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Rozsika Parker - A criação da feminilidade

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Prévia do material em texto

A criação 
da feminilidade 
ROZSIKA PARKER 
1984 
O bordado é o passatempo preferido de 2% dos homens britànicos, 
mais ou menos a mesma quantidade daqueles que frequentam a igre- 
ja regularmente. Em um mês normal, uma média de um homem em 
três tenta a sorte com palpites de futebol ou faz alguma outra aposta. 
O jornal The Guardian tinha certeza de que sua cobertura da pesquisa Social 
Trends, realizada pelo governo em 1979, chamava atenção e que essa primeira 
frase do texto era divertida por sua falta de coerência. Supõe-se, implicitamente, 
pela justaposição de homens que bordam e vão à igreja, que esses 
homens säão reli- 
giosos, puritanos e conformistas. Homens de verdade 
fazem apostas e se arriscam 
nos resultados de futebol; só maricas e mulheres costuram e se reúnem em cultos. 
Dezesseis anos depois, pouca coisa mudou. A pesquisa Social 
Trends revelou 
que a grande diferença entre homens e mulheres é costurar 
e tricotar: 37% das 
mulherese apenas 2% dos homens se 
dedicaram a essas atividades em uma sema- 
na normal nos três meses anteriores à entrevista de levantamento das informações. 
A divisão sexual que atribui a costura à 
mulher está inscrita nas nossas 
instituições sociais. Uma reportagem do fim dos 
anos 1970 sobre uma grande 
escola primária do subúrbio elogiou a educação pioneira 
e zelosa dos funcio- 
nários. Duas fotografias mostravam seu método de 
ensino de cièncias: em uma, 
um pequeno grupo de meninos estava arrebatado, sem constrangimento algum, 
95 
HISTÓRIAS DAS MULHERES, HISTÓRIAS FEMINISTAS: ANTOLOGIA 
or uma 
"máquina de 
geração de energia 
por onda 
sorridentes 
exibiam 
átomos de cobre 
bor 
1970, os professores 
tentavam 
direcionar tanto meninos quanto meni 
carpintaria e 
bordado, mas 
no ensino 
secundári 
normalmente desapareciam. 
O papel do bordado 
nas propagandas e comerciais também reforca a id. 
de que o homem que pratica 
bordado esta pondo em risco sua identidade sev 
Bordar evoca, sem exceção, 
o lar. A capa de um livreto produzido por uma em- 
presa británica de mudanças 
trazia a imagem de uma casa bordada, um dos tems 
mais recorrentes dos mostruários de bordado, 
com as palavras "Guia para mu- 
danca de casa". O bordado remete 
não só ao lar, mas a um lar próspero, bem-colo. 
cado nas camadas mais altas da estrutura de classes. Uma propaganda de padröes 
de bordado garante que "fazer uma tapeçaria proporciona muito prazer e, quando 
pronta, ela traz elegància à decoração da casa e se torna uma relíquia de familia 
ndas"; na outra, duas meninas
ordados num pedaço de seda.3 Nos anos 
nas para 
ário essas iniciativas de integraça 
al. 
muito valorizada". 
O bordado não ésinónimo apenas de lar e familia, mas especifcamente de 
maes e filhas. A Heinz baseou uma campanha publicitária de ketchup em uma 
foto de um mostruário bordado com as palavras "Se os outros ketchups fossem tão 
nutritivos quanto este, eu diria isso ponto a ponto. Ann e Lucy James (principal-
mente Lucy)". O mostruário associa o ketchup ao ideal de sinceridade, inocència e 
pureza da infância. 
O bordado também evoca o estereótipo da virgem em oposição à puta, uma 
representação infantilizante da sexualidade feminina. Por isso, os absorventes 
internos da Lil-lets vinham em uma caixa que simulava um tecido bordado com 
flores em tom pastel, apresentando a menstruação como natural e absolutamente 
inofensiva. A junção de bordado e sexualidade feminina, ambos virginais por 
natureza e disponíveis para consumo, foi expressa de modo flagrante no titulo 
outorgado a uma revista pornográica, a Rustler Sampler, que oferecia "quase du-
zentas páginas, sim, duzentas páginas suculentas de fotos". A palavra"sampler
mostruário) remete à imagem de inúmeras mulheres passivas, impotentes,ape 
nas aguardando serem escolhidas e convencidas pelo rustler [ladráoj. O bordado
tornou-se inextricavelmente associado a estereótipos de feminilidade.
Gostaria de definir brevemente o que entendo por feminilidade. Em O seg 
do sexo, publicado em 1949, Simone de Beauvoir (1908-1986) escreveu: "Vese 
O conjunto do 'caráter' da mulher - conviccões, valores, sabedoria, moral, gos e condutas se explica pela sua situação"." Em outras palavras, a femin comportamento esperado e estimulado nas mulheres, ainda que naturalmen lacionada ao sexo biológico do indivíduo, é moldada pela sociedade. hordado con as 
ideias de feminilidade que podem ser vistas refletidas na história eossocial. con- 
irmam de forma notável que a feminilidade é um produto social e psicossoch Anda assim, persiste a convicção de que a feminilidade é natural na i e nao natural no homem). Esse é um aspecto crucial da ideologia do pa 
96 A CRIAÇÃO DA FEMINILIDADE 
legitimando a divis�o rígida e opressiva do trabalho. Por isso, mulheres ativas na 
emergència do feminismo, iniciada nos anos 1960, se propuseram a questionar 
definiçoes aceitas de diferenças inatas entre os sexos e a oferecer um novo enten- 
dimento sobre a criação da feminilidade. Em grupos e campanhas de conscien 
tização, conmparamos n0ssas experièncias no trabalho, na escola, em casa, nos 
relacionamentos, como mäes, filhas e irmäs. O funcionamento do sexismo foi es- 
miuçado na divisão do trabalho dentro e fora de casa, na sexualidade, na familia, 
no sistema de saúde, no cuidado da criança, na linguagem, na lei, na educação, na 
arte, na mídia e nas políticas governamentais. Tornou-se claro como raça, classe e 
sexo se cruzam na determinação da forma de as mulheres viverem. 
