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EA D 2 O Problema Sinótico e as Origens Cristãs 1. ObjetivOs • Formular de maneira breve as principais hipóteses de for- mação dos Sinóticos. • Indicar a interdependência dos Sinóticos em relação ao Evangelho de Marcos. • Demonstrar a relevância dos Sinóticos para a compreen- são das origens cristãs. 2. COnteúdOs • Problema sinótico e crítica das fontes. • Hipóteses quanto à formação dos Evangelhos. • Inventário da tradição de Jesus a partir das fontes escri- tas. • Aspectos dos quais decorrem as diferenças entre os Evan- gelhos. © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 76 3. Orientações para O estudO da unidade Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Tenha à disposição para consulta uma Bíblia. Se possível tenha mais de uma versão, a fim de conferir as diferen- ças na tradução. 2) Leia atentamente a unidade e conceda atenção às refe- rências bibliográficas indicadas. Algumas dessas referên- cias podem ser obtidas pela Web. A leitura de tais indica- ções tem por finalidade complementar as informações apresentadas nessa unidade e oferecer oportunidade de ampliar seus conhecimentos por meio de instrumental teórico sofisticado. 3) Faça a leitura desta unidade quantas vezes forem possí- veis. Esse conteúdo é pré-requisito para a compreensão das unidades posteriores e lhe oferecerá condições teó- ricas para assimilar as características dos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. 4) Sugerimos a leitura da referência a seguir, como impor- tante subsídio para a compreensão do problema sinóti- co: KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testa- mento. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 33-93. 5) Para saber mais a respeito do Evangelho de João, consul- te: KONINGS, Johan. Evangelho segundo João. Amor e fi- delidade. Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal, 2000, 425p. (Comentário Bíblico); MATEOS, Juan e BARRETO, Juan. O evangelho de São João. Análise lingüística e co- mentário exegético. São Paulo: Edições Paulinas, 1989. 923p. 6) Para saber mais a respeito da literatura apocalíptica e da relação desse conjunto literário com as origens cristãs, recorra à revista eletrônica Oracula, no site disponível em: <www.oracula.com.br>. Acesso em: 13 nov. 2011. Veja ainda: NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza; OT- TERMAN, Monika; ADRIANO FILHO, José. Apocalíptica cristã-primitiva. Uma leitura para dentro da experiência religiosa e para além do cânon. In: Revista de Interpreta- 77© O Problema Sinótico e as Origens Cristãs ção Bíblica Latino-Amerciana 42/43(2002): 162-190; RO- DRIGUES, Elisa. O Anúncio do Reino de Deus em Q9.57- 62. Expectativas Apocalípticas e Sabedoria Cotidiana no discurso do Filho do Homem (Dissertação de Mestrado do Curso de Pós-Graduação em Ciências da Religião. São Bernardo do Campo: Umesp, 2003). 4. intrOduçãO à unidade Vimos na unidade anterior que o tema da redação dos livros que compõem o cânon da Bíblia judaico-cristã é amplo e marcador de uma longa trajetória de pesquisas e estudos sobre as tradições da Bíblia hebraica e do Novo Testamento. Como já vimos, esses estudos focalizam as recorrências e as interseções entre judaís- mo e cristianismo, a partir do Império Romano, do helenismo e da difusão e trocas simbólicas entre culturas do povo de Israel e das civilizações vizinhas. Contudo, apesar do volume de informa- ções que essa história envolve, esta unidade se centrará no deba- te acerca dos Sinóticos, como fontes do período e da Crítica das Fontes como metodologia que visa compreender as motivações e contextos próprios de redação de cada Evangelho. A breve exposição a seguir se concentrará, de um lado, nas hipóteses de formação dos Sinóticos, considerando, em especial, a interdependência dos Sinóticos em relação ao Evangelho de Mar- cos e, de outro, no debate da relevância dos Sinóticos para a com- preensão das origens cristãs. 5. O prOblema sinótiCO e a CrítiCa das fOntes O problema sinótico consiste na constatação de que existem diferenças e semelhanças na redação dos evangelhos. Essa consta- tação explica-se pelo entendimento de que os autores de tais tex- tos, no processo de elaboração de cada Evangelho, acrescentaram à tradição escrita narrativas acerca da vida e dos ensinamentos de © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 78 Jesus, conhecidas pela tradição oral. Isso significa que cada autor, ao descrever a história de Jesus, utilizou livremente memórias e fontes que estavam à disposição. A escola que investiga essas particularidades do texto bí- blico é chamada "Crítica das fontes". Ela se dedica à análise dos estágios que conformaram a produção dos Evangelhos. "Ela faz e procura responder a seguinte pergunta: Que fontes escritas ( ) os evangelistas empregaram na compilação de seus evangelhos?" (CARSON, 1992, p. 31-38). Tal questão interessa tanto ao historiador do cristianismo primitivo, quanto ao exegeta ou ao indivíduo que tem relação de fé com os textos bíblicos. Para respondê-la, a academia de estudos bíblicos da Alemanha, representada pela escola da Crítica das For- mas elaborou o conceito de comunidade "por trás" do Evangelho e formulou o entendimento de que se o Sitz im Leben (situação vivencial) de uma comunidade pudesse ser bem compreendido, o texto (evangelho que a comunidade