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VOZES DO EXÍLIO: AS MEMÓRIAS DAS MULHERES EXILADAS DURANTE A DITADURA MILITAR Vanessa Maria Pereira Calaça1 RESUMO A temática mulher sempre nos instigou, vê como que elas se configuram no espaço político, social, econômico de uma sociedade. É pensando nisso que esta pesquisa tem como finalidade buscar entender como se deu o exílio para algumas mulheres brasileiras, durante a Ditadura Militar (1964-1985), período tão conturbado da história brasileira, onde diversas mulheres largaram seu país de forma obrigatória ou não e se dirigiram para o exílio. Utilizaremos como fonte para pensar esta temática, o livro Memórias das Mulheres do Exílio, que foi produzido em 1981, organizado por Albertina de Oliveira Costa, Maria Teresa Porciuncula Moraes, Norma Marzola, Valentina da Rocha Lima, todas exiladas. Em 1976 elas formaram um grupo e construíram um projeto com a finalidade de reunir e resgatar as memórias das mulheres brasileiras exiladas, que se encontravam nos mais diversos cantos do mundo. Este documento é composto por diversos testemunhos de mulheres, com idade e realidades diferentes. As organizadoras começaram este projeto para tentar dá voz ao sexo feminino, dando-lhes espaço para contar como foi à experiência pessoal de cada uma durante este período. Procuramos analisar o que é o exílio? O que ele provocou na vida dessas mulheres? Ocorreram mudanças? Quais foram elas? E quais são as permanências? Vemos presente nesses testemunhos vozes de mulheres que passaram por uma experiência traumática, marcada pela violência, repressão de um país, onde se veem obrigadas a deixar seu lugar de origem e partir para o desconhecido. PALAVRAS-CHAVE: Ditadura Militar. Mulheres. Exílio. Memória. Testemunho. A temática mulher sempre nos instigou, como que elas se configuram no espaço político, social e econômico de uma sociedade. E refletindo sobre isto é que resolvemos trabalhar com algumas mulheres que passaram pela experiência do exílio, trazendo essas novas sujeitas, com suas angustias, medos, carências, desilusões, frustrações e impotências. Durante a Ditadura Militar, principalmente em seus primeiros meses, e também depois de 1968 com o Ato Institucional número 5, ocorreu um grande êxodo de brasileiros e brasileiras para o exterior, ocasionado pelos mais diversos motivos: fuga, medo, busca por liberdade, banimento. Esta pesquisa tem como intuito pensar como foi a experiência do exílio para algumas mulheres durante a ditadura militar, levando em consideração as diferentes trajetórias e os motivos que as levaram a se exilar em outros países. Pensando nisto, este trabalho pretende refletir primeiramente, o que é o exílio? O 1 Mestranda pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Contato pelo email: nessacalaca@hotmail.com que ele provocou na vida dessas mulheres? Ocorreram mudanças? Quais foram elas? E quais são as permanências? Utilizaremos como fonte o livro Memória das mulheres do exílio, editado pela Paz e Terra em 1980. O primeiro volume deste livro intitulado Memórias do exílio contava com os relatos principalmente de homens exilados. Neste segundo volume um grupo de mulheres exiladas procurou dar voz ao sexo feminino reunindo os depoimentos das mesmas. A obra é composta por 43 relatos de muitas mulheres, com idades e realidades diversas. Quanto à escolha da fonte nos vem uma pergunta: porque trabalhar com as mulheres? Percebemos que estão presentes muitos relatos de homens que se exilaram por estarem fugindo ou que foram “obrigados” a se retirarem do país, mas os relatos de mulheres são poucos e quando aparecem estão apenas relacionados à vida de seus maridos, pais ou filhos e não à sua própria trajetória. Esta fonte em particular nos interessa por tratar de entrevistas com as mulheres ainda no exílio, no momento que elas estavam vivenciando esta experiência e que ainda não sabiam qual seria seu futuro. A obra Memórias das mulheres do exílio foi organizada por Albertina de Oliveira Costa, Maria Teresa Porciuncula Moraes, Norma Marzola, Valentina da Rocha Lima2, todas exiladas. Em 1976 elas formaram um grupo e construíram um projeto com a finalidade de reunir e resgatar as memórias das mulheres brasileiras exiladas, que se encontravam nos mais diversos cantos do mundo. Esta é a minha história, a sua história, a história dela. Este livro é uma obra coletiva, que tem início com DE MUITOS CAMINHOS3..., e percorre um longo caminho – desde o ‘ eu não tenho nada para dizer’, desde nós