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SÉRGIO VALLADÃO FERRAZ CEGUEIRA DELIBERADA À SABRINA, amor da minha vida; E ao nosso filho JORGINHO, que já ressignifica o sentido de nossas vidas. AGRADECIMENTOS Mesmo correndo o sério risco de deixar de mencionar inúmeras pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram para o desenvolvimento deste trabalho, gostaria de expressar meu profundo agradecimento a professores, amigos e familiares cujo aporte e presença certamente se refletiram nessa obra e me foram muito caros durante a sua elaboração. Agradeço à minha esposa, Sabrina, por todo o seu amor e carinho, e pelo seu apoio em todas as minhas empreitadas, inclusive nesse doutorado. Agradeço também à minha mãe, Ana Maria, incentivadora constante dos meus estudos desde sempre. Agradeço ao meu pai, Jorge, exemplo eterno, in memoriam. E ao meu irmão, Pedro, pelo companheirismo. Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo César Busato, pela orientação acadêmica, pelo privilégio de compartilhar a sua paixão pelo direito penal e, sobretudo, pela amizade. Ao Prof. Dr. Luís Greco, por ter me acolhido generosamente no Programa de Pós-Graduação da Universidade de Augsburg e pelas relevantes observações durante a banca de qualificação. Aos professores integrantes da minha banca de qualificação, Prof. Dr. Jacson Zilio e Profª Drª Heloísa Estellita, pelas inestimáveis contribuições para o desenvolvimento da tese. Agradeço aos professores de cujas aulas tive o prazer de participar durante o curso, Prof. Dr. Clèmerson Merlin Clève, Prof. Dr. Celso Ludwig, Prof. Dr. Luís Fernando Lopes Pereira, Prof. Dr. Fabrício Tomio, Prof. Dr. Abili de Lima, Prof. Dr. Sérgio Staut Jr. Agradeço também ao amigo e colega Procurador da República, Dr. Adriano Barros Fernandes, não apenas pelo convívio profissional, mas também por ter me substituído durante o período em que desenvolvi a pesquisa na Alemanha. Endereço meus agradecimentos também ao Subprocurador-Geral da República, Dr. Mário Bonsaglia, relator do processo que autorizou minha pesquisa na Alemanha, extensivo a todos os membros do Conselho Superior do Ministério Público Federal, pelo precioso incentivo ao aperfeiçoamento acadêmico. Agradeço, ainda, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, por ter concedido uma bolsa de doutorado sanduíche, por meio do Programa PROBRAL, a qual contribuiu para o desenvolvimento da pesquisa na Alemanha. Dedico um agradecimento especial à Profª Drª Johanna Rinceanu, do Max Planck Institut für ausländisches und internationales Strafrecht, em Freiburg, pela sua calorosa acolhida naquele instituto, e pela ajuda nos momentos difíceis. Por fim, agradeço a todos os professores, diretores e servidores do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, por toda sua dedicação e profissionalismo, que fazem a reconhecida qualidade do programa. Nada é mais assustador do que a ignorância em ação. Es ist nichts schrecklicher als eine tätige Unwissenheit. JOHANN W. VON GOETHE SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 17 CAPÍTULO 1 – A WILLFUL BLINDNESS DOCTRINE NO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA ........................................................................... 21 1. PRIMEIRAS LINHAS SOBRE A WILLFUL BLINDNESS NA COMMON LAW ........................................................................................................................................ 23 2. O PRIMEIRO CASO: REGINA V. SLEEP – REINO UNIDO, 1861 .................. 32 3. A SEGUNDA GERAÇÃO DA WILLFUL BLINDNESS: OS CASOS DE CONIVÊNCIA ................................................................................................................ 40 4. A WILLFUL BLINDNESS CHEGA AOS EUA – SPURR V. UNITED STATES (1899) – A TERCEIRA GERAÇÃO............................................................................... 53 4.1. Os primeiros casos precursores nos Estados Unidos da América ........................ 54 4.2. O novo paradigma: Spurr v. United States, 1899................................................. 59 4.3. A introdução do Model Penal Code nos EUA e excurso sobre as modalidades de imputação subjetiva no sistema estadunidense ............................................................... 73 5. USA V. JEWELL (1976) – A “GUERRA CONTRA AS DROGAS” E A AMPLIAÇÃO QUANTITATIVA E TEMÁTICA – A QUARTA GERAÇÃO DA WILLFUL BLINDNESS ................................................................................................ 107 5.1. Leary v. United States (1969) e Turner v. United States (1970) ........................ 108 5.2. United States v. Jewell (1976) .............................................................................119 5.2.1. Apresentação do caso Jewell .............................................................................. 120 5.2.2. A divergência no caso Jewell ............................................................................. 130 5.3. United States v. Heredia (2007) ......................................................................... 148 6. GLOBAL-TECH, INC. V. SEB (2011) – A QUINTA GERAÇÃO? ................... 153 7. A POSIÇÃO DA WILLFUL BLINDNESS NA IMPUTAÇÃO SUBJETIVA NO DIREITO ESTADUNIDENSE ..................................................................................... 175 7.1. A willful blindness e o risco de condenação por mera recklessness .................. 181 8. CONCLUSÕES PARCIAIS SOBRE A WILLFUL BLINDNESS NO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA .................................................................. 189 CAPÍTULO 2 – A CRÍTICA À CEGUEIRA DELIBERADA ................................ 193 1. A REPROVABILIDADE DA CONDUTA DELIBERADAMENTE IGNORANTE E OS PATAMARES DE EQUIPARAÇÃO .......................................... 196 2. O PRIMEIRO PATAMAR DE EQUIPARAÇÃO: A IGNORÂNCIA ABSOLUTA DELIBERADA É TÃO REPROVÁVEL QUANTO O CONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE? ................................................................................................ 201 2.1. As fundamentações materiais anglo-saxãs ...................................................... 202 2.1.1. O parâmetro da “pessoa honesta” ................................................................... 205 2.1.2. A abordagem a partir do “dever de conhecer” ................................................ 206 2.1.3. A abordagem segundo a suposição contrafactual hipotética de presença do conhecimento ................................................................................................................ 208 2.1.3.1. A proposta de Luban: os avestruzes e a raposa ............................................... 208 2.1.3.2. A crítica à proposta de Luban ......................................................................... 214 2.1.3.3. Conclusões parciais ......................................................................................... 231 2.2. As fundamentações internas à teoria do delito ................................................ 233 2.2.1. Tatsachenblindheit: a cegueira perante os fatos de Jakobs ............................. 233 2.2.1.1. A cegueira ante os fatos como imprudência dirigida ...................................... 234 2.2.1.2. Crítica à cegueira ante os fatos ....................................................................... 242 2.2.1.3. A imprudência dirigida como dolo em sentido material em Jakobs ............... 260 2.2.1.4. Excurso: o elemento cognitivo é indispensável para qualquer teoria sobre o dolo ...............................................................................................................................261 2.2.1.5. Conclusões parciais ......................................................................................... 262 2.2.2. A ignorância deliberada em sentido estrito de Ragués i Vallès ....................... 265 2.2.2.1. A proposta de Ragués i Vallès ......................................................................... 265 2.2.2.2. Crítica aos critérios de ignorância deliberada propostos por Ragués i Vallès 273 2.2.2.3. Da inadequação da ignorância deliberada em sentido estrito ......................... 273 2.2.2.4. Crítica ao conteúdo comunicativo-expressivo como fundamento da maior reprovabilidade do dolo ................................................................................................ 283 2.2.2.5. Crítica à relevância dos motivos do agente para a imputação subjetiva ......... 285 2.2.2.6. Conclusões parciais ......................................................................................... 289 3. O SEGUNDO PATAMAR DE EQUIPARAÇÃO: A IGNORÂNCIA RELATIVA DELIBERADA É TÃO REPROVÁVEL QUANTO O CONHECIMENTO PRATICAMENTE CERTO? ........................................................................................ 291 3.1. Conclusões parciais ......................................................................................... 302 CAPÍTULO 3 – O PAPEL DA CEGUEIRA DELIBERADA NA TEORIA DO DELITO ....................................................................................................................... 304 1. A CONCEPÇÃO SIGNIFICATIVA DE AÇÃO ............................................. 312 1.1. O giro filosófico linguístico-pragmático ......................................................... 314 1.2. A concepção cartesiana de mente e sua crítica (o mito do “Fantasma na Máquina”) ..................................................................................................................... 318 1.3. As teorias da identidade: a versão materialista da mente como substância .... 