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CEGUEIRA DELIBERADA

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SÉRGIO VALLADÃO FERRAZ 
 
 
 
 
 
 
 
CEGUEIRA DELIBERADA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
À SABRINA, amor da minha vida; 
E ao nosso filho JORGINHO, que já 
ressignifica o sentido de nossas vidas. 
AGRADECIMENTOS 
 
 
Mesmo correndo o sério risco de deixar de mencionar inúmeras pessoas que, 
direta ou indiretamente, contribuíram para o desenvolvimento deste trabalho, gostaria de 
expressar meu profundo agradecimento a professores, amigos e familiares cujo aporte e 
presença certamente se refletiram nessa obra e me foram muito caros durante a sua 
elaboração. 
Agradeço à minha esposa, Sabrina, por todo o seu amor e carinho, e pelo seu 
apoio em todas as minhas empreitadas, inclusive nesse doutorado. 
Agradeço também à minha mãe, Ana Maria, incentivadora constante dos 
meus estudos desde sempre. Agradeço ao meu pai, Jorge, exemplo eterno, in memoriam. 
E ao meu irmão, Pedro, pelo companheirismo. 
Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo César Busato, pela orientação acadêmica, 
pelo privilégio de compartilhar a sua paixão pelo direito penal e, sobretudo, pela amizade. 
Ao Prof. Dr. Luís Greco, por ter me acolhido generosamente no Programa de 
Pós-Graduação da Universidade de Augsburg e pelas relevantes observações durante a 
banca de qualificação. 
Aos professores integrantes da minha banca de qualificação, Prof. Dr. Jacson 
Zilio e Profª Drª Heloísa Estellita, pelas inestimáveis contribuições para o 
desenvolvimento da tese. 
Agradeço aos professores de cujas aulas tive o prazer de participar durante o 
curso, Prof. Dr. Clèmerson Merlin Clève, Prof. Dr. Celso Ludwig, Prof. Dr. Luís Fernando 
Lopes Pereira, Prof. Dr. Fabrício Tomio, Prof. Dr. Abili de Lima, Prof. Dr. Sérgio Staut 
Jr. 
Agradeço também ao amigo e colega Procurador da República, Dr. Adriano 
Barros Fernandes, não apenas pelo convívio profissional, mas também por ter me 
substituído durante o período em que desenvolvi a pesquisa na Alemanha. 
Endereço meus agradecimentos também ao Subprocurador-Geral da 
República, Dr. Mário Bonsaglia, relator do processo que autorizou minha pesquisa na 
Alemanha, extensivo a todos os membros do Conselho Superior do Ministério Público 
Federal, pelo precioso incentivo ao aperfeiçoamento acadêmico. 
Agradeço, ainda, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível 
Superior, CAPES, por ter concedido uma bolsa de doutorado sanduíche, por meio do 
Programa PROBRAL, a qual contribuiu para o desenvolvimento da pesquisa na 
Alemanha. 
Dedico um agradecimento especial à Profª Drª Johanna Rinceanu, do Max 
Planck Institut für ausländisches und internationales Strafrecht, em Freiburg, pela sua 
calorosa acolhida naquele instituto, e pela ajuda nos momentos difíceis. 
Por fim, agradeço a todos os professores, diretores e servidores do Programa 
de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, por toda sua dedicação 
e profissionalismo, que fazem a reconhecida qualidade do programa. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Nada é mais assustador do que a ignorância 
em ação. 
Es ist nichts schrecklicher als eine tätige 
Unwissenheit. 
JOHANN W. VON GOETHE 
SUMÁRIO 
 
 
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 17 
CAPÍTULO 1 – A WILLFUL BLINDNESS DOCTRINE NO DIREITO DOS 
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA ........................................................................... 21 
1. PRIMEIRAS LINHAS SOBRE A WILLFUL BLINDNESS NA COMMON LAW
 ........................................................................................................................................ 23 
2. O PRIMEIRO CASO: REGINA V. SLEEP – REINO UNIDO, 1861 .................. 32 
3. A SEGUNDA GERAÇÃO DA WILLFUL BLINDNESS: OS CASOS DE 
CONIVÊNCIA ................................................................................................................ 40 
4. A WILLFUL BLINDNESS CHEGA AOS EUA – SPURR V. UNITED STATES 
(1899) – A TERCEIRA GERAÇÃO............................................................................... 53 
4.1. Os primeiros casos precursores nos Estados Unidos da América ........................ 54 
4.2. O novo paradigma: Spurr v. United States, 1899................................................. 59 
4.3. A introdução do Model Penal Code nos EUA e excurso sobre as modalidades de 
imputação subjetiva no sistema estadunidense ............................................................... 73 
5. USA V. JEWELL (1976) – A “GUERRA CONTRA AS DROGAS” E A 
AMPLIAÇÃO QUANTITATIVA E TEMÁTICA – A QUARTA GERAÇÃO DA 
WILLFUL BLINDNESS ................................................................................................ 107 
5.1. Leary v. United States (1969) e Turner v. United States (1970) ........................ 108 
5.2. United States v. Jewell (1976) .............................................................................119 
5.2.1. Apresentação do caso Jewell .............................................................................. 120 
5.2.2. A divergência no caso Jewell ............................................................................. 130 
5.3. United States v. Heredia (2007) ......................................................................... 148 
6. GLOBAL-TECH, INC. V. SEB (2011) – A QUINTA GERAÇÃO? ................... 153 
7. A POSIÇÃO DA WILLFUL BLINDNESS NA IMPUTAÇÃO SUBJETIVA NO 
DIREITO ESTADUNIDENSE ..................................................................................... 175 
7.1. A willful blindness e o risco de condenação por mera recklessness .................. 181 
8. CONCLUSÕES PARCIAIS SOBRE A WILLFUL BLINDNESS NO DIREITO 
DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA .................................................................. 189 
CAPÍTULO 2 – A CRÍTICA À CEGUEIRA DELIBERADA ................................ 193 
1. A REPROVABILIDADE DA CONDUTA DELIBERADAMENTE 
IGNORANTE E OS PATAMARES DE EQUIPARAÇÃO .......................................... 196 
2. O PRIMEIRO PATAMAR DE EQUIPARAÇÃO: A IGNORÂNCIA 
ABSOLUTA DELIBERADA É TÃO REPROVÁVEL QUANTO O CONHECIMENTO 
DA POSSIBILIDADE? ................................................................................................ 201 
2.1. As fundamentações materiais anglo-saxãs ...................................................... 202 
2.1.1. O parâmetro da “pessoa honesta” ................................................................... 205 
2.1.2. A abordagem a partir do “dever de conhecer” ................................................ 206 
2.1.3. A abordagem segundo a suposição contrafactual hipotética de presença do 
conhecimento ................................................................................................................ 208 
2.1.3.1. A proposta de Luban: os avestruzes e a raposa ............................................... 208 
2.1.3.2. A crítica à proposta de Luban ......................................................................... 214 
2.1.3.3. Conclusões parciais ......................................................................................... 231 
2.2. As fundamentações internas à teoria do delito ................................................ 233 
2.2.1. Tatsachenblindheit: a cegueira perante os fatos de Jakobs ............................. 233 
2.2.1.1. A cegueira ante os fatos como imprudência dirigida ...................................... 234 
2.2.1.2. Crítica à cegueira ante os fatos ....................................................................... 242 
2.2.1.3. A imprudência dirigida como dolo em sentido material em Jakobs ............... 260 
2.2.1.4. Excurso: o elemento cognitivo é indispensável para qualquer teoria sobre o 
dolo ...............................................................................................................................261 
2.2.1.5. Conclusões parciais ......................................................................................... 262 
2.2.2. A ignorância deliberada em sentido estrito de Ragués i Vallès ....................... 265 
2.2.2.1. A proposta de Ragués i Vallès ......................................................................... 265 
2.2.2.2. Crítica aos critérios de ignorância deliberada propostos por Ragués i Vallès 273 
2.2.2.3. Da inadequação da ignorância deliberada em sentido estrito ......................... 273 
2.2.2.4. Crítica ao conteúdo comunicativo-expressivo como fundamento da maior 
reprovabilidade do dolo ................................................................................................ 283 
2.2.2.5. Crítica à relevância dos motivos do agente para a imputação subjetiva ......... 285 
2.2.2.6. Conclusões parciais ......................................................................................... 289 
3. O SEGUNDO PATAMAR DE EQUIPARAÇÃO: A IGNORÂNCIA RELATIVA 
DELIBERADA É TÃO REPROVÁVEL QUANTO O CONHECIMENTO 
PRATICAMENTE CERTO? ........................................................................................ 291 
3.1. Conclusões parciais ......................................................................................... 302 
CAPÍTULO 3 – O PAPEL DA CEGUEIRA DELIBERADA NA TEORIA DO 
DELITO ....................................................................................................................... 304 
1. A CONCEPÇÃO SIGNIFICATIVA DE AÇÃO ............................................. 312 
1.1. O giro filosófico linguístico-pragmático ......................................................... 314 
1.2. A concepção cartesiana de mente e sua crítica (o mito do “Fantasma na 
Máquina”) ..................................................................................................................... 318 
1.3. As teorias da identidade: a versão materialista da mente como substância .... 326 
1.4. A ação humana como significado intersubjetivo contextual e as bases da 
filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein .......................................................... 331 
1.5. A ação significativa como teoria jurídico-penal da ação ................................ 340 
1.6. Brevíssima visão geral sobre o dolo conforme a concepção significativa da 
ação ............................................................................................................................... 348 
1.7. O elemento cognitivo do dolo conforme a concepção significativa da ação .. 352 
2. A CEGUEIRA DELIBERADA COMO INDICADOR INDISPENSÁVEL AO 
PROCEDIMENTO DE IMPUTAÇÃO SUBJETIVA ................................................... 362 
2.1. A cegueira deliberada conforme a concepção significativa de ação ............... 366 
2.2. A ressignificação do conhecimento do agente ................................................ 369 
2.3. A cegueira deliberada como fator indicativo do elemento cognitivo no procedimento 
de imputação subjetiva...................................................................................................372 
2.4. A especificidade da cegueira deliberada enquanto indicador sobre o conhecimento 
imputável ao agente ...................................................................................................... 374 
2.5. Conclusões sobre o papel da cegueira deliberada como indicador indispensável 
para o procedimento de imputação subjetiva ................................................................ 379 
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 381 
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 391
17 
INTRODUÇÃO 
 