quatro até um NÓS maior – em que vidas, sentimentos, intimidades, alegrias e dores diversas foram saindo de cada uma para transformar-se em todas nós. Como tudo sua história, a deste livro começa no encontro do projeto MEMÓRIAS DO EXÍLIO com o grupo de mulheres brasileiras em Lisboa, lá na casa da Marie, onde nos reunimos já pelo fato mesmo do exílio, pois que era esta a condição própria, vivenciada, específica e comum deste grupo. (COSTA [et al.], 1980, p.15.) É uma obra coletiva, com diversas “autoras”, onde algumas se identificaram e outras não, preferindo o anonimato. Foi através de roteiros prontos e entrevistas espontâneas que se compôs esta obra. As organizadoras tiveram algumas dificuldades 2 Albertina de Oliveira Costa é socióloga e pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, ela continua discutindo e promovendo diálogos, sobre gênero, mulher. Maria Teresa Porciuncula Moraes é atualmente produtora de documentários. Norma Marzola foi ex-pesquisadora da UFRGS, na área de educação. Valentina da Rocha Lima é fundadora da seção de história oral da CPDOC/ FGV. 3 Referência ao primeiro volume da obra Memórias do exílio, intitulado Memórias do exílio- 1964-19??- De muitos caminhos, organizado por Pedro Celso Uchôa Cavalcanti e Jovelino Ramos. como mulheres que colocavam que não tinham nada a dizer, talvez pelo simples fato de não se considerarem exiladas, ou colocarem que não compartilhavam da mesma experiência, ou por acharem que suas experiências não eram relevantes. Por que um volume de mulheres? Tantas maneiras de responder, tantas respostas envolvidas. Talvez porque nem sempre as mulheres se sentiram incluídas quando partiu o convite inicial para que os exilados escrevessem as suas memórias. Talvez porque não se considerassem exiladas, ou não fossem como tais consideradas pelo projeto, aquelas cujas vidas foram profundamente afetadas por acompanharem marido, companheiro, filhos e pais. (COSTA [et al.], 1980, p.16.) Para analisarmos a documentação que propomos não podemos deixar de discutir sobre os testemunhos. Os testemunhos, ou seja, a fala daqueles que presenciaram de forma direta ou indiretamente certos fatos marcantes e que agora vem escrever, narrar e gravar os acontecimentos, como coloca Kolleritz (2004) “O gênero testemunhal refere em primeiro lugar uma experiência cognitiva feita de corpo presente: viu-se, ouviu-se algo que agora se transmite sob forma escrita ou oral”. Ao pesquisarmos e pensarmos a utilização do testemunho para o historiador nos deparamos com dois focos principais. O primeiro remete a figura do mártir, cujo termo em grego márter significa testemunha, sobrevivente ou aquele que “sofre a ofensa que pode significar a morte” (SILVA, 2003, p.47), aquele que passou por um momento trágico e traumático. Já o outro foco trabalhado por diferentes autores nos recorda ao Holocausto ou Shoah. O testemunho daqueles que sobreviveram aos campos de concentração (Lager), vem nos mostrar as barbaridades e os tormentos que estes sobreviventes sofreram nas mãos dos nazistas. Esta é uma tentativa de não deixar que a memória sobre este acontecimento caísse no esquecimento e, além disso, é também uma forma de lembrar aqueles que passaram pelos mesmos tormentos,mas não puderam relatar. Um dos testemunhos mais notório e comentado é de Primo Levi, um químico italiano que escreveu suas memórias sobre ter sido prisioneiro e ter quase morrido em Auschwitz. “por uma espécie de obrigação moral para com os emudecidos ou, então, para nos livrarmos de sua memória: com certeza o fazemos por um impulso forte e duradouro”. (LEVI, 1900, p. 47-48) Na fala de Primo Levi, vemos a dificuldade de pensar o porquê de seu testemunho, mas ele vê a importância desse ato, de não deixar que seja esquecido àquela agonia que muitos passaram sendo perseguidos, mantidos em campos de concentração e até mortos. O testemunho expede ao “dever de memória”, para Levi isso remete a necessidade de não deixar que isso aconteça de novo, é um dever de projeção de um futuro. A autora Beatriz Sarlo nos fala sobre as Ditaduras da América do Sul, onde após a queda das mesmas surgiram diversas publicações de testemunhos, entrevistas e autobiografias. Que o testemunho é um movimento de resistência, um movimento de lembrar e contar a outras pessoas a sua versão dos fatos. Mesmo que a experiência de um indivíduo não se resuma a dos outros é uma forma de contrastar com o discurso oficial do Estado, de um grupo. Sarlo (2007, p.20) quando analisa o período