326 1.4. A ação humana como significado intersubjetivo contextual e as bases da filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein .......................................................... 331 1.5. A ação significativa como teoria jurídico-penal da ação ................................ 340 1.6. Brevíssima visão geral sobre o dolo conforme a concepção significativa da ação ............................................................................................................................... 348 1.7. O elemento cognitivo do dolo conforme a concepção significativa da ação .. 352 2. A CEGUEIRA DELIBERADA COMO INDICADOR INDISPENSÁVEL AO PROCEDIMENTO DE IMPUTAÇÃO SUBJETIVA ................................................... 362 2.1. A cegueira deliberada conforme a concepção significativa de ação ............... 366 2.2. A ressignificação do conhecimento do agente ................................................ 369 2.3. A cegueira deliberada como fator indicativo do elemento cognitivo no procedimento de imputação subjetiva...................................................................................................372 2.4. A especificidade da cegueira deliberada enquanto indicador sobre o conhecimento imputável ao agente ...................................................................................................... 374 2.5. Conclusões sobre o papel da cegueira deliberada como indicador indispensável para o procedimento de imputação subjetiva ................................................................ 379 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 381 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 391 17 INTRODUÇÃO O presente trabalho se ocupa do estudo sobre a prática de cegueira deliberada que seja relevante para o direito penal. O conhecimento ou a ignorância sobre os elementos do tipo objetivo é vital para a imputação subjetiva do delito ao autor. Frequentemente, as pessoas preferem não saber das coisas quando o conhecimento pode levá-las a adotar ações que elas prefeririam não ter adotado ou, sob outro ângulo, quando o conhecimento pode inibi-las de agir da maneira que gostariam. A busca pela ignorância pode parecer menos grave do que a desonestidade pura e simples, razão pela qual, de certa maneira, a cegueira deliberada é “a homenagem que o vício presta à virtude”.1 Essa impressão de menor gravidade, no entanto, pode ceder lugar a uma outra perspectiva diametralmente oposta. Como assevera Sereny, “Não saber, tudo bem. A ignorância é fácil. O conhecimento pode ser difícil, mas ao menos é real, é a verdade. O pior é quando você não quer saber – porque então deve ser algo muito ruim. Senão, você não teria tido tanta dificuldade em saber.” 2 A cegueira deliberada, pois, abre ensejo a concepções e construções ambivalentes sobre sua natureza e, no que interessa ao direito penal, sobre o grau de reprovação do agente que comete uma conduta sob o seu influxo. O sistema jurídico ocidental que tradicionalmente criou e desenvolveu um instituto jurídico-penal relativo à cegueira deliberada como componente da sua estrutura de imputação subjetiva foi o sistema common law, inicialmente no Reino Unido e, 1 A expressão é de Luban, que afirma o seguinte: “Uma pessoa desonesta simplesmente procura conhecer a verdade e então mente a respeito. Evitar a verdade é um expediente para evitar mentiras. É um estratagema para anjos manchados como você e eu, não para canalhas impenitentes. É a homenagem que o vício presta à virtude.” Tradução livre. No original: “A dishonest person simply learns the truth and then lies about it. Evading truth is an expedient for avoiding lies. It’s a stratagem for tarnished angels like you and me, not for unrepentant scoundrels. It’s the homage that vice pays to virtue.” LUBAN, David, Contrived ignorance, 87 Geo. L. J. 957 1998-1999, p. 959. 2 Tradução livre. No original: “Not knowing, that’s fine. Ignorance is easy. Knowing can be hard but at least it is real, it is the truth. The worst is when you don’t want to know – because then it must be something very bad. Otherwise you wouldn’t have so much difficulty knowing.” HEFFERNAN, Margaret, Willful blindness: why we ignore the obvious at our peril, New York: Walker & Company, 2011, p. 42. Essa frase foi dita por Gitta Sereny em uma entrevista pessoal e gentilmente concedida a Margareth Heffernan em 16 de novembro de 2009, e se refere à alegação feita por Albert Speer, o arquiteto-chefe de Hitler que se tornou uma das pessoas mais importantes do III Reich, durante o julgamento de Nuremberg, no sentido de que ele não sabia das atrocidades relativas ao “Holocausto”, porque ele teria se cegado deliberadamente a seu respeito. Sereny é autora do livro Albert Speer: His battle with truth (Vintage, 1995). 18 posteriormente, em outros ordenamentos que compartilham esse sistema, com destaque, pela sua importância e influência, no direito dos Estados Unidos da América. Os países de tradição civil law em geral, e o Brasil em especial, ignoraram longamente a cegueira deliberada enquanto problema penal específico. Apenas recentemente a jurisprudência de alguns desses países, assim como a do Brasil, começou a aplicar com pouca reflexão algumas versões pseudoimportadas da cegueira deliberada estadunidense.3 No Brasil, essa importação tem sido feita sem que tenha havido qualquer alteração legislativa para a sua introdução no ordenamento pátrio. O objetivo do presente trabalho é investigar qual o papel da cegueira deliberada no sistema de imputação subjetiva penal brasileiro. Para atingir o seu objetivo, a investigação a que seprocede é composta de três partes, correspondentes aos seus três capítulos. O primeiro capítulo aborda a chamada “willful blindness doctrine” no direito dos Estados Unidos da América, que é o conjunto de práticas jurisprudenciais sobre cegueira deliberada que assumem um caráter de direito vigente em função de sua aplicação reiterada e autorizada, formando um conjunto de regras que sintetizam essa jurisprudência. 3 É o caso, entre outros, da Espanha, onde o Tribunal Supremo invoca a cegueira deliberada desde 2000 (a primeira decisão da Sala Segunda que menciona a cegueira deliberada é a Sentencia de 10 de janeiro de 2000), a respeito, ver RAGUÉS i VALLÈS, Ramon, La ignorancia deliberada en derecho penal, Atelier, Barcelona: 2007, pp. 22 e ss.; e do Brasil, onde sua aplicação é ainda mais recente, destacando-se como marcos o caso “Assalto ao Banco Central” em Fortaleza (Ação Penal nº 2005.81.00.014586-0), cuja sentença de primeira instância é de 28 de julho de 2007, o voto da Ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Penal nº 470 (caso “Mensalão”), e algumas decisões em ações no âmbito da “Operação Lava-Jato” (por exemplo, as Ações Penais nº 5047229-77.2014.4.04.7000 e 5007326- 98.2015.4.04.7000). O objetivo do presente trabalho não é fazer a crítica à jurisprudência brasileira. Para a crítica à jurisprudência brasileira sobre cegueira deliberada, ver LUCCHESI, Guilherme Brenner, A punição da culpa a título de dolo: o problema da chamada “cegueira deliberada”, tese doutoral, disponível em http://www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/49523/R%20-%20T%20-%20GUILHERME%20 BRENNER%20LUCCHESI.pdf?sequence=1&isAllowed=y, consultado em 30 de novembro de 2017; SILVEIRA, Renato de Mello Jorge, A aplicação da teoria da cegueira deliberada nos julgamentos da Operação Lava Jato, Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 122, agosto 2016; GEHR, Amanda, A aplicação da teoria da cegueira deliberada no direito penal brasileiro, monografia, visualizada em 07/11/2017 em http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/31107/AMANDA%20GEHR.pdf?sequence=1&isAllow ed=y; LAUFER, Christian; DA SILVA, Robson A. Galvão, A teoria da cegueira deliberada e o direito penal brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, novembro 2009; MAGALHÃES, Vlamir Costa, Breves notas sobre lavagem de dinheiro: cegueira deliberada e honorários maculados, Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 17, nº 64, janeiro a abril 2014, pp. 164-186. http://www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/49523/R%20-%20T%20-%20GUILHERME%20BRENNER%20LUCCHESI.pdf?sequence=1&isAllowed=y http://www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/49523/R%20-%20T%20-%20GUILHERME%20BRENNER%20LUCCHESI.pdf?sequence=1&isAllowed=y http://www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/49523/R%20-%20T%20-%20GUILHERME%20BRENNER%20LUCCHESI.pdf?sequence=1&isAllowed=y http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/31107/AMANDA%20GEHR.pdf?sequence=1&isAllowed=y http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/31107/AMANDA%20GEHR.pdf?sequence=1&isAllowed=y 19 Procede-se a um estudo analítico da cegueira deliberada desde seu surgimento na tradição da common law no Reino Unido, chegando-se às várias etapas de seu desenvolvimento nos Estados Unidos da América, até a sua consolidação contemporânea. Objetiva-se não apenas compreender o que é a cegueira deliberada em sua estrutura analítica, em suas várias versões, mas também fazer o esforço necessário de direito comparado para que a figura de imputação anglo-saxã seja inteligível para o direito brasileiro. O segundo capítulo consiste em uma profunda crítica à cegueira deliberada. A partir das estruturas vistas no capítulo anterior, pesquisam-se os vários fundamentos materiais que buscam justificar a criação da cegueira deliberada enquanto figura de imputação subjetiva. São investigados os fundamentos auridos diretamente na experiência anglo-saxã, assim como aqueles gestados no ambiente civil law, seja já sob o