O presente trabalho se ocupa do estudo sobre a prática de cegueira deliberada 
que seja relevante para o direito penal. O conhecimento ou a ignorância sobre os elementos 
do tipo objetivo é vital para a imputação subjetiva do delito ao autor. Frequentemente, as 
pessoas preferem não saber das coisas quando o conhecimento pode levá-las a adotar 
ações que elas prefeririam não ter adotado ou, sob outro ângulo, quando o conhecimento 
pode inibi-las de agir da maneira que gostariam. A busca pela ignorância pode parecer 
menos grave do que a desonestidade pura e simples, razão pela qual, de certa maneira, a 
cegueira deliberada é “a homenagem que o vício presta à virtude”.1 Essa impressão de 
menor gravidade, no entanto, pode ceder lugar a uma outra perspectiva diametralmente 
oposta. Como assevera Sereny, “Não saber, tudo bem. A ignorância é fácil. O 
conhecimento pode ser difícil, mas ao menos é real, é a verdade. O pior é quando você 
não quer saber – porque então deve ser algo muito ruim. Senão, você não teria tido tanta 
dificuldade em saber.” 2 A cegueira deliberada, pois, abre ensejo a concepções e 
construções ambivalentes sobre sua natureza e, no que interessa ao direito penal, sobre o 
grau de reprovação do agente que comete uma conduta sob o seu influxo. 
O sistema jurídico ocidental que tradicionalmente criou e desenvolveu um 
instituto jurídico-penal relativo à cegueira deliberada como componente da sua estrutura 
de imputação subjetiva foi o sistema common law, inicialmente no Reino Unido e, 
 
1 A expressão é de Luban, que afirma o seguinte: “Uma pessoa desonesta simplesmente procura conhecer a 
verdade e então mente a respeito. Evitar a verdade é um expediente para evitar mentiras. É um estratagema 
para anjos manchados como você e eu, não para canalhas impenitentes. É a homenagem que o vício presta 
à virtude.” Tradução livre. No original: “A dishonest person simply learns the truth and then lies about it. 
Evading truth is an expedient for avoiding lies. It’s a stratagem for tarnished angels like you and me, not for 
unrepentant scoundrels. It’s the homage that vice pays to virtue.” LUBAN, David, Contrived ignorance, 87 
Geo. L. J. 957 1998-1999, p. 959. 
2 Tradução livre. No original: “Not knowing, that’s fine. Ignorance is easy. Knowing can be hard but at least 
it is real, it is the truth. The worst is when you don’t want to know – because then it must be something very 
bad. Otherwise you wouldn’t have so much difficulty knowing.” HEFFERNAN, Margaret, Willful 
blindness: why we ignore the obvious at our peril, New York: Walker & Company, 2011, p. 42. Essa frase 
foi dita por Gitta Sereny em uma entrevista pessoal e gentilmente concedida a Margareth Heffernan em 16 
de novembro de 2009, e se refere à alegação feita por Albert Speer, o arquiteto-chefe de Hitler que se tornou 
uma das pessoas mais importantes do III Reich, durante o julgamento de Nuremberg, no sentido de que ele 
não sabia das atrocidades relativas ao “Holocausto”, porque ele teria se cegado deliberadamente a seu 
respeito. Sereny é autora do livro Albert Speer: His battle with truth (Vintage, 1995). 
18 
posteriormente, em outros ordenamentos que compartilham esse sistema, com destaque, 
pela sua importância e influência, no direito dos Estados Unidos da América. Os países de 
tradição civil law em geral, e o Brasil em especial, ignoraram longamente a cegueira 
deliberada enquanto problema penal específico. Apenas recentemente a jurisprudência de 
alguns desses países, assim como a do Brasil, começou a aplicar com pouca reflexão 
algumas versões pseudoimportadas da cegueira deliberada estadunidense.3 No Brasil, essa 
importação tem sido feita sem que tenha havido qualquer alteração legislativa para a sua 
introdução no ordenamento pátrio. 
O objetivo do presente trabalho é investigar qual o papel da cegueira 
deliberada no sistema de imputação subjetiva penal brasileiro. 
Para atingir o seu objetivo, a investigação a que seprocede é composta de três 
partes, correspondentes aos seus três capítulos. 
O primeiro capítulo aborda a chamada “willful blindness doctrine” no direito 
dos Estados Unidos da América, que é o conjunto de práticas jurisprudenciais sobre 
cegueira deliberada que assumem um caráter de direito vigente em função de sua aplicação 
reiterada e autorizada, formando um conjunto de regras que sintetizam essa jurisprudência. 
 
3 É o caso, entre outros, da Espanha, onde o Tribunal Supremo invoca a cegueira deliberada desde 2000 (a 
primeira decisão da Sala Segunda que menciona a cegueira deliberada é a Sentencia de 10 de janeiro de 
2000), a respeito, ver RAGUÉS i VALLÈS, Ramon, La ignorancia deliberada en derecho penal, Atelier, 
Barcelona: 2007, pp. 22 e ss.; e do Brasil, onde sua aplicação é ainda mais recente, destacando-se como 
marcos o caso “Assalto ao Banco Central” em Fortaleza (Ação Penal nº 2005.81.00.014586-0), cuja 
sentença de primeira instância é de 28 de julho de 2007, o voto da Ministra Rosa Weber, do Supremo 
Tribunal Federal, no julgamento da Ação Penal nº 470 (caso “Mensalão”), e algumas decisões em ações no 
âmbito da “Operação Lava-Jato” (por exemplo, as Ações Penais nº 5047229-77.2014.4.04.7000 e 5007326-
98.2015.4.04.7000). O objetivo do presente trabalho não é fazer a crítica à jurisprudência brasileira. Para a 
crítica à jurisprudência brasileira sobre cegueira deliberada, ver LUCCHESI, Guilherme Brenner, A punição 
da culpa a título de dolo: o problema da chamada “cegueira deliberada”, tese doutoral, disponível em 
http://www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/49523/R%20-%20T%20-%20GUILHERME%20
BRENNER%20LUCCHESI.pdf?sequence=1&isAllowed=y, consultado em 30 de novembro de 2017; 
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge, A aplicação da teoria da cegueira deliberada nos julgamentos da 
Operação Lava Jato, Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 122, agosto 2016; GEHR, Amanda, A 
aplicação da teoria da cegueira deliberada no direito penal brasileiro, monografia, visualizada em 
07/11/2017 em 
http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/31107/AMANDA%20GEHR.pdf?sequence=1&isAllow
ed=y; LAUFER, Christian; DA SILVA, Robson A. Galvão, A teoria da cegueira deliberada e o direito penal 
brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, novembro 2009; MAGALHÃES, Vlamir 
Costa, Breves notas sobre lavagem de dinheiro: cegueira deliberada e honorários maculados, Revista da 
EMERJ, Rio de Janeiro, v. 17, nº 64, janeiro a abril 2014, pp. 164-186. 
http://www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/49523/R%20-%20T%20-%20GUILHERME%20BRENNER%20LUCCHESI.pdf?sequence=1&isAllowed=y
http://www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/49523/R%20-%20T%20-%20GUILHERME%20BRENNER%20LUCCHESI.pdf?sequence=1&isAllowed=y
http://www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/49523/R%20-%20T%20-%20GUILHERME%20BRENNER%20LUCCHESI.pdf?sequence=1&isAllowed=y
http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/31107/AMANDA%20GEHR.pdf?sequence=1&isAllowed=y
http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/31107/AMANDA%20GEHR.pdf?sequence=1&isAllowed=y
19 
Procede-se a um estudo analítico da cegueira deliberada desde seu surgimento na tradição 
da common law no Reino Unido, chegando-se às várias etapas de seu desenvolvimento 
nos Estados Unidos da América, até a sua consolidação contemporânea. Objetiva-se não 
apenas compreender o que é a cegueira deliberada em sua estrutura analítica, em suas 
várias versões, mas também fazer o esforço necessário de direito comparado para que a 
figura de imputação anglo-saxã seja inteligível para o direito brasileiro. 
O segundo capítulo consiste em uma profunda crítica à cegueira deliberada. A 
partir das estruturas vistas no capítulo anterior, pesquisam-se os vários fundamentos 
materiais que buscam justificar a criação da cegueira deliberada enquanto figura de 
imputação subjetiva. São investigados os fundamentos auridos diretamente na experiência 
anglo-saxã, assim como aqueles gestados no ambiente civil law, seja já sob o influxo da 
doutrina estadunidense (as propostas de Ragués i Vallès), seja aqueles desenvolvidos 
inteiramente a partir da referência da teoria do delito (a cegueira ante os fatos de Jakobs). 
O objetivo é analisar criticamente um conjunto abrangente e representativo dos 
argumentos em favor da cegueira deliberada e verificar sua consistência teórica para a 
construção de uma figura de cegueira deliberada na teoria do delito conforme ao direito 
brasileiro. Além dessa perspectiva, verifica-se também se a cegueira deliberada nos 
moldes estadunidenses tem algum papel ou capacidade de rendimento no direito brasileiro. 
O terceiro capítulo visa a construir uma concepção de cegueira deliberada que 
seja consentânea com os limites estabelecidos pelos princípios do direito penal brasileiro. 
Verifica-se que a cegueira deliberada constitui um problema que merece a atenção do 
direito penal, ainda que sob uma feição distinta daquela cunhada no direito anglo-saxão. 
A cegueira deliberada não é algo irrelevante que dispense qualquer comentário dogmático. 
Para a tarefa de se compreender o papel da cegueira deliberada na teoria do delito, utiliza-
se o paradigma da concepção significativa de ação, elaborado a partir da filosofia da 
linguagem e do giro linguístico-pragmático a que procedeu na compreensão da dogmática 
penal. A escolha do paradigma da ação significativa se justifica na medida em que é um 
modelo compreensivo que pretende ser uma teoria da praxis, incorporando as dimensões 
linguística e argumentativa do direito de maneira metodicamente adequada ao seu 
funcionamento. Acredita-se que a concepção significativa da ação possa, assim, 
representar um aperfeiçoamento epistemológico consentâneo com as exigências de 
evolução de um direito penal moderno, promotor do respeito aos direitos e garantias 
20 
fundamentais da pessoa humana. É a partir da perspectiva linguística que se compreende 
adequadamente a estrutura da cegueira deliberada no direito brasileiro. 
 