ditatorial na América Latina, argumenta que “A memória foi o dever da Argentina posterior à ditadura militar e o é na maioria das vezes da América Latina”. Assim, de certa forma, como ocorreram com as vítimas do Holocausto, aqueles que passaram pelas experiências da Ditadura na Argentina e na América Latina como um todo e sobreviveram as torturas, repressão e até a morte tem como se fosse uma obrigação moral de narrar todos estes acontecimentos, como uma forma de homenagear aqueles que não sobreviveram. Quando acabaram as ditaduras do sul da América Latina, lembrar foi uma atividade de restauração dos laços sociais e comunitários perdidos no exílio ou destruídos pela violência do Estado. Tomaram a palavra as vítimas e seus representantes [...]. (SARLO, 2007, p.45) Para Márcio Seligmann-Silva o testemunho perpassa por dois caminhos o da necessidade e o da impossibilidade. A necessidade é entendida como uma forma dos indivíduos de narrar os acontecimentos, para que estes não caiam no esquecimento. Mas ironicamente, nesta tentativa de não deixar uma memória cair no esquecimento, os indivíduos encontram limitações em recontar os acontecimentos por não conseguirem lembrar “tudo” que aconteceu, e também, por não encontrar palavras, expressões para descrevê-las. O esquecimento está intimamente ligado a memória. Quando escolhemos lembrar algo, logo estamos escolhendo esquecer outros. Como dito, nós selecionamos o que queremos lembrar, e nesse ato de esquecer acabamos deixando de guardar determinadas informações. Além de toda decisão pública ou privada, além da justiça e da responsabilidade, há algo inabordável no passado. Só a patologia psicológica, intelectual ou moral é capaz de reprimi-lo; mas ele continua ali, longe e perto, espreitando o presente como a lembrança que irrompe no momento em que menos se espera ou como a nuvem insidiosa que ronda o fato do qual não se quer ou não se pode lembrar. Não se prescinde do passado pelo exercício da decisão nem da inteligência; tampouco ele é convocado por um simples ato de vontade. O retorno do passado nem sempre é um momento de libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do presente. (SARLO, 2007, p.09) Não tem como falar de testemunho/memória sem dizer do esquecimento. Não existe um testemunho completo, Sarlo (2007, p.50) nos coloca que seria uma utopia pensar em um relato completo, onde nada foi deixado de fora, afinal nós consciente ou inconscientemente escolhemos uma memória a ser preservada. O testemunho pode até mesmo ser anacrônico, pois o presente interfere naquilo que vamos relatar: esquecendo alguns fatos, inventando outros, enfatizando determinados. A Ditadura brasileira marcou a história de nosso país. Ao analisarmos este período percebemos que na historiografia são produzidas diversas versões sobre ele e que entre os diversos sujeitos que aparecem no decorrer da Ditadura alguns protagonistas acabam sendo “excluídos” do debate, como é o caso das mulheres. É possível notar que em vários períodos históricos e em diversas sociedades – mais marcadamente na cristã ocidental - a mulher durante muito tempo foi silenciada e seu espaço de atuação social acabou sendo restrito ao âmbito doméstico. Sua atuação de modo geral acabou ficando reservada a esse meio, enquanto o homem atuava ativamente nos espaços públicos, na política, na economia. A mulher é uma presença silenciada na história e sua voz não é ouvida na política-arena pública e masculina por excelência. A história da repressão do período militar brasileiro 1964-1979 é a história dos homens. As relações de gênero estão aí excluídas. O sujeito é produzido, constituído por um discurso, e a história oficial tem sido parcial, silenciando ou escondendo sujeitos. (COLLING, 1997, p.07) A autora Ana Maria Colling (1997) afirma que nas interpretações feitas sobre a Ditadura Militar Brasileira os espaços de atuação política da mulher foram silenciados e que os principais protagonistas desta nossa história acabam sendo principalmente os homens. O silenciamento da mulher durante esse período nos traz questões que precisam ser estudadas, pois entre os vários acontecimentos marcantes que ocorreram de 1964 a 1985 é curioso notar que muitas mulheres também sofreram e atuaram na Ditadura, mas pouco é dito sobre isto. É claro que esse panorama vem mudando, já existe uma bibliografia4 que apresenta a participação das mulheres tanto da esquerda quanto da direita, mas ainda sim é preciso falar e discutir mais sobre isso. 4 Temos livros como: