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INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS DE LITERATURA Renan Cardozo Gomes da Silva O Realismo e o Naturalismo brasileiros Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Comparar características do Realismo e do Naturalismo, considerando o que precedeu esses movimentos. Analisar obras de Machado de Assis e de Aluísio Azevedo. Questionar a classificação da obra de Machado de Assis como realista. Introdução Etimologicamente, a palavra “real” deriva do adjetivo latino realis, qualidade daquilo que é verdadeiro, que possui relação com aquilo que existe (res, substantivo que designa coisa, matéria). Já “natureza” deriva do verbo nasci, somado ao sufixo -ura, e guarda relação com aquilo que nasce e que, pos- teriormente, passou a estar relacionado às características inerentes às coisas no mundo e ao próprio homem. Dito isso, você pode vislumbrar algumas das características dos movimentos estéticos Realismo e Naturalismo. Surgido na França, na segunda metade do século XIX, o Realismo contrapõe-se ao idealismo, ao sentimentalismo e à artificialidade român- ticos. Posteriormente, sob impacto do positivismo científico, desdobra-se o Naturalismo, prolongamento natural do Realismo, cuja inovação estética consiste em uma visão técnica e cientificista do mundo e da existência humana. No Brasil, os movimentos, que, pensam alguns críticos, não chegam a ser distintos, tiveram início nas últimas décadas do século XIX e são marcados por duras críticas à sociedade da época. Neste capítulo, você estudará características do Realismo e do Natura- lismo, com a finalidade de comparará-los entre si e com os movimentos que lhes foram anteriores. A partir desses conhecimentos, você terá a oportunidade de analisar obras de Machado de Assis e de Aluísio Aze- vedo, considerados por críticos os maiores expoentes do Realismo e do Naturalismo no Brasil. Características do Realismo e do Naturalismo Conforme Jakobson (1976), o Realismo pode ser entendido a partir de duas visões distintas: em sentido amplo, enquanto princípio de fi delidade à realidade e, em sentido estrito, enquanto realização perfeita dessa tendência em um programa estético. Enquanto princípio, o Realismo está estritamente ligado à noção aristotélica (ARISTÓTELES, 2004) de mimesis e de verossimilhança, isto é, a imitação da natureza pela arte e a ideia de que essa imitação se asse- melha à realidade. Assim, o Realismo está presente, em maior ou menor grau, em obras de arte de toda a história. Por sua vez, esse princípio se torna base de um programa estético, de um movimento artístico, quando radicalizado em função de um realismo “perfeito”. Aqui, nos debruçaremos sobre o Realismo enquanto programa/movimento. Em um excerto da biografia de Eça de Queiroz, em que Matos (2017) se debruça sobre as conferências do autor português acerca da revolução pro- mulgada pelo Realismo, o autor defende que o Realismo é uma reação contra o Romantismo. Enquanto o Romantismo seria uma “apoteose do sentimento”, o Realismo seria a “anatomia do caráter”, uma crítica do homem. Para o autor, esta é a arte “que nos pinta a nossos próprios olhos — para condenar o que houve de mau na nossa sociedade”. Na perspectiva de Eça, o Realismo é um movimento de contracultura e que, sumariamente, possui duas premissas fundamentais: a observação da realidade como base da criação artística e o uso da criação artística como meio para a crítica social. O movimento literário realista, especificamente, surge em reação ao caráter frívolo, neoclássico e idealista do Romantismo. O Realismo preponderou na França a partir da segunda metade do século XIX, e a crítica remonta seu início com a publicação do romance Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert. Em Portugal, este marco é atribuído à O crime do Padre Amaro (1865), de Eça de Queiroz, e, no Brasil, à Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis. Distintamente dos movimentos anteriores, o Realismo pautava-se pela vontade de retratar a realidade e os costumes da sociedade moderna sem idealizações moralistas. Para isso, fazia-se necessário um afastamento da artificialidade e de modelos estéticos do passado em função de, como diz Bosi (1987, p. 187), cumprir “[...] um esforço para acercar-se impessoalmente dos objetos, das pessoas [...]”