Discriminação institucional coexiste e interage com mecanismos e efeitos 
de subordinação psíquica, ainda que não seja possivel traçar divisões rígidas entre 
opressão interna e externa. Não se podia simplesmente dar de ombros e desprezar
o conjunto de atitudes emocionais de passividade, submissäo e masoquismo que 
garante a subordinação da mulher. Juliet Mitchell, em Psicanálise efeminismo, 
observou que: 
.) a situação da mulher está impressa no coração e na cabeça, assim 
como em casa: a opressão não foi pequena nem pontual na história 
- para continuar sendo tão eficiente, ela se infiltra pela corrente san- 
guínea da mente e das emoções. Pensar que isso não deveria ser assim 
não implica que se finja que já não é mais assim. 
Muitas feministas recorreram à teoria políticae à psicanálisepara relatar como 
a masculinidade e a feminilidade s�o construídas e reproduzidas historicamente. 
Identificou-se a família como o lugar em que se reproduziu:
da da mulher e se legitimou a exploração social e econômica da mulher como espo 
sas e mães. Ao escrever sobre a construção da feminilidade na família, a antropóloga 
Gayle Rubin comentou, em ensaio presente em Towards an Anthropology of Women: 
"Pode-se ler o ensaio de Freud sobre a feminilidade como uma descrição de como 
psicologia inferioriza-
um grupo está preparado para viver na opressão". E ela deixa claro como o processo 
é doloroso: "E sem dúvida plausível argumentar que a criação da feminilidade' em 
uma mulher no processo de sua socialização é um ato de brutalidade psíquica" 
No entanto, é importante distinguir a construção da feminilidade, a feminili-
dade vivida, o ideal feminino e o estereótipo feminino. A construção da feminilida-
de se refere ao relato psicanalítico e social da diferenciação sexual. Feminilidade é 
a identidade vivida por mulheres tanto entusiastas quanto resistentes a ela. O ideal 
feminino é um conceito histórico mutável do que a mulher deve ser, enquanto o es 
tereótipo feminino é a soma de características imputadas às mulheres que servem de 
modelo e medida para cada preocupação sua. Millicent Fawcett (1847-1929), a temi-
nista britànica do século 19, declarou: "Nós falamos de 'mulheres e voto feminino', 
não falamos de Mulher com M maiúsculo. Deixamos isso para nossos inimigos"? 
ROZSIKA PARKER 97 
onstru 
cão da feminilidade 
na tamilia e Sua manutenção 
nas instituicóes soei 
representação cultural 
da mulher que nos e imposta. O estereótipo femin.fica tudo que as mulheres 
são e fazem como completamente, essencialmas 
Em outras palavras, há 
uma ditferença signihcativa entre reconhere. 
aceitar a 
e eter 
namente feminino, negando diterenças entre mulheres de acordo com sta -posicãc 
económica ou social, de acordo com seu lugar geográfic ou histórico. Na v 
o que Gayle Rubin chamou de "ato de brutalidade psiquica" provoca resistin ncia em 
todos os niveis, de diferentes tormas em diferentes momentos históricos 
Qual é, entáão, o objetivo do estereótipo feminino? Em Old Mistresec Wo- 
men, Art and ldeology, Griselda Pollock e eu examinamos o papel do estereótino 
feminino na elaboração da história da arte. Perguntamos por que pinturas de me 
Iheres foram apartadas de pinturas de homens e por que a arte das mulheres, em 
toda sua diversidade, foi descrita como homogènea. Revelamos que o estereótipo 
oé um dos principais elementos da construção da atual visäo da históra 
da arte.' A maneira especifica de apresentar o trabalho de mulheres- a afirma 
ção constante da fraqueza feminina da arte de mulheres sustenta a dominação 
da masculinidade e da arte masculina. 
mu 
O caso do bordado é mais esquivo. Quando mulheres pintam, seu trabalho 
é classificado de "feminino", de maneira homog�nea - mas é reconhecido como 
arte. Quando mulheres bordam, isso não é visto como arte, mas inteiramente
como expressão da feminilidade. E. o que é crucial: é classificado como artesanato" 
A divisão de formas da arte em uma classificação hierárquica de arte e artesanato 
costuma ser atribuída a fatores de classe no sistema econðmico e social, separan- do artista de artesão. As belas artes- pintura e escultura- säo consideradas o campo apropriado das classes privilegiadas, enquanto o artesanatoe outras artes aplicadas-como a carpintaria ou o trabalho com prata- são associados à classe trabalhadora. No entanto, há uma ligação importante entre a hierarquia das artes e as categorias sexuais masculino/feminino. O desenvolvimento de uma ideologia da feminilidade coincidiu, historicamente, com a emergència de uma separaçao clara entre arte e artesanato. Essa divisão surgiu no Renascimento, quando o Dor dado vinha se tornando cada vez mais o campo de mulheres amadoras, que traba Ihavam em casa sem receber pagamento. Um pouco depois, a separação entre are e artesanato se refletiu nas mudanças na educação artística, dos ateliès de artes nato para as academias, exatamente no momento- século 18- em que vinnd desenvolvendo uma ideologia da feminilidade como natural da mulher. A hierarquia entre artee artesanato sugere que arte feita com linha ea com tinta são intrinsecamente desiguais: que a primeira é menos signinca Termos artisticos. Mas as diferenças reais entre elas se dão nos termos de or 9uem são produzidas. O bordado, à época da divisão arte/artesanato, era reada 
na estera doméstica, geralmente por mulheres, por "amor". A pintura erd heir. predominantemente, ainda que não só, por homens, Desde o fim do século 17 e até o fim do 19, o braço profissional do bor 
img. 9 
feita 
em 
na esfera pública, por 
, diferente 
98 
A CRIAÇÃO DA FEMINILIDADE
do da pintura, estava nas mãos de operárias ou mulheres de uma classe média baixa. 