A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil da autora Ana Maria Colling; Mulheres, militância e memória da Elizabeth F. Xavier Ferreira; Exílio: entre raízes e radares da autora Denise Rollemberg; Direitas em movimento da autora Janaína Martins Cordeiro, entre outros. O trabalho dos autores que tratam do papel da mulher durante a Ditadura é importante para trazer a história daquelas que também tiveram uma função importantíssima na luta contra o regime. Essas mulheres trazem questões e interpretações respeitáveis sobre esse período e que durante muito tempo ficaram esquecidas pelos pesquisadores. Resgatar essas mulheres nos permite entender que a repressão, por exemplo, não foi uniforme, pois as torturas feitas em mulheres eram diferentes das cometidas em homens, e em alguns aspectos se tornavam ainda mais brutais. Permite-nos entender também que além da repressão dos militares, muitas acabaram sendo caladas ainda no âmbito doméstico seja por seus filhos, maridos ou pais por simplesmente serem mulheres. Tanto este trabalho quanto o próprio documento que aqui utilizamos tenta trazer as angustias destas mulheres para a reflexão e para o debate histórico sobre o período. Vemos isso presente logo que abrimos o livro Memórias das mulheres do exílio, onde as coordenadoras da obra colocam nas orelhas5 do livro um convite às autoras, para que elas contribuíssem na construção da história desse período, acrescentando a dimensão delas, “uma dimensão até então esquecida”. Essa nossa aflição de dar voz às mulheres também é compartilhada por outras autoras, como Ana Maria Colling (1997, p.10) em seu trabalho sobre a resistência da mulher à Ditadura onde ela destaca que tentou “recuperar esses sujeitos destinados ao silêncio das paredes domésticas”. Portanto neste capítulo procuraremos fazer a análise da trajetória desse grupo de mulheres, pensando porque elas se exilaram, como foi a vida delas e as mudanças que o exílio provocou.Notamos ao analisar nossa documentação que essas mulheres dividem uma mesma experiência, de terem que viver exiladas em outro país, mas esse acontecimento não foi vivido de forma igual, como percebemos pela diversidade de motivos que as levaram a sair. Temos depoimentos de mulheres que se exilaram por razões políticas, familiares ou mesmo pessoais. Neste primeiro momento iremos trabalhar esses motivos, entendendo como elas passaram pelo exílio e como o fato delas serem mulheres influenciou em suas vidas. Abrindo aqui um parêntese não pretendemos apenas falar de “mulheres” porque esse termo pode generalizar todo um grupo, pretendemos discutir como que as relações 5Diferente da orelha de outros livros que traz um resumo rápido do que o leitor vai encontrar na obra, o livro Memórias das mulheres do exílio traz na orelha o convite redigido pelas organizadoras da obra as mulheres que estavam exiladas. de gênero influenciaram (e compreendemos que sim) na forma como ocorreu o exílio. Como já discutido no capítulo anterior, nós procuraremos notar quais os papéis que as mulheres assumiam dentro daquela sociedade, naquele período. Entendendo que esses papéis são construídos socialmente e partindo da perspectiva da autora Joan Scott (SCOTT apud PEDRO, 2005, p.86) que gênero é uma categoria relacional, e também uma relação de poder, portanto não podemos deixar de analisar a feminilidade em contraste a masculinidade. Neste primeiro momento começaremos ponderando as mulheres que se exilaram por razões familiares, sejam aquelas que se exilaram por causa de seus maridos, pais ou filhos. A primeira que trazemos para o debate é Maricota da Silva, ela retrata em seu depoimento o descontentamento de estar exilada por causa de seu marido, colocando frases como “Eu acho que eu nunca estaria aqui se não fosse mulher”, “Estou aqui porque estou acompanhando marido” ou porque está ligada aos laços sagrados do matrimônio e por isso tem que acompanhá-lo onde ele for. (COSTA, 1980, p.35) Observamos na fala dessa exilada uma obrigação, talvez não imposta pelo marido, mas por ela mesma que entendia que a mulher tem o dever de acompanhar o esposo. Quando casavam a mulher passava a ser “propriedade” do marido, tendo que respeitá-lo, obedecê-lo e segui-lo. Maricota não consegue quebrar com isso, continua exercendo a função colocada pela sociedade para a mulher. Maricota (1980, p.38) mostra uma situação em que ela não teve voz, que “obedeceu” ao marido ou que era seu dever segui-lo. “Se eu tivesse... se tivesse podido escolher, se me tivessem