. O Realismo e o Naturalismo brasileiros2 Nesse contexto, derivou-se o Naturalismo, movimento estético que se constituiu junto, e no seio, do Realismo. Fortemente impactado pelo Positi- vismo francês, o Naturalismo traz para o campo artístico a doutrina filosófica de que a verdade somente é alcançada por meio da observação empírica do mundo. Assim, são características fundamentais do movimento a perspectiva cientificista da existência e a visão mecanicista e biologizante do homem. Comumente, a obra Thérèse Raquin (1867), do francês Émilie Zola, é tida como a obra fundadora do Naturalismo. Em Portugal, a pedra angular do movimento é O Barão de Lavos (1891), de Abel Botelho, e, no Brasil, O Mulato (1881), de Aluísio de Azevedo. Para saber mais sobre o Positivismo, paradigma científico do século XIX que está nas origens do Naturalismo, leia o capítulo O positivismo e a história da literatura brasileira, de Regina Zilberman, que integra a obra Histórias da literatura: teorias, temas e autores. Em termos gerais, se o Romantismo foi o movimento artístico e cultural que acompanhou a constituição dos Estados-nação e fundou o romance como gênero burguês, o Realismo está imbricado ao progresso da pequena burguesia ou, como hoje conhecemos, da classe média. Assim, diferentemente da arte burguesa, voltada à “arte pela arte” e à literatura situada no “jogo vazio” da estética, o Realismo é estimulado pela arte enquanto voltada à exposição/ solução de problemas sociais. A arte e a literatura realista são engajadas politicamente e tem por fundamento a incorporação dos avanços científicos às suas temáticas. Nesse contexto, o Realismo se apresentava como uma alternativa ao que era visto como isolamento das artes em relação à sociedade e à elitização da vanguarda. Especificamente em seu aspecto social, o Realismo dá ênfase à representação das camadas sociais minoritárias e dos trabalhadores. Por outro lado, havia aqueles que defendessem o papel da vanguarda, voltada à constituição de um realismo moderno adequado à realidade do século XX. 3O Realismo e o Naturalismo brasileiros O Naturalismo, por si, adiciona à pauta realista a radicalização da racionalidade e o apreço pelo científico, principalmente o evolucionismo, a medicina experi- mental e a hereditariedade biológica. Aí, temas como as patologias físicas e as taras se tornam comuns, ao passo que as personagens carregam caracterizações animalescas. Sendo assim, a estética naturalista investiga o princípio iluminista de que “o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe”, e dedica especial atenção ao determinismo biológico, psicológico e social dos sujeitos modernos, em que a miséria, a exploração do trabalho e os crimes constroem os enredos. Embora a maior parte das contribuições do Realismo e do Naturalismo sejam vistas na literatura, o movimento impactou, ainda, a pintura, a escultura e o teatro, em que se destacam, respectivamente, os nomes de Manet, Rodin e Dumas filho. Embora, como veem alguns críticos, o Realismo e o Naturalismo não sejam movimentos tão distintos, e que exista, assim, um realismo-naturalismo inaugurado com a obra O mulato (CASTELLO, 1953), por outro ponto de vista, em que o Naturalismo é uma ramificação relativamente autônoma do Realismo, é possível pontuar algumas nuances entre ambas as abordagens (ver Quadro 1). Realismo Naturalismo Mostra as realidades exterior e interior das personagens, porém dá enfoque à sua realidade interior, à dimensão psicológica. Mostra as realidades exterior e interior das personagens, porém dá enfoque à sua realidade exterior, ao seu contexto social. As personagenssão burguesas, ambi- ciosas e corruptas. As personagens são