E claro que há imensas diferenças entre pintura e bordado, diferentes condições de 
produção e de recepção. Porém, em vez de se reconhecer que bordado e pintura são, 
ambos, arte, ainda que diferentes, atribui-se um menor valor artístico ao bordado e 
ao artesanato associado ao "segundo sexo" ou à classe operária. 
Classificar o bordado é uma tarefa árdua. Nomeá-lo "arte" traz problemas 
especificos. Alçar o bordado muitos degraus acima na escada das formas de arte 
pode ser interpretado como uma mera afirmação das classificações hierárquicas,
e não uma desconstruçâo delas. Além disso, descrever o bordado como "arte" é 
ssumir o fracasso em distingui-lo da pintura, ocultando as diferenças profundas 
ue se desenvolveram ao longo da história entre as duas mídias. Chamá-lo de 
artesanato", no entanto, não é a solução. O bordado se recusa a cumprir o impera- 
tivo utilitário que define o artesanato- pois ele é, em grande parte, apenas pictÙ- 
rico. As mulheres chamam o bordado, tradicionalmente, de "trabalho". Ainda que 
de certa forma seja um nome apropriado, ele pode acabar por confirmar a noção 
estereotipada de que o bordado se resume a paciência e perseverança, nada mais. 
Além dissc o termo foi criado por uma ideologia da feminilidade como servidão, 
abnegaçãoea insistência de que as mulheres trabalham para outras pessoas, não 
para si mesmas. Decidi chamar o bordado de arte porque ele é, sem dúvida algu- 
ma, uma prática cultural que envolve iconografia, estilo e função social. 
Desconsidera-se completamente, a todo momento, que quem borda de fato 
transforma materiais para produzir sentido- significados dos mais diversos. Em vez 
disso, o bordado e o estereótipo da feminilidade se tornaram indissociáveis, são vistos 
como gratuitos, decorativos e delicados; como a cobertura de um bolo, bonita aos 
olhos, com algum gosto e status, mas desprovida de qualquer conteúdo significativo.
A aproximação entre mulheres e bordado, artesanato e feminilidade, le- 
vou escritoras preocupadas com a posição da mulk 
esse emaranhado difícil de entender. Feministas que escarneceram do borda- 
do tendem a atribuir sua atitude ao comprometimento em combater qualquer 
limitação à vida das mulheres. Assim, por exemplo, comentadores críticos do 
século 18 responsabilizaram o bordado pela saúde frágil a qual era tomada 
como evidência da fraqueza e inferioridade natural das mulheres. No século 19, 
mulheres que queriam ser levadas a sério em esferas supostamente "masculinas"
expressavam sua rejeição ao bordado como uma forma de se distanciarem desse 
ideal feminino. Em Notable Women Authors of the Day publicaç�o de Helen C. 
Black (1836-1906) de entrevistas com romancistas do fim do século 19, Adeline 
Sergeant (1851-1904) declarou: "Já fiz alguns bordados bem elaborados, tempos 
atrás, mas hoje em dia nunca pego em agulha para me divertir, só por necessi- 
dade"* Ela assevera sua seriedade e seu desprezo pela frivolidade feminina. A 
maioria das entrevistadas, no entanto, destaca sua atividade com o bordado. 
Ainda que escrever romances fosse então uma atividade aceitável para mulhe- 
res, censurava-se o profissionalismo. Assim, as mulheres se preservavam com 
ra prestarem atenção a 
99 ROZSIKA PARKER 
Iford (1845-1913 por xemplo, é descrita 
seu 
"trabalho" 
amador. A sra. 
L. B. 
Walford (1845-1915). 
Dor 
mo "uma grande bordadeira, "vestindo um lindo 
vestido 
informal: azul, ricamente 
bordado em eda por suas 
cuidou com 
suas 
próprias 
mãos não só 
das 
dos 
travesseiros, 
almofadas e da 
elegante cúpula 
do abajur"i 
Rejeitar o 
bordado, 
como fez Adeline Sergeant, 
era correr o risco de urecer 
depreciar 
outras 
mulheres ou apoiar a visão 
estereotipada 
sociedade de dominaç�o 
masculina. Por me 
que 
talvez fossem 
críticas ao 
bordado o celei 
esclarecidas do século 
17 incluíram o borda 
para 
fornecer uma 
faceta aceitável là educaçao 
de mulheres. Escritoras do século 19 de- 
fenderam o bordado, 
reivindicando-0 com 
uma forma de arte menosprezada. Alouma 
acreditavam numa 
melhoria da posição das mulheres 
não pelo desprezo de sua ativida. 
de criativa tradicional, 
mas pela exigência de 
reconhecimento de seu real valor. Em ses 
romance de 1897, The Beth Book, 
Sarah Grand (1854-1943) atribui ao bordado a evi. 
dência da superioridade das 
mulheres. Beth borda e vende seu trabalho secretamente 
em um mercado discreto 
mantido pelo movimento Arts and Crafts para comercializar
"trabalho de mulheres" Para ela, bordar representa 
a beleza da imaginação feminina, 
sua clareza espiritual em contraste com o 
racionalismo pedestre masculino. Mas essa 
tentativa de validar o trabalho das mulheres acaba, em 
última análise, reforçando a 
rigida classificação sexual ejustifica as esferasem separado. 
