Prévia do material em texto
1 OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM � Compreender os gêneros literários sob uma perspectiva teórico- histórica. � Conhecer os primórdios dos estudos sobre os gêneros, por meio de filósofos da Antiguidade. � Relacionar conhecimentos sobre os gêneros literários numa perspectiva contemporânea. Introdução à teoria dos gêneros literários: aspectos teórico-históricos INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARAÍBA UNIDADE 03 AULA 06 2 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - aspectos teórico-históricos 2 COMEÇANDO A HISTÓRIA Caro(a) estudante, bem vindo a um universo de conhecimentos literários rico em suas dimensões históricas, teóricas, estilísticas... Para começar nossa conversa, é importante saber que o assunto que vamos estudar a partir daqui remonta a tempos muito antigos, desde Platão e Aristóteles, na Grécia Antiga, por volta dos séculos IV e III a. C. Lá na Antiguidade, os filósofos gregos apresentaram uma grande preocupação em torno da discussão e do entendimento do que vêm a ser essas diversas maneiras de o ser humano expressar artisticamente o mundo em sua volta. Desde que existe a escrita com fins artísticos, ou ficcionais, o que comumente chamamos de literatura, e como já vimos no início desta disciplina, que se discute as diversas formas que o ser humano inventa para representar literariamente os fatos que vê, vivencia, escuta, tateia etc. Ora cria personagens, locais, tempos e conta a história como se tivesse uma plateia a escutá-lo: é a narrativa. Ora cria personagens que falam com vida própria e sem a intermediação de um narrador, podendo ser interpretadas por atores, constituindo, assim, uma das formas mais antigas de se representar a vida humana: o teatro. Ora cria versos e dá a eles o poder de dizerem muito em poucas palavras; de bastarem por si só; de nem ser necessário que se tenha um personagem, pois o eu-lírico já faz a vez e a voz de um ser: estamos falando do poema. Mas o assunto não se esgota nessas três maneiras. Pelo contrário, veremos nessa aula que historicamente existem três gêneros literários que apresentam seus traços estilísticos particulares e, por isso, são assim classificados. No entanto, estudar a literatura tendo por base apenas esses três gêneros é insuficiente, haja vista as diversas formas literárias criadas, a bem dizer, a partir desses gêneros, mas que se alimentam dos recursos estéticos de outros gêneros. Listá-las simplesmente não nos possibilitará a reflexão, a compreensão e a apreensão de seus aspectos mais particularizantes. Tentemos, portanto, levantar questões, problemas, que possam nos colocar diante dessa diversidade e, apreender, pelos exemplos apresentados, o que são os gêneros literários, historicamente consolidados em nossa cultura ocidental e que, atualmente, apresentam diversos desdobramentos em diversas formas. Vamos a eles? 3 3 TECENDO CONHECIMENTO Como já anunciamos anteriormente, essa discussão sobre os gêneros tem suas origens nos filósofos gregos da Antiguidade, sobretudo nos nomes de Platão e Aristóteles, nessa ordem cronológica. No entanto, não se esgota aí. Pelo contrário, embora as discussões levantadas por esses dois pensadores ainda sirvam de base para a discussão sobre gêneros hoje em dia, essas mesmas discussões se mostram insuficientes em alguns aspectos, considerando-se, sobretudo, as mudanças pelas quais o mundo já passou nesses dois mil e quinhentos anos de História (com H maiúsculo). Vamos, então, a eles... No livro III da República, em 394 a. C., Platão inaugurou a discussão sobre os gêneros literários, atribuindo a eles o seu caráter imitativo, conforme preconiza Angélica Soares (2001, p. 9), “a comédia e a tragédia se constroem inteiramente por imitação, os ditirambos apenas pela exposição do poeta e a epopéia pela combinação dos dois.” Pela ideia de imitação, Platão atribuía às artes, de um modo geral, uma função moralizante, e, pelo fato de não contribuírem para uma sociedade, cujo projeto político se consolidasse em termos ideais, os poetas deveriam ser expulsos da pólis, ou seja, a cidade construída por cidadãos dotados de virtudes. Como assim? Noutras palavras, para Platão, os poetas, enquanto imitadores de segundo grau, pois imitavam o que o artesão já havia imitado, não contribuíam para a formação de uma sociedade livre, que devesse “temer a escravatura mais do