influxo da doutrina estadunidense (as propostas de Ragués i Vallès), seja aqueles desenvolvidos inteiramente a partir da referência da teoria do delito (a cegueira ante os fatos de Jakobs). O objetivo é analisar criticamente um conjunto abrangente e representativo dos argumentos em favor da cegueira deliberada e verificar sua consistência teórica para a construção de uma figura de cegueira deliberada na teoria do delito conforme ao direito brasileiro. Além dessa perspectiva, verifica-se também se a cegueira deliberada nos moldes estadunidenses tem algum papel ou capacidade de rendimento no direito brasileiro. O terceiro capítulo visa a construir uma concepção de cegueira deliberada que seja consentânea com os limites estabelecidos pelos princípios do direito penal brasileiro. Verifica-se que a cegueira deliberada constitui um problema que merece a atenção do direito penal, ainda que sob uma feição distinta daquela cunhada no direito anglo-saxão. A cegueira deliberada não é algo irrelevante que dispense qualquer comentário dogmático. Para a tarefa de se compreender o papel da cegueira deliberada na teoria do delito, utiliza- se o paradigma da concepção significativa de ação, elaborado a partir da filosofia da linguagem e do giro linguístico-pragmático a que procedeu na compreensão da dogmática penal. A escolha do paradigma da ação significativa se justifica na medida em que é um modelo compreensivo que pretende ser uma teoria da praxis, incorporando as dimensões linguística e argumentativa do direito de maneira metodicamente adequada ao seu funcionamento. Acredita-se que a concepção significativa da ação possa, assim, representar um aperfeiçoamento epistemológico consentâneo com as exigências de evolução de um direito penal moderno, promotor do respeito aos direitos e garantias 20 fundamentais da pessoa humana. É a partir da perspectiva linguística que se compreende adequadamente a estrutura da cegueira deliberada no direito brasileiro. 21 CAPÍTULO 1 – A WILLFUL BLINDNESS DOCTRINE NO DIREITO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA É bastante provável que ao menos alguns dos problemas fundamentais relacionados às situações que genericamente podem ser designadas de “cegueira deliberada” tenham aflorado e sido objeto de reflexão e atuação dos operadores jurídicos no campo penal ao longo dos tempos, anteriormente aos marcos históricos que serão abordados aqui. No entanto, a análise doutrinária moderna que tem impacto na discussão jurídica atual a respeito do assunto, utilizando a denominação cegueira deliberada, deriva diretamente da experiência do direito anglo-saxão, remontando inicialmente a meados do século XIX no Reino Unido e, posteriormente, a partir do final do século XIX, desenvolvendo-se com especial repercussão nos Estados Unidos da América. Mais do que a mera utilização nominal da expressão “cegueira deliberada”, e várias outras locuções com sentidos semelhantes, foi no âmbito dessa tradição anglo-saxã que o problema da ignorância autoprovocada pelo agente ganhou um tratamento jurídico-penal específico. Na tradição do direito brasileiro, a cegueira deliberada é enfocada como um mero subproblema inerente à percepção do conhecimento ou do erro, inerentes ao dolo; ou melhor, a deliberação da cegueira não é considerada um problema específico, de maneira que a questão se cinge ao conhecimento ou desconhecimento, este visto como “erro”. O presente trabalho desenvolve hipóteses relacionadas ao fenômeno da ignorância deliberada, buscando determinar dogmaticamente sua capacidade de rendimento no direito penal brasileiro, verificando se existe e qual seria o seu papel na teoria do delito. Opta-se por iniciar a discussão a partir da experiência anglo-saxã, que, ao contrário da prática brasileira e dos países europeus continentais,discute especificamente a relevância da cegueira deliberada (vista como um desconhecimento intencional) para a imputação subjetiva desde o século XIX e de maneira explícita. Diferentemente, a teoria do delito aborda os problemas ligados à ignorância apenas sob a vertente do erro e da significação desse erro para o dolo, não havendo uma destacada preocupação com a especifica situação em que a ignorância do agente possa ser considerada produzida 22 intencionalmente.4 Apenas recentemente a discussão sobre ignorância dolosa irrompe em alguns países de civil law, em grande medida em decorrência do aparecimento de decisões judiciais que expressamente dizem aplicar a doutrina da cegueira deliberada de matriz anglo-saxã,5 mas também em função da forte influência que o direito estadunidense exerce sobre esses países. O presente trabalho focaliza nesta parte a cegueira deliberada no direito dos Estados Unidos da América em função de algumas razões. Entre elas, o histórico mais desenvolvido da discussão sobre o instituto na common law; o relativo movimento da praxis jurídica no sentido da aproximação dos dois grandes sistemas jurídicos ocidentais, inclusive por meio da importação mútua de institutos;6 a crescente influência do direito estadunidense sobre o sistema civil law em geral, e sobre o direito penal em particular, especialmente após a queda do Muro de Berlim, sobretudo no âmbito da expansão do direito penal na atividade econômica e na proteção de bens jurídicos difusos; e, ainda, a (suposta) importação da cegueira deliberada pela prática de tribunais no ambiente civil law. A análise a ser empreendida tem em mente investigar os problemas político- criminais que ensejaram o desenvolvimento da cegueira deliberada e possui o objetivo, também, de examinar a estrutura dessa categoria de imputação subjetiva, deslindar os seus principais problemas e as respectivas soluções encontradas, e, talvez ainda mais relevante, o trabalho procura identificar as fundamentações materiais que embasam a cegueira deliberada. Uma vez que seja esclarecida a fundamentação material que justifica a 4 Discussões nesse sentido costumam ser marginais na doutrina e não correspondem exatamente ao conjunto de problemas que são expressos por meio da willful blindness na common law. Por exemplo, existe uma discussão sobre o acerto dogmático da opção legislativa de conferir caráter exclusivamente representacional da distinção entre dolo e imprudência, de maneira que o erro de tipo sempre implica a ausência de dolo independentemente de qualquer consideração sobre a maneira como esse erro de tipo aconteceu ou a razão pela qual houve o erro de tipo. Nesse sentido a discussão propiciada, entre outros, por Jakobs (JAKOBS, Günther, Gleichgültigkeit als dolus indirectus, ZStW 114, 2002, Heft 3, entre vários outros escritos), Roxin (ROXIN, Claus, Strafrecht Allgemeiner Teil Band I: Grundlagen, Der Aufbau der Verbrechenslehre, 4. Auflage, München: C.H.Beck, 2006, §21, 6-7) e Lesch (LESCH, Dolus directus, indirectus und eventualis, JA, 1997, p. 802 e ss.). 5 Ver NR nº 3. 6 A respeito do movimento de aproximação entre os sistemas de civil law e common law, BUSATO, Paulo César, A política jurídica como expressão da aproximação entre o common law e o civil law, in BUSATO, Paulo César, Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, pp. 3-42. 23 aplicação da cegueira deliberada, será possível verificar se essa fundamentação é de alguma maneira aproveitável no direito brasileiro e na teoria do delito ou se, ao contrário, existem razões materiais para proceder-se à crítica da cegueira deliberada mesmo no contexto da common law. .1. PRIMEIRAS LINHAS SOBRE A WILLFUL BLINDNESS NA COMMON LAW O especial interesse jurídico-penal sobre a ignorância intencional como elemento constitutivo da caracterização do delito é documentado a partir do surgimento e do desenvolvimento no âmbito da common law de diferentes padrões de decisão jurisdicional sobre critérios de imputação subjetiva, alguns substancialmente distintos de outros, que podem ser genericamente designados de willful blindness – expressão que costuma ser traduzida como “cegueira deliberada” e cuja tradução mais fiel talvez seja “cegueira intencional”. A utilização de apenas essa expressão para designar a aproximação ao problema7 – cegueira deliberada – é simplificadora e redutora da complexidade do tema e só pode ser adotada como recurso didático para facilitar a exposição e o “recorte” para a pesquisa histórica. Há bastante controvérsia a respeito do que seria a willful blindness e de como deveria o direito penal incorporar suas premissas de maneira adequada e respeitosa aos respectivos ordenamentos jurídicos, aos direitos fundamentais das pessoas, às exigências de justiça, às necessidades de efetividade da persecução penal no interesse da sociedade, à correspondência entre a correta imputação subjetiva e a correlata reprovação do fato ao autor, entre outras dificuldades. E essa discussão se refere já ao mundo anglo-saxão: mesmo no âmbito dos ordenamentos jurídicos que adotam o sistema 7 Poder-se-ia referir ao “instituto” cegueira deliberada, mas a existência e a aplicação, pelos Judiciários e pelas doutrinas, de diversos conceitos distintos com nuances e matizações várias recomenda que se reserve a expressão “instituto” apenas para as formulações que serão propostas como conclusão do estudo ou para objetos especificamente individualizados de análise. Na presente parte deste trabalho, a ênfase recai na pesquisa histórica em conjunto com a análise crítica e analítica das decisões jurisdicionais (principalmente) e da doutrina (secundariamente) que envolvem as questões relativas à colocação dolosa do autor em estado de ignorância como problema específico da imputação penal subjetiva, razão pela qual preferir-se a expressão “aproximação ao problema”. 