produziu) seria lido corre- tamente. Martin Dibelius, um dos primeiros dos mais importantes críticos da forma, em 1934 definiu Sitz im Leben "como o estrato histórico e social em que precisamente aquelas formas literárias foram desenvolvidas" (s. d). Já em 1969, W. Marxsen foi o primeiro a introduzir três Sitze im Leben: • O Jesus Histórico (a situação de atividades de Jesus). • A Crítica das Formas (a situação da Igreja primitiva). • A Crítica da Redação (a situação do evangelista na criação do Evangelho). Consequentemente, as décadas de 1960 e 1970 testemu- nharam uma onda de estudos nos Evangelhos que se preocupou com a situação das comunidades subjacentes a cada texto. Eventualmente, eram usados alguns métodos da área das ciências sociais para a reconstrução das comunidades subjacen- 79© O Problema Sinótico e as Origens Cristãs tes aos Evangelhos. Uma das obras que utilizou a sociologia para compreender e reconstruir o painel cultural das origens cristãs foi Sociologia do movimento de Jesus, de Gerd Theissen, publicado pela primeira vez no Brasil em 1977, que estudamos na unidade anterior. Obviamente, existem muitos outros trabalhos que em- pregaram essa metodologia. De tais estudos explodiram uma série de conclusões e resultados diferentes. Em 1979, Luke Timothy Johnson criticou um trabalho que reconstruía a comunidade de Lucas. Para Johnson, descrições ge- rais dos leitores fazem injustiça ao texto e destroem o sentido e a intenção literária. Em outras palavras, Timothy considerou simpló- ria essa reconstrução, pois reduzia o texto a apenas uma projeção, reflexo da comunidade, desprezando os aspectos literários da nar- rativa, a construção da redação e os interesses vinculados a essa produção. Em 1988, Dale Allison – um importante comentarista do Evangelho de Mateus – argumentou que o termo "comunidade lucana", por exemplo, não deveria ser usado para o Evangelho de Lucas, visto que o evangelho pode ter tido a interferência de reda- tores especializados. No volume que trata das apropriações para reconstrução da comunidade mateana (BALCH, 1991), Jack Dean Kinsbury conce- deu uma surpreendente advertência sobre a prática metodológica de atribuir os Evangelhos às comunidades. Em 1992, Graham Stanton, no livro A Gospel for a new peo- ple (Um evangelho para um novo povo), discutiu a possibilidade de se descobrir a comunidade mateana, a partir do próprio texto de Mateus. Ele admitiu que a reconstrução sobre essas linhas podem exigir muito da imaginação disciplinadado historiador. Posteriormente, Stanton mostrou que alguns dos mais re- centes trabalhos sobre outros primeiros escritos cristãos podiam ser considerados "lembranças" (pistas) do ambiente de Mateus, traçando possíveis contextos de dentro do judaísmo e dos primei- © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 80 ros cristianismos. Para Stanton, a chave metodológica "é notar que o Evangelho não é uma carta, visto que uma carta não fornece janelas claras sobre a situação social dos receptores" (s. d.). Ainda em 1992, Frederik Wisse argumentou em um artigo in- titulado Historical method and the Johannine community (Método histórico e a comunidade joanina) que a hipótese usada para de- terminar as circunstâncias históricas da composição do Evangelho de João por meio de dados indiretos é altamente problemática. Wisse denominou impressionante que os estudiosos dos Evangelhos classificassem essa literatura como única e transpa- rente quanto à situação histórica das comunidades. Para ele, esse tipo de abordagem e prática metodológica revela que os estudio- sos têm dificuldade de enfrentar o desapontamento diante das conclusões justificadas por evidências muito limitadas e interesses próprios. Bengt Holmberg (1990) comentou que o postulado de uma correlação completa e positiva entre um texto e o grupo social que transmitiu e recebeu esse texto é implausível. Ler as narrativas do Evangelho como se fossem alegorias da forma de vida de cada igreja é um tanto sem imaginação. Assim, Stephen Barton chama de "explosão de interesse" a essa corrente de estudo do Novo Testamento. Tais abordagens que desenvolvem ênfases teológicas sobre a igreja e as comunida- des subjacentes aos Evangelhos podem ser inapropriadas (KLINK, 2004). Kinsbury concordou com essa crítica e admitiu que "o texto em si mesmo não é observado como o interesse primário, mas como um veículo para recepção de outra coisa; em outras pala- vras, a situação social da comunidade" (KLINK, 2004, p. 64). De acordo com essa análise, a exegese dos Evangelhos, que busca apenas reconstruir as comunidades "por trás" do texto, co- loca à margem cultura, valores próprios do período antigo e outras 81© O Problema Sinótico e as Origens Cristãs informações que poderiam ser importantes para entender as ori- gens cristãs, o surgimento do cristianismo e os processos sociocul- turais que motivaram a escrita dos Evangelhos. A crítica, portanto, recai sobre um tipo de exegese que tem "obsessão" pelas reconstruções de comunidades sem considerar que tais reconstruções podem ser idealizadas, conforme a pers- pectiva de cada comentarista e, nesse sentido, materializam as projeções dos próprios exegetas fincadas no seu próprio tempo e ideologias. Tais reflexões críticas sobre a noção de "comunidade por trás do texto" não invalidam essa possibilidade de chave metodo- lógica, mas evidenciam que a exegese deve atentar para outros âmbitos que subjazem à produção do texto. Ou seja, entender o período histórico, os códigos de comportamento da época, como tais códigos determinavam as sociabilidades e, ainda, subsidiavam a produção cultural. Essas "comunidades por trás do texto" não estavam à parte desses processos. 