que a morte” (PLATÃO, 2011, p. 75). Na esteira de Platão, Aristóteles segue a discussão sobre os gêneros literários numa perspectiva do conceito de imitação. Na sua Poética, Aristóteles esmiúça uma teorização dos gêneros cultivados naquela época, a saber: a tragédia, a comédia, os ditirambos, a epopeia. E, para entendermos a Poética de Aristóteles (384 a.C – 322 a.C), procuremos entender, primeiramente, o que vem a ser o termo “poética”. Embora constitua o mesmo campo semântico de “poesia”, poética é um Figura 1: Busto em Mármore de Platão UNIDADE 03 AULA 06 4 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - aspectos teórico-históricos termo que não se restringe ao ato de criar poesia (ou poema). Poética significa também, e, nos termos de Aristóteles, discussão, ou teorização, sobre a criação literária de um modo geral, ou seja, sobre toda e qualquer forma escrita com fins artísticos, hoje em dia desdobrada nas seguintes espécies mais conhecidas: poema, conto, crônica, novela, romance, dramaturgia. Esta discussão, ou teorização, também não se restringe aos teóricos da literatura. Poetas e prosadores também discutem sobre o fazer literário, e mais ainda sobre o fazer artístico, seja de seus contemporâneos ou não, o que nos permite dizer, por exemplo, que o texto abaixo é parte de um exemplo da Poética de Manuel Bandeira (1986, pp. 47-48), que já faz menção à poética de Boileau: O ideal clássico: Boileau A Arte Poética [escrita por Nicolas Boileau-Despréaux] representa a codificação da doutrina clássica, já praticada espontaneamente pelos grandes escritores do meado do século. O primeiro canto trata de uma maneira geral da arte de escrever em verso. A razão é posta como soberana da criação poética: Aimes donc la raison: que toujours vos écrits Empruntent d’elle seule et leur lustre et leus prix. O conselho vem a propósito da rima [...], e outras qualidades são propostas à meditação dos poetas: a sobriedade [...], a variedade [...], a nobreza do estilo [...], que no entanto, não deve ser confundida com a afetação [...] Manuel Bandeira, além de estar entre os maiores poetas brasileiros do século XX, foi crítico e pensador do fazer artístico. Escreveu sobre literatura, música, artes plásticas. No texto em questão (O ideal clássico: Boileau), Bandeira apresenta pontos importantes d’ Arte Poética, de Boileau, um dos principais Figura 2: Busto em mármore de Aristóteles 5 escritores e críticos franceses do século XVIII. Como você pode verificar, trata-se de um texto de um poeta brasileiro do século XX que apresenta as considerações de um poeta francês do século XVIII sobre como deve ser a poesia ideal. As discussões de Boileau se ancoram na Poética de Aristóteles, ponto-chave que mais nos interessa aqui. Vejamos o que diz Otto Maria Carpeaux (2008, p. 887) a respeito de Boileau: Da personalidade literária e teoria poética de Boileau dão os manuais, desde muito, uma exposição uniforme: homem de coragem moral, imbuído de espírito malicioso de burguês parisiense, inimigo crítico do preciosismo, da ênfase. Da poesia burlesca, defensor de Racine e Moilière, teórico da ‘raison’, da ‘vérité’, da ‘nature’, da imitação dos antigos, das regras aristotélicas, da moralidade nas letras; e, também, poeta satírico apreciável. Se Boileau defendia as regras aristotélicas, o que seriam tais regras? O que Aristóteles defendia como parâmetros literários em sua Poética? É o que veremos a seguir. Em primeiro lugar, consideramos importante entender o conceito de “imitação” para Aristóteles, pois é com basena acepção de “imitação”, bastante consolidada historicamente, que sua discussão sobre gêneros se funda. Para Aristóteles, a poesia, e aqui entendemos poesia como as várias formas literárias, incluindo tragédia, comédia e epopeia, é uma imitação das coisas do mundo, das ações dos homens, dos mitos. A partir do entendimento de que poesia, ou a arte de um modo geral, é imitação da vida, Aristóteles constrói uma linha de raciocínio, seguindo a discussão de Platão, em que explica (e defende) que tal imitação da vida se dá por três aspectos: os meios, os objetos e os modos. Desta maneira, e de acordo com cada um dos aspectos, o filósofo constrói a sua teoria dos gêneros, ou das formas. Interessante retomar aqui uma diferenciação que Aristóteles faz, portanto, entre o poeta (em termo atual: escritor) e o historiador: Pelas precedentes