dada a escolher, se me tivesse dado essa possibilidade eu diria não, e nunca”. Essa exilada é uma entre várias que faz essa reflexão de ser a “mulher do marido”, aquela que foi obrigada a sair de seu país para acompanhar o esposo. Para muitas o exílio não foi uma escolha delas, que mesmo reclusas em seus lares longe das lutas de seus maridos contra o Regime foram obrigadas a se exilarem devido ao simples fato de serem mulher e esposa, e por isso, tiveram que largar sua vida no Brasil e segui- lo. No testemunho de Maricota estão presente essas diversas falas que deixam perceber a quão magoada ela se encontrava por estar no exílio. Também notamos a indignação por estar na sombra do marido, de nunca lhe terem perguntado o que ela fazia no Brasil, porque o ponto de referência era o marido (COSTA, 1980, p.40), ela era apenas a esposa, sem voz e sem identidade. Ao contrário de Maricota, Elza Freire viu o exílio de uma maneira diferente. Seu breve testemunho nos conta que após seu marido Paulo Freire ter saído do país, ela abandonou seus 21 anos de magistério para encontrá-lo no Chile. Elza não vê o exílio como algo ruim, até coloca que “para mim (Elza) o exílio foi muito mais positivo do que negativo” (p. 204). Para ela o exílio foi um momento da família ficar mais unida, aprender sobre outras culturas e conhecer outras pessoas. Vemos presente nesses dois testemunhos iniciais uma mudança de vida. As duas exiladas tiveram suas vidas modificadas. Elza deixou de ser a professora, uma carreira que seguia há 21 anos, para se tornar a dona de casa. Elza só veio a trabalhar de novo quando mudam para Suíça e conseguem asilo e licença para trabalhar. Mesmo com essa grande mudança, ela coloca que quando saiu do Brasil não tinha esperança de voltar tão cedo, mas que em nenhum momento pensou em voltar sozinha para o Brasil para continuar a vida. Nem cheguei a pensar em voltar ao Brasil, em terminar a minha carreira. Achava realmente que seria um corte para a família, não só para Paulo como companheiro, como também para os nossos cinco filhos que eram ainda pequenos. O menor tinha cinco anos. No exílio, se a gente não tivesse o mais possível a unificação, a junção da família, todo o bloco em família isso quebraria mais, daria mais perda em si. (COSTA, 1980, p. 201) Maricota também deixou o trabalho. Comecei a trabalhar aos dezesseis anos e sempre trabalhei muito intensamente, de forma que trabalho pra mim fazia parte da vida mesma. De repente ficar numa casa brincando de dona de casa (realmente eu sempre fui uma calamidade como dona de casa), aquilo não funcionava, então comecei a me adaptar ao fato de que não tinha um trabalho, mas que então deveria fazer outras coisas, no sentido de ler ou estudar ou freqüentar cursos... Salvos um ou dois, isso de jeito nenhum me realizava, não me agradava plenamente; ficar em casa também não me agradava. (COSTA, 1980, p.42) Maricota abandonou o emprego, algo que a realizava muito para acompanhar o marido, e lá no exílio se tornou dona de casa (um fato marcante em muitas memórias, o fato de uma mudança radical na vida, onde deixam de ser “independentes” para se tornarem donas de casa). Ela ainda destaca que considera que mulher não tem espaço, nem o espaço da casa lhe pertence, a mulher pode escolher onde colocar os móveis, as vasilhas, mas quem manda de fato na vida do casal é o homem. Como percebemos analisando apenas essas duas memórias é que há uma disparidade das experiências. As duas são mulheres, e as duas saíram pelo mesmo motivo: para acompanhar o marido, mas cada uma viveu o exílio diferentemente. Enquanto para Maricota o exílio foi algo frustrante, onde teve que abandonar seu país, sua família, Elza já o viu como algo necessário para manter sua família unida, colocando que não foi algo tão negativo. Talvez essa diferença de visões esteja no fato de terem idades, uma estrutura familiar diferente, uma compreensão de matrimônio diferente, além de partilhar o projeto do marido. Não há como fazermos uma generalização. Cada exílio, de cada exilada teve sua particularidade. Não podemos dizer que todas que se exilaram por causa de seus maridos, pais e filhos viram o exílio como um luto. (COSTA, 1980, p.40) Muitas das mulheres se exilaram, pois julgavam que era necessário para manter sua família unida e também como uma forma de sobrevivência, como é o caso de Leta de Souza Alves, que se exilou por conta de seu marido e seus filhos. Em sua memória ela nos narra desde o momento em que seu marido, filha, cunhado e