marginais e seu lugar social é tematizado. Dá ênfase às determinações sociais da personagem. Dá ênfase às determinações biológicas, patológicas e sociais da personagem. Retrata espaços urbanos e refinados. Retrata espaços periféricos, sujos e grosseiros. O estilo é lento e pormenorizado; abundam predicativos. O estilo é mais rápido e mecanicista; são comuns termos técnicos e científicos. Quadro 1. Naturalismo versus Realismo O mesmo exercício, de traçar diferenças, pode ser feito entre questões estéticas e temáticas entre o Romantismo e o Realismo (ver Quadro 2). O Realismo e o Naturalismo brasileiros4 Realismo Romantismo Abordagem objetiva. Abordagem subjetiva. Mulher retratada com defeitos e quali- dades tanto físicos quanto morais. Mulher idealizada moral e fisicamente. Narrador em terceira pessoa. Narrador em primeira pessoa. Ênfase na racionalidade. Ênfase na fantasia, ou idealização. Nacionalismo crítico. Nacionalismo/ufanismo. Narrativa lenta, focada em aspectos psicológicos da personagem; valoriza- -se o que a personagem sente. Narrativa lenta, focada em predicati- vos; valoriza-se o que a personagem é. Quadro 2. Realismo versus Romantismo Realismo e naturalismo em análise: a questão racial em Machado de Assis e em Aluísio Azevedo Agora que conhece as principais características do Realismo e do Naturalismo e como esses movimentos se constituem de forma divergente ao Romantismo, você possui os conhecimentos básicos que lhe permitirão interpretar obras literárias desses períodos. Especifi camente a partir daqui, ocuparemo-nos em ler duas narrativas fundamentais para a compreensão do sistema literário nacional: o conto Pai contra mãe (1906), de Machado de Assis, e o romance O mulato (1881), de Aluísio Azevedo. Notemos, primeiramente, que ambas as obras possuem como temática a questão racial e a construção das classes sociais brasileiras. Comecemos as discussões pelo texto de Azevedo. O mulato, de Aluísio Azevedo Aluísio Tancredo Belo Gonçalves de Azevedo, ou, simplesmente, Aluísio Azevedo, nasceu em São Luís do Maranhão, em 1857, e faleceu, em 1913, na cidade de Buenos Aires (Argentina). Irmão do dramaturgo e jornalista Artur Azevedo, possuía tendências para a pintura e para o desenho. Em 1976, aos 19 anos, ingressa na Academia Real de Belas Artes e torna-se caricaturista de jornais, como O Fígaro e O Mequetrefe. Devido à morte de seu pai, em 5O Realismo e o Naturalismo brasileiros 1878, Aluísio retorna a São Luís e lança seu primeiro romance, Uma lágrima de mulher (1880). Afetado pela onda abolicionista da época, Aluísio Azevedo publica O mulato (1881), romance que deixaria a sociedade maranhense escan- dalizada pelo modo radical e cru com que exporia a questão racial no Império. O mulato funda o movimento naturalista no Brasil, entretanto, não marca o estilo único do autor. Aluísio Azevedo oscilava entre a produção de romances melodramáticos, comerciais, e obras mais maduras, de cunho naturalista. Com O mulato, Azevedo obtém sucesso na Corte e é conside- rado um grande expoente do Naturalismo. A fama lhe permite retornar à capital, quando passa a produzir, em grande número, romances, contos e crônicas, entre os quais se destacam os romances Casa de Pensão (1884) e O cortiço (1890). O enredo de O mulato tem início com o nascimento do bastardo Raimundo, filho do fazendeiro e comerciante português José Pedro da Silva com uma de suas escravas, Domingas. José casou-se com Quitéria Inocência de Freitas Santiago, que, desconfiada do caso de José com a escrava, mandou açoitá-la e queimar sua genitália. Temendo pela vida de seu filho, José entrega Raimundo aos cuidados de Manuel, seu irmão. Ao retornar à sua fazenda, José encontra sua esposa na cama com o Cônego Diogo. Em um ímpeto de fúria, José mata Quitéria e faz um pacto de segredo com o Padre para que ninguém saiba do ocorrido. Abatido com a situação, José muda-se para a casa de seu irmão, em São Luís. Adoentado, decide retornar à fazenda, quando é morto por ordem de Diogo. Diante dessa