6. O "Olhar" para dentrO das fOntes Sabemos que a Crítica das Fontes, em parte, foi responsável pela criação do conceito comunidade mateana, lucana, marcana e joanina. Embora reconheçamos os limites metodológicos dessa abordagem, devemos entender que a Crítica das Fontes ofereceu- -nos um importante legado teórico para compreensão do conjunto sinótico. Legado esse que contribuiu para o desenvolvimento de outras abordagens como a Crítica Literária. A Crítica Literária verificou que as semelhanças na estrutura dos Evangelhos, no uso das palavras e na sequência das narrativas, sugerem que entre os Evangelhos existiu alguma dependência e, talvez, o compartilhamento de fontes. Obviamente, tais recorrências no uso das palavras necessi- tam ser verificadas, inicialmente na língua original, que é a língua © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 82 grega koinê (o termo grego que se refere à língua usada pelos au- tores neotestamentários. Diz respeito à língua falada nos tempos de Jesus, espécie de grego popular que reunia expressões do gre- go clássico e do aramaico). Assim, como nas traduções se podem verificar semelhanças, a comparação das narrativas bíblicas também evidencia certas in- terrupções abruptas, construções não comuns e omissões que cor- respondem às diferenças. Vejamos o Quadro 1 a seguir: Quadro 1 Sinótico mc 2,10-11 lc 5,24 mt 9,6 10 Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados – disse ao paralítico: 11 eu te mando: Levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa. 24 Mas, para que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados – disse ao paralítico: eu te ordeno: Levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa. 06 Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados – disse, então, ao paralítico: Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa. Conforme verificamos no exemplo anterior, no texto de Ma- teus não aparece a expressão "Eu te mando" ou "Eu te ordeno", conforme Marcos e Lucas. Além disso, o texto de Mateus não dis- corre sobre o buraco no teto que foi aberto pelos amigos do paralí- tico. Tais omissões, embora não comprometam o conteúdo central da narrativa, indicam que havia diferenças entre os evangelistas, seja na forma de descrever as narrativas – quanto ao estilo e uso do grego – seja no que julgavam ser indispensável à narrativa. Des- se modo, como destacam alguns estudiosos: "Essa combinação de correspondência e discordância também alcança a estrutura geral dos evangelhos" (CARSON, 1992, p. 29). Portanto, é possível perceber que os três Evangelhos: 1) seguem praticamente a mesma ordem de acontecimen- tos; 83© O Problema Sinótico e as Origens Cristãs 2) omitem informações que podem ser encontradas nos outros dois Evangelhos; 3) apresentam incidentes que os demais não relatam; 4) possuem algumas diferenças quanto à ordem de um evento, em pelo menos um dos dois Evangelhos. Na busca por uma hipótese que explicasse correspondências e disparidades entre os Sinóticos, emergiram diversas possibilida- des; relacionamos brevemente algumas delas a seguir: Dependência comum de um Evangelho original (proto-evangelho) – proposta de G. E. Lesing (1771), escritor e crítico alemão. Susten- tou que a relação entre os Sinóticos poderia ter-se dado a partir do uso (independente) de uma fonte original escrita em hebraico ou aramaico. Esta hipótese foi duramente criticada, principalmente, a partir do século 20. Dependência comum de fontes orais – proposta por J. G. Herder e posteriormente, J. K. L. Gieseler (1818). Eles sustentaram a depen- dência dos Sinóticos em função de certo sumário oral relativamen- te fixo sobre a vida de Cristo. Esta hipótese foi mais aceita durante o século 19. Dependência comum de um número cada vez maior de fragmentos escritos – F. Schleiermacher foi responsável por propor que entre a igreja primitiva circulavam diversos fragmentos de tradição sobre Jesus, escritos pelos apóstolos. Tais fragmentos cresceram gradual- mente e foram incorporados aos Evangelhos Sinóticos. Teoria da interdependência – sustenta que dois dos autores usa- ram uma ou mais fontes para a elaboração do seu evangelho. Esta teoria é geralmente mais aceita pelos estudiosos (CARSON, 1992, p. 31-32). Essa última proposta de interdependência, com a qual con- cordamos, suger,e a partir da análise de paralelismos sequenciais entre os Evangelhos Sinóticos, que podemos observar Mateus e Marcos juntos em oposição a Lucas, e Lucas e Marcos juntos em oposição a Mateus, porém, Mateus e Lucas nãose opõem a Mar- cos. Assim, surge o "argumento da sequência" que apresenta Marcos como o termo médio no relacionamento entre os Sinóticos. Isso significa que o Evangelho de Marcos seria a fonte usada por © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 84 Mateus e Lucas na composição de seus evangelhos. Essa hipótese explica as correspondências entre os três primeiros evangelhos. As diferenças, portanto, estariam relacionadas ao estilo e às particularidades de Mateus e de Lucas, vinculadas