irmão foram presos, o sofrimento que foi e a dificuldade passada por ela para continuar cuidando de seus outros filhos que ainda eram pequenos. Leta foi presa e torturada juntamente com sua filha mais nova Sandra, de dezoito anos. Ela nos relata a crueldade cometida com as presas para que deletassem ou passassem algum tipo de informação. As torturas não eram apenas físicas, mas também psicológicas. Eles as jogavam em selas sujas, sem comida e no caso de Leta, eles torturavam sua filha Sandra para tentar fazer com que ela entregasse alguma coisa. [...] me puseram numa cela e jogaram Sandra noutra, perto da minha, uma cela suja, sem cama. Ela gritava muito porque entravame torturavam ali mesmo. A cada momento chegava um tenente daqueles que queria forçar até estuprá-la e tudo. E eu passei a noite assim, andei o resto da noite com este tipo de tortura na minha cabeça. Ela gritando de um lado e eu, sem condições de pensar direito nem nada, num estado nervoso, tremendo, querendo raciocinar... pensar.... (COSTA, 1980, p.165) Isso era comum, pegar um parente próximo, filhos, pais, irmãos e torturá-los para que os presos falassem alguma coisa. Naturalmente, a prisão de pais, mães, maridos, mulheres, irmãos, irmãs, filhos ou filhas transformavam a vida diária em pesadelo. Não foram raros os casos em que os serviços de segurança tratavam de quebrar o silêncio dos militantes mais teimosos tomando como refém, ameaçando ou até torturando um parente seu. (ALMEIDA; WEIS, 1998, p.408) Vê-se a pressão psicológica realizada em cima dessas mulheres. O exílio para Leta vai ser a medida necessária à sobrevivência de sua família. Seu marido é um dos presos soltos com o sequestro do embaixador norte-americano e se exila no Chile e ela vai em seguida, com seus filhos. A exilada narra que a sobrevivência deles no Brasil se tornava difícil, que ela não podia trabalhar, os meninos não podiam ir estudar, o medo constante e que depois de discutirem chegaram a conclusão de que teriam que sair do país. Mas cada dia que passava a nossa sobrevivência no país tornava-se mais difícil. Eu não podia trabalhar, os meninos não podiam estudar e nós tínhamos que tomar alguma iniciativa. Para permanecer, tínhamos que mudar de Estado, talvez, ou recorrer a alguma entidade que nos ajudasse a sobreviver. Discutimos muito e chegamos à conclusão de que tínhamos que sair do país. (COSTA, 1980, p.174) O interessante dessa memória é que ao final de seu relato ela coloca uma dedicatória, oferecendo esse depoimento a todas as mulheres brasileiras de um modo geral que se sacrificaram para o combate à Ditadura. Vemos que Leta compreende a importância da mulher, contribuindo para a luta contra a Ditadura e também com essas memórias para discutirmos e analisarmos este período. Outras exiladas assim como Leta em suas memórias também narram a dificuldade de adaptação em outro país, com uma língua, costumes, cultura e realidades diferentes. A adaptação para os homens muitas vezes foi mais fácil, conseguiram um emprego mais rápido (talvez não na área que atuavam no Brasil), se integram a algum grupo para discutir política, o mundo, arrumam um novo emprego. Enquanto que as mulheres têm suas vidas modificadas, muitas não conseguem trabalho e começam a ficar reclusas em suas casas cuidando dos filhos. O próximo grupo que iremos discutir é misto, não dá para enquadrá-las em apenas um motivo que as levaram ao exílio. Temos mulheres exiladas porque não aguentavam mais a situação brasileira, de viver sem liberdade, como é o caso de Alice. Pertencente a uma família de classe média, que se beneficia com o milagre econômico proporcionado pela Ditadura, ela começa sua memória ressaltando isso: Era a época do AI-5, da morte do Costa e Silva, da Junta Militar, do início do Governo Médici... O Brasil começava a se desenvolver, a classe média via crescer muito o seu poder aquisitivo e você sentia que todas as pessoas à sua volta, que eram ou ainda se diziam de esquerda, estavam sendo totalmente cooptadas pela euforia econômica da sociedade, sem fazer nenhuma crítica ao tipo de desenvolvimento que estava sendo implantando. Para essas pessoas, o importante é que o país estava se desenvolvendo, todo mundo estava podendo comprar carro, ter sua casa de campo, altos salários. (COSTA, 1980, p. 81) É interessante a ponderação que Alice faz de que esse período vai ser muito bom para a classe média (ao qual ela própria pertence), pois sua condição irá melhorar economicamente, puderam comprar carros, televisores, casas, mas