Romances como The Beth Book são uma fonte rica de informação sobre os 
posicionamentos acerca do bordado, que, a partir do século 18, é usado repetidas 
vezes como sinônimo de feminilidade. A partir do trabalho de quatro roman- 
cistas, mostrarei agora brevemente como cada uma faz uso do bordado para 
comentar a posição da mulher na sociedade. May Sinclair (1863-1946) parte da 
identificação entre bordado e pureza feminína para sugerir que a sexualidade da 
mulher é por natureza pura e inocente, mas corrompida pelo homem. No entan 
to, a pureza da mulher encarnada no bordado tem o potencial de transformar a 
corrupção patriarcal. Walter Majendie, em The Helpmate, publicado em 1907, trai 
Sua esposa com uma bordadeira chamada Maggie, e a delicadeza do bordado aela 
implica que Maggie é quem foi seduzida, não quem seduziu. Por fim, seu bordado 
chama atenção da família Majendie; ela é "descoberta pelo longo rastro de seu lin- 
do bordado""O trabalho é, no fim das contas, responsável por revelar ao homem 
as falhas de sua conduta: "Ele odiava ver sua criança inocente vestida comapeya 
que era o simbolo e a lembrança de seu pecado" 
May Sinclair e Sarah Grand representam essa tendência no feminismo uo Culo 19 de, ao postular a superioridade espiritual inata das mulheres, acabar inau vertidamente reafirmando o estereótipo vitoriano opressivo do "Anjo na De modo geral, romancistas do século 20 escrevem sobre bordado e temin nao como uma essência superior da mulher, mas como produto da direre xual, da vida em famiília e da relação entre mãe e filha em particular 
só das longas cortinas de sed 
próprias 
mãos"" e 
Helen 
Mathere 
apresentada
como "uma 
prandPor suas 
da arte proposta por uma 
meras questões áticas, portanto, heres 
elebravam. Assim, educadoras mulheres mais 
dado em seus currículd em grande parte 
as 
sé- 
14 
ade 
se 
100 
A CRIAÇAO DA FEMINILIDADE
Edith Wharton (1862-1937), em A época da inocência, de 1920, cria a cena 
arquetípica em que uma mäe e uma filha bordam juntas para Newland Archer, o 
filho da família: 
Em conformidade com um costume imemorial, depois do jantar 
mae e filha arrastaram suas longas saias de seda escada acima até 
uma saleta, onde havia uma mesa de jacarandáe uma sacola de seda 
verde; sentaram-se à mesa, cada qual numa extremidade, e, à luz de 
um candeeiro, puseram-se a bordar flores do campo numa tapeçaria 
destinada a adornar uma "eventual" cadeira na sala da jovem mrs. 
Newland Archer [a futura esposa do filho].5 
Janey, a filha solteira de classe média alta, está destinada, econômica e ideo-
logicamente, a ficar em casa, enredada nas ocupações refinadas de sua m�e. A fu- 
tura esposa de Newland, por outro lado, se safou pelo casamento, mas a influência 
de sua própria m�e, sintetizada pelo bordado, a acossa e, com a pressão de suas 
iguais, garante que ela reproduza a hierarquia social de sua própria família: 
Não era boa bordadeira - suas mãos grandes e hábeis foram feitas 
para cavalgar, remar, realizar atividades ao ar livre - mas, como ou- 
tras esposas bordavam almofadas para os maridos, não queria omitir 
esse último elo na cadeia de sua devoção. [..] Agora estava amadure- 
cendo para tornar-se uma cópia da mae e, misteriosamente, pelo mes- 
mo processo, para tentar transformá-lo num mr. Welland [pai dela].6 
Edith Wharton exemplifica dois usos comuns do bordado em romances de 
mulheres. No primeiro, a imagem da mulher sem jeito com a agulha é usada repe-
tidamente para rebater o estereótipo feminino e combater a forma pela qual o bor- 
dado foi usado para justificar a divisão sexual do trabalho. Diz-se que a mulher 
étão habilidosa com as mãos, mas o bordado das mulheres tem a ver com o seu 
lugar na sociedade, não com o tamanho de seus dedos. Ao mesmo tempo, Edith 
Wharton mostra, pelo bordado, o poder extraordinário da ideologia social. 
[Gabrielle] Colette (1873-1954) emprega o bordado de forma semelhante 
para solapar o estereótipo e lançar luz sobre a feminilidade. Ela, porém, é menos 
fatalista que Edith Wharton. Demonstrando uma dinàmica diferente, ela sugere 
que a construção da feminilidade não está completa e pode ser rompida e que, 
além disso, a feminilidade contém seu próprio e curioso poder. 
Quando a 6lha de Colette, Bel-Gazou (1913-1981), tinha nove anos, os ami- 
gos da escritora mostraram-se surpresos e condenaram o fato de a criança não 
saber bordar. Desesperada para não ser um fracasso como mae e empenhada para 
que sua filha cumprisse as expectativas sociais, ela insistiu que Bel-Gazou come- 
çasse a praticar os trabalhos manuais. No entanto, ela lembra como sua própria 
ROZSIKA PARKER 101 
måe reagiu quando ela, 
ainda criança, 
bordou: "Quando eue 
algum motivo eu pegasse 
na agulha para bordar, 
Sido balancava. 
menina, se por 
nçava sua cabeça de 
turando Foi a atitude 
de sua mae que impediu que Colette bordac.. 