 
 
 
 
21 
CAPÍTULO 1 – A WILLFUL BLINDNESS DOCTRINE NO DIREITO DOS 
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA 
 
 
É bastante provável que ao menos alguns dos problemas fundamentais 
relacionados às situações que genericamente podem ser designadas de “cegueira 
deliberada” tenham aflorado e sido objeto de reflexão e atuação dos operadores jurídicos 
no campo penal ao longo dos tempos, anteriormente aos marcos históricos que serão 
abordados aqui. No entanto, a análise doutrinária moderna que tem impacto na discussão 
jurídica atual a respeito do assunto, utilizando a denominação cegueira deliberada, deriva 
diretamente da experiência do direito anglo-saxão, remontando inicialmente a meados do 
século XIX no Reino Unido e, posteriormente, a partir do final do século XIX, 
desenvolvendo-se com especial repercussão nos Estados Unidos da América. Mais do que 
a mera utilização nominal da expressão “cegueira deliberada”, e várias outras locuções 
com sentidos semelhantes, foi no âmbito dessa tradição anglo-saxã que o problema da 
ignorância autoprovocada pelo agente ganhou um tratamento jurídico-penal específico. 
Na tradição do direito brasileiro, a cegueira deliberada é enfocada como um mero 
subproblema inerente à percepção do conhecimento ou do erro, inerentes ao dolo; ou 
melhor, a deliberação da cegueira não é considerada um problema específico, de maneira 
que a questão se cinge ao conhecimento ou desconhecimento, este visto como “erro”. 
O presente trabalho desenvolve hipóteses relacionadas ao fenômeno da 
ignorância deliberada, buscando determinar dogmaticamente sua capacidade de 
rendimento no direito penal brasileiro, verificando se existe e qual seria o seu papel na 
teoria do delito. Opta-se por iniciar a discussão a partir da experiência anglo-saxã, que, ao 
contrário da prática brasileira e dos países europeus continentais,discute especificamente 
a relevância da cegueira deliberada (vista como um desconhecimento intencional) para a 
imputação subjetiva desde o século XIX e de maneira explícita. Diferentemente, a teoria 
do delito aborda os problemas ligados à ignorância apenas sob a vertente do erro e da 
significação desse erro para o dolo, não havendo uma destacada preocupação com a 
especifica situação em que a ignorância do agente possa ser considerada produzida 
22 
intencionalmente.4 Apenas recentemente a discussão sobre ignorância dolosa irrompe em 
alguns países de civil law, em grande medida em decorrência do aparecimento de decisões 
judiciais que expressamente dizem aplicar a doutrina da cegueira deliberada de matriz 
anglo-saxã,5 mas também em função da forte influência que o direito estadunidense exerce 
sobre esses países. 
O presente trabalho focaliza nesta parte a cegueira deliberada no direito dos 
Estados Unidos da América em função de algumas razões. Entre elas, o histórico mais 
desenvolvido da discussão sobre o instituto na common law; o relativo movimento da 
praxis jurídica no sentido da aproximação dos dois grandes sistemas jurídicos ocidentais, 
inclusive por meio da importação mútua de institutos;6 a crescente influência do direito 
estadunidense sobre o sistema civil law em geral, e sobre o direito penal em particular, 
especialmente após a queda do Muro de Berlim, sobretudo no âmbito da expansão do 
direito penal na atividade econômica e na proteção de bens jurídicos difusos; e, ainda, a 
(suposta) importação da cegueira deliberada pela prática de tribunais no ambiente civil 
law. 
A análise a ser empreendida tem em mente investigar os problemas político-
criminais que ensejaram o desenvolvimento da cegueira deliberada e possui o objetivo, 
também, de examinar a estrutura dessa categoria de imputação subjetiva, deslindar os seus 
principais problemas e as respectivas soluções encontradas, e, talvez ainda mais relevante, 
o trabalho procura identificar as fundamentações materiais que embasam a cegueira 
deliberada. Uma vez que seja esclarecida a fundamentação material que justifica a 
 
4 Discussões nesse sentido costumam ser marginais na doutrina e não correspondem exatamente ao conjunto 
de problemas que são expressos por meio da willful blindness na common law. Por exemplo, existe uma 
discussão sobre o acerto dogmático da opção legislativa de conferir caráter exclusivamente representacional 
da distinção entre dolo e imprudência, de maneira que o erro de tipo sempre implica a ausência de dolo 
independentemente de qualquer consideração sobre a maneira como esse erro de tipo aconteceu ou a razão 
pela qual houve o erro de tipo. Nesse sentido a discussão propiciada, entre outros, por Jakobs (JAKOBS, 
Günther, Gleichgültigkeit als dolus indirectus, ZStW 114, 2002, Heft 3, entre vários outros escritos), Roxin 
(ROXIN, Claus, Strafrecht Allgemeiner Teil Band I: Grundlagen, Der Aufbau der Verbrechenslehre, 4. 
Auflage, München: C.H.Beck, 2006, §21, 6-7) e Lesch (LESCH, Dolus directus, indirectus und eventualis, 
JA, 1997, p. 802 e ss.). 
5 Ver NR nº 3. 
6 A respeito do movimento de aproximação entre os sistemas de civil law e common law, BUSATO, Paulo 
César, A política jurídica como expressão da aproximação entre o common law e o civil law, in BUSATO, 
Paulo César, Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, pp. 3-42. 
23 
aplicação da cegueira deliberada, será possível verificar se essa fundamentação é de 
alguma maneira aproveitável no direito brasileiro e na teoria do delito ou se, ao contrário, 
existem razões materiais para proceder-se à crítica da cegueira deliberada mesmo no 
contexto da common law. 
 
.1. PRIMEIRAS LINHAS SOBRE A WILLFUL BLINDNESS NA COMMON LAW 
 
O especial interesse jurídico-penal sobre a ignorância intencional como 
elemento constitutivo da caracterização do delito é documentado a partir do surgimento e 
do desenvolvimento no âmbito da common law de diferentes padrões de decisão 
jurisdicional sobre critérios de imputação subjetiva, alguns substancialmente distintos de 
outros, que podem ser genericamente designados de willful blindness – expressão que 
costuma ser traduzida como “cegueira deliberada” e cuja tradução mais fiel talvez seja 
“cegueira intencional”. 
A utilização de apenas essa expressão para designar a aproximação ao 
problema7 – cegueira deliberada – é simplificadora e redutora da complexidade do tema e 
só pode ser adotada como recurso didático para facilitar a exposição e o “recorte” para a 
pesquisa histórica. Há bastante controvérsia a respeito do que seria a willful blindness e 
de como deveria o direito penal incorporar suas premissas de maneira adequada e 
respeitosa aos respectivos ordenamentos jurídicos, aos direitos fundamentais das pessoas, 
às exigências de justiça, às necessidades de efetividade da persecução penal no interesse 
da sociedade, à correspondência entre a correta imputação subjetiva e a correlata 
reprovação do fato ao autor, entre outras dificuldades. E essa discussão se refere já ao 
mundo anglo-saxão: mesmo no âmbito dos ordenamentos jurídicos que adotam o sistema 
 
7 Poder-se-ia referir ao “instituto” cegueira deliberada, mas a existência e a aplicação, pelos Judiciários e 
pelas doutrinas, de diversos conceitos distintos com nuances e matizações várias recomenda que se reserve 
a expressão “instituto” apenas para as formulações que serão propostas como conclusão do estudo ou para 
objetos especificamente individualizados de análise. Na presente parte deste trabalho, a ênfase recai na 
pesquisa histórica em conjunto com a análise crítica e analítica das decisões jurisdicionais (principalmente) 
e da doutrina (secundariamente) que envolvem as questões relativas à colocação dolosa do autor em estado 
de ignorância como problema específico da imputação penal subjetiva, razão pela qual preferir-se a 
expressão “aproximação ao problema”. 
24 
common law,8 e ainda que estes tenham incorporado códigos penais formalizados, existe 
um acentuado grau de divergência na aplicação jurisprudencial da cegueira deliberada, 
mesmo que existam alguns leading cases que procuram conferir um norte seguro a essa 
categoria de imputação. A controvérsia é ainda maior no âmbito da doutrina sobre o tema, 
que é em larga medida crítica da criação e da aplicação da willful blindness. 
Ao longo da sua trajetória evolutiva, as diversas manifestações da willful 
blindness proliferaram de maneira um tanto caótica e casuística, imersas em um ambiente 
jurídico-cultural em que a própria imputação subjetiva penal como um todo – concebida 
e aplicada como mens rea9 – poderia ser adequadamente caracterizada como assistemática 
e de difícil compreensão. O aspecto subjetivo da imputação penal compreende um 
conjunto de questões fundamentais que configuram um problema universalmente presente 
 