realidade, Raimundo, ainda criança, é enviado para es- tudar em Lisboa, onde alcança a idade adulta e forma-se bacharel em Direito. Formado, Raimundo passa a residir no Rio de Janeiro e decide encontrar seu tio no Maranhão para saber de suas origens e para receber sua herança, que estava aos cuidados de Manuel. Em seu retorno à fazenda, Raimundo descobre elementos de seu passado, quem era a sua mãe e que sua origem remontava a um relacionamento clan- destino entre seu pai e Domingas. Durante sua estada na casa de Manuel, Raimundo apaixona-se por Ana Rosa, sua prima, e pede sua mão. Manuel Pescada nega-lhe a mão de Ana Rosa, pois esta é prometida a um de seus empregados, o Cônego Luís Dias. Raimundo suspeita que a motivação para não poder se casar com Ana deve-se ao possível escândalo para Manuel que seria ter sua filha casada com um mulato, um mestiço. O Realismo e o Naturalismo brasileiros6 Sobre o termo mulato, cabe reconhecê-lo no contexto histórico da obra. Derivado de mula, animal mestiço, cruza de um asno macho e uma égua, mulato se referia aos filhos de brancos com pretos, geralmente de um homem branco, em posição social superior, e uma mulher negra. Na obra, o termo, pejorativo, é utilizado para depreciar Raimundo, filho do fazendeiro José e da escrava Domingas. Hoje, o termo mulato(a) é largamente criticado por comparar pessoas a um animal. Levando isso em conta, sem ele não podemos compreender o processo de consolidação da identidade nacional brasileira, alicerçada sobre a escravização e o genocídio dos povos negros e originários (indígenas) e sobre a mestiçagem, geralmente violenta. Ana, que também nutria sentimentos por Raimundo, decide fugir com ele. No momento da fuga, descobertos pelo Padre Diogo e em meio a uma confusão, Raimundo é assassinado por Luís Dias. Diante do choque da perda de Raimundo, Ana, que estava grávida, aborta seu filho. Ao encerramento do romance, Ana casa-se com o Cônego, assassino de seu amado, e com ele tem três filhos. Ambos passam a viver uma vida burguesa, dedicada aos cuidados dos filhos. Agora que você teve acesso a um breve resumo da obra, leia o parágrafo a seguir, que abre o primeiro capítulo de O mulato: Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes, as paredes tinham reverberações de prata polida, as folhas das árvores nem se mexiam, as carroças de água passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho. (AZEVEDO, 2018, p. 2). No trecho que acabamos de ler, há dois elementos da estética naturalista que podemos destacar. Primeiro, a descrição pormenorizada e racional do espaço, como em “as paredes tinham reverberações de prata polida, as folhas das árvores nem se mexiam, as carroças de água passavam ruidosamente a todo 7O Realismo e o Naturalismo brasileiros o instante, abalando os prédios”. Segundo, a crítica social presente em “só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho”. Nesse excerto, fica clara a distribuição do trabalho na sociedade imperial maranhense: os negros trabalhavam na rotina da casa e em busca de ganhos para seus patrões, ao passo que os burgueses descansavam. Outro aspecto relevante da obra é a perspectiva determinista da mulher e menos idealizada que no romantismo, como você pode ver na citação a seguir, em que Ana é descrita: Ana Rosa cresceu, pois, como se vê, entre os desvelos insuficientes do pai e o mau gênioda avó. Ainda assim aprendera de cor a gramática do Sotero dos Reis; lera alguma coisa; sabia rudimentos de francês e tocava modinhas sentimentais ao violão e ao piano. Não era estúpida; tinha a intuição perfeita da virtude, um modo bonito, e por vezes lamentara não ser mais instruída. Conhecia muitos trabalhos de agulha: bordava como poucas, e dispunha de uma gargantazinha de contralto que fazia gosto ouvir. (AZEVEDO, 2018, p. 6). Especificamente sobre a personagem principal, Raimundo, podemos compreendê-la como dividida entre duas realidades: a de burguês, que pode estudar na metrópole e que teve acesso a uma formação educacional de elite, e a de