na ideia de que outros 
trabalhos criativos tambem eram próprios às mulhere 
Ela, porém. sente-se 
ambivalente quanto a propria hllha bordando, Siae 
vidente e comentava 'Voce nunca vai se parecer com nada além de um garoto cos 
ami- 
gas a felicitam: "Olhe pra ela, como ela e boa , mas Colette discorda, em egredo: 
Devo falar a verdade: não gosto da minha filha bordando. Quando 
ela lê, ela volta toda desnorteada e corada da ilha onde se esconde im 
baú cheio de pedras preciOsas, do castelo sombrio onde uma criança 
órfá tão querida é maltratada. Ela esta sorvendo um veneno testado 
e aprovado, de efeitos há muito conhecidos. Se ela desenha ou pinta, 
uma canção murmurada se propaga dela, ininterrupta como o zum- 
bido das abelhas em torno do ligustro. E como o zunido de moscas 
trabalhando, a lenta valsa de um pintor, a ladainha da hadeira em sua 
roda. Mas Bel-Gazou fica em silêncio ao bordar, em silèncio por ho- 
ras a fio, a boca fechada com força, escondendo seus incisivos grandes 
e afados, que mordem a carne úmida da fruta como låminas de uma 
serra. Ela está em silèncio e- por que não escrever a palavra que me 
assusta?- está pensando" 
O silencio de sua filha, os pensamentos que ela guarda para si, são sinônimo 
de sua distância em relação à måe. Colette constrói a imagem de um passado ideal, 
quando o bordado mantinha um laço entre måe e filha em vez de destacar sua se- 
paração e a aproximação da criança da vida adulta. Ela pensa nas 
jovens bordadeiras de tempos remotos, sentadas em banquinhos du- 
ros, abrigadas nas amplas saias de suas mies! A autoridade materna 
as mantinha lá por anos e anos, sem se levantarem senão para trocar 
a linha ou fugir com um estranho. .]) Em que vocè está pensando, 
Bel-Gazou? 
Em nada, Mamäe, estou contando os pontos." 
A ansiedade de Colette diante da filha que borda em silêncio traduz os ao lados do bordado. Olhos baixos, cabeça pensa, ombros caídos- a posiçao signif-ca repressao e subjugação, mas o silèncio de quem borda, sua concentrayabém sugere autossuficiência, uma certa autonomia. 
Contudo, a bordadeira silenciosa se tornou parte do estereótipo da ie aaE, em que a autossuficiência da mulher que borda é interpretada con autora. A cena seguinte, de um conto da revista Cosmopolitan, pode sE encontrada em inúmeros romances romånticos:
pém 
102 
A CRIAÇÃO DA FEMINILIDADE 
Nunca se viu uma mulher tão imóvel. Sua imobilidade parecia parte 
e razão daquele verão tranquilo. Dia após dia ela se sentava em uma 
cadeira nas pedras abaixo da linda escadaria em espiral de ferro 
branco, costurando entre as rosas [..]. As mãos de Rose pareciam 
estar paradas, ainda que sempre houvesse linha na agulha. Ela deixa- 
va os homens loucos.0 
Na ficção, o silèncio e a imobilidade da bordadeira têm vários significados, 
de grande concentração até uma maneira silenciosa de pedir atenção, mas, em 
termos de estereótipo, eles são uma artimanha sexual. Se uma mulher está em 
silêncio bordando, ela está silenciosamente pedindo para ser tirada de seu silên- 
cio. O estereótipo nega que exista algosubversivo em seu silêncio ao afirmar que 
ele foi criado para os homens. Não obstante, a própria supressão tão resoluta dos 
indicativos de autonomia pelo estereótipo sugere que há algo de perturbador na 
imagem de uma bordadeira absorta em seu trabalho. 
O sentido do bordado tanto como autossuficiència quanto como submissão 
é a chave para entender a relação das mulheres com a arte. O bordado foi uma 
fonte de prazer e poder para as mulheres, ainda que indissoluvelmente ligado 
à sua impotência. A presença e a prática do bordado proporcionam estados de 
espírito especiais, além de maneiras de se experimentar. Por sua história e asso-
ciações, o bordado evoca e incute feminilidade em quem borda. Entretanto, 
tam- 
bém pode levar a mulher a uma conscientização das limitações extraordinárias 
da feminilidade, oferecendo, por vezes, maneiras de barganhar com elas e, em 
outras, provocando o desejo de se libertar dessas limitações. Ao 
observar as ma- 
neiras encobertas pelas quais o bordado se fez uma fonte de apoioe satisfação 
às 
mulheres, saímos do impasse criado pela condenação apressada 
e pela celebraç�ão 
acrítica dessa arte. No entanto, seria um erro subestimar a importância do papel 
do bordado na manutenção e criação do ideal 
feminino. No século 17, essa arte foi 
usada para impingir feminilidade 
desde bem cedo, de modo que o comportamen- 
to subsequente da menina pareça inato a 
ela. No século 18, o bordado começou 
a ser sinónimo de uma vida aristocrática,
de lazer- não trabalhar estava se tor- 
[img. 10] 
nando a marca da feminilidade. O bordado 
e suas associações reais e nobres eram 
um perfeito atestado de fidalguia, dando provas 
de que um homem era capaz 
de 
sustentar uma mulher que se dedicava 
ao lazer. Além disso, porque o bordado 
deveria ser sinônimo de feminilidade-
docilidade, obediència, amor pelo lar e 
uma vida sem trabalhar-, ele mostrava que 
a mulher que bordava era 
uma espo-
sa e mäe digna, merecedora. Por isso a arte 
tinha um papel crucial na manutenção 
social da casa, exibindo o valor da esposa ea situação 
econômica. Por fim, no sé- 
culo 19 fundiram-se definitivamente o 
bordado e a feminilidade, ea relação entre 
eles foi considerada natural. As mulheres 
bordavam porque elas eram 
femininas 
por natureza, e as 
mulheres eram femininas porque 
elas por natureza 
bordavam. 