principalmente às expectativas do grupo com o qual se importavam e procuravam promover a fé em Jesus. Todos esses estudos e hipóteses acerca da redação dos Evan- gelhos desencadearam, ainda, outras questões relacionadas prin- cipalmente à veracidade das narrativas e dos acontecimentos so- bre a vida, os ensinamentos e os milagres realizados por Jesus de Nazaré. Embora esse tenha sido um período difícil para a pesqui- sa sobre Jesus e para a teologia, é importante destacar que desta época surgiram novas possibilidades de compreensão acerca do significado do movimento cristão e da sua abrangência. A despeito dos séculos e das tendências de interpretação, os Sinóticos continuam a representar importantes fontes de estudo e de investigação para aqueles que desejam conhecer o período antigo e como as sociedades viveram, produziram cultura, religião, cultura e política. 7. fOntes sinótiCas Podemos entender por "canônicos" os primeiros quatro evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e João. Dos quatro elencados, apenas os primeiros três são considerados Sinóticos. Essa disposi- ção, no entanto, não reflete a ordem cronológica de composição dessas fontes e tampouco indica que são os únicos escritos judai- co-cristãos desse gênero. Apesar das diferentes hipóteses quanto à origem do cânon assim como o conhecemos hoje, é quase consenso entre os biblis- tas que Marcos teria sido o primeiro evangelho redigido – o termo médio – e que os outros (Mateus e Lucas) teriam se inspirado em seu material para compor suas versões. Ainda, outro material cha- 85© O Problema Sinótico e as Origens Cristãs mado Fonte dos Ditos ou Fonte Q, sobre a qual discorreremos mais atentamente na sequência, teria sido usada livremente por cada um dos redatores dos Evangelhos. O esquema a seguir ilustra essa hipótese (THEISSEN, 2002, p. 45). Algo importante a se acrescentar é que, seguindo nessa perspectiva, Mateus e Lucas poderiam ter materiais próprios que empregaram para a redação de seus evangelhos, eles foram cha- mados "M" de Mateus e "L" de Lucas. Por essa razão, os Evangelhos de Marcos, Lucas e Mateus são chamados "Sinóticos", que significa "espelhos" e, nesse caso, o termo "sinótico" indica a qualidade de terem informações em comum. "Há muito tempo já se percebeu que esses três evangelhos apre- sentam materiais paralelos numa estrutura semelhante e com fre- qüência na mesma seqüência de perícopes individuais (...) a reda- ção das respectivas passagens paralelas em quaisquer dois ou três desses evangelhos é muitas vezes quase a mesma, ou tão próxima, que certamente se deve concluir pela existência de algum tipo de relação literária" (KÖESTER, 2005, p. 48). O Evangelho de João, embora tenha sido reconhecido como canônico, distingue-se dos outros três por causa do uso do grego, da linguagem e da teologia, especialmente, em função dos longos discursos atribuídos a Jesus. Por essa razão, não foi considerado sinótico. Outro aspecto interessante é que o Evangelho de João apresenta alta complexidade no uso do grego, em muitos casos, muito próxima da forma filosófica da retórica grega. A palavra "cânon" é o empréstimo semítico de certo termo que, etimologicamente, significa (1) "junco", passou a designar (2) "vara de medir" e, posteriormente, (3) "regra", "padrão" ou "nor- ma". Mas, somente em um momento posterior passou a indicar "lista" ou "tabela". Durante os séculos 1º e 3º EC, o vocábulo refe- riu-se especificamente ao conteúdo normativo doutrinário e ético da fé cristã. Já por volta do século 4º, passou a designar a lista de livros que constituem o Antigo e o Novo Testamento. Atualmente © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 86 esse sentido é o mais comum: "coleção encerrada de documentos que constituem Escritura autorizada" (BITTENCOURT, 1993, p. 24). Os cristãos do século 1º não dispunham de um cânon para o Novo Testamento. Inicialmente dependiam da (1) pregação dos apóstolos e (2) dos livros (rolos, pergaminhos), que hoje conhe- cemos como o cânon do Antigo Testamento ou Bíblia hebraica, a Tanak, cujo Quadro 2, a seguir, mostra como ela se dividia. Quadro 2 Divisão da Tanak torá (A Lei) Gn, Ex, Lv, Nm e Dt nebiim (Os Profetas) Os Anteriores: Js, Jz, Sm (1 e 2 considerados em conjunto), Rs (1 e 2 em conjunto); Os Posteriores: Is, Jr, Ez e o Rolo dos Doze: Os, Jl, Am, Ab, Jn, Mq, Na, Hab, Sf, Ag, Zc e Ml. Ketubim (Os Escritos) Poesia e Sabedoria: Sl, Pr, Jó. Com a atuação dos discípulos de Jesus e o crescimento das comunidades cristãs, foi necessário que, de algum modo, a tra- dição fosse normatizada a fim de que as informações sobre vida, ensinamentos e feitos de Jesus não se perdessem. Como se sabe, após os eventos morte, ressurreição e ascen- são de Jesus aos céus, o grupo de seguidores e de discípulos do Na- zareno, durante muito tempo, transmitiu as histórias, as memórias e os ensinamentos de Jesus por meio da oralidade. Isso implica, como dizem os mais velhos, que "quem conta um conto, aumenta um ponto". Um ditado popular levado a sério pelos estudiosos da Bíblia que entenderam que, em parte, as diferenças no material de cada Evangelho pode ser explicada pelo acesso a diferentes fon- tes orais que cada um dos redatores pode ter tido no processo de compilação das tradições sobre vida e ministério de Jesus. Desse modo, deu-se a passagem da tradição oral para a tra- dição