mestiço alforriado no berço, cuja existência é um escândalo. Cabe, aí, pontuar que essas duas realidades determinam a sorte do protagonista, uma das ênfases estéticas do Naturalismo, assim como há uma ruptura com os moldes canônicos de um “final feliz”, quando o protagonista é assassinado e sua amada casa-se com o assassino. Ainda, no texto, é desvelado o lado vil e preconceituoso da sociedade da época, como apresentado no parágrafo a seguir, retirado do último capítulo da obra: Isto pensava o caixeiro de Manuel escondido na treva, por detrás de um montão de pedras e barrotes, ao lado dos espeques de um casebre em ruínas. Mas o tempo corria, e Raimundo ia entrar pra casa, sumir-se numa fronteira inexpugnável, e só reapareceria no dia seguinte, à luz do sol. “Era preciso aviar!... Um instante depois seria tarde, e Ana Rosa passaria às mãos do mulato e a cidade inteira ficaria senhora do escândalo, a saboreá-lo, a rir-se do vencido! E, então, estaria tudo acabado, para sempre! sem remédio! E ele, o Dias, coberto de ridículo e... pobre! (AZEVEDO, 2018, p. 199-200). O Realismo e o Naturalismo brasileiros8 Pai contra mãe, de Machado de Assis Agora que você conhece algumas das características da obra O mulato, cabe a interpretação do conto Pai contra mãe, de Machado de Assis. Joaquim Maria Machado de Assis, nasceu em 1839, no Rio de Janeiro, e faleceu em 1908, na mesma cidade. De origem pobre, Machado pouco estudou em escolas públicas e não chegou ao ensino universitário. Tendo interesse pela Corte e pela boemia, Machado de Assis subiu socialmente, com empecilhos, a partir de seus dotes intelectuais e culturais. Tido como precursor do Realismo no Brasil, o autor fundou e foi o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. Poeta, romancista, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista e crítico literário, Machado de Assis é considerado pela crítica nacional e internacional como um dos maiores, senão o maior, nome da lite- ratura brasileira, e um dos gênios da literatura universal, ao lado de Camões, Shakespeare e Cervantes, por exemplo. Entre as suas principais obras está a trilogia realista: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899). O conto Pai contra mãe (ASSIS, 2010) integra a coletânea Relíquias da casa velha (1906), sendo um dos poucos textos de Machado de Assis que tematizam a escravidão. Escrito 18 anos após a abolição da escravatura, o conto tem início com o narrador expondo algumas das práticas e dos produ- tos relacionados à escravidão no Brasil, particularmente aqueles voltados à repressão dos escravos fujões. Entre os artefatos citados pelo narrador estão a máscara de folha-de-flandres, utilizada para afastar os escravos da cachaça e, por conseguinte, do roubo. Tais artefatos faziam girar a economia local com o trabalho dos funileiros. Outra das profissões financiadas pela contenção dos escravos fujões era a de caçador de escravos, que era desenvolvida por aqueles que não alcançavam sucesso em qualquer outra profissão. Esse é o caso de Cândido Neves, que, depois de tentar ser comerciante, tipógrafo e entalhador, acaba por ser caçador de escravos. Nutrindo um pro- fundo amor por Clara, Cândido desejava com ela constituir família e, para tanto, ansiava por uma profissão mais nobre. Clara vivia com sua tia, Mônica, a quem ajudava nas costuras. Mônica desaprovava o casamento de Clara e de Cândido, pois o casal possuía poucos recursos financeiros. Já em relacionamento, o casal pensava no problema que seria ter um filho, uma boca a mais para alimentar. Entretanto, acabaram persistindo na pater- nidade, e Clara engravidou. Cândido já era conhecido por suas habilidades enquanto caçador, porém muitos apelavam à profissão, o que acabou dimi- nuindo os ganhos de Cândido. Em uma situação financeira calamitosa, e com 9O Realismo e o Naturalismo brasileiros a gravidez de Clara em estágio avançado, a tia de Clara insistia que o casal entregasse a criança na Roda dos Enjeitados, local de instituições de caridade em que as