O bordado era culpado pelos conflitos provocados 
nas mulheres pela feminilidade
103 
ROZSIKA PARKER 
arte fomentava. No fim do século, Freud determinou que a dedicae 
tante aos trabalhos manuais era um dos tatores que ofereciam tanta ocas 
desenvolvimento da histeria em mulheres. porque o devaneio duranteo o 
induzia "estados hipnoides predisponentes". 
Nos séculos 18 e 19, o tema do bordado era tão importante quanto sua 
execução na afirmação da feminilidade (e por isso seu valor ou falta de vl 
olhos do mundo). Esperava-se que ele rerietisse o 1deal teminino, que era a 
e. paradoxalmente, a mais natural conquista da mulher. Se o conteúdo corre 
desse ao ideal, ele supostamente conquistava o amor, admiraç�o e apoio da mi 
lher que borda. Ao examinar o conteúdo do bordado ao longo deste livro, veremos 
como as mulheres respondiam às ideologias de feminilidade a partir do Renasci. 
mento, como elas as usavam e eram usadas por elas. 
Raramente se dá a merecida atenção à iconograha dos trabalhos de mulheres. 
O bordado é em geral avaliado por seus desenvolvimentos técnicos. Um motivo 
para que se despreze sumariamente a discussão em torno do bordado é que ele 
emprega padrões. A interpretação, adaptação e variação do padrão é um aspecto essencial da atividade; por isso, presume-se que quem borda não se preocupa senão com questões estilísticase técnicas. No entanto, as bordadeiras escolhiam 
seus próprios padrões, elegendo imagens que tivessem algum significado para elas. A imensa popularidade de algumas imagens em diferentes momentos indica que elas tinham uma importância específica e uma ressonância poderosa nas mulhe- 
res que escolhiam bordá-las. Nos casos em que bordadeiras empregaram pinturas 
contemporåneas como padrões, percebemos o que podia ou não ser bordado por mulheres e como elas mesmas criavam seus próprios significados, se observarmos 
quais pinturas elas escolherame como se afastaram de seus modelos. Ainda assim, 
os significados de cada imagem bordada devem ser cuidadosamente analisados 
em seu contexto histórico, artístico e de classe. Aquilo que uma imagem exprime 
se relaciona com frequência às necessidades da classe da mulher, assim como à sua 
experiência como mulher naquele momento e também às principais questões das 
pinturas contemporâneas e da história do bordado. 
Por vezes, bordadeiras reforçavamo ideal feminino em seu trabalho, ocul 
tando confortavelmente os descompassos entre o "ideal" e o "real" através de pa lavras e inmagens que bordavam-"Lar doce lar". Em outras vezes, elas resistiam
ou questionavam a ideologia nascente da obediência e subjugação feminina, como nesta estrofe de um mostruário do século 17: 
cons 
asião" ao 
aos 
Quando era nova, eu não sabia 
Que o espírito deve ser comprado com tanta alegria Mas agora me diz a experiência: Pelo sucesso, tem paciência E que me dobre, se assim se desejar, Para cautela e destreza dominar 
104 
A CRIAÇÃO DA FEMINILIDADE
E Ganhar a Vida com Minhas Mãos 
Para Me Livrar de um Anel Então 
E Senhora de Mim Mesma serei 
E dessa escravidão me libertarei.. 
Evita distração v�, foge do prazer de menina 
Que a moderação seja sempre tua medida 
E assim te destina ao tesouro da vida.2 
A estrofe é uma mistura curiosa de devoção e revolta, rancor e consenti-
mento. Como os mostruários estavam se tornando o espaço em que a moral era 
transmitida às moças, eles às vezes eram também o lugar em que se expressavam 
conflitos subjacentes à ideologia. 
E de fato rara essa constatação declarada do embate entre ambição indivi 
dual e a ideologia da feminilidade. Mais comum era o desejo da bordadeira de 
cumprir exatamente aquilo que se esperava dela, com uma habilidade louvável 
que satisfizesse a todos. Em retrospecto, é fácil fazer pouco caso da bordadeira 
vitoriana que termina mais um bordado de raposa em um par de sapatilhas ou da 
bordadeira do século 18 reproduzindo com linha e agulha as pinturas moralizan- 
tes, domésticas e sentimentais de seu tempo. Mas, em vez de as ridicularizarmos 
ou nos envergonharmos da nossa história, deveríamos nos perguntar por que elas 
escolhiam esses temas, quais possiveis beneficios elas tiravam dessa conformidade 
absoluta ao ideal feminino e como elas conseguiam criar sentidos próprios para si 
enquanto correspondiam abertamente ao estereótipo opressivo. 
Esses beneficios, ou a maneira pela qual as mulheres criavam sentidos para 
si, estão por vezes encobertos. As imagens de luto do fim do século 18, por exemplo, 
tão difundidas, estão claramente de acordo com a ideologia da obediência e fideli 
dade da esposa. Qualquer que fosse a complexidade e ambivalencia do sentimento 
de uma mulher em relação a sua perda, o fato de bordar imagens convencionais de 
luto lhe oferecia a segurança da aprovação social. Mulheres são representadas no 
cuidado do túmulo familiar. No capítulo 6 de meu livro The Subversive Stitch: Em- 
broidery and the Making of the Feminine, explico como essas imagens estão ligadas 
tanto à expansão do ritual de luto doméstico quanto a comportamentos contem-
porâneos em relação à morte representados na arte neoclássica. Entretanto, uma 
comparação entre pinturas, realizadas por homens, de mulheres em luto e imagens 
bordadas de luto, realizadas por mulheres, revela diferenças significativas. Borda- 
deiras dotam suas enlhutadas de um poder e uma proemin�ncia específicos, ainda 
que elas expressem sua lealdade à ideologia da "viúva virtuosa". 