8 Não se faz aqui a distinção, que é feita comumente nos países que adotam a common law, entre as fontes 
do direito (a) common law (propriamente dita) e (b) o direito estatutário vigente (p.ex., a existência de um 
código penal publicado oficialmente e vigente). Considera-se aqui como sistema “common law” o que 
provém dessa tradição, ainda que seja incorporado o direito estatutário como fonte principal do direito penal 
(o que levaria, para ser mais preciso, a especificar os elementos inerentes a um e a outro e a considerar a 
evolução histórica do sistema de common law com a incorporação de elementos estatutários e a progressiva 
“aproximação” entre os dois sistemas ocidentais dominantes). 
9 Expressão latina que sintetiza as ideias de guilty mind (mente culpada) e evil intent (má intenção), as quais 
representam os pilares da imputação subjetiva na common law tradicional. Oxmanensina que “O latinismo 
‘mens rea’ aparece pela primeira vez no princípio do século XII nas leis inglesas de Henry I (Leges Henrici 
Primi c. 5 §28), naquela parte em que regulavam o perjúrio apoiando-se em uma referência ao sermão 
180.2.2 de Agostinho (intitulado ‘evitar o juramento’), que, a propósito desse delito, indicava que ‘é de 
grande importância a intenção com que se diz algo. Apenas uma mente culpada faz culpável a língua’. Essa 
citação aparece com posterioridade como fundamento da máxima: ‘actus non facit reum, nisi mens fit rea’; 
a saber, ‘a realização de um fato não faz uma pessoa culpada a menos que a mente também o seja’, locução 
latina que figura pela primeira vez na Terceira Parte das Instituições de Sir Edward Coke – como exigência 
específica para o crime de alta traição – cuja obra genérica publicada em 1641 constitui o ato fundamental 
do Common Law e, também, nesta parte é a primeira recompilação epistemológica de direito penal.” 
Tradução livre. No original: “El latinismo ‘mens rea’ aparece por primera vez a principios del siglo XII en 
las leyes inglesas de Henry I (Leges Henrici Primi c. 5 §28), en aquella parte en que regulaban el perjurio 
apoyándose en una referencia al sermón 180.2.2 de Agustín (titulado: ‘evitar el juramento’), quien a 
propósito de este delito indicaba que ‘es de gran importancia la intención con que se dice algo. Solo una 
mente culpable hace culpable a la lengua’. Esta cita aparece con posterioridad, como fundamento de la 
máxima: ‘actus non facit reum, nisi mens fit rea’; a saber, ‘la realización de un hecho no hace a una persona 
culpable a menos que la mente también lo sea’, locución latina que figura por primera vez en la Tercera 
Parte de las Instituciones de Sir Edward Coke – como exigencia específica para el crimen de alta traición – 
cuya obra genérica publicada en 1641, constituye el acta fundacional del Common Law y, también, en esta 
parte es la primera recopilación epistemológica de Derecho Penal.” OXMAN VILCHES, Nicolás, Sistemas 
de imputación subjetiva en derecho penal: el modelo angloamericano, Valencia: Tirant lo Blanch, 2016, p. 
53. 
25 
em todos os ordenamentos jurídicos penais modernos. 10 Diversos sistemas jurídicos 
desenvolvem, no entanto, categorias, funcionalidades e linguagem distintos que 
operacionalizam as questões relacionadas à imputação subjetiva de maneira 
razoavelmente diferente, a despeito de suas semelhanças e pontos de conexão. Dessa 
diversidade exsurge a necessidade de se realizar alguma espécie de tradução linguística e 
dogmática que verte não apenas o idioma mas sobretudo a dogmática jurídica de um 
sistema para outro para que aquele possa ser adequadamente compreendido pelos falantes 
que integram um sistema alienígena. 
No ambiente da common law não se alude expressamente a um conceito de 
imputação subjetiva.11 Os aspectos subjetivos da imputação são compreendidos como 
inerentes ao (e incorporadas ao) sistema processual de alegações e vereditos,12 sendo 
mencionados no plano substantivo por meio de termos como guilty mind ou moral blame, 
entre outros. Apesar disso, como assinala Bernal del Castillo, “Embora haja muitas 
diferenças que se mantêm entre os diversos ordenamentos penais nacionais [entre os 
sistemas anglo-saxão e o da teoria do delito], não falta em nenhum deles a exigência de 
um elemento de reprovação subjetiva dentro do conceito de delito, chame-se mens rea, 
elemento subjetivo do delito ou culpabilidade.”13 Excetuam-se apenas os delitos em que 
 
10 Fletcher possui opinião neste mesmo sentido, FLETCHER, George P., Gramática del derecho penal, Trad. 
Muñoz Conde, Buenos Aires: Hammurabi, 2008, pp. 57 e 71. 
11 Quem o afirma é Oxman: “Ainda que na Common Law não se refira expressamente a um conceito de 
imputação subjetiva, na medida em que se entende que é uma noção incorporada ao sistema processual de 
alegações e vereditos, a doutrina a menciona no plano substantivo com termos que poderiam ser qualificados 
como neutros, preferindo usar a expressão ‘culpabilidade’”. Tradução livre. No original: “Aunque en el 
Common Law no se alude expresamente a un concepto de imputación subjetiva, en la medida que se entiende 
que es una noción incorporada al sistema procesal de alegaciones y veredictos, la doctrina la menciona en 
el plano sustantivo con términos que podrían ser calificados como neutros, prefiriendo utilizar la expresión 
‘culpabilidad’”. OXMAN VILCHES, Nicolás, Sistemas…, p. 17. Essa perspectiva é consonante à concepção 
que habitualmente se tem a respeito no Brasil e nos países que adotam a teoria do delito, no sentido de que 
o direito penal anglo-saxão não possui uma teoria sistematizada do delito propriamente dita. 
12 OXMAN VILCHES, Idem, p. 17. 
13 Tradução livre. No original: “Por muchas diferencias que se mantengan en los diversos ordenamientos 
penales nacionales sobre la construcción jurídica del delito, no falta en ninguno de ellos la exigencia de un 
elemento de reproche subjetivo dentro del concepto del delito, llámese mens rea, elemento subjetivo del 
delito o culpabilidad.” BERNAL DEL CASTILLO, Jesús, Derecho penal comparado, La definición de 
delito en los sistemas anglosaxón y continental, Barcelona: Ariel-Libros Jurídicos, 2011, p. 90. 
26 
há a strict liability, que não apresentam elementos subjetivos, os quais adquirem uma 
importância marginal para o presente estudo. 
Na tradição da common law, antes do advento das codificações penais14 nos 
ambientes jurídicos 15 anglo-saxãos que optaram por finalmente criá-las por meio de 
atividade legislativa, não existia uma parte geral que sistematizasse o direito penal, assim 
como não existiam nem mesmo conceitos gerais relativos aos aspectos subjetivos da 
imputação. As situações que a teoria do delito caracteriza comumente como “dolo” e 
“imprudência” são, na common law tradicional, referenciadas por um cipoal de várias 
dúzias de diferentes “estados mentais”16, o que dificulta sobremaneira o seu entendimento 
e a sua aplicação coerente. Esse emaranhado era caracterizado por ser “obscurecido por 
uma fina superfície composta de uma terminologia geral denotando ilicitude 
(wrongfulness)” 17 e composta por um “palavreado arcaico sugerindo maldade e 
 
14 Os autores anglo-saxões costumam a se referir, em geral, a common law offences para designar os delitos 
criados jurisprudencialmente segundo a tradição da common law, sem lei escrita, de maneira a distingui-los 
das statutory offences, delitos criados por meio de textos legislativos formalizados. Diante dessa maneira de 
raciocinar, a linguagem usualmente empregada pelos autores continentais resta ambígua: normalmente a 
referência à common law indica (a) que o sistema jurídico sob foco é um sistema jurídico caracterizado pela 
common law (sem a distinção acima procedida) ou, melhor dizendo, é um sistema que provém de uma 
tradição de common law; porém, (b) utilizando os termos de maneira mais precisa – e mais consentânea com 
a sua utilização nos países da common law –, pode-se reservar a expressão common law para o âmbito 
jurídico criado jurisprudencialmente segundo os usos e costumes característicos da common law, enquanto 
o direito penal material – geral ou especial – criado por um processo legislativo formalizado e plasmado em 
uma lei escrita seria designado de statutory law, ainda que componente de um sistema jurídico common law 
(esta, na acepção “a” acima). 
15 Utiliza-se aqui a expressão “ambiente jurídico” para caracterizar a estrutura estatal (ou unidade federativa, 
nas federações) com competência legislativa para legislar em matéria de normas gerais de direito penal. 
16 Utiliza-se a expressão “estado mental” aqui apenas por simplificação e seguindo a expressão comumente 
utilizada pelos autores anglo-saxões (mental states). Por “estado mental” não se queradotar uma posição 
cartesiana segundo a qual existiria uma distinção entre mente e corpo, como se o dolo (e/ou a intenção) fosse 
um fenômeno da natureza com existência real, um processo incorpóreo no mundo ontológico, passível de 
descrição pelo observador. Tal modo de ver o mundo já está ultrapassado a partir da viragem linguístico-
pragmática efetuada pela filosofia da linguagem desenvolvida, em especial, pelo segundo Wittgenstein. 
Sobre o assunto, ver o Capítulo 3, item 1, A concepção significativa de ação, infra. Vale destacar a afirmação 
de Vives Antón: “Não existem, pois, objetos do pensar que ‘existam’ idealmente, nem na cabeça, nem em 
nenhuma outra parte”. VIVES ANTÓN, Tomás Salvador, Reexame do dolo, in Dolo e direito penal: 
modernas tendências, vários autores, BUSATO, Paulo César (Coord.), 2ª ed. – São Paulo: Atlas, 2014, p. 
93. 
17 Gainer ensina o seguinte: “Os dispositivos do Código [refere-se ao Código Penal Modelo] a respeito dos 
estados mentais culpáveis introduziram simultaneamente razão e estrutura a uma área do direito anglo-
americano anteriormente amorfa. Por séculos, a abordagem dos componentes mentais do crime tinha sido 
um emaranhado de refutação jurídica, obscurecido por uma fina superfície composta de uma terminologia 
27 
perversidade”.18 Essa confusão é (ou era)19 agravada em razão de a common law ser inábil 
em distinguir os diferentes elementos componentes de um delito, sendo que cada elemento 
poderia requerer um mental state distinto para satisfazer às exigências para a 
condenação.20 
É nesse ambiente pré-codificação e de desorganização do tratamento do 
aspecto subjetivo da imputação que surgiu a willful blindness, em um caso concreto no 
Reino Unido em 1861 (Regina v. Sleep).21 O surgimento e o desenvolvimento da ideia de 
willful blindness, documentados primeiramente no Reino Unido e posteriormente nos 
Estados Unidos da América, aconteceram em função da necessidade de solucionar os 
casos concretos (ou conjuntos de casos concretos) que se apresentavam – alguns deles 
 