crianças eram abandonadas. Vendo-se em apuros devido ao despejo da casa que alugavam, a família foi obrigada a morar de favor em alguns cômodos na casa de uma conhecida de Mônica. Diante dessa situação, Mônica consegue convencer o casal a aban- donar o filho para que este não passasse fome ou corresse risco de vida. Com a criança nascida, um menino, ainda que relutante, Cândido se encaminhava para a Roda dos Enjeitados quando encontrou Arminda, uma “mulata” fujona que estava procurando a longo tempo e por quem se pagava a recompensa de cem mil-réis, valor que lhe devolveria estabilidade financeira. Cândido deixa seu filho aos cuidados do farmacêutico enquanto sai à caça de Arminda. Quando a alcançou e a amarrou, Arminda alertou que estava grávida e que tinha medo dos castigos que poderia sofrer. Embora titubeie frente aos apelos da escrava, Cândido entrega Arminda ao seu dono. Enquanto se debatia, procurando se libertar, Arminda aborta seu filho. Cândido Neves recebe a recompensa, pega seu filho com o farmacêutico e retorna para casa. No que se refere aos elementos realistas presentes no conto, podemos citar dois: a ironia, que, em realidade, é típica da obra machadiana, e a articulação entre dois planos narrativos, o do enredo, em si, e o das reflexões acionadas pelo narrador. Veja o parágrafo que inicia o conto: A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. (ASSIS, 2010, p. 1). Nesse trecho, são feitas considerações sobre o plano narrativo das reflexões do narrador, em que são tecidos comentários de caráter histórico e informativo. O Realismo e o Naturalismo brasileiros10 A esses comentários, segue o transcurso da narrativa, em si, naturalmente, ou, melhor, o enredo ilustra o argumento/ponto de vista apresentado pelo narrador, por meio da ironia. Assim, quando este diz: “não cuidemos das máscaras”, dos ofícios e dos aparelhos que a escravidão levou consigo, é justamente das máscaras de que se falará. A narrativa, dessa forma, desdobra-se em dois tempos: o primeiro, após a abolição da escravidão, e o segundo, anterior. Essa é uma característica do exemplum, gênero literário medieval, baseado nos escritos de Platão, que servia para elucidar, por meio de parábolas, os sermões. A narrativa, desse modo, é articulada em razão do ponto de vista defendido pelo narrador, ou, melhor, em função da constituição de um juízo/ uma crítica sobre a escravidão. Sobre a ironia, leiao excerto a seguir: Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. (ASSIS, 2010, p. 2) A ironia, aí, é marcada por expressões como “nem todos gostavam da escravidão”, “nem todos gostavam de apanhar pancada” e “o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói”. Típica do humor sombrio de Machado, a ironia não está presente somente em marcas específicas, mas também na própria constituição do enredo: para que Cândido possa salvar seu filho, este precisa capturar Arminda, mulher grávida, e entregá-la para seu dono. Tentando salvar seu filho, Cândido sacrifica o de Arminda, o que o leva a afirmar, cinicamente, “Nem todas as crianças vingam”. Nesse sentido, são delineadas duas figuras que sofrem devido ao sistema escravagista de maneiras distintas: uma, pela sua profissão, tida como não- -nobre, e outra por ser cativa desse sistema. A crítica social é crua, tanto ao sistema, quanto aos homens, que encontram justificativa para seus gestos atrozes e atitudes desumanas. Por fim, podemos traçar alguns paralelos entre O mulato e Pai contra mãe, como, por exemplo: ambas as narrativas carregam críticas sociais como cerne temático; o apelo a elementos racionais está presente nos dois textos; nas duas obras são traçadas críticas à burguesia e à sua corrupção; e a construção de desfechos inusitados, negativos, que rompem com a lógica convencional de “final feliz”. 