Ao se identificarem as múltiplas formas pelas quais as mulheres se adequaram 
e resistiram às regras da feminilidade em seu trabalho, é importante lembrar que o 
bordado foie é uma fonte de prazer artístico para muitas mulheres. Olive Schreiner 
(1855-1920), em seu romance From Man to Man or Perhaps Only (1927),2 evocou a 
satisfação de bordar, em especial os prazeres narcísicos que a atividade oferece: 
ROZSIKA PARKER 105 
Por toda sua vida, ela 
tinha sonhado com um vestido de uma sed, 
pre 
ta oroSsa, todo bordado em alto relevo com margaridas azuis imensas 
de miolos brancos. Sua måe tinha tido um pedaço de seda assim . em 
sma manta de patchwork que tinham comprado juntas na Inglaterra 
Bordar traz à mente imagens 
tanto da civilização "avançada" quanto is 
mais tenra infåncia, quando havia uma unidade primal, sem conflitos com a mae. 
No entanto, a atividade oferece um prazer narcisico, não só por evocar o amor ea 
unidade da primeira infância, mas tambem porque as mulheres aprendiam a bor 
dar como uma extensäo de si mesmas, e porque. de modo grosseiro. o bordado 
usado nas roupas para despertar admiração. Instadas a bordar roupas e utensilios 
estimuladas a enxergarem essa tarefa como uma expressão natural sua, as mulhe 
res ainda assim eram acusadas de vaidade quando bordavam para si mesmas. O 
estereótipo do bordado como uma ocupação frívola e vaidosa. como o estereótipo 
da bordadeira silenciosa e sedutora, controla e solapa o poder e o prazer que mu- 
lheres encontraram no bordado, apresentando-o para nós de uma forma negativa. 
Ainda assim, mulheres encontraram grande contentamento na atividade. 
Olive Schreiner traduz a imensa satisfação criativa que ela oferece: "Aos poucos. 
as nervuras e o bordado delicado iam tomando forma. No fim da semana, havia 
duas pequenas cavas. Quinze dias depois. a longa corda branca. com seus pontos 
delicados e invisíveis, também estava completa."a" Ela também notou o vinculo 
que o bordado criava entre as mulheres: ele permitia que elas se reunissem sem 
sentir que estavam negligenciando suas familias. perdendo tempo ou traindo seus 
maridos ao desenvolverem seus próprios laços sociais: 
Elas não se assemelhavam, nem fisica nem mentalmente, mas seus 
gostos combinavam. Enquanto Veronica se sentava reta em uma 
cadeira de espaldar alto, tricotando quadrados pesados para uma col- 
cha de cama, mrs. Drummond, sentada em um sofá baixo, a cabeça 
inclinada de leve para um lado, escolhia com cuidado os tons de seda 
para uma toalha de altar que estava fazendo. 
A escolha do trabalho manual indica as diferentes personalidades; que ambas se dedicavam à arte doméstica revelao que elas compartilhavam sendo mulheres na sociedade. 
Depois de situar o bordado no centro da vida das mulheres, Olive Schreiner faz um apelo de que ele seja reconhecido como arte, como uma atividade de expressao da criatividade, mas ainda assim trai sua empatia pelo sentimento manifestado pors romancistas contemporåneas, Sarah Grand e May Sinclair, em relaç�o ao borddu 
as 
poeta, quando seu coração está pesado, escreve um sonetO, TOr pinta um quadro eo pensador se joga no mundo da açao; 
-
106 
A CRIAÇÃO DA FEMINILIDADE
a mulher, que é só uma mulher, o que ela tem além de sua agulha? 
Naquele pedaço destruído de suspensório de couro marrom, traba- 
lhado e retrabalhado com seda amarela, naquele pedaço de trapo 
branco com pontos invisíveis, caído entre as folhas secas e o lixo 
que o vento soprou para a sarjeta ou a esquina, está toda a paixão 
da alma de alguma mulher em busca de uma expressão sem voz. A 
caneta ou o lápis já mergulharam assim tão fundo no sangue dos 
homens quanto a agulha?7 
Ao situar o bordado como uma arte semelhante å poesia e à pintura, Olive 
Schreiner reafirma sua ligação com a feminilidade. Ele é o detentor da alma da 
mulher. As imagens do trapo branco com os pontos invisíveis e da seda amarela 
desbotada e repisada em silêncio sugerem uma comparação com o destino das 
mulheres nas ruas. Olive Schreiner mantém a ligação entre bordado e pureza 
feminina, ainda que o apresente como uma característica sexual e fracasse em 
estabelecê-lo como uma forma de arte igual à pintura e à poesia. Em parte, isso 
reflete a ambivalência da própria Olive Schreiner em relação ao trabalho do- 
méstico que ela descreve: "O pior deste meu livro é que ele é muito mulherzinha. 
Dos que eu escrevi, é o livro mais de mulher, e Deus sabe como eu queria ter 
feito diferente" 28 Porém, o efeito desse trecho é muito mais determinado pela 
classificação hierárquica das formas de arte na nossa cultura. Ao postular que o 
bordado deveria ser valorizado por sua relação íntima com a vida da mulher e a 
tradição doméstica, Olive Schreiner nega, inevitavelmente, ainda que sem inten- 
ção, seu estatuto de arte. 
A incrível diiculdade em se tratar do bordado, sua resistência a definiçöes, é 
o resultado de seu papel na criação da feminilidade nos últimos 500 anos. 
ROZSIKA PARKER (Londres, Inglaterra, 1945-2010) foi ativista 
feminista, historiadora da arte, psicoterapeuta e escritora. Traba- 
lhou na revista Spare Rib e é autora de obras como Old Mistresses: 
Women, Art and Ideology (1981), em parceria com Griselda Pol- 
lock, e The Subversive Stitch: Embroidery and the Making of the 
Feminine (1983), entre outros. 
