogas declara por Nixon, não obstante ser mais forte em outras frentes de batalha, fez sua investida no campo da legislação internacional, buscando o aumento do rigor das regras da Convenção Única, empreitada que originou o Protocolo de Emendas À Convenção Única de Entorpecentes, concluído em Genebra, em 25 de março de 1972.103 Salo de Carvalho ressalta a ideia de Rosa del Olmo no sentido de que o “processo de transferência marcado pela responsabilização de países marginais pelo consumo interno de drogas no EUA acabou por produzir a dicotomização mundo livre e países inimigos ”104. E prossegue reconhecendo que “os reflexos do projeto externo norte-americano incidiram diretamente nas políticas de segurança pública dos países da América Latina. ”105 100 OLMO, 1990, p. 39. 101 Ibid., p. 39. 102 RODRIGUES, 2003, p. 42-43. 103 VALOIS, 2017, p. 286. 104 CARVALHO,
Compartilhar