11O Realismo e o Naturalismo brasileiros Sobre o estilo em Machado de Assis Traçados alguns paralelos e diferenças entre os princípios estéticos do Re- alismo e do Naturalismo (em contraposição ao Romantismo), e, feitas as análises anteriores, você pode se fazer a pergunta: a partir de quais critérios os autores realistas e naturalistas são classifi cados como pertencentes a esses movimentos? A obra de Machado de Assis, por exemplo, carrega traços apenas do Realismo? As questões colocadas são complexas, e muito ricas. O primeiro elemento a ser considerado é o de que um determinado autor é considerado integrante de um movimento estético a partir da observação das características do- minantes em seu estilo. Assim, ainda que um autor seja classificado como realista, podem haver traços de outros movimentos estéticos em seu estilo, como o romantismo. Cabe, nesse ponto, discutir a noção de estilo. De maneira concisa, podemos citar duas perspectivas distintas do que seja o estilo: primeira, a convencional, de que “o estilo é o homem mesmo”, ou seja, é uma característica pessoal e particular de cada indivíduo, a qual é expressa por meio da produção verbal. Já em uma perspectiva dialógica, o estilo “[...] inscreve-se na língua e nos seus usos historicamente situados [...]” (BRAIT, 2007, p. 83), ou seja, embora o estilo carregue uma dimensão particular, ele é determinado social e historicamente e é materializado na língua. Nas palavras do filósofo russo Mikhail Bakhtin, “[...] o estilo é o homem, dizem, mas poderíamos dizer: o estilo é pelo menos duas pessoas ou, mais precisamente, uma pessoa mais seu grupo social na forma de seu representante autorizado, o ouvinte e o participante constante na fala interior e exterior de uma pessoa [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 16). Seguindo a lógica bakhtiniana, o estilo é conformado pela relação de alteridade entre o ouvinte/leitor e o falante/escritor, situados em um determi- nado lugar na sociedade e na história, logo, o estilo pode ser entendido como o conjunto operante de procedimentos de acabamento. Assim, o estilo de um autor é construído em relação a quem ele escreve e a partir de qual lugar social situado na história ele escreve. Os movimentos literários, nesse sentido, são orientações formais, éticas e estéticas que dão forma às produções literárias que a eles se filiam. Analisando, especificamente, o caso de Machado de Assis, podemos conjecturar que este se situa no entre-lugar de pelo menos dois movimentos estéticos: o Romantismo e o Realismo. Essa é a visão defendida por Veríssimo (1916), para quem a obra de Machado se organiza em dois eixos mais ou menos O Realismo e o Naturalismo brasileiros12 estáveis, um vinculado à escola romântica, e outro ligado à escola realista. Segundo Veríssimo (1916, p. 182): A data do seu nascimento e do seu aparecimento na literatura o fazem da última geração romântica. Mas a sua índole literária avessa a escolas, a sua singular personalidade, que lhe não consentiu jamais matricular-se em alguma, quase desde os seus princípios fizeram dele um escritor à parte, que tendo atravessado vários momentos e correntes literários, a nenhuma realmente aderiu senão mui parcialmente, guardando sempre a sua isenção. A visão de Veríssimo (1916), hoje tida como ortodoxa, nos é necessária para pensar, principalmente, o romantismo de Machado de Assis. Conforme o estudioso, apesar de diversos elementos contrários à tradição, conformam a primeira fase estética de Machado os romances Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878), ao passo que os da segunda seriam Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). Nessa perspectiva, a primeira fase seguiria, em parte, os preceitos românticos, ao passo que a segunda constituiria um Realismo heterodoxo, particular de Machado de Assis. Sobre a contística machadiana, Contos fluminenses (1872) e Histórias da meia noite (1973) integram a primeira fase, ao passo que Ocidentais (1882), Histórias sem Data (1884), Várias Histórias (1896), Páginas Recolhidas (1899) e Relíquias da Casa Velha (1906) fazem parte da segunda. Acerca da poesia de estreia de Machado de Assis, os livros Crisálidas (1864) e Falenas (1870) são exemplares do