24 common law,8 e ainda que estes tenham incorporado códigos penais formalizados, existe um acentuado grau de divergência na aplicação jurisprudencial da cegueira deliberada, mesmo que existam alguns leading cases que procuram conferir um norte seguro a essa categoria de imputação. A controvérsia é ainda maior no âmbito da doutrina sobre o tema, que é em larga medida crítica da criação e da aplicação da willful blindness. Ao longo da sua trajetória evolutiva, as diversas manifestações da willful blindness proliferaram de maneira um tanto caótica e casuística, imersas em um ambiente jurídico-cultural em que a própria imputação subjetiva penal como um todo – concebida e aplicada como mens rea9 – poderia ser adequadamente caracterizada como assistemática e de difícil compreensão. O aspecto subjetivo da imputação penal compreende um conjunto de questões fundamentais que configuram um problema universalmente presente 8 Não se faz aqui a distinção, que é feita comumente nos países que adotam a common law, entre as fontes do direito (a) common law (propriamente dita) e (b) o direito estatutário vigente (p.ex., a existência de um código penal publicado oficialmente e vigente). Considera-se aqui como sistema “common law” o que provém dessa tradição, ainda que seja incorporado o direito estatutário como fonte principal do direito penal (o que levaria, para ser mais preciso, a especificar os elementos inerentes a um e a outro e a considerar a evolução histórica do sistema de common law com a incorporação de elementos estatutários e a progressiva “aproximação” entre os dois sistemas ocidentais dominantes). 9 Expressão latina que sintetiza as ideias de guilty mind (mente culpada) e evil intent (má intenção), as quais representam os pilares da imputação subjetiva na common law tradicional. Oxmanensina que “O latinismo ‘mens rea’ aparece pela primeira vez no princípio do século XII nas leis inglesas de Henry I (Leges Henrici Primi c. 5 §28), naquela parte em que regulavam o perjúrio apoiando-se em uma referência ao sermão 180.2.2 de Agostinho (intitulado ‘evitar o juramento’), que, a propósito desse delito, indicava que ‘é de grande importância a intenção com que se diz algo. Apenas uma mente culpada faz culpável a língua’. Essa citação aparece com posterioridade como fundamento da máxima: ‘actus non facit reum, nisi mens fit rea’; a saber, ‘a realização de um fato não faz uma pessoa culpada a menos que a mente também o seja’, locução latina que figura pela primeira vez na Terceira Parte das Instituições de Sir Edward Coke – como exigência específica para o crime de alta traição – cuja obra genérica publicada em 1641 constitui o ato fundamental do Common Law e, também, nesta parte é a primeira recompilação epistemológica de direito penal.” Tradução livre. No original: “El latinismo ‘mens rea’ aparece por primera vez a principios del siglo XII en las leyes inglesas de Henry I (Leges Henrici Primi c. 5 §28), en aquella parte en que regulaban el perjurio apoyándose en una referencia al sermón 180.2.2 de Agustín (titulado: ‘evitar el juramento’), quien a propósito de este delito indicaba que ‘es de gran importancia la intención con que se dice algo. Solo una mente culpable hace culpable a la lengua’. Esta cita aparece con posterioridad, como fundamento de la máxima: ‘actus non facit reum, nisi mens fit rea’; a saber, ‘la realización de un hecho no hace a una persona culpable a menos que la mente también lo sea’, locución latina que figura por primera vez en la Tercera Parte de las Instituciones de Sir Edward Coke – como exigencia específica para el crimen de alta traición – cuya obra genérica publicada en 1641, constituye el acta fundacional del Common Law y, también, en esta parte es la primera recopilación epistemológica de Derecho Penal.” OXMAN VILCHES, Nicolás, Sistemas de imputación subjetiva en derecho penal: el modelo angloamericano, Valencia: Tirant lo Blanch, 2016, p. 53. 25 em todos os ordenamentos jurídicos penais modernos. 10 Diversos sistemas jurídicos desenvolvem, no entanto, categorias, funcionalidades e linguagem distintos que operacionalizam as questões relacionadas à imputação subjetiva de maneira razoavelmente diferente, a despeito de suas semelhanças e pontos de conexão. Dessa diversidade exsurge a necessidade de se realizar alguma espécie de tradução linguística e dogmática que verte não apenas o idioma mas sobretudo a dogmática jurídica de um sistema para outro para que aquele possa ser adequadamente compreendido pelos falantes que integram um sistema alienígena. No ambiente da common law não se alude expressamente a um conceito de imputação subjetiva.11 Os aspectos subjetivos da imputação são compreendidos como inerentes ao (e incorporadas ao) sistema processual de alegações e vereditos,12 sendo mencionados no plano substantivo por meio de termos como guilty mind ou moral blame, entre outros. Apesar disso, como assinala Bernal del Castillo, “Embora haja muitas diferenças que se mantêm entre os diversos ordenamentos penais nacionais [entre os sistemas anglo-saxão e o da teoria do delito], não falta em nenhum deles a exigência de um elemento de reprovação subjetiva dentro do conceito de delito, chame-se mens rea, elemento subjetivo do delito ou culpabilidade.”13 Excetuam-se apenas os delitos em que 10 Fletcher possui opinião neste mesmo sentido, FLETCHER, George P., Gramática del derecho penal, Trad. Muñoz Conde, Buenos Aires: Hammurabi, 2008, pp. 57 e 71. 11 Quem o afirma é Oxman: “Ainda que na Common Law não se refira expressamente a um conceito de imputação subjetiva, na medida em que se entende que é uma noção incorporada ao sistema processual de alegações e vereditos, a doutrina a menciona no plano substantivo com termos que poderiam ser qualificados como neutros, preferindo usar a expressão ‘culpabilidade’”. Tradução livre. No original: “Aunque en el Common Law no se alude expresamente a un concepto de imputación subjetiva, en la medida que se entiende que es una noción incorporada al sistema procesal de alegaciones y veredictos, la doctrina la menciona en el plano sustantivo con términos que podrían ser calificados como neutros, prefiriendo utilizar la expresión ‘culpabilidad’”. OXMAN VILCHES, Nicolás, Sistemas…, p. 17. Essa perspectiva é consonante à concepção que habitualmente se tem a respeito no Brasil e nos países que adotam a teoria do delito, no sentido de que o direito penal anglo-saxão não possui uma teoria sistematizada do delito propriamente dita. 12 OXMAN VILCHES, Idem, p. 17. 13 Tradução livre. No original: “Por muchas diferencias que se mantengan en los diversos ordenamientos penales nacionales sobre la construcción jurídica del delito, no falta en ninguno de ellos la exigencia de un elemento de reproche subjetivo dentro del concepto del delito, llámese mens rea, elemento subjetivo del delito o culpabilidad.” BERNAL DEL CASTILLO, Jesús, Derecho penal comparado, La definición de delito en los sistemas anglosaxón y continental, Barcelona: Ariel-Libros Jurídicos, 2011, p. 90. 26 há a strict liability, que não apresentam elementos subjetivos, os quais adquirem uma importância marginal para o presente estudo. Na tradição da common law, antes do advento das codificações penais14 nos ambientes jurídicos 15 anglo-saxãos que optaram por finalmente criá-las por meio de atividade legislativa, não existia uma parte geral que sistematizasse o direito penal, assim como não existiam nem mesmo conceitos gerais relativos aos aspectos subjetivos da imputação. As situações que a teoria do delito caracteriza comumente como “dolo” e “imprudência” são, na common law tradicional, referenciadas por um cipoal de várias dúzias de diferentes “estados mentais”16, o que dificulta sobremaneira o seu entendimento e a sua aplicação coerente. Esse emaranhado era caracterizado por ser “obscurecido por uma fina superfície composta de uma terminologia geral denotando ilicitude (wrongfulness)” 17 e composta por um “palavreado arcaico sugerindo maldade e 14 Os autores anglo-saxões costumam a se referir, em geral, a common law offences para designar os delitos criados jurisprudencialmente segundo a tradição da common law, sem lei escrita, de maneira a distingui-los das statutory offences, delitos criados por meio de textos legislativos formalizados. Diante dessa maneira de raciocinar, a linguagem usualmente empregada pelos autores continentais resta ambígua: normalmente a referência à common law indica (a) que o sistema jurídico sob foco é um sistema jurídico caracterizado pela common law (sem a distinção acima procedida) ou, melhor dizendo, é um sistema que provém de uma tradição de common law; porém, (b) utilizando os termos de maneira mais precisa – e mais consentânea com a sua utilização nos países da common law –, pode-se reservar a expressão common law para o âmbito jurídico criado jurisprudencialmente segundo os usos e costumes característicos da common law, enquanto o direito penal material – geral ou especial – criado por um processo legislativo formalizado e plasmado em uma lei escrita seria designado de statutory law, ainda que componente de um sistema jurídico common law (esta, na acepção “a” acima). 15 Utiliza-se aqui a expressão “ambiente jurídico” para caracterizar a estrutura estatal (ou unidade federativa, nas federações) com competência legislativa para legislar em matéria de normas gerais de direito penal. 