como ela destaca ninguém fazia uma reflexão sobre a custa de quem é que isso estava acontecendo. Como ressalta os autores Maria Hermínia Tavares de Almeida e Luiz Weis, esse período do milagre econômico coincide com o momento de endurecimento da ditadura. Do AI-5 ao início da abertura (1969- 74). Esses foram os anos lacerantes da ditadura, com o fechamento temporário do Congresso, a segunda onda de cassação de mandatos e suspensão de direitos políticos, o estabelecimento da censura à imprensa e às produções culturais, as demissões nas universidades, a exacerbação da violência repressiva contra os grupos oposicionistas, armados ou desarmados. É por excelência, o tempo da tortura, dos alegados desaparecimentos e das supostas mortes acidentais em tentativas de fuga. É também, para a classe média, o tempo de melhor de vida. O aprofundamento do autoritarismo coincide com, e foi amparado por, um surto de expansão da economia [...] (ALMEIDA; WEIS, 1998, p, 332-333) Alice coloca que seu exílio foi voluntário, que ela e sua família foram para França como turistas. Destaca que a decisão de sair não foi dela nem do marido, mas sim porque precisavam ir para um país onde se tivesse mais liberdade, onde suas filhas estudariam em um lugar que não era regido por uma Ditadura e porque aqui no Brasil eles estavam sufocando. Mas pela fala dela percebemos que os motivos que levaram sua família sair partiu muito mais do marido. Pois quando ela conta o motivo da saída, a experiência parte da história do marido e não a dela, que ele estava trabalhando muito, não possuía tempo para nada. A decisão de sair foi um pouco coletiva, quer dizer, não foi uma decisão minha, nem do meu marido individualmente. A verdade é que ele estava num nível tal, trabalhando numa coisa eminentemente técnico, que ganhava horrores, mas não conseguia nem ler o jornal. Com isso acabou por pensar muito pouco sobre uma série de problemas que eram importantes do ponto de vista profissional e até mesmo individual. Às vezes conversávamos sobre alguma coisa e ele ficava em desacordo comigo simplesmente por falta de informação, e isso criava uma série de problemas entre nós. Então a decisão de sair teve esta característica – abrir perspectiva, respirar, viver sem susto. Porque nós estávamos, sufocando. (COSTA, 1980, p.84) Os relatos dessas mulheres, como Alice, que se exilaram por conta própria, diferem muito dos demais. Não fazem uma avaliação delas enquanto mulheres estando nesse exílio, isso não é levado a uma reflexão, não aparece nem como algo a ser destacado e pensado. O exílio também para esse grupo não é visto como algo ruim (é claro, sem fazer generalizações) o exílio foi algo bom, propício para desenvolvimento econômico, melhores condições para estudar e para algumas como a própria Alice nem sabem se iriam voltar ao Brasil. “Depois de anos de exílio voluntário, continuo eu coloque uma série de questões sobre voltar ou não para o Brasil”. (COSTA, p. 85) Temos outro grupo de mulheres, que diferem das que acabamos de discutir pelo fato de terem se exilado por causa de suas posições políticas. Não quer dizer que elas não tinham marido, companheiro ou namorado que também estava envolvido na política, mas suas saídas foram ocasionadas pelo fato de terem participado de alguma organização de oposição. Um desses casos é Zuleika Alambert, participante do Partido Comunista. Ela começou seu envolvimento na política ainda durante o Estado Novo. Zuleika foi deputada pelo PC até quando seu mandato é cassado, porque o partido entra na ilegalidade. Sua primeira clandestinidade foi de 1947 a 1954, ela coloca que viver na clandestinidade foi um dos períodos mais duros de sua vida. (COSTA, 1980, p.55) Ela vai ficar na clandestinidade até o momento em que Juscelino adota uma política de tolerância, permitindo a expressão dos comunistas. Zuleika narra sua trajetória, até chegar ao momento de 1964 quando destaca que a vida complicou, quequalquer pessoa que tenha exercido um “papel que pudesse ser em benefício das grandes massas populares foram violentamente perseguidos”. (COSTA, 1980, p. 58). É o que aconteceu com Zuleika e muitas outras companheiras que tiveram que sair do Brasil e procurar refúgio em um país diferente. A vida no exílio dessas mulheres que saíram por causa de suas posições políticas não difere muito das que saíram por causa do marido. Os dois grupos tiveram que abandonar seu país de origem, deixar a família para trás, buscar se adaptar em um lugar com uma língua, costumes, culturas