geral denotando ilicitude. O palavreado arcaico sugerindo maldade e perversidade foi substituído pelos 
propositores pelos conceitos de propósito, conhecimento, recklessness [desconsideração, temeridade] e 
negligência, e os conceitos foram estruturados para serem aplicados separadamente a ações, a circunstâncias 
nas quais as ações acontecem, e a resultados.” Tradução livre. No original: “The Code’s provisions 
concerning culpable metal states introduced both reason and structure to a previously amorpheus area of 
Anglo-American law. For centuries, the approach to mental components of crimes had been a quagmire of 
legal refuse, obscured by a thin surface of general terminology denoting wrongfulness. The archaic verbiage 
suggesting evil and wickedness was replaced by the drafters with concepts of purpose, knowledge, 
recklessness, and negligence, and the concepts were structured to apply separately to actions, circumstances 
in which actions take place, and results.” GAINER, Ronald L., The culpability provisions of the Model 
Penal Code, 19, Rutgers Law Journal, 1988, p. 575. 
18 GAINER, Ronald L., idem, p. 575. Trecho na nota anterior. 
19 Na medida em que houve a progressiva codificação e/ou sistematização “modernas” do direito penal 
nesses ordenamentos jurídicos, houve a criação e a especificação de elementos de imputação subjetiva mais 
racionalizada. Por exemplo, nos estados dos Estados Unidos da América, a partir da década de sessenta do 
século XX, a maioria dos estados-membros adotou códigos penais, sob forte influxo da divulgação do Model 
Penal Code (MPC), cuja primeira edição é de 1962. O MPC prevê apenas quatro categorias de imputação 
subjetiva: purposely (intencional ou propositalmente), knowingly (com conhecimento), recklessly e 
negligently (negligente ou imprudentemente). Nenhuma tradução para o português ou para as outras línguas 
da Europa continental captura com o necessário grau de exatidão o conteúdo do conceito anglo-saxão de 
recklessness ou de recklessly. Algumas tentativas de tradução consistem em “com desconsideração” ou 
“temerariamente”, mas ambas são expressões equivocas que podem mais atrapalhar do que ajudar o correto 
entendimento da figura em seu contexto original. São expressões deveras imprecisas e o seu uso é feito não 
sem alguma perda ou confusão, razão pela qual prefere-se neste trabalho sempre designar essa categoria de 
imputação subjetiva pelo seu nome original, recklessness. A recklessness não tem correspondente exato no 
direto continental. Grosso modo, assemelha-se ao dolo eventual somado à culpa consciente, isto é, seu 
campo de incidência abrangeria em princípio os casos nos quais usualmente se imputa o dolo eventual e a 
culpa consciente. Mas, em verdade, a recklessness não se confunde de maneira precisa com essas duas 
noções, porquanto guarda diferenças dogmáticas relevantes. A conceituação dos níveis de imputação 
subjetiva conforme o MPC será feita mais detidamente no item 5.3 do presente capítulo, infra. 
20 ROBINSON, Paul H., DUBBER, Markus Dirk, An introduction to the Model Penal Code, University of 
Pennsylvania, 12/03/1999, p. 12. Disponível em 
https://www.law.upenn.edu/fac/phrobins/intromodpencode.pdf. Acesso em 25 de fevereiro de 2017. 
21 Regina v. Sleep, English Reports, v. 169, London, pp. 1301-1302, 1861. 
https://www.law.upenn.edu/fac/phrobins/intromodpencode.pdf
28 
frutos do florescimento de novos tipos incriminadores e/ou novas “ondas” de 
criminalização de determinados comportamentos.22 
Decisões judiciais não são o locus por excelência para o desenvolvimento 
sistemático de institutos jurídicos, dando lugar, ao revés, ao pragmatismo ad hoc que 
naturalmente as caracteriza, o que é próprio do modelo anglo-saxão da common law, 
baseado tradicionalmente sobretudo na criação jurisdicional do direito. Invariavelmente, 
os pronunciamentos jurisdicionais que aplicavam (e também os que hoje aplicam) a willful 
blindness eram incompletos e/ou ambíguos e/ou imprecisos ao estabelecer a imputação 
subjetiva para o caso, levando a que surgissem mais dúvidas e questionamentos a respeito 
do alcance do instituto do que certezas e segurança jurídica. Essas características de 
insuficiência e falta de clareza conceitual da jurisprudência, conjugadas com a forte 
discussão a respeito do conteúdo da willful blindness e até mesmo a sua contestação por 
parte da doutrina – os setores que negam a sua compatibilidade com o ordenamento 
jurídico respectivo, ou que lhe conferem um conteúdo limitado ao da recklessness ou ao 
da negligência –, perpassa toda a evolução do instituto, desde a origem em Regina v. Sleep 
(1861) até o mais recente caso paradigmático, Global-Tech Appliances v. SEB, julgado 
pela Supreme Court dos Estados Unidos da América em 2011.23 
Daí a ausência de uniformidade na própria designação do fenômeno da 
ignorância dolosa: as decisões referem-se à ignorância intencional de variadas maneiras, 
e as diferentes expressões podem refletir diferenças conceituais e estruturais, mas não 
necessariamente, podendo ser apenas outras formas de falar sobre o mesmo objeto. Um 
inventário das diversas designações inclui willful (ou deliberate) shutting of the eyes 
(intencional – ou deliberado – fechamento dos olhos), connivance (conivência), 
knowledge of the second degree (conhecimento de segundo grau), constructive knowledge 
(conhecimento construtivo), willful ignorance (ignorância intencional), willful blindness 
(cegueira intencional – ou como é mais frequentemente traduzido ao português, cegueira 
deliberada), conscious avoidance (evitação consciente), avoidance of any endeavor to 
know (evitação de qualquer esforço para saber), purposeful avoidance (evitação 
 
22 Um exemplo evidente é a utilização da willful blindness para a incriminação dotráfico de drogas nos 
Estados Unidos da América a partir dos anos 1970, que será visto no item 6 do presente capítulo, infra. 
23 Supreme Court of the United States, Global-Tech Appliances, Inc. v. SEB S.A., 563 U.S. (2011). 
29 
proposital), conscious purpose to avoid learning the truth (propósito consciente de evitar 
saber a verdade), contrived ignorance (ignorância artificial), deliberate ignorance 
(ignorância deliberada), deliberately avoiding knowing (evitação de saber deliberada), 
deliberately choosing not to learn (deliberadamente escolher não saber), purposely 
abstaining from all inquiry (propositalmente se abster de qualquer investigação), studied 
ignorance (ignorância estudada), deliberately omitting to make further inquiries 
(deliberadamente omitir-se de fazer investigações adicionais).24 
Como a presente parte deste trabalho objetiva contextualizar e problematizar 
as questões sobre a cegueira deliberada na common law, destacadamente nos Estados 
Unidos da América e, anteriormente, sua origem no Reino Unido, a expressão willful 
blindness será frequentemente empregada no original, em inglês, já que a adoção de 
qualquer alternativa de tradução poderia eventualmente suscitar já alguma predisposição 
para com a categoria de imputação, o que se busca (parcialmente) evitar com sua 
manutenção no original. Eventualmente serão utilizadas também outras expressões, como 
“cegueira deliberada” ou “ignorância deliberada”. A evitação (de o nome da categoria de 
imputação expressar já alguma posição) possível é apenas “parcial” na medida em que 
também em inglês há a miríade de opções a que alude o parágrafo anterior. A opção por 
willful blindness decorre mais de ser esta a expressão mais comumente utilizada do que 
de uma escolha que reflita algum caráter dogmático a ser ressaltado no âmbito do presente 
trabalho em função das suas hipóteses e conclusões – especialmente porque estas se situam 
preponderantemente no terreno da teoria do delito, ainda que possa ser identificada alguma 
contribuição para a discussão anglo-saxã, inclusive no que se refere à crítica a que se 
procederá. 
A despeito de toda a controvérsia em torno da cegueira deliberada, e não 
apenas sobre sua designação, mas principalmente sobre seu conteúdo, sobre a sua 
pertinência dogmática e a sua compatibilidade com o direito e com a justiça – discussão 
fortemente existente mesmo em solos em que vige um direito de tradição common law –, 
a Supreme Court dos Estados Unidos da América declarou, no recente e importante caso 
Global-Tech v. SEB (2011), que a doutrina da willful blindness é bem estabelecida no 
 