considerações, manifesta-se, que não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem UNIDADE 03 AULA 06 6 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - aspectos teórico-históricos verso ou prosa [...] diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. (ARISTÓTELES, 1991, p. 209). Entendida essa diferença, e com base no que dissemos no início desta disciplina, no tópico referente ao conceito de literatura, suas especificidades, em se tratando de linguagem, seus valores estéticos etc., voltemos a Aristóteles e à sua discussão sobre as formas literárias segundo os meios, os objetos e os modos. MEIOS OBJETOS MODOS GÊNEROS Ritmo Canto Metro Tragédia Comédia Narrativo (poema épico) Dramático (tragédia e comédia) Os meios da imitação dizem respeito ao ritmo, canto e metro e há espécies de poesias que se servem de alguns deles ao mesmo tempo, como os ditirambos, assim como há espécies de poesia que se servem de uma de cada vez, como a tragédia e a comédia. No que se refere aos objetos da imitação, e levando-se em consideração que o pensamento de Aristóteles, herdando de seu mestre Platão, está amparado em valores morais, os poetas imitam homens piores, melhores ou semelhantes a nós, nos termos de Aristóteles. Dessa maneira, ele separa a tragédia da comédia, no sentido de esta procurar imitar os homens piores e aquela os melhores. Quanto aos modos da imitação, a poesia pode ser narrativa ou dramática, para Aristóteles e, ainda, mista, para Platão. Nesse sentido, e seguindo o es- quema de Aristóteles, com os mesmos meios, o poeta pode imitar os mesmos objetos e em modos diferentes: pela narrativa, como fez Homero; pelo drama, como as tragédias. Assim sendo, entendemos que, historicamente, as formas poéticas literárias são várias, mistas e diversificadas e que as formas gregas na Antiguidade Clássica deram origem a outras tantas formas literárias que foram surgindo ao longo dos séculos. Atualmente, as discussões em torno desse assunto têm preferido o uso do termo "formas" ao invés de "gêneros". Essas formas, nos dias atuais, constituem um verdadeiro mosaico, principalmente depois do advento da modernidade e 7 das maneiras artísticas de se expressar, criadas com os movimentos modernistas iniciados no final do século XIX e que se seguiram por todo o século XX... até hoje. Numa perspectiva bastante contemporânea, vejamos o que diz Antonine Compagnon (2001, p. 19) sobre a teoria da literatura de um modo geral: Pode-se dizer que Platão e Aristóteles faziam teoria da literatura quando classificavam os gêneros literários na República e na Poética, e o modelo de teoria da literatura ainda é, hoje, para nós, a Poética de Aristóteles. Platão e Aristóteles faziam teoria porque se interessavam pelas categorias gerais, ou mesmo universais, pelas constantes literárias contidas nas obras particulares, como por exemplo, os gêneros, as formas, os modos, as figuras. Se eles se ocupavam de obras individuais (a Ilíada, o Édipo Rei), era como ilustrações de categorias gerais. Fazer teoria da literatura era interessar-se pela literatura em geral, de um ponto de vista que almeja o universal. Ao tratar da teoria da literatura (assunto com o qual vocês terão contato aprofundado nas disciplinas específicas sobre o assunto: Teoria Literária I e II), em seu livro de título bastante sugestivo, O demônio da teoria, Compagnon, estudioso francês de nossos dias, recupera Platão e Aristóteles para mostrar a inquestionável importância dos dois filósofos gregos para as discussões em torno dos gêneros literários. Nesse sentido, e seguindo as suas dicas, veremos, por meio dos exercícios propostos a seguir, exemplos da literatura que ilustram as discussões aqui apresentadas, sobretudo relativas a Platão e Aristóteles. Figura 3: Antoine Compagnon UNIDADE 03 AULA 06 8 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - aspectos teórico-históricos EXERCITANDO Ler o excerto a seguir e responder às questões. Fazer teoria da literatura era [para Platão e Aristóteles] interessar-se pela literatura em geral, de um ponto de vista que almeja o universal. [...] Mas Platão e Aristóteles não faziam teoria da literatura, pois a prática que queriam codificar não era o estudo literário, ou a pesquisa literária, mas a literatura em si mesma. Procuravam formular gramáticas prescritivas da literatura, tão normativas que Platão queria excluir os poetas da Cidade. Atualmente, embora