escrita que não eram excludentes, mas dialógicas. Isso quer dizer que a tradição oral alimentava os escritos e o contrário tam- bém ocorria. Tal relação entre oralidade e escrita implica que a 87© O Problema Sinótico e as Origens Cristãs compilação dos Evangelhos, ao modo de cada redator, foi seletiva. A seleção, entretanto, deve ser entendida à luz do conjunto de ex- pectativas e das questões que cada grupo de seguidores e preten- dentes à conversão faziam às lideranças cristãs do período. Sabemos que os anos que se seguiram após a morte de Je- sus, o líder que tantos judeus aguardavam e que não correspon- deu às esperanças de muitos deles, foram difíceis. As expectativas de muitos não se concretizaram: os judeus permaneceram sob do- mínio romano, a cultura e a religião judaica não retomaram seu lugar de centralidade na vida do povo judeu e o helenismo avan- çava, "descaracterizando" a tradição dos patriarcas de Israel. Para muitos judeus, as promessas messiânicas não se concretizaram em Jesus e isso significava o fracasso de mais um profeta. Em contrapartida, amparado pelas visões e relatos a respei- to da ressurreição e ascensão de Jesus aos céus, alguns dos discí- pulos de Jesus começaram a profetizar o seu retorno sob a forma de rei. Era a tradição profética e apocalíptica conhecida desde a Bíblia Hebraica, que se apresentava sob nova forma, apropriada e re-significada pelos discípulos de Jesus. Para justificar a promessa de seu retorno futuro, recorreram à autoridade da profecia judai- ca. Assim, Jesus foi aclamado o Filho do Homem: Naqueles dias, porém, depois daquela tribulação, o sol escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas estarão caindo do céu, e os poderes que estão nos céus serão abalados. E verão o Filho do Homem vindo entre as nuvens com grande poder e glória. Então ele enviará os anjos e reunirá seus eleitos, dos quatro ventos, da extremidade da terra à extremidade do céu (Mc 13,24-27). O Filho do Homem, um título conhecido da tradição judaica eque já havia sido usado para descrever aquele que viria para livrar os filhos de Iahweh do jugo da Babilônia, em (Dn 7,13-14), foi re- tomado pelos redatores dos Evangelhos e atribuído ao Nazareno. O mesmo epíteto pode ser encontrado em Daniel 8,17 como referência ao próprio profeta Daniel. Filho do Homem (bem ‘Adam), que pode ser traduzido, também, por Filho da Humanidade, ou © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 88 simplesmente ser humano, foi o nome pelo qual o anjo Gabriel chamou Daniel para ajudar-lhe a desvendar as visões que teve. Em geral, esse título é bastante usado pela literatura apocalíptica e foi atribuído, também, a outros profetas como Elias, Ezequiel, Melqui- sedec e João Batista. A imagem do Filho do Homem correspondia a de um ser celestial com feições humanas, seria uma representação do próprio Iahweh e não somente um anjo. (...) o que significa a expressão "huis tou anthrōpou" do ponto de vista puramente filológico? Teremos de remontar ao aramaico: "huis tou anthrōpou" corresponde ao aramaico "barnascha". "Bar", como se sabe, é o equivalente aramaico do hebraico "ben", filho. Encontramos esse termo em diversos nomes próprios tais como Barnabé, Barjonas, Bartolomeu etc. "Nascha", derivado da mesma raiz que o hebraico "isch", plural, "anaschin", significa "homem". (...) "Barnascha" é, portanto, em aramaico, aquele que pertence à espécie humana e significa "homem" (cf. CULMANN, 2001, p. 183). Informação –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– "Do meio de seus irmãos lhes suscitarei um profeta semelhante a ti; e porei as minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar" (Dt 18,18). Palavras como essas compõem a tradição judaica desde os tempos de Moisés. Elas marcaram o modelo do líder, profeta e salvador que libertaria Is- rael da opressão e castigaria os inimigos com a destruição. Figuras marcantes representadas pelos profetas, porta-vozes de Deus, situaram-se na trajetória de Israel ganhando destaque pelo anúncio da mensagem de Iahweh. Em seus dis- cursos ficavam evidenciadas as palavras fortes de arrependimento e retomada dos princípios estabelecidos pelo único Deus por meio das leis mosaicas. A cons- ciência criada pelo arrependimento e retomada da vida piedosa são temas que permeiam o Antigo Testamento principalmente nos escritos proféticos. Assim, profecia e apocalíptica estavam enraizadas no seio das primeiras comunidades cristãs de herança judaica como elementos fundantes do ethos desses grupos. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Para alguns judeus, o Filho do Homem era comparável a João Batista ou Elias: Enquanto ele estava orando à parte achavam-se com ele somente seus discípulos; e perguntou-lhes: Quem dizem as multidões que eu sou? Responderam eles: Uns dizem: João, o Batista; outros: Elias; e ainda outros, que um dos antigos profetas se levantou. Então lhes perguntou: Mas vós, quem dizeis que eu sou? Respondendo Pedro, disse: O Cristo de Deus (Lc 9,18-20; cf. também At 3,17-22). 