24 As traduções são livres. As referências aqui se limitam às expressões surgidas nos países de common law, 
em inglês, não abrangendo as traduções e as aplicações jurisdicionais ou doutrinárias feitas nos países de 
civil law. 
30 
direito penal estadunidense.25 A decisão foi majoritária, com oito votos favoráveis à 
aplicação da willful blindness ao caso concreto e apenas uma dissidência (a qual nega a 
própria compatibilidade do instituto com o direito vigente). 
Por um lado, é fato que a maioria dos tribunais estadunidenses aplica em 
determinados casos a willful blindness. Segundo a própria Supreme Court, todas as Courts 
of Appeals dos Estados Unidos da América empregam-na em uma ampla gama de estatutos 
criminais, com a “possível exceção” da Corte do Circuito do Distrito de Columbia.26 
Também no Reino Unido e em outros países da common law verifica-se sua aplicação 
recorrente. Por outro lado, é difícil compreender e precisar os exatos contornos do que é a 
willful blindness a que se refere a Supreme Court no leading case referido. Ao contrário 
do que leva a crer a mera leitura dessa decisão, os tribunais locais não a aplicam utilizando 
sempre a mesma linguagem nem a entendem de maneira uniforme no que se refere ao seu 
conteúdo. Essa divergência interpretativa sobre o que é essa categoria de imputação 
subjetiva tem como referência apenas aos Estados Unidos da América, país que exerce a 
maior influência a respeito de willful blindness sobre os demais ordenamentos jurídicos 
que de alguma maneira a adotam, ainda que sem previsão legislativa expressa. Isto é, um 
estudo que abrangesse os demais países de common law muito provavelmente também 
identificaria dúvidas e discrepâncias em grande medida similares às encontradas nos 
Estados Unidos da América. Pode-se afirmar que no Reino Unido, país em que surgiu 
originalmente a willful blindness, existe semelhante grau de polêmica sobre a sua 
concepção e aplicação.27 
 
25 Conforme a decisão em Global-Tech: “A doutrina da cegueira deliberada é bem estabelecida no direito 
penal. Muitas leis criminais exigem a prova de que o réu agiu com conhecimento efetivo ou 
propositadamente, e as Cortes, aplicando a doutrina da cegueira deliberada, estabelecem que os réus não 
podem escapar do alcance dessas leis por meio da conduta de se escudarem deliberadamente contra provas 
claras sobre fatos críticos que são fortemente sugeridas pelas circunstâncias.” Tradução livre. No original: 
“The doctrine of willful blindness is well established in criminal law. Many criminal statutes require proof 
that a defendant acted knowingly or willfully, and courts applying the doctrine of willful blindness hold that 
defendants cannot escape the reach of these statutes by deliberately shielding themselves from clear 
evidence of critical facts that are strongly suggested by the circumstances.” Supreme Court of the United 
States, Global-Tech Appliances, Inc. v. SEB S.A., 563 U.S. (2011), p. 1 e ss., p. 10. 
26 Supreme Court of the United States, Global-Tech Appliances, Inc. v. SEB S.A., 563 U.S. (2011), p. 1 e ss., 
p. 12. 
27 Por todos, ver EDWARDS, The criminal.... 
31 
Por essas razões, refere-se à willful blindness aqui não como uma realidade 
jurídica unívoca, mas como um ponto de referência para a discussão a respeito da 
imputação criminal subjetiva em um conjunto de situações – desiguais entre si até mesmo 
no que se refere à sua estrutura ideal – em que se atribui ao agente (pelo menos) algum 
grau de ignorância sobre algum elemento constitutivo do tipo penal e que, pois, apresenta 
relevância penal conceitual; mas em que, apesar de tal ignorância, imputa-se ao autor 
responsabilidade penal como se não existisse qualquer ignorância (logo, como se existisse 
conhecimento, ou conhecimento “pleno”) ou, ao menos, como se essa ignorância tivesse 
um grau de importância inferior – para a atribuição de responsabilidade penal – ao que 
normalmente teria sem o uso da willful blindness (logo, reprovando a conduta de maneira 
mais intensa do que se reprovaria um autor meramente ignorante).28 
Entre as inúmeras maneiras de se abordar a evolução do instituto, ao menos 
duas se destacam: pode-se optar por um recorte histórico-cronológico em que os casos são 
apresentados e analisados segundo a ordem em que aconteceram – e as problemáticas vão 
sendo apresentadas à medida que os casos são apresentados; ou se pode partir de alguma 
classificação ou análise estrutural dos diversos aspectos que já surgiram e apresentá-los 
segundo a ordem que pareça mais lógica ou didática, referenciando-os aos casos concretos 
independentemente do momento histórico em que aconteceram. 
Ambos os approaches possuem vantagens e desvantagens. Optar-se-á por uma 
análise que segue o acontecer histórico, porém, entrecortada com as considerações 
necessárias ao enriquecimento da discussão para fins da pesquisa que ora se realiza e, 
especialmente, em função da importância das diferenças entre os sistemas de common law 
e o sistema da teoria do delito. Entender essas diferenças pode ser crucial para a correta 
construção de um conceito de cegueira deliberada anglo-saxã que possa ser compreendido 
por um leitor afeito aodireito brasileiro e à teoria do delito, e instrumental para que se 
possa fazer a análise e a crítica da willful blindness. 
 
 
28 Esta conceituação é mais estrutural do que conteudista propositalmente, para poder abarcar as diversas 
concepções formadas a respeito da willful blindness no direito estadunidense e anglo-saxão em geral. 
32 
.2. O PRIMEIRO CASO: REGINA V. SLEEP – REINO UNIDO, 1861 
 
Edwards29 relata que o primeiro caso de que se tem notícia em que uma 
decisão judicial expressamente consignou que um grau de percepção subjetiva inferior ao 
conhecimento completo e efetivo era suficiente para condenar alguém por crime que exige 
o conhecimento efetivo de todos os elementos componentes da descrição hipotética do 
delito aconteceu no Reino Unido, em 1861, o caso Regina v. Sleep. 
É certo que a common law não trabalha com a ideia de “tipo” penal, 
característica dos ordenamentos continentais. Apenas a partir das codificações estaduais 
que se seguiram à “promulgação” do Model Penal Code (MPC) em 196230 é que uma 
noção um pouco mais aproximada de tipo penal foi introduzida nos Estados Unidos da 
América. Com a finalidade de simplificar e racionalizar o verdadeiro cipoal de common 
law offenses31 que existia, foi adotado um sistema que tem sido designado de element 
analysis. O “sistema de elementos”, semelhantemente ao tipo penal, expressa a pretensão 
conceitual de relevância, distinguindo analiticamente os diversos elementos componentes 
 
29 Edwards assinala que “Até onde pode ser descoberto, o caso R. v. Sleep foi a primeira ocasião em que foi 
dada aprovação judicial à noção de que algum grau de conhecimento inferior ao conhecimento real seria 
suficiente para estabelecer a mens rea.” Tradução livre. No original: “So far as can be discovered, the case 
R. v. Sleep was the first occasion in which judicial approval was given to the notion that some lesser degree 
of knowledge would suffice to establish mens rea.” EDWARDS, John Llewlyn Jones, The criminal…, p. 
298. Este artigo seminal de Edwards é referenciado por muitos outros autores como sendo a fonte de 
informação primária sobre qual teria sido o primeiro caso de willful blindness em todo o direito anglo-saxão. 
Nesse sentido, entre outros, MARCUS, Jonathan L., Model Penal Code Section 2.02(7) and willful 
blindness, 102 Yale L. J. 2231 1992-1993, p. 2233; CHARLON, Robin, Wilful ignorance and criminal 
culpability, 70 Tex. L. Rev. 1351 1991-1992, p. 1409; ROBBINS, Ira P. The ostrich instruction: deliberate 
ignorance as a criminal mens rea, 81 J. Crim. L. & Criminology 191, 1990-1991, p 196; ROIPHE, Rebecca, 
The ethics of willful blindness, The Georgetown Journal of Legal Ethics, 24, 2001, pp. 192-193; RAGUÉS 
i VALLÈS, Ramon, La ignorancia..., p. 65; LUCCHESI, Guilherme Brenner, A punição..., p. 117. 
30 O Model Penal Code (MPC), que será mais detidamente analisado posteriormente, não é um ato 
legislativo formal e não integra o ordenamento jurídico estadunidense. O MPC, como seu nome sugere, é 
um modelo de código penal que foi elaborado pelo American Law Institute como sugestão para o 
aperfeiçoamento do sistema penal nos Estados Unidos da América. Fruto de um amplo estudo que se iniciou 
em 1951, o MPC foi pela primeira vez apresentado (usa-se a expressão “promugated”, mas sem a conotação 
oficial que lhe é característica) em 1962 e veio a influenciar fortemente um movimento de criação de códigos 
penais na maioria dos estados dos Estados Unidos da América. O MPC passou a ser o principal foco de 
estudo doutrinário e foi especialmente bem-sucedido em influenciar a legislação e a jurisprudência no que 
se refere à imputação subjetiva (mens rea). 
31 “Delitos” da common law. 
33 
de uma hipótese delituosa, incluindo a conduta, as circunstâncias e o resultado. Além disso, 
como cada elemento pode demandar um nível diferente de imputação subjetiva, esta fica 
mais facilmente manejável em função da organização e clareza dos elementos e da criação 
de apenas quatro “estados mentais” para a imputação subjetiva: purposely 
(propositadamente), knowingly (com conhecimento), recklessly e negligently 
(imprudentemente).32 
Porém, Regina v. Sleep precede em mais de cem anos o aparecimento do MPC, 
e não aconteceu nos Estados Unidos da América, mas no Reino Unido durante a “Era 
Vitoriana”. Mr. Sleep era um ferreiro que embarcou em um navio uma carga de parafusos 
de cobre, localizados dentro de um barril, alguns dos quais estavam marcados com um 
sinal (em forma de flecha) que indicava que constituíam propriedade do Estado.33 Vigia à 
época o Embezzlement of Public Stores Act – a Lei sobre Desvios de Suprimentos Públicos 
–, de 1697, o qual previa que era crime a malversação de bens do domínio público assim 
como a sua posse (possessing) indevida e exigia, para que o sujeito incorresse em tal 
hipótese, que agisse com conhecimento (knowingly) de que os bens possuídos eram 
públicos. Sleep alegou que não tinha percebido que alguns dos parafusos continham a 
marcação que os identifica como bens públicos, apesar de ter reconhecido que os embalara 
pessoalmente a todos. Alegou, ainda, que não se lembrava de quem havia adquirido tais 
parafusos.34 Apesar de suas alegações, Mr. Sleep foi condenado pelo júri, em primeira 
instância, como tendo incorrido na conduta proibida e agido com conhecimento de que a 
carga por ele embarcada era de propriedade pública. 
O juízo de segundo grau, em dois casos anteriores então recentes, R. v. Wilmett 
e R. v. Cohen, havia requerido a presença estritamente de “conhecimento real” (actual 
knowledge) para que houvesse a condenação pela hipótese delitiva que ora era imputada 
 