diferentes do Brasil. O que vai diferir esses dois grupos são os motivos do exílio, e como que cada grupo de exilada viveu esse exílio. Enquanto um grupo ligado a oposição ao Regime saíram obrigados por sua escolha política, outro apenas teve que aceitar a situação de seus filhos, maridos, namorados e se adequarem a uma nova realidade. Zuleika faz uma interessante reflexão sobre sua posição enquanto uma mulher exilada, mas principalmente uma reflexão sobre essas mulheres que eram mulheres dos exilados. Mas houve também outra preocupação, porque eu via as mulheres brasileiras muito dependentes dos seus maridos. A maioria dos exilados eram homens, que levavam as suas famílias. Então as mulheres eram as mulheres dos exilados. O que não quer dizer que não houvesse algumas dezenas que tivessem participado em ações políticas no Brasil, e por causa disso tivesse também de buscar o exílio. Mas a grande maioria estava lá em função dos maridos e eram as grandes marginalizadas. Marginalizadas da sociedade chilena, porque não eram chilenas, não falavam nem a língua. Marginalizadas como mulheres dentro das suas próprias famílias, porque os homens eram políticos, continuavam as suas ações, e elas ficavam em casa. (COSTA, 1980, p.60-61) Pela fala da exilada percebe-se como as mulheres que foram levadas a se exilarem por conta dos maridos se encontravam marginalizadas. Sem opções, sem voz para opinar e sem o direito de escolha. Mas será que Zuleika enquanto exilada por sua posição política também não foi marginalizada? Vemos na memória de outras exiladas como a Maria do Carmo Brito, participante e posteriormente fazendo parte do comando da VPR (Vanguarda Popular Revolucionário) organização de luta armada que lutou contra o regime, falas sobre como questão delas serem mulheres participantes de movimentos não era algo muito bem resolvido, e também que a situação delas dentro dessas organizações não era as mil maravilhas. “Mas eu não queria sair do Brasil; eu só não falei, eu fico cá, porque isso seria incorreto do ponto de vista político, e apesar de eu estar muito mal, ainda tinha lucidez suficiente para não fazer a cagada”. (COSTA, 1980, p. 69) A escolha de sair não partiu inteiramente dela, foi uma decisão da organização, que achou que não era bom ela continuar no Brasil naquele momento. Temos outras questões como o aborto, onde muitas mulheres participantes da luta armada ou da militância falam desse assunto de que tiveram que abortar, pois o companheiro ou a organização que fazia parte não considerava uma ocasião muito propícia para se ter um filho. Na Argélia fiquei grávida uma primeira vez, e nós consideramos que era necessário abortar por razões políticas [...] Fui oprimida, talvez não pela relação, mas por uma auto- opressão política. Mas foi uma decisão livre, né? (COSTA, 1980, p.72) Maria do Carmo é uma entre várias outras exiladas que falam dessa questão do aborto, e talvez essa decisão não tenha sido assim tão livre, como ela ressalta a decisão foi tomada por uma auto-opressão, ela própria se auto oprimiu, ou foi oprimida pelo companheiro. Compreendemos que a questão do aborto é algo delicado e complicado até hoje. A opção dela não foi algo fácil, pois até os dias de atuais há muito tabu sobre esse assunto, sobre a mulher fazer esse tipo de escolha, e naquele momento essa prática era ainda mais polêmica. Outro assunto tratado por essa exilada e que consideramos necessário discutir é a questão de como as mulheres eram tratadas dentro das organizações de esquerda. Maria do Carmo coloca que existe uma contradição entre o discurso e a prática, pois a igualdade pregada por aquela ideologia era mais pensada para o homem, enquanto a mulher participando, opinando e sendo igual não acontecia, principalmente dentro de uma organização de luta armada. Se fosse um homem defendendo as mesmas posições, talvez fosse mais ouvido? [...] Mas acho que uma maior capacidade política vinda de um homem seria mais facilmente aceita que vinda de uma mulher. Ah, nesse sentido acho que sim, porque uma mulher ter razão... principalmente quando se trata de organizações armadas, de guerra. Ah, a guerra é para os homens, a mulher é o repouso do guerreiro... mesmo para aqueles camaradas intelectualmente maravilhosos, favoráveis à emancipação da mulher, etc... que nem se colocavam a questão, de qualquer maneira, eu creio que isso os irritava muito, profundamente. (CARMO, 1980, p. 78- 79) A exilada destaca que a situação dos militantes poderia ter sido diferente