trate da retórica e da poética, e revalorize sua tradição antiga e clássica, a teoria da literatura não é, em princípio, normativa. (COMPAGNON: 2001, p. 19-20) a) Em que sentido, afinal, Platão e Aristóteles faziam teoria da literatura? b) Se o modelo de teoria literária é, ainda hoje, a Poética de Aristóteles, em que consiste esse modelo? (apenas uma alternativa está correta) )( na ideia de que arte imita a vida (a natureza, no termo aristotélico). )( no caráter moralizante da literatura. )( exclusivamente na natureza normativa da Poética de Aristóteles. c) Pesquisar em livros e sites sobre Platão e responder à seguinte questão: por que Platão queria expulsar os poetas da Cidade? d) Para Compagnon, a teoria da literatura ainda hoje se ancora nas ideias aristotélicas, embora haja diferenças, até porque o mundo é outro, as necessidades humanas também. Cite um exemplo dessa diferença, conforme o excerto acima. e) Realizar pesquisas em sites e livros para citar um exemplo de cada gênero abaixo relacionado (indicando o seu autor): I. Tragédia (grega) II. Comédia (grega) 4 APROFUNDANDO SEU CONHECIMENTO Sobre a teoria dos gêneros literários, ler texto bastante esclarecedor no link: http://www.portalentretextos.com.br/colunas/palavra-aberta/ generos-literarios,208,400.html 9 Por este link, você pode saber mais sobre o escritor Nicolas Boileau- Despréaux, apresentado em texto que constitui a poética de Manuel Bandeira. http://educacao.uol.com.br/biografias/boileau.jhtm 5 TROCANDO EM MIÚDOS A teoria dos gêneros literários, no Ocidente, é quase tão antiga quanto a própria literatura: tem origem na Grécia Antiga. Os principais pensadores gregos que se dedicaram a pensar a literatura, em suas formas de representação, são Platão e Aristóteles. Ambos se ancoram na ideia de que a arte imita a vida e, por essa razão, a literatura é uma imitação ou, no termo de Aristóteles, mímesis. Atualmente tal ideia continua válida, conforme preconiza Antoine Compagnon, teórico francês contemporâneo. 6 AUTOAVALIANDO Sempre que nos referimos à literatura, é mais adequado utilizarmos o termo representação ao invés de retrato. Por exemplo: o romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é uma representação (e não um retrato) da condição social de retirantes que viviam os nordestinos nas primeirasdécadas do século XX. Reflitamos sobre o fato de o termo representação estar mais adequadamente relacionado ao conceito de imitação (ou mímesis, para Aristóteles). Por quê? Porque o texto literário, por mais realista (e, portanto, retrato social) que ele deseja ser, sempre se sobrelevará a sua natureza ficcional em seus princípios estéticos. Como assim? Ora, os personagens de Vidas Secas, continuando no mesmo exemplo, embora vivam algo bastante real, do ponto de vista da realidade social nordestina e brasileira, são invenções de Graciliano Ramos, ou seja, eles, de fato, não existem enquanto cidadãos que possam exercer a sua cidadania. Imagine outro exemplo da literatura que você conhece e procure entendê- lo enquanto representação de uma realidade social. Imagine, portanto, a sua natureza imitativa por meio de seus elementos: personagens, ações, sentimentos etc e discuta com seus colegas no fórum. UNIDADE 03 AULA 06 10 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - aspectos teórico-históricos INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - aspectos teórico-históricos REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. “Poética”. In: Ética a Nicômaco. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Ross. 4 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os Pensadores; v. 2) BANDEIRA, Manuel. Seleta em prosa e verso. 4 ed. Rio de Janeiro, José Olýmpio, 1986. CARPEAUX, O. M. História da literatura ocidental. 3 ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. 4 v. (Edições do Senado Federal; v. 107-B). COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Trad. de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. PLATÃO. A República. Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2000. SOARES, Angélica. Gêneros literários. 6 ed. São Paulo: Ática, 2001. Introdução à teoria dos gêneros literários: aspectos teórico-históricos 1 OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM 2 Começando a história 3 Tecendo conhecimento 4 Aprofundando seu conhecimento 5 Trocando em miúdos 6 Autoavaliando REFERÊNCIAS