16 Utiliza-se a expressão “estado mental” aqui apenas por simplificação e seguindo a expressão comumente utilizada pelos autores anglo-saxões (mental states). Por “estado mental” não se queradotar uma posição cartesiana segundo a qual existiria uma distinção entre mente e corpo, como se o dolo (e/ou a intenção) fosse um fenômeno da natureza com existência real, um processo incorpóreo no mundo ontológico, passível de descrição pelo observador. Tal modo de ver o mundo já está ultrapassado a partir da viragem linguístico- pragmática efetuada pela filosofia da linguagem desenvolvida, em especial, pelo segundo Wittgenstein. Sobre o assunto, ver o Capítulo 3, item 1, A concepção significativa de ação, infra. Vale destacar a afirmação de Vives Antón: “Não existem, pois, objetos do pensar que ‘existam’ idealmente, nem na cabeça, nem em nenhuma outra parte”. VIVES ANTÓN, Tomás Salvador, Reexame do dolo, in Dolo e direito penal: modernas tendências, vários autores, BUSATO, Paulo César (Coord.), 2ª ed. – São Paulo: Atlas, 2014, p. 93. 17 Gainer ensina o seguinte: “Os dispositivos do Código [refere-se ao Código Penal Modelo] a respeito dos estados mentais culpáveis introduziram simultaneamente razão e estrutura a uma área do direito anglo- americano anteriormente amorfa. Por séculos, a abordagem dos componentes mentais do crime tinha sido um emaranhado de refutação jurídica, obscurecido por uma fina superfície composta de uma terminologia 27 perversidade”.18 Essa confusão é (ou era)19 agravada em razão de a common law ser inábil em distinguir os diferentes elementos componentes de um delito, sendo que cada elemento poderia requerer um mental state distinto para satisfazer às exigências para a condenação.20 É nesse ambiente pré-codificação e de desorganização do tratamento do aspecto subjetivo da imputação que surgiu a willful blindness, em um caso concreto no Reino Unido em 1861 (Regina v. Sleep).21 O surgimento e o desenvolvimento da ideia de willful blindness, documentados primeiramente no Reino Unido e posteriormente nos Estados Unidos da América, aconteceram em função da necessidade de solucionar os casos concretos (ou conjuntos de casos concretos) que se apresentavam – alguns deles geral denotando ilicitude. O palavreado arcaico sugerindo maldade e perversidade foi substituído pelos propositores pelos conceitos de propósito, conhecimento, recklessness [desconsideração, temeridade] e negligência, e os conceitos foram estruturados para serem aplicados separadamente a ações, a circunstâncias nas quais as ações acontecem, e a resultados.” Tradução livre. No original: “The Code’s provisions concerning culpable metal states introduced both reason and structure to a previously amorpheus area of Anglo-American law. For centuries, the approach to mental components of crimes had been a quagmire of legal refuse, obscured by a thin surface of general terminology denoting wrongfulness. The archaic verbiage suggesting evil and wickedness was replaced by the drafters with concepts of purpose, knowledge, recklessness, and negligence, and the concepts were structured to apply separately to actions, circumstances in which actions take place, and results.” GAINER, Ronald L., The culpability provisions of the Model Penal Code, 19, Rutgers Law Journal, 1988, p. 575. 18 GAINER, Ronald L., idem, p. 575. Trecho na nota anterior. 19 Na medida em que houve a progressiva codificação e/ou sistematização “modernas” do direito penal nesses ordenamentos jurídicos, houve a criação e a especificação de elementos de imputação subjetiva mais racionalizada. Por exemplo, nos estados dos Estados Unidos da América, a partir da década de sessenta do século XX, a maioria dos estados-membros adotou códigos penais, sob forte influxo da divulgação do Model Penal Code (MPC), cuja primeira edição é de 1962. O MPC prevê apenas quatro categorias de imputação subjetiva: purposely (intencional ou propositalmente), knowingly (com conhecimento), recklessly e negligently (negligente ou imprudentemente). Nenhuma tradução para o português ou para as outras línguas da Europa continental captura com o necessário grau de exatidão o conteúdo do conceito anglo-saxão de recklessness ou de recklessly. Algumas tentativas de tradução consistem em “com desconsideração” ou “temerariamente”, mas ambas são expressões equivocas que podem mais atrapalhar do que ajudar o correto entendimento da figura em seu contexto original. São expressões deveras imprecisas e o seu uso é feito não sem alguma perda ou confusão, razão pela qual prefere-se neste trabalho sempre designar essa categoria de imputação subjetiva pelo seu nome original, recklessness. A recklessness não tem correspondente exato no direto continental. Grosso modo, assemelha-se ao dolo eventual somado à culpa consciente, isto é, seu campo de incidência abrangeria em princípio os casos nos quais usualmente se imputa o dolo eventual e a culpa consciente. Mas, em verdade, a recklessness não se confunde de maneira precisa com essas duas noções, porquanto guarda diferenças dogmáticas relevantes. A conceituação dos níveis de imputação subjetiva conforme o MPC será feita mais detidamente no item 5.3 do presente capítulo, infra. 20 ROBINSON, Paul H., DUBBER, Markus Dirk, An introduction to the Model Penal Code, University of Pennsylvania, 12/03/1999, p. 12. Disponível em https://www.law.upenn.edu/fac/phrobins/intromodpencode.pdf. Acesso em 25 de fevereiro de 2017. 21 Regina v. Sleep, English Reports, v. 169, London, pp. 1301-1302, 1861. https://www.law.upenn.edu/fac/phrobins/intromodpencode.pdf 28 frutos do florescimento de novos tipos incriminadores e/ou novas “ondas” de criminalização de determinados comportamentos.22 Decisões judiciais não são o locus por excelência para o desenvolvimento sistemático de institutos jurídicos, dando lugar, ao revés, ao pragmatismo ad hoc que naturalmente as caracteriza, o que é próprio do modelo anglo-saxão da common law, baseado tradicionalmente sobretudo na criação jurisdicional do direito. Invariavelmente, os pronunciamentos jurisdicionais que aplicavam (e também os que hoje aplicam) a willful blindness eram incompletos e/ou ambíguos e/ou imprecisos ao estabelecer a imputação subjetiva para o caso, levando a que surgissem mais dúvidas e questionamentos a respeito do alcance do instituto do que certezas e segurança jurídica. Essas características de insuficiência e falta de clareza conceitual da jurisprudência, conjugadas com a forte discussão a respeito do conteúdo da willful blindness e até mesmo a sua contestação por parte da doutrina – os setores que negam a sua compatibilidade com o ordenamento jurídico respectivo, ou que lhe conferem um conteúdo limitado ao da recklessness ou ao da negligência –, perpassa toda a evolução do instituto, desde a origem em Regina v. Sleep (1861) até o mais recente caso paradigmático, Global-Tech Appliances v. SEB, julgado pela Supreme Court dos Estados Unidos da América em 2011.23 Daí a ausência de uniformidade na própria designação do fenômeno da ignorância dolosa: as decisões referem-se à ignorância intencional de variadas maneiras, e as diferentes expressões podem refletir diferenças conceituais e estruturais, mas não necessariamente, podendo ser apenas outras formas de falar sobre o mesmo objeto. Um inventário das diversas designações inclui willful (ou deliberate) shutting of the eyes (intencional – ou deliberado – fechamento dos olhos), connivance (conivência), knowledge of the second degree (conhecimento de segundo grau), constructive knowledge (conhecimento construtivo), willful ignorance (ignorância intencional), willful blindness (cegueira intencional – ou como é mais frequentemente traduzido ao português, cegueira deliberada), conscious avoidance (evitação consciente), avoidance of any endeavor to know (evitação de qualquer esforço para saber), purposeful avoidance (evitação 22 Um exemplo evidente é a utilização da willful blindness para a incriminação dotráfico de drogas nos Estados Unidos da América a partir dos anos 1970, que será visto no item 6 do presente capítulo, infra. 23 Supreme Court of the United States, Global-Tech Appliances, Inc. v. SEB S.A., 563 U.S. (2011). 29 proposital), conscious purpose to avoid learning the truth (propósito consciente de evitar saber a verdade), contrived ignorance (ignorância artificial), deliberate ignorance (ignorância deliberada), deliberately avoiding knowing (evitação de saber deliberada), deliberately choosing not to learn (deliberadamente escolher não saber), purposely abstaining from all inquiry (propositalmente se abster de qualquer investigação), studied ignorance (ignorância estudada), deliberately omitting to make further inquiries (deliberadamente omitir-se de fazer investigações adicionais).24 Como a presente parte deste trabalho objetiva contextualizar e problematizar as questões sobre a cegueira deliberada na common law, destacadamente nos Estados Unidos da América e, anteriormente, sua origem no Reino Unido, a expressão willful blindness será frequentemente empregada no original, em inglês, já que a adoção de qualquer alternativa de tradução poderia eventualmente suscitar já alguma predisposição para com a categoria de imputação, o que se busca (parcialmente) evitar com sua manutenção no original. Eventualmente serão utilizadas também outras expressões, como “cegueira deliberada” ou “ignorância deliberada”. A evitação (de o nome da categoria de imputação expressar já alguma posição) possível é apenas “parcial” na medida em que também em inglês há a miríade de opções a que alude o parágrafo anterior. A opção por willful blindness decorre mais de ser esta a expressão mais comumente utilizada do que de uma escolha que reflita algum caráter dogmático a ser ressaltado no âmbito do presente trabalho em função das suas hipóteses e conclusões – especialmente porque estas se situam preponderantemente no terreno da teoria do delito, ainda