32 ROBINSON, Paul H., DUBBER, Markus Dirk, An introduction…, p. 12. 
33 Robin Charlow descreve que “alguns” dos parafusos dentro do barril estariam marcados, enquanto 
Edwards apenas se refere a que “os parafusos” estavam marcados. Em ambas as narrativas, no entanto, 
assume-se a premissa de que a quantidade de parafusos marcados seja proporcionalmente relevante o 
suficiente para indicar as consequências jurídico-penais determinadas pela decisão; isto é, não se tratava de 
uma quantidade insignificante que pudesse passar legitimamente despercebida por mero erro. 
Respectivamente em CHARLOW, Robin, Wilful..., p. 1409, e EDWARDS, John Llewlyn Jones, The 
criminal..., p. 298. 
34 Regina v. Sleep, English Reports, v. 169, London, pp. 1301-1302, 1861. 
34 
a Mr. Sleep.35 No entanto, no caso Sleep, em grau recursal, o Juiz Willes, ao reverter a 
decisão, expressamente deliberou que “(...) o Júri não achou que o réu sabia que os bens 
eram de propriedade pública nem intencionalmente fechou os seus olhos para o fato.”36, 
razão pela qual inocentava o réu. No mesmo sentido o Juiz Crompton decidiu que “Essa 
regra [a de que o conhecimento real é essencial à caracterização do crime], no entanto, 
não se aplicaria quando os olhos do réu fossem intencional e deliberadamente fechados 
para a verdade”.37 
Ao estabelecer que o réu poderia ter sido condenado se o júri tivesse se 
convencido que ele tivesse “intencionalmente fechado os olhos para o fato”, foi 
determinada pela primeira vez uma equiparação entre conhecimento e ignorância. Melhor 
precisando, a decisão deixa inferir de seus termos que um grau de conhecimento inferior 
ao actual knowledge – conhecimento real – seria suficiente para a caracterização de um 
crime que exige o pleno conhecimento, pelo autor, dos seus elementos fático-objetivos. 
Mesmo sem saber que eram de propriedade pública, o réu seria culpado se 
intencionalmente tivesse evitado adquirir tal conhecimento. 
Essa decisão – considerada inaugural e paradigmática – evidentemente carece 
de uma melhor elaboração dogmática sobre o que realmente representa a afirmação nela 
plasmada.No que se refere à willful blindness, a decisão é lacônica e não explica o que 
quis dizer. E é interessante que a primeira menção expressa à willfully shutting of the eyes 
tenha acontecido em uma decisão que não aplicou a categoria de imputação (supostamente) 
criada pela própria decisão (ou, ao menos, não a aplicou integralmente, no sentido em que 
se inclua a sua aplicação positiva), já que não condenou o réu. 
É certo que os votos mencionados, ao incluírem na estrutura de seu raciocínio 
a variável atinente ao “intencional fechamento dos olhos”, aplicaram a willful blindness 
pela primeira vez – já que teriam mantido a condenação se tivessem vislumbrado a sua 
incidência no caso concreto. Mas tal é apenas parcialmente procedente, pois, ao não 
 
35 EDWARDS, John Llewlyn Jones, Idem, p. 298. 
36 Tradução livre. No original: “(...) the jury have not found that the prisoner either knew that the goods were 
government stores or willfully shut his eyes to the fact”. EDWARDS, John Llewlyn Jones, Idem, p. 298. 
37 Tradução livre. No original: “This rule, however, would not apply where the prisioner’s eyes are wilfully 
and deliberately shut to the truth.” Regina v. Sleep, English Reports, v. 169, London, pp. 1301-1302, 1861. 
35 
condenar o réu, os magistrados não expressaram os elementos que positivamente 
caracterizam a equiparação da situação de ignorância à de conhecimento, limitando-se a 
concluir pela inexistência da situação. E tal foi feito utilizando-se de uma metáfora 
ambígua, definindo a situação como “fechar os olhos para o fato”. O que é o actual 
knowledge, o que é o conhecimento real, qual o nível de conhecimento que uma pessoa 
tem que ter para poder ser responsabilizada criminalmente por delito que exige 
conhecimento dos fatos, são questões não tão simples de serem respondidas. 
Quando a imputação subjetiva exige apenas o “dolo”, considerado como 
figura ampla que compreende indistintamente o dolo direto de primeiro grau, o dolo direto 
de segundo grau e o dolo eventual38 – as quais no direito anglo-saxão compreenderiam, 
grosso modo, a purposely, a knowingly e a recklessly (com a ressalva de que a recklessness 
compreende também, grosso modo, a culpa consciente)39 –, não há fronteiras a serem 
deslindadas entre o que é o (a) conhecimento “real”, “completo”, que exigiria uma 
“certeza absoluta”; o que é um (b) conhecimento de grau imediatamente inferior ao 
completo, que poderia ser chamado de “quase certeza” (mas que já não é a certeza); o que 
é um (c) conhecimento equivalente a uma “alta probabilidade”; e continuando em uma 
escala gradativa em que o conhecimento é cada vez “mais fraco”, o que é o (d) 
conhecimento de uma “possibilidade séria”, o que é um (e) conhecimento de uma “mera 
possibilidade (fraca)”. O interesse em se distinguir entre os graus de conhecimento começa 
para a configuração de situações que não representariam dolo, como seriam as hipóteses 
em que há o (f) conhecimento de que existe a possibilidade de que algo esteja acontecendo, 
 
38 A exigência de dolo para a incriminação da conduta corresponde à regra geral de imputação subjetiva 
tanto no Código Penal brasileiro quanto no alemão, de maneira que as condutas imprudentes apenas são 
puníveis quando tal for expressamente previsto em lei. O MPC prevê regra similar ao estabelecer a 
recklessness como padrão de imputação subjetiva geral, exigindo-se previsão expressa em lei para a 
punibilidade de condutas negligentes (lembrando que a recklessness engloba também a culpa consciente, 
categoria esta cuja existência é usualmente negada pelas teorias cognitivas de dolo). Veja-se o Código Penal 
brasileiro: “Art. 18 - Diz-se o crime: (…) Parágrafo único – Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode 
ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”; assim como o Código Penal 
alemão (Strafgesetzbuch): “Ações dolosas e imprudentes. São puníveis apenas as ações dolosas, exceto 
quando a lei expressamente ameaça com pena condutas imprudentes.” Tradução livre. No original: “§ 
15 Vorsätzliches und fahrlässiges Handeln. Strafbar ist nur vorsätzliches Handeln, wenn nicht das Gesetz 
fahrlässiges Handeln ausdrücklich mit Strafe bedroht.” 
39 A afirmação de que a recklessness compreende também a culpa consciente deve ser problematizada na 
medida em que tanto as teorias cognitivas do dolo quanto às filiadas à filosofia da linguagem normalmente 
não admitem a existência dessa categoria. 
36 
mas em “quantidade negligenciável” (quantité negligeable); até chegar à (g) ignorância 
pura e simples sobre o fato, o “desconhecimento total”. Mas quando só existe o delito na 
hipótese em que o sujeito saiba com grau de certeza (knowingly), a distinção entre os graus 
de conhecimento adquire supina importância em todos os seus matizes. 
A imputação subjetiva sempre se baseia na atribuição de conhecimento ao 
autor, independentemente se é necessário imputar também, ou não, algum tipo de vontade 
ou algum elemento intencional. Isto é, todas as correntes doutrinárias sobre o dolo, sejam 
as teorias cognitivas, sejam as volitivas, concordam em um ponto: deve-se ser capaz de 
dizer que o autor sabia o que estava fazendo.40 Dizendo-o de maneira mais precisa: a 
imputação dolosa exige que o autor tenha conhecimento atual dos elementos do tipo 
objetivo presentes no momento da ação de execução do delito, assim como conhecimento 
atual tanto do curso causal quanto do resultado típico (quando previsto na hipótese 
típica).41 
Na decisão do caso Regina v. Sleep, ficou estabelecido que o réu pode ser 
condenado como tendo conhecimento do fato mesmo sem que ele tenha o conhecimento 
real do fato, desde que esteja evidenciado que ele “fechou os olhos” para o fato. 
Aparentemente, a willful blindness surge no cenário jurídico como uma ignorância 
equivalente ao conhecimento (real). A decisão não esclarece que grau de ignorância deve 
haver. A expressão “fechar os olhos para o fato” não é interpretada literalmente pela 
comunidade jurídica,42 porque certamente não basta que haja uma ignorância pura e 
simples para satisfazer à imputação subjetiva, pois tal implicaria a atribuição de 
responsabilidade objetiva ao autor, o que contrariaria os princípios de direito penal 
próprios de um estado democrático de direito.43 
 