89© O Problema Sinótico e as Origens Cristãs As palavras de Jesus elencadas nos Evangelhos apontam para a caracterização do Nazareno como Filho do Homem, profeta e fi- lho de Deus (Lc 13,34; 20,9-18; Mt 23,27). Todavia, esse ponto da pesquisa não encontra consenso, pois, segundo alguns estudiosos, Jesus não tinha autoconsciência messiânica e nunca se intitulara o Messias (BULTMANN, 1951, p. 30). Algo que estaria explicitado no uso de terceira pessoa para se referir ao Filho do Homem. A identificação dessa expressão tipicamente judaica na re- dação dos Evangelhos, que chamamos "campo semântico", ajuda- -nos a perceber a dependência que essa literatura, bem como o movimento de Jesus e os primeiros discípulos tinham da história de Israel e de toda a cultura desse povo, que de certo modo condi- cionava as origens cristãs. Além de encontrarmos a expressão Filho do Homem em tex- tos do Antigo e do Novo Testamento, a mesma expressão pode ser identificada em trechos da literatura pseudoepígrafa, como 1Eno- que e 4Esdras, importantes documentos do período. Assim, história, tradição, profecias, a vida de Jesus e os seus ensinamentos precisavam ser conciliados. Todas essas informações necessitavam ser condensadas, harmonizadas e coerentemente organizadas num relato que correspondesse às expectativas dos judeus convertidos ao movimento de Jesus, que respondesse às questões dos gentios e dos judeus helenizados que se convertiam ao Nazareno e, finalmente, que atendesse às reivindicações dos judeus zelosos da Lei. Isso justifica, de certo modo, as diferenças entre os Evange- lhos, já que cada sinótico teria dedicado sua escrita a audiências específicas, umas com mais presença judaica, outras com mais presença gentílica e outras audiências mistas. De acordo com o inventário que John Dominic Crossan (1994, p. 465-472) elaborou sobre a tradição de Jesus em diferentes fon- tes escritas, com exceção da Fonte Q, os primeiros escritos cristãos são do apóstolo Paulo e não dos redatores dos Evangelhos. © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 90 Para desenvolver esse inventário, Crossan (1994) utilizou em parte a pesquisa de Helmut Köester (2005) em sua obra Introdu- ção ao Novo Testamento. Desse modo, num primeiro estrato situ- ado entre os decênios 30 e 60 EC, poderíamos relacionar: 1) A Primeira Epístola de Paulo aos Tessalonicenses – escri- ta em Corinto, no final da década de 50 EC. 2) A Epístola de Paulo aos Gálatas – escrita em Éfeso, entre 52-53 EC. 3) A Primeira Epístola de Paulo aos Corintos – escrita em Éfeso, entre 54-55 EC. 4) A Fonte Q ou Fonte dos Ditos – composta por volta de 50 EC, provavelmente, em Tiberíades, Galileia. O segundo estrato entre os anos de 60 e 80 EC, seria consti- tuído por: 1) O evangelho "secreto" de marcos – composto talvez no início da década de 70 EC, espécie de material próprio do evangelista. 2) O evangelho de marcos – segunda versão em que te- ria deixado narrativas anteriores de lado em função da interpretação indevida de gnósticos. Escrita ao final da década de 70 EC. 3) O evangelho de mateus – escrita em torno de 90 EC, em Antioquia da Síria. Baseado em Marcos e em Q. 4) O evangelho de lucas – talvez tenha sido escrito antes da década de 90 EC, mas certamente antes de João 1-20. Também baseou-se em Marcos e em Q, principalmente para compor sua narrativa anterior à paixão. 5) O evangelho de joão – primeira versão escrita no início do século 2o, sob a pressão causada pela ascendência sinótica. O terceiro estágio de composição da tradição de Jesus, so- mente a partir dos livros canônicos e dos Evangelhos, portanto, teria sido entre 120 e 150 EC, ou seja, já no século 2º. Ocasião em que o Evangelho de João é acrescido pelo capítulo 21. 91© O Problema Sinótico e as Origens Cristãs Esse quadro cronológico nos oferece uma imagem de como se formou a tradição cristã e, de certo modo, explicita a importân- cia dos escritos paulinos para a sistematização da fé dos primeiros cristãos. No entanto, há de se reconhecer que não tendo sido Paulo, uma testemunha ocular da vida, do ministério e dos ensinamentos de Jesus, a legitimidade de seus escritos e de seus depoimentos sobre Jesus tenha sido contestada inicialmente. É preciso reconhecer, ainda, que Paulo falava não do Jesus Histórico, mas do Cristo da fé, aquele que conhecera no caminho para Damasco. Tratava-se, portanto, do Cristo com o qual tinha tido experiência por intermédio de uma visão. O Jesus da história, esse ele conheceu por meio dos relatos de terceiros. Eram esses relatos, era essa oralidade que, a cada dia, se movimentava sendo acrescida, diminuída, transformada e reinventada, em função de tantas perguntas que se faziam sobre a concretização das promessas de Jesus. 8. a COmpOsiçãO dOs evangelhOs Ao perceber que os Sinóticos têm versões diferentespara a vida e ministério público de Jesus de Nazaré, surge a pergunta: o que motivou cada autor a compor seu próprio evangelho? Embora essa questão seja relevante, objeto de longa discus- são entre biblistas, as razões que motivaram cada evangelista na escrita de seu texto não são completamente conhecidas, visto que existe uma imensa lacuna temporal, espacial e geográfica entre os redatores e os intérpretes modernos. Esse hiato abre a possibili- dade de se tecer conjecturas, mas essas hipóteses não são com- pletamente amparadas, de modo que vários pesquisadores têm sugerido algumas probabilidades para explicar as diferenças entre os textos. Entre elas, destacamos: © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 92 1) O crescimento de grupos que se denominavam cristãos nos domínios do Império, na segunda metade do século 1º EC. 2) O aumento da circulação de escritos contendo histórias, ensinamentos e tradições de Jesus. 