que possa ser identificada alguma contribuição para a discussão anglo-saxã, inclusive no que se refere à crítica a que se procederá. A despeito de toda a controvérsia em torno da cegueira deliberada, e não apenas sobre sua designação, mas principalmente sobre seu conteúdo, sobre a sua pertinência dogmática e a sua compatibilidade com o direito e com a justiça – discussão fortemente existente mesmo em solos em que vige um direito de tradição common law –, a Supreme Court dos Estados Unidos da América declarou, no recente e importante caso Global-Tech v. SEB (2011), que a doutrina da willful blindness é bem estabelecida no 24 As traduções são livres. As referências aqui se limitam às expressões surgidas nos países de common law, em inglês, não abrangendo as traduções e as aplicações jurisdicionais ou doutrinárias feitas nos países de civil law. 30 direito penal estadunidense.25 A decisão foi majoritária, com oito votos favoráveis à aplicação da willful blindness ao caso concreto e apenas uma dissidência (a qual nega a própria compatibilidade do instituto com o direito vigente). Por um lado, é fato que a maioria dos tribunais estadunidenses aplica em determinados casos a willful blindness. Segundo a própria Supreme Court, todas as Courts of Appeals dos Estados Unidos da América empregam-na em uma ampla gama de estatutos criminais, com a “possível exceção” da Corte do Circuito do Distrito de Columbia.26 Também no Reino Unido e em outros países da common law verifica-se sua aplicação recorrente. Por outro lado, é difícil compreender e precisar os exatos contornos do que é a willful blindness a que se refere a Supreme Court no leading case referido. Ao contrário do que leva a crer a mera leitura dessa decisão, os tribunais locais não a aplicam utilizando sempre a mesma linguagem nem a entendem de maneira uniforme no que se refere ao seu conteúdo. Essa divergência interpretativa sobre o que é essa categoria de imputação subjetiva tem como referência apenas aos Estados Unidos da América, país que exerce a maior influência a respeito de willful blindness sobre os demais ordenamentos jurídicos que de alguma maneira a adotam, ainda que sem previsão legislativa expressa. Isto é, um estudo que abrangesse os demais países de common law muito provavelmente também identificaria dúvidas e discrepâncias em grande medida similares às encontradas nos Estados Unidos da América. Pode-se afirmar que no Reino Unido, país em que surgiu originalmente a willful blindness, existe semelhante grau de polêmica sobre a sua concepção e aplicação.27 25 Conforme a decisão em Global-Tech: “A doutrina da cegueira deliberada é bem estabelecida no direito penal. Muitas leis criminais exigem a prova de que o réu agiu com conhecimento efetivo ou propositadamente, e as Cortes, aplicando a doutrina da cegueira deliberada, estabelecem que os réus não podem escapar do alcance dessas leis por meio da conduta de se escudarem deliberadamente contra provas claras sobre fatos críticos que são fortemente sugeridas pelas circunstâncias.” Tradução livre. No original: “The doctrine of willful blindness is well established in criminal law. Many criminal statutes require proof that a defendant acted knowingly or willfully, and courts applying the doctrine of willful blindness hold that defendants cannot escape the reach of these statutes by deliberately shielding themselves from clear evidence of critical facts that are strongly suggested by the circumstances.” Supreme Court of the United States, Global-Tech Appliances, Inc. v. SEB S.A., 563 U.S. (2011), p. 1 e ss., p. 10. 26 Supreme Court of the United States, Global-Tech Appliances, Inc. v. SEB S.A., 563 U.S. (2011), p. 1 e ss., p. 12. 27 Por todos, ver EDWARDS, The criminal.... 31 Por essas razões, refere-se à willful blindness aqui não como uma realidade jurídica unívoca, mas como um ponto de referência para a discussão a respeito da imputação criminal subjetiva em um conjunto de situações – desiguais entre si até mesmo no que se refere à sua estrutura ideal – em que se atribui ao agente (pelo menos) algum grau de ignorância sobre algum elemento constitutivo do tipo penal e que, pois, apresenta relevância penal conceitual; mas em que, apesar de tal ignorância, imputa-se ao autor responsabilidade penal como se não existisse qualquer ignorância (logo, como se existisse conhecimento, ou conhecimento “pleno”) ou, ao menos, como se essa ignorância tivesse um grau de importância inferior – para a atribuição de responsabilidade penal – ao que normalmente teria sem o uso da willful blindness (logo, reprovando a conduta de maneira mais intensa do que se reprovaria um autor meramente ignorante).28 Entre as inúmeras maneiras de se abordar a evolução do instituto, ao menos duas se destacam: pode-se optar por um recorte histórico-cronológico em que os casos são apresentados e analisados segundo a ordem em que aconteceram – e as problemáticas vão sendo apresentadas à medida que os casos são apresentados; ou se pode partir de alguma classificação ou análise estrutural dos diversos aspectos que já surgiram e apresentá-los segundo a ordem que pareça mais lógica ou didática, referenciando-os aos casos concretos independentemente do momento histórico em que aconteceram. Ambos os approaches possuem vantagens e desvantagens. Optar-se-á por uma análise que segue o acontecer histórico, porém, entrecortada com as considerações necessárias ao enriquecimento da discussão para fins da pesquisa que ora se realiza e, especialmente, em função da importância das diferenças entre os sistemas de common law e o sistema da teoria do delito. Entender essas diferenças pode ser crucial para a correta construção de um conceito de cegueira deliberada anglo-saxã que possa ser compreendido por um leitor afeito aodireito brasileiro e à teoria do delito, e instrumental para que se possa fazer a análise e a crítica da willful blindness. 28 Esta conceituação é mais estrutural do que conteudista propositalmente, para poder abarcar as diversas concepções formadas a respeito da willful blindness no direito estadunidense e anglo-saxão em geral. 32 .2. O PRIMEIRO CASO: REGINA V. SLEEP – REINO UNIDO, 1861 Edwards29 relata que o primeiro caso de que se tem notícia em que uma decisão judicial expressamente consignou que um grau de percepção subjetiva inferior ao conhecimento completo e efetivo era suficiente para condenar alguém por crime que exige o conhecimento efetivo de todos os elementos componentes da descrição hipotética do delito aconteceu no Reino Unido, em 1861, o caso Regina v. Sleep. É certo que a common law não trabalha com a ideia de “tipo” penal, característica dos ordenamentos continentais. Apenas a partir das codificações estaduais que se seguiram à “promulgação” do Model Penal Code (MPC) em 196230 é que uma noção um pouco mais aproximada de tipo penal foi introduzida nos Estados Unidos da América. Com a finalidade de simplificar e racionalizar o verdadeiro cipoal de common law offenses31 que existia, foi adotado um sistema que tem sido designado de element analysis. O “sistema de elementos”, semelhantemente ao tipo penal, expressa a pretensão conceitual de relevância, distinguindo analiticamente os diversos elementos componentes 29 Edwards assinala que “Até onde pode ser descoberto, o caso R. v. Sleep foi a primeira ocasião em que foi dada aprovação judicial à noção de que algum grau de conhecimento inferior ao conhecimento real seria suficiente para estabelecer a mens rea.” Tradução livre. No original: “So far as can be discovered, the case R. v. Sleep was the first occasion in which judicial approval was given to the notion that some lesser degree of knowledge would suffice to establish mens rea.” EDWARDS, John Llewlyn Jones, The criminal…, p. 298. Este artigo seminal de Edwards é referenciado por muitos outros autores como sendo a fonte de informação primária sobre qual teria sido o primeiro caso de willful blindness em todo o direito anglo-saxão. Nesse sentido, entre outros, MARCUS, Jonathan L., Model Penal Code Section 2.02(7) and willful blindness, 102 Yale L. J. 2231 1992-1993, p. 2233; CHARLON, Robin, Wilful ignorance and criminal culpability, 70 Tex. L. Rev. 1351 1991-1992, p. 1409; ROBBINS, Ira P. The ostrich instruction: deliberate ignorance as a criminal mens rea, 81 J. Crim. L. & Criminology 191, 1990-1991, p 196; ROIPHE, Rebecca, The ethics of willful blindness, The Georgetown Journal of Legal Ethics, 24, 2001, pp. 192-193; RAGUÉS i VALLÈS, Ramon, La ignorancia..., p. 65; LUCCHESI, Guilherme Brenner, A punição..., p. 117. 30 O Model Penal Code (MPC), que será mais detidamente analisado posteriormente, não é um ato legislativo formal e não integra o ordenamento jurídico estadunidense. O MPC, como seu nome sugere, é um modelo de código penal que foi elaborado pelo American Law Institute como sugestão para o aperfeiçoamento do sistema penal nos Estados Unidos da América. Fruto de um amplo estudo que se iniciou em 1951, o MPC foi pela primeira vez apresentado (usa-se a expressão “promugated”, mas sem a conotação oficial que lhe é característica) em 1962 e veio a influenciar fortemente um movimento de criação de códigos penais na maioria dos estados dos Estados Unidos da América. O MPC passou a ser o principal foco de estudo doutrinário e foi especialmente bem-sucedido em influenciar a legislação e a jurisprudência no que se refere à imputação subjetiva (mens rea). 