40 Ainda que muitas divergências haja sobre como se determina essa atribuição. 
41 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador, Reexame..., p. 89. A previsão do resultado típico refere-se ao chamado 
resultado “naturalístico” observável no mundo fenomênico. 
42 De maneira quase intuitiva, os juristas afastam a interpretação de que é suficiente o mero “fechar de 
olhos”. 
43 Na common law existem infrações em que há a strict liability, ou responsabilidade estrita, que é uma 
responsabilidade objetiva, já que a condenação independe de uma imputação subjetiva qualquer (ou seja, há 
culpabilidade mesmo na ausência de intenção, conhecimento, recklessness ou imprudência). Fletcher 
assinala que “O termo ‘responsabilidade estrita’ no direito penal deve ser interpretado como a prática de 
desconsiderar um erro ou um acidente onde, como questão de princípio, o erro ou acidente deveria ser 
37 
Mas a decisão não acrescenta nenhuma exigência expressa para além de que 
o sujeito tenha “fechado os olhos ao fato”. Parece razoável inferir que a decisão exige ao 
menos que o autor tenha algum grau de conhecimento e/ou tenha a consciência de que 
possui algum tipo de dever de obter o conhecimento. A decisão deixa entrever, também, 
que possivelmente se possa exigir que o autor tenha agido com algum tipo de malícia. 
Infelizmente, a decisão não constrói suficientemente o que pretendeu aplicar. 
O problema sobre o que é o “fechar os olhos” da decisão em Sleep decorre 
também da constatação de quenão existe uma definição ou um conceito de conhecimento 
que seja consensualmente aceito nem mesmo no restrito âmbito do direito penal. No 
campo da filosofia, é altamente questionável se é possível afirmar que o ser humano possui 
conhecimento de algo, especialmente se este é concebido como certeza ou como verdade. 
Também a ciência e o seu método científico entendem que nenhum conhecimento é 
completo ou perfeito. Por isso, é importante fazer aqui um brevíssimo excurso para 
justificar que a possibilidade de obtenção, pelo agente, do conhecimento efetivo, com grau 
de certeza, deve ser assumido como um axioma pelo direito penal. 
Percebe-se que a inexistência de um conhecimento “real” e de uma certeza 
“absoluta”, conforme às refutações filosóficas ou científicas, não afasta o fato de que as 
pessoas em geral utilizam em seus jogos de linguagem expressões que denotam o sentido 
 
relevante para a defesa do réu por ter causado uma lesão criminosa. Em outras palavras, se o erro deveria 
ser relevante mas é tratado como irrelevante, então a responsabilidade é estrita.” Tradução livre. No original: 
“The term ‘strict liability’ in the criminal law should be understood as the practice of disregarding a mistake 
or accident where as a matter of principle the mistake or accident should be relevant to the defendant’s 
responsibility for bringing about a criminal harm. In other words, if the mistake ought to be relevant but is 
treated as irrelevant, then liability is strict.” FLETCHER, George P., Basic concepts of criminal law, Oxford 
University Press: New York, p. 152. O MPC limita a possibilidade de strict liability a hipóteses em que a 
pena máxima prevista em abstrato é pecuniária. Essa restrição aproxima o sistema do MPC, e dos 
ordenamentos que se inspiraram nele, no ponto, aos princípios do direito penal da culpabilidade (nullum 
crimen, nulla poena, sine culpa), na medida em que a pena meramente pecuniária descaracteriza o sentido 
estritamente penal da penalidade. Não é isso que necessariamente acontece quando não há restrição do tipo 
da prevista no MPC. Nesse sentido, Oxman assevera que “Contudo, mesmo que se costume dizer que o 
recurso a esta técnica de tipificação penal [strict liability] é excepcional, o certo é que, segundo aponta 
Herring [HERRING, Jonathan, Criminal Law, 6th ed., New York: Plagrave Macmillan, 2009, p. 81], mais 
da metade dos delitos que são conhecidos pela Crown Court no Reino Unido corresponde a casos típicos 
onde não é necessária a prova total ou parcial da mens rea.” Tradução livre. No original: “Con todo, pese a 
que suele decirse que el recurso a esta técnica de tipificación penal es excepcional, lo cierto es que según 
apunta Herring más de la mitad de los delitos que son conocidos por la Crown Court en el Reino Unido 
corresponden a supuestos típicos en donde no es necesaria la prueba total o parcial del mens rea.” OXMAN 
VILCHES, Nicolás, Sistemas..., p. 78. 
38 
de que conhecem fatos do mundo fenomênico. Outrossim, a teoria do direito penal deve 
ser uma teoria da praxis, sob pena de se constituir em uma mera idealização contrafactual. 
Assim como as pessoas em sociedade imputam umas às outras a existência de 
conhecimento, é condição de possibilidade do funcionamento do direito penal “moderno” 
que seja possível atribuir ao autor conhecimento a respeito do mundo que o circunda. Um 
direito penal que se abstenha de trabalhar com categorias de imputação subjetiva em que 
a percepção que a pessoa tenha da realidade circundante desempenhe um papel central 
afasta-se definitivamente dos postulados de respeito à dignidade da pessoa humana e seria 
inconcebível em um estado democrático de direito. Isso significa que alguma razão 
prática deve ser utilizada para a construção de um conceito de conhecimento passível de 
conferir uma operacionalidade ao direito penal consonante com o respeito à dignidade da 
pessoa humana. 
Assim como a liberdade de ação humana, também a possibilidade de 
obtenção de conhecimento certo (e incerto) pelo ser humano a respeito da realidade do 
mundo em que vive é um postulado para o funcionamento de um direito penal de 
imputação subjetiva. Deve-se, assim, assumir que é possível o conhecimento e conceber 
um conceito prático de conhecimento real que satisfaça às exigências de funcionamento 
do direito penal contemporâneo. 
Se isso é assim já de maneira geral, segundo diversas correntes filosóficas, a 
impossibilidade de certeza real é ainda mais acentuada no âmbito penal, em que há apenas 
a imputação do conhecimento ao autor no contexto de um processo judicial cujas regras, 
aliás, não visam apenas à reconstrução factual retrospectiva, mas também à aplicação dos 
direitos fundamentais, os quais frequentemente constituem fatores que impedem a 
obtenção de provas. E isso sem que haja confusão entre as duas esferas a que se refere o 
conhecimento: o conhecimento atual que o autor teve sobre os elementos típicos e o 
conhecimento processualmente imputado a ele. Em ambos os planos não se pode afirmar 
categoricamente se tratar de “verdade real”; apenas o conhecimento oriundo do 
procedimento jurisdicional reveste fatores suplementares impeditivos da obtenção de uma 
certeza “absoluta”. 
Assim, o conhecimento certo para fins de direito penal deve se contentar em 
ser uma “razão prática”. Já que é inescapável se atribuir conhecimento ao autor, exceto se 
quiséssemos refundar o direito penal a partir de outros paradigmas que não os próprios do 
39 
Estado Democrático de Direito, deve-se trabalhar com uma compreensão de que os seres 
humanos são capazes de obterem conhecimento “real” a respeito dos fatos da vida em 
função da sua consciência e de sua percepção sensorial. 
Portanto, a exigência pragmática de que o direito penal trabalhe com algo que 
nossa linguagem possa compreender e cujo sentido seja intersubjetivamente apreensível 
leva a que seja incorporada ao direito a noção própria da vida ordinária de que as pessoas 
têm conhecimento. Supera-se a “dúvida filosófico-científica” por motivos de 
operacionalidade e até mesmo de racionalidade do direito penal. E a dúvida filosófico-
científica, lembre-se, é pertinente a fatos passados, presentes e futuros. Mas tais reclamos 
práticos não chegam a afastar o problema de raciocínio lógico relativo ao hábito, às 
regularidades e à concepção ou percepção de “causa e efeito”. Dessa maneira, os fatos 
futuros são apenas previsíveis segundo probabilidades. Os fatos presentes e passados são 
passíveis de conhecimento “pragmático”, de caráter empírico. Assim, a atribuição de 
conhecimentos sobre fatos futuros a um agente será operacionalizada a partir de elementos 
que denotem sua crença subjetiva em função de probabilidades. Na esteira desse 
entendimento, pode-se interpretar que “fechar seus olhos” ao que, de outro modo, seria 
evidente para o agente, significa que este evitou obter esse conhecimento real, efetivo, no 
sentido de um conhecimento prático. 
 
 
.3. A SEGUNDA GERAÇÃO DA WILLFUL BLINDNESS: OS CASOS DE 
CONIVÊNCIA 
.4. 
Após o primeiro e relativamente enigmático caso Regina v. Sleep, passaram-
se quatorze anos sem que as Cortes inglesas tenham voltado a se referir ao fechamento 
proposital dos olhos ou a algo parecido – o que permite ponderar que a decisão inaugural 
não causou tanto impacto quanto se poderia imaginar, talvez justamente em decorrência 
da insuficiência estrutural nela exprimida. Apenas em 1875 surgiu uma continuação à 
40 
jurisprudência sobre a matéria. No caso Bosley v. Davies, a administradora44 de um hotel 
foi acusada e condenada sob a Lei de Licenciamento de 1872 por ter permitido a prática 
de jogo ilegal em recintos do estabelecimento.45 Os jogadores de carta, que estavam em 
uma sala reservada, corroboraram a estória da administradora de que não apenas eles não 
receberam as cartas dela, mas de que ela não

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