3) A diversificação das tradições a respeito da mensagem de Jesus em função da experiência e da interpretação de cada grupo de seguidores de Jesus. 4) A necessidade de responder questões específicas que esses grupos propunham aos discípulos próximos de Je- sus. 5) A expectativa quanto ao movimento cristão, se judaico, intrajudaico ou de negação do judaísmo. 6) A necessidade de se explicar a relação dos ensinamentos de Jesus de Nazaré com o judaísmo e as recomendações quanto à religião de Israel, quanto a leis e rituais de pu- reza, quanto aos tributos e quanto à obediência às auto- ridades romanas e judaicas. Evidentemente, essas possibilidades não encerram todo o quadro de expectativas das primeiras comunidades cristãs em re- lação ao que Jesus de Nazaré havia pregado. Por isso, com o estu- do das fontes, das formas e dos gêneros literários que compõem os livros sagrados da Bíblia judaico-cristã, a academia de exegese abriu-se para perceber que as literaturas canônicas e não-canô- nicas eram expressões da cultura oral que se tornaram fonte es- crita e origem da Tradição. Nas palavras de Jean Batany: "O oral escreve-se, o escrito quer-se imagem do oral, de qualquer modo é feita referência à autoridade de uma voz" (LE GOFF, 2002, p. 383). De acordo com o historiador marxista britânico Eric Hobsbawm, a ideia de Tradição como entendida hoje deve sua origem ao surgi- mento da escrita que em certa medida materializou a cultura oral ( HOBSBAWM, E.; RANGER, T., 1983). Assim, os Evangelhos constituem testemunhos – posterior- mente autorizados pelos concílios da Igreja – acerca da experiên- 93© O Problema Sinótico e as Origens Cristãs cia religiosa e de fé dos primeiros cristãos que são documentos históricos disponíveis para a pesquisa sobre (1a) as origens cristãs e o (2b) Jesus Histórico. A possível descontinuidade do estilo de alguns desses mate- riais indica, provavelmente, maior proximidade entre o texto e a realidade de quem o produziu. Consequentemente, maior inser- ção no processo sociocultural com o qual estava em relação. Re- conhecendo a amplitude desse debate, entendemos que mesmo em fontes não-canônicas existem vozes do passado judaico-cristão que necessitam ser ouvidas a fim de que a história desses movi- mentos religiosos não seja contada apenas "de cima para baixo". O estudo das fontes valoriza essas vozes e experiências re- ligiosas que se materializaram por meio da narrativa, da história, da profecia, da poesia, dos hinos, das cartas e outros gêneros lite- rários. Paul Thompson, precursor da escola da história oral, que escreveu The voice of the past. Oral history, de 1983, (A voz do passado. História oral) defendeu o valor das fontes orais como predecessores à escrita. No caso da tradição judaico-cristã, jamais teremos acesso a esse tipo de fontes. Mas, eventualmente, os textos não-canônicos como os pseudoepígrafos e chamados "apócrifos" podem sinali- zar para esses "ecos" do passado, por meio da linguagem que em- pregam, dos símbolos e imagens que emprestam do judaísmo e do cristianismo e que frequentemente recriam e atribuem novos significados às histórias que estão disponíveis na Bíblia hebraica. Esses usos podem lançar luz sobre a compreensão do movimento de Jesus, das primeiras comunidades cristãs e da redação da Bíblia judaico-cristã. Por causa da pluralidade de tradições em torno de Jesus, mui- tos estudiosos entendem que não havia apenas "um" cristianismo, mas certamente o século 1º conheceu vários "cristianismos" pro- piciados pelo espalhamento da tradição dos ensinamentos de Je- sus na Palestina e regiões próximas. Nessa ocasião, houve grande © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 94 efervescência religiosa que originou comunidades com tendências ortodoxas, místicas, sapienciais e proféticas. Como foi dito, nos primeiros anos que se seguiram à morte-ressurreição-ascenção de Jesus não havia cânon bíblico fechado que norteasse a experiência dos primeiros cristãos. Para Pablo Richard (1995, n. p. ) existe: (...) uma falsa imagem da origem do cristianismo como movimento único, com uma só estrutura institucional e corpo doutrinal, onde a diversidade teria vindo depois. Existiria uma unidade e ortodoxia primitiva e uma dispersão posterior com múltiplas heresias. Identi- fica-se unidade com ortodoxia e diversidade com heresia. Tudo isso é contrário à realidade histórica. Desde seus inícios, o cristianismo apresenta as mais variadas tendências e surgem os mais diversos modelos de Igreja (...). Essa possibilidade de compreensão dos Evangelhos, assim como de outros escritos do período, tem despertado os biblistas para certo fenômeno que se acreditava ser típico da modernida- de: a diversidade de interpretações. Isso implica que a despeito da noção de tradição unívoca que a Igreja tem buscado sustentar ao longo dos últimos dois mil anos, a experiência e a fé cristã dos que crêem em Jesus têm se revelado mais fluidas e criativas do que objetivam alguns de seus líderes. Isso nos leva a concluir que a diversidade de grupos cristãos em torno das tradições de Jesus é algo que sempre caracterizou a projeção do cristianismo na história da humanidade. Destarte, identificar diversidade na composição dos Evangelhos não com- promete a importância desses registros como fontes do período para os