31 “Delitos” da common law. 33 de uma hipótese delituosa, incluindo a conduta, as circunstâncias e o resultado. Além disso, como cada elemento pode demandar um nível diferente de imputação subjetiva, esta fica mais facilmente manejável em função da organização e clareza dos elementos e da criação de apenas quatro “estados mentais” para a imputação subjetiva: purposely (propositadamente), knowingly (com conhecimento), recklessly e negligently (imprudentemente).32 Porém, Regina v. Sleep precede em mais de cem anos o aparecimento do MPC, e não aconteceu nos Estados Unidos da América, mas no Reino Unido durante a “Era Vitoriana”. Mr. Sleep era um ferreiro que embarcou em um navio uma carga de parafusos de cobre, localizados dentro de um barril, alguns dos quais estavam marcados com um sinal (em forma de flecha) que indicava que constituíam propriedade do Estado.33 Vigia à época o Embezzlement of Public Stores Act – a Lei sobre Desvios de Suprimentos Públicos –, de 1697, o qual previa que era crime a malversação de bens do domínio público assim como a sua posse (possessing) indevida e exigia, para que o sujeito incorresse em tal hipótese, que agisse com conhecimento (knowingly) de que os bens possuídos eram públicos. Sleep alegou que não tinha percebido que alguns dos parafusos continham a marcação que os identifica como bens públicos, apesar de ter reconhecido que os embalara pessoalmente a todos. Alegou, ainda, que não se lembrava de quem havia adquirido tais parafusos.34 Apesar de suas alegações, Mr. Sleep foi condenado pelo júri, em primeira instância, como tendo incorrido na conduta proibida e agido com conhecimento de que a carga por ele embarcada era de propriedade pública. O juízo de segundo grau, em dois casos anteriores então recentes, R. v. Wilmett e R. v. Cohen, havia requerido a presença estritamente de “conhecimento real” (actual knowledge) para que houvesse a condenação pela hipótese delitiva que ora era imputada 32 ROBINSON, Paul H., DUBBER, Markus Dirk, An introduction…, p. 12. 33 Robin Charlow descreve que “alguns” dos parafusos dentro do barril estariam marcados, enquanto Edwards apenas se refere a que “os parafusos” estavam marcados. Em ambas as narrativas, no entanto, assume-se a premissa de que a quantidade de parafusos marcados seja proporcionalmente relevante o suficiente para indicar as consequências jurídico-penais determinadas pela decisão; isto é, não se tratava de uma quantidade insignificante que pudesse passar legitimamente despercebida por mero erro. Respectivamente em CHARLOW, Robin, Wilful..., p. 1409, e EDWARDS, John Llewlyn Jones, The criminal..., p. 298. 34 Regina v. Sleep, English Reports, v. 169, London, pp. 1301-1302, 1861. 34 a Mr. Sleep.35 No entanto, no caso Sleep, em grau recursal, o Juiz Willes, ao reverter a decisão, expressamente deliberou que “(...) o Júri não achou que o réu sabia que os bens eram de propriedade pública nem intencionalmente fechou os seus olhos para o fato.”36, razão pela qual inocentava o réu. No mesmo sentido o Juiz Crompton decidiu que “Essa regra [a de que o conhecimento real é essencial à caracterização do crime], no entanto, não se aplicaria quando os olhos do réu fossem intencional e deliberadamente fechados para a verdade”.37 Ao estabelecer que o réu poderia ter sido condenado se o júri tivesse se convencido que ele tivesse “intencionalmente fechado os olhos para o fato”, foi determinada pela primeira vez uma equiparação entre conhecimento e ignorância. Melhor precisando, a decisão deixa inferir de seus termos que um grau de conhecimento inferior ao actual knowledge – conhecimento real – seria suficiente para a caracterização de um crime que exige o pleno conhecimento, pelo autor, dos seus elementos fático-objetivos. Mesmo sem saber que eram de propriedade pública, o réu seria culpado se intencionalmente tivesse evitado adquirir tal conhecimento. Essa decisão – considerada inaugural e paradigmática – evidentemente carece de uma melhor elaboração dogmática sobre o que realmente representa a afirmação nela plasmada.No que se refere à willful blindness, a decisão é lacônica e não explica o que quis dizer. E é interessante que a primeira menção expressa à willfully shutting of the eyes tenha acontecido em uma decisão que não aplicou a categoria de imputação (supostamente) criada pela própria decisão (ou, ao menos, não a aplicou integralmente, no sentido em que se inclua a sua aplicação positiva), já que não condenou o réu. É certo que os votos mencionados, ao incluírem na estrutura de seu raciocínio a variável atinente ao “intencional fechamento dos olhos”, aplicaram a willful blindness pela primeira vez – já que teriam mantido a condenação se tivessem vislumbrado a sua incidência no caso concreto. Mas tal é apenas parcialmente procedente, pois, ao não 35 EDWARDS, John Llewlyn Jones, Idem, p. 298. 36 Tradução livre. No original: “(...) the jury have not found that the prisoner either knew that the goods were government stores or willfully shut his eyes to the fact”. EDWARDS, John Llewlyn Jones, Idem, p. 298. 37 Tradução livre. No original: “This rule, however, would not apply where the prisioner’s eyes are wilfully and deliberately shut to the truth.” Regina v. Sleep, English Reports, v. 169, London, pp. 1301-1302, 1861. 35 condenar o réu, os magistrados não expressaram os elementos que positivamente caracterizam a equiparação da situação de ignorância à de conhecimento, limitando-se a concluir pela inexistência da situação. E tal foi feito utilizando-se de uma metáfora ambígua, definindo a situação como “fechar os olhos para o fato”. O que é o actual knowledge, o que é o conhecimento real, qual o nível de conhecimento que uma pessoa tem que ter para poder ser responsabilizada criminalmente por delito que exige conhecimento dos fatos, são questões não tão simples de serem respondidas. Quando a imputação subjetiva exige apenas o “dolo”, considerado como figura ampla que compreende indistintamente o dolo direto de primeiro grau, o dolo direto de segundo grau e o dolo eventual38 – as quais no direito anglo-saxão compreenderiam, grosso modo, a purposely, a knowingly e a recklessly (com a ressalva de que a recklessness compreende também, grosso modo, a culpa consciente)39 –, não há fronteiras a serem deslindadas entre o que é o (a) conhecimento “real”, “completo”, que exigiria uma “certeza absoluta”; o que é um (b) conhecimento de grau imediatamente inferior ao completo, que poderia ser chamado de “quase certeza” (mas que já não é a certeza); o que é um (c) conhecimento equivalente a uma “alta probabilidade”; e continuando em uma escala gradativa em que o conhecimento é cada vez “mais fraco”, o que é o (d) conhecimento de uma “possibilidade séria”, o que é um (e) conhecimento de uma “mera possibilidade (fraca)”. O interesse em se distinguir entre os graus de conhecimento começa para a configuração de situações que não representariam dolo, como seriam as hipóteses em que há o (f) conhecimento de que existe a possibilidade de que algo esteja acontecendo, 38 A exigência de dolo para a incriminação da conduta corresponde à regra geral de imputação subjetiva tanto no Código Penal brasileiro quanto no alemão, de maneira que as condutas imprudentes apenas são puníveis quando tal for expressamente previsto em lei. O MPC prevê regra similar ao estabelecer a recklessness como padrão de imputação subjetiva geral, exigindo-se previsão expressa em lei para a punibilidade de condutas negligentes (lembrando que a recklessness engloba também a culpa consciente, categoria esta cuja existência é usualmente negada pelas teorias cognitivas de dolo). Veja-se o Código Penal brasileiro: “Art. 18 - Diz-se o crime: (…) Parágrafo único – Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”; assim como o Código Penal alemão (Strafgesetzbuch): “Ações dolosas e imprudentes. São puníveis apenas as ações dolosas, exceto quando a lei expressamente ameaça com pena condutas imprudentes.” Tradução livre. No original: “§ 15 Vorsätzliches und fahrlässiges Handeln. Strafbar ist nur vorsätzliches Handeln, wenn nicht das Gesetz fahrlässiges Handeln ausdrücklich mit Strafe bedroht.” 39 A afirmação de que a recklessness compreende também a culpa consciente deve ser problematizada na medida em que tanto as teorias cognitivas do dolo quanto às filiadas à filosofia da linguagem normalmente não admitem a existência dessa categoria. 36 mas em “quantidade negligenciável” (quantité negligeable); até chegar à (g) ignorância pura e simples sobre o fato, o “desconhecimento total”. Mas quando só existe o delito na hipótese em que o sujeito saiba com grau de certeza (knowingly), a distinção entre os graus de conhecimento adquire supina importância em todos os seus matizes. A imputação subjetiva sempre se baseia na atribuição de conhecimento ao autor, independentemente se é necessário imputar também, ou não, algum tipo de vontade ou algum elemento intencional. Isto é, todas as correntes doutrinárias sobre o dolo, sejam as teorias cognitivas, sejam as volitivas, concordam em um ponto: deve-se ser capaz de dizer que o autor sabia o que estava fazendo.40 Dizendo-o de maneira mais precisa: a imputação dolosa exige que o autor tenha conhecimento atual dos elementos do tipo objetivo presentes no momento da ação de execução do delito, assim como conhecimento atual tanto do curso causal quanto do resultado típico (quando previsto na hipótese típica).41 Na decisão do caso Regina v. Sleep, ficou estabelecido que o réu pode ser condenado como tendo conhecimento do fato mesmo sem que ele tenha o conhecimento real do fato, desde que esteja evidenciado que ele “fechou os olhos” para o fato. Aparentemente, a willful blindness surge no cenário jurídico como uma ignorância equivalente ao conhecimento (real). A decisão não esclarece que grau de ignorância deve haver. A expressão “fechar os olhos para o fato” não é interpretada literalmente pela comunidade jurídica,42 porque certamente não basta que haja uma ignorância pura e simples para satisfazer à imputação subjetiva, pois tal implicaria a atribuição de responsabilidade objetiva ao autor, o que contrariaria os princípios de direito penal próprios de um estado democrático de direito.43 40 Ainda que muitas divergências haja sobre como se determina essa atribuição. 