idealismo e do sentimentalismo românticos, mas não assumem o caráter tropical e indigenista do romantismo brasileiro. Embora cada vez mais afastado do convencionalismo da escola romântica em sua segunda fase, Machado de Assis adentra em uma produção mais madura e constrói suas principais obras. Alguns críticos chamam essa fase de realista, entretanto, conforme salienta Achcar (1999), distintamente dos realistas, muito dependentes de um certo esquematismo determinista, Machado de Assis não procurava causas muito explícitas ou claras para a explicação das personagens e situações. Além disso, em sua crítica literária, Machado criticava algumas das prerrogativas realistas e naturalistas, como o determinismo e o cientificismo, o que faz sua obra não ser de todo contrarromântica, nem perfeitamente realista. A exemplo de como Machado relaciona-se com o movimento realista, podemos mencionar a obra Memórias póstumas de Brás Cubas, uma das mais aclamadas pela crítica. Nela, há indícios de que o autor ironiza a estética do Realismo, engajada em apreender da forma mais consistente possível a reali- 13O Realismo e o Naturalismo brasileiros dade, ao caracterizar o narrador-peronsagem do romance como um defunto (logo, um ser não-real, fantástico). Outro ponto que pode ser levantado é o da sua crítica, geralmente implícita, à burguesia, à organização social brasileira, como um todo, e ao sistema escravagista, distante da crítica explícita feita pelo Realismo a essas questões. Ainda em Memórias póstumas de Brás Cubas, nas margens do texto, o narrador relembra sua infância de sinhozinho e apresenta a personagem Prudêncio: Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e verda- deiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher dodoce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — “ai, nhonhô!” — ao que eu retorquia: — “Cala a boca, besta!” (ASSIS, 2018, p. 10.) Nesse trecho, encontra-se uma descrição dos costumes da burguesia da época, entendida como crítica, por alguns, e como postura “pacifista”, uma vez que o negro não ocupa uma posição central na narrativa ou de protagonista. De todo modo, o papel secundário do negro nas obras de Machado de Assis pode ser entendido, também, como uma astuta crítica à organização social de seu tempo, em que o negro é uma eminência parda. Mais adiante, Prudêncio é alforriado pelo pai de Brás Cubas e compra um escravo: Interrompeu mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas pala- vras: — “Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova. — Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado! — Meu senhor! gemia o outro. — Cala a boca, besta! replicava o vergalho. Parei, olhei... justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? O Realismo e o Naturalismo brasileiros14 Nada menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele. — É, sim nhonhô. — Fez-te alguma coisa? — É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber. (ASSIS, 2018, p. 53.) É aí que podemos entender de modo mais complexo a crítica feita por Machado de Assis: as ações de Prudêncio reproduzem o sistema que antes lhe colocava em posição de subalterno, ações essas movidas pelo anseio de pagar nas costas de seus escravos as pancadas que antes havia recebido. São esses, entre outros elementos, que situam a obra de Machado como um Everest da literatura universal, complexa, ligada a distintos movimentos literários e, ao mesmo tempo, a nenhum. Críticos dirão que Machado de Assis não é romântico, tampouco realista, mas sim um escritor à frente de seu tempo e de estilo único. 7 GRAUS. Aluísio de Azevedo. c2018. Disponível em: <https://www.ebiografia.com/ aluisio_azevedo/>. Acesso em: 14 dez. 2018. ACHCAR, F. Introdução a Machado de Assis. In: ASSIS, M. Contos. São Paulo: Editora Sol, 1999. ARISTÓTELES. Poética. Tradução e notas de Ana Maria Valente. Lisboa: Calouste Gul- benkian, 2004. ASSIS, M. Memórias Póstuma de Brás Cubas. [2018]. ASSIS, M. Pai contra mãe. 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