FONTE:"The Creation of Femininity". Originalmente publicado 
como o primeiro capítulo de The Subversive Stitch: Embroidery 
and the Making of the Feminine. Londres: Women's Press, 1984. 
Traduzido do inglês por Mariana Delfini, a partir da segunda 
edição do mesmo livro [Londres: Women's Press, 1996, pp. 1-16]. 
Rozsika Parker 1984, 1996, 2010 
ROZSIKA PARKER 107 
favorecem esses estados hipnó. ticos que podem coincidir com a histeria: "We have nothing 
new to say on the question of the origin of these dispositio-nal hypnoid states. They often, it would seem. grow out of the 
day-dreams which are so com 
mon even in healthy people and to which needlework and 
12 May Sinclair. The Hel- 
pmate. Londres: Constabie. 
1907, cap. 29. 
John Ezard, "Victorian 
Touch to Credit 
Coid Britain" 
The Guardian, 6.12.1979. 
13 Tbid.. cap. 31. 
2 Adrian Hopkins. 
"Firm 
but Not Fixed in 
Their Ways" 
14 The Angel in the House 
The Guardian, 30.3.1979. 
é um poema em quatro partes 
de Coventry Patmore (1823- 
1896). publicado entre 1854 
e 1862. Tornou-se bastante 
3 Simone de Beauvoir, The 
Second Sex. London: Penguin 
Books, 1972, p. 635. [Ed. bras. 
O segundo sexo, v. 2- A ex- 
periència vivida. Trad. Sérgio 
Milliet. São Paulo: Difusåo Eu- 
similar occupations render 
women especially prone. 
Nada temos de novo a dizer 
sobre a origem dos estados 
hipnoides predisponente 
Acreditamos que muitas vezes 
se desenvolvem a partir dos 
devaneios ou "sonhos diur 
nos, tao frequentes mesmo em 
pessoas sadias, e para os quais 
os trabalhos manuais femini- 
conhecido, nos séculos 19 e 20, 
devido à descrição que faz de 
uma mulher ideal - a saber. 
ropeia do Livro, 1967, p. 389.] submissa, virtuosa. devota, 
humilde. pura etc. Foi poste 
riormente comentadoe criti- 
cado por diferentes autoras, 
entre elas Virginia Woolf. que 
em "Profissóes para mulheres"
(1931) escreve: "Mataro Anjo 
na Casa fazia parte da ativida- 
de de uma escritora" (Virginia 
Woolf. Profissões para mulhe- 
res e outros artigos femimistas. 
Trad. Denise Bottmann. São 
4 Juliet Mitchell. Psychoa- 
nalysis and Feminism. Lon 
dres: Penguin Books, 1974,.p 
363. [Ed. bras:: Pscicanálise
e Feminismo. Rio de Janeiro: 
Interlivros, 1979.] nos.por exemplo, oferecem 
tanta ocasiào.] Sigmund Freud 
e Josef Breuer. Estudos sobre 5 Tbid. 
a histeria (1893-1895). Obras 
6 Gayle Rubin, "The Traffic 
in Women: Notes on the Po- 
Completas. v. 2. Trad. Laura 
Barreto. São Paulo: Compa- 
nhia das Letras, 2016. p. 32.] 
N. da T.] 
Paulo: L&PM. 2012). [N da T.] 
litical Economy of Sex". In: 
Ravna R. Reiter (ed.), Towards 
an Anthropology of Women. 
Nova York: Monthly Review 
Press, 1975, p. 196. 
15 Edith Wharton, The Age 
of Innocence. London: Penguin 
Books, 1974, Ch V. [Ed. bras. 
A época da inocència. Trad. 
Hildegard Feist. SåoPaulo: 
Penguin/Companhia das Le- 
tras, 2013.] 
22 [When I was young I little 
thought/That wit must be so 
dearly bought/But now expe-7 Millicent Fawcett apud 
Theodore Stanton, The Woman 
rience tells me how/IfI would 
thrive then I must bow/And Question in Europe. Londres: 
1884, p. 6. bend unto another's will/That 16 Ibid., cap. 30. I might learn both care and 
skill/To Get My Living with 
My Hands/That So I Might Be 
Free From Band/And My Own 
Dame that I may be/And free 
from all such slavery./Avoid
vaine pastime fle youthful plea-
sure/Let moderation allways 
be thy measure/And so prosed 
unto the heavenly treasure 
8 Rozsika Parker e Griselda 17 Colette, Earthly Paradise. 
Londres: Seeker and Warburg. 
1966, p. 205. 
Pollock, Old Mistresses: Wo-
men, Art and ldeology. Lon- 
dres/Nova York: Routledge & 
Kegan Paul, 1981. 18 Ibid. pp. 214-16. 
9 Helen Black, Notable Authors 19 Ibid. of the Day. Londres: Maclaren 
and Company, 1893, p. 169. 20 Jane Gardam, "Dead 
Heat". Cosmopolitan, jul. 1981. 10 1bid..p. 27. 23 Escrito e reescrito por 
muitos anos, From Man to 
Man não foi concluido pela 21 A citação original éli- 
geiramente diferente. Freud 
diz que os trabalhos manuais 
11 lbid, p. 78. 
autora, que morreu 
em 1920. 
O romance foi publicado pelo 
108 
A CRIAÇÃO DA FEMINILIDADE
marido de Schreiner, em 1926, 
que acrescentou um capítulo 
final posteriormente. [N. da E.] 
24 Olive Schreiner, From 
Man to Man. Londres: Virago, 
1982, cap. XI. 
25 Ibid., cap. 9. 
26 Ibid., cap. 6. 
27 Ibid., cap. 9. 
28 Ruth First e Ann Scott, 
Olive Schreiner. Londres: An- 
dré Deutsch, 1980, p 175. 
ROZSIKA PARKER 109

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