41 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador, Reexame..., p. 89. A previsão do resultado típico refere-se ao chamado resultado “naturalístico” observável no mundo fenomênico. 42 De maneira quase intuitiva, os juristas afastam a interpretação de que é suficiente o mero “fechar de olhos”. 43 Na common law existem infrações em que há a strict liability, ou responsabilidade estrita, que é uma responsabilidade objetiva, já que a condenação independe de uma imputação subjetiva qualquer (ou seja, há culpabilidade mesmo na ausência de intenção, conhecimento, recklessness ou imprudência). Fletcher assinala que “O termo ‘responsabilidade estrita’ no direito penal deve ser interpretado como a prática de desconsiderar um erro ou um acidente onde, como questão de princípio, o erro ou acidente deveria ser 37 Mas a decisão não acrescenta nenhuma exigência expressa para além de que o sujeito tenha “fechado os olhos ao fato”. Parece razoável inferir que a decisão exige ao menos que o autor tenha algum grau de conhecimento e/ou tenha a consciência de que possui algum tipo de dever de obter o conhecimento. A decisão deixa entrever, também, que possivelmente se possa exigir que o autor tenha agido com algum tipo de malícia. Infelizmente, a decisão não constrói suficientemente o que pretendeu aplicar. O problema sobre o que é o “fechar os olhos” da decisão em Sleep decorre também da constatação de quenão existe uma definição ou um conceito de conhecimento que seja consensualmente aceito nem mesmo no restrito âmbito do direito penal. No campo da filosofia, é altamente questionável se é possível afirmar que o ser humano possui conhecimento de algo, especialmente se este é concebido como certeza ou como verdade. Também a ciência e o seu método científico entendem que nenhum conhecimento é completo ou perfeito. Por isso, é importante fazer aqui um brevíssimo excurso para justificar que a possibilidade de obtenção, pelo agente, do conhecimento efetivo, com grau de certeza, deve ser assumido como um axioma pelo direito penal. Percebe-se que a inexistência de um conhecimento “real” e de uma certeza “absoluta”, conforme às refutações filosóficas ou científicas, não afasta o fato de que as pessoas em geral utilizam em seus jogos de linguagem expressões que denotam o sentido relevante para a defesa do réu por ter causado uma lesão criminosa. Em outras palavras, se o erro deveria ser relevante mas é tratado como irrelevante, então a responsabilidade é estrita.” Tradução livre. No original: “The term ‘strict liability’ in the criminal law should be understood as the practice of disregarding a mistake or accident where as a matter of principle the mistake or accident should be relevant to the defendant’s responsibility for bringing about a criminal harm. In other words, if the mistake ought to be relevant but is treated as irrelevant, then liability is strict.” FLETCHER, George P., Basic concepts of criminal law, Oxford University Press: New York, p. 152. O MPC limita a possibilidade de strict liability a hipóteses em que a pena máxima prevista em abstrato é pecuniária. Essa restrição aproxima o sistema do MPC, e dos ordenamentos que se inspiraram nele, no ponto, aos princípios do direito penal da culpabilidade (nullum crimen, nulla poena, sine culpa), na medida em que a pena meramente pecuniária descaracteriza o sentido estritamente penal da penalidade. Não é isso que necessariamente acontece quando não há restrição do tipo da prevista no MPC. Nesse sentido, Oxman assevera que “Contudo, mesmo que se costume dizer que o recurso a esta técnica de tipificação penal [strict liability] é excepcional, o certo é que, segundo aponta Herring [HERRING, Jonathan, Criminal Law, 6th ed., New York: Plagrave Macmillan, 2009, p. 81], mais da metade dos delitos que são conhecidos pela Crown Court no Reino Unido corresponde a casos típicos onde não é necessária a prova total ou parcial da mens rea.” Tradução livre. No original: “Con todo, pese a que suele decirse que el recurso a esta técnica de tipificación penal es excepcional, lo cierto es que según apunta Herring más de la mitad de los delitos que son conocidos por la Crown Court en el Reino Unido corresponden a supuestos típicos en donde no es necesaria la prueba total o parcial del mens rea.” OXMAN VILCHES, Nicolás, Sistemas..., p. 78. 38 de que conhecem fatos do mundo fenomênico. Outrossim, a teoria do direito penal deve ser uma teoria da praxis, sob pena de se constituir em uma mera idealização contrafactual. Assim como as pessoas em sociedade imputam umas às outras a existência de conhecimento, é condição de possibilidade do funcionamento do direito penal “moderno” que seja possível atribuir ao autor conhecimento a respeito do mundo que o circunda. Um direito penal que se abstenha de trabalhar com categorias de imputação subjetiva em que a percepção que a pessoa tenha da realidade circundante desempenhe um papel central afasta-se definitivamente dos postulados de respeito à dignidade da pessoa humana e seria inconcebível em um estado democrático de direito. Isso significa que alguma razão prática deve ser utilizada para a construção de um conceito de conhecimento passível de conferir uma operacionalidade ao direito penal consonante com o respeito à dignidade da pessoa humana. Assim como a liberdade de ação humana, também a possibilidade de obtenção de conhecimento certo (e incerto) pelo ser humano a respeito da realidade do mundo em que vive é um postulado para o funcionamento de um direito penal de imputação subjetiva. Deve-se, assim, assumir que é possível o conhecimento e conceber um conceito prático de conhecimento real que satisfaça às exigências de funcionamento do direito penal contemporâneo. Se isso é assim já de maneira geral, segundo diversas correntes filosóficas, a impossibilidade de certeza real é ainda mais acentuada no âmbito penal, em que há apenas a imputação do conhecimento ao autor no contexto de um processo judicial cujas regras, aliás, não visam apenas à reconstrução factual retrospectiva, mas também à aplicação dos direitos fundamentais, os quais frequentemente constituem fatores que impedem a obtenção de provas. E isso sem que haja confusão entre as duas esferas a que se refere o conhecimento: o conhecimento atual que o autor teve sobre os elementos típicos e o conhecimento processualmente imputado a ele. Em ambos os planos não se pode afirmar categoricamente se tratar de “verdade real”; apenas o conhecimento oriundo do procedimento jurisdicional reveste fatores suplementares impeditivos da obtenção de uma certeza “absoluta”. Assim, o conhecimento certo para fins de direito penal deve se contentar em ser uma “razão prática”. Já que é inescapável se atribuir conhecimento ao autor, exceto se quiséssemos refundar o direito penal a partir de outros paradigmas que não os próprios do 39 Estado Democrático de Direito, deve-se trabalhar com uma compreensão de que os seres humanos são capazes de obterem conhecimento “real” a respeito dos fatos da vida em função da sua consciência e de sua percepção sensorial. Portanto, a exigência pragmática de que o direito penal trabalhe com algo que nossa linguagem possa compreender e cujo sentido seja intersubjetivamente apreensível leva a que seja incorporada ao direito a noção própria da vida ordinária de que as pessoas têm conhecimento. Supera-se a “dúvida filosófico-científica” por motivos de operacionalidade e até mesmo de racionalidade do direito penal. E a dúvida filosófico- científica, lembre-se, é pertinente a fatos passados, presentes e futuros. Mas tais reclamos práticos não chegam a afastar o problema de raciocínio lógico relativo ao hábito, às regularidades e à concepção ou percepção de “causa e efeito”. Dessa maneira, os fatos futuros são apenas previsíveis segundo probabilidades. Os fatos presentes e passados são passíveis de conhecimento “pragmático”, de caráter empírico. Assim, a atribuição de conhecimentos sobre fatos futuros a um agente será operacionalizada a partir de elementos que denotem sua crença subjetiva em função de probabilidades. Na esteira desse entendimento, pode-se interpretar que “fechar seus olhos” ao que, de outro modo, seria evidente para o agente, significa que este evitou obter esse conhecimento real, efetivo, no sentido de um conhecimento prático. .3. A SEGUNDA GERAÇÃO DA WILLFUL BLINDNESS: OS CASOS DE CONIVÊNCIA .4. Após o primeiro e relativamente enigmático caso Regina v. Sleep, passaram- se quatorze anos sem que as Cortes inglesas tenham voltado a se referir ao fechamento proposital dos olhos ou a algo parecido – o que permite ponderar que a decisão inaugural não causou tanto impacto quanto se poderia imaginar, talvez justamente em decorrência da insuficiência estrutural nela exprimida. Apenas em 1875 surgiu uma continuação à 40 jurisprudência sobre a matéria. No caso Bosley v. Davies, a administradora44 de um hotel foi acusada e condenada sob a Lei de Licenciamento de 1872 por ter permitido a prática de jogo ilegal em recintos do estabelecimento.45 Os jogadores de carta, que estavam em uma sala reservada, corroboraram a estória da administradora de que não apenas eles não receberam as cartas dela, mas de que ela não
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