estudiosos, tampouco como registros de fé para os fiéis. Texto complementar: Mitologia e estudo da Bíblia: o século 19 e os começos ––––––––––––––––––––––––––––––––––––– O estudo crítico dos mitos e a aplicação dos frutos deste estudo aos materiais da Bíblia Hebraica e do Novo Testamento (NT) começou muito antes do período moderno. Nos primeiros séculos, os Pais da Igreja começaram a deformar mitos religiosos como resultado da deificação de heróis de antigas culturas e alegorizar o que poderia ser visto como mito na Bíblia. Entretanto, a pesquisa se interessou pela mitologia que re-surgiu dramaticamente durante o curso do século XIX na 95© O Problema Sinótico e as Origens Cristãs Alemanha, na Inglaterra e em outros lugares. Assim, quanto ao estudo científico dos mitos, incluindo a possível presença de materiais míticos na Bíblia, é normal- mente aceito que começou no século XIX. Há diversas razões para o notável aumento na atenção dispensada à mitolo- gia no século XIX, entre pesquisadores genericamente e entre pesquisadores bíblicos em particular. Primeiramente, os movimentos românticos deram ênfa- se sobre um tipo de imaginação primeva com interesse ressurgido em função de antigas fontes de expressões poéticas da humanidade, incluindo, como dito acima, todos os antigos mitos. Segundo, alguns resultados iniciais tornaram-se avaliáveis a partir de uma intensa investigação histórica da Bíblia, que teve início no século anterior e que então dominaria o século seguinte atribuindo aos últimos cem anos o título de "século histórico". Estes resultados sugerem que muitas das histórias que encontramosna Bíblia Hebraica e no NT resultam não de um testemunho visual ou qualquer coisa pare- cida, antes são resultado de um longo processo de tradições comunitárias. Este mesmo processo que é o responsável pela criação e preservação dos mitos, uma conclusão óbvia foi que mitos e tradições bíblicas poderiam ser estudadas frutife- ramente juntas. Finalmente, este século presenciou a descoberta de um grande número de mitos extrabíblicos os quais eram muito similares a muitos incidentes bíblicos. Por exemplo, no final da terceira parte do século XIX, os pesquisadores puderam ler um escrito mesopotâmico sobre o dilúvio (agora se sabe que se trata de uma composição épica do Gilgamesh) que foi identificado em grande parte com o relato do Gênesis 6-9. Essas descobertas eventualmente forçaram os pesquisadores a reconsiderar o relacionamento entre mitologia e tradição bíblica. Extraído de: Anchor Bible Dictionary, p. 945-947. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 9. Questões autOavaliativas Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: 1) De que maneira os evangelhos de Mateus e Lucas apresentam interdepen- dência em relação ao evangelho de Marcos, considerado como termo inter- mediário? 2) De que modo podemos o estudo e a compreensão da formação dos sinóti- cos pode contribuir para o clareamento das origens cristãs? 10. COnsiderações Compreendemos nesta unidade que o problema sinótico identificado pela crítica literária consiste na verificação de que os Sinóticos espelham um período histórico importante para a cris- © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 96 tandade, o tempo das origens. Todavia, essa projeção não foi feita segundo os mesmos padrões de escrita e as mesmas prioridades. A formação dos Evangelhos deu-se no decorrer de um longo período e envolveu a reunião de memórias, de tradições orais so- bre Jesus e seus ensinamentos e, fragmentos escritos. Um ponto comum entre pesquisadores é que alguns desses materiais foram compartilhados e que Marcos teria sido usado tanto por Mateus quanto por Lucas. Decorre dessa afirmação que Marcos foi ponto de concordância entre os demais evangelistas e que isso ocorreu em função de sua proximidade dos anos 30 EC. Lucas e Mateus, portanto, tiveram mais tempo para seleção, compilação e redação de seus materiais. Por essa razão, a escrita de seus textos é, às vezes, mais detalhada, com descrições porme- norizadas e possíveis acréscimos típicos do trabalho editorial, cuja intencionalidade primeira é enriquecer o material. Conhecemos o inventário de fontes escritas apresentado por Crossan que evidencia não apenas a cronologia dos escritos. In- formação importante para quem estuda o Novo Testamento. Ten- do como ponto de partida tal relação, intuímos que a produção paulina, a circulação de suas cartas, a recepção desses relatos e a impressão que tais escritos causaram nas comunidades cristãs, no mínimo, despertaram as recentes lideranças cristãs em Jerusalém para a necessidade de fixar espécie de tradição, de memória, de biografia de Jesus, de modo que ele fosse caracterizado como o Filho de Deus, Salvador e Mestre. Portanto, os Sinóticos são fontes do período que se pres- taram a essa função: materializar por meio do registro escrito a história de Jesus e de seus feitos. Tratava-se de uma atitude de documentação das origens da cristandade, que, mais de dois mil anos depois, serviria, também, como testemunho da experiência religiosa e da fé desses cristãos. 97© O Problema Sinótico e as Origens Cristãs 11. E-REFERÊNCIAS ORACULA. - Revista Eletrônica de Pesquisas em Apocalíptica Judaica e Cristã. Disponível em: <http://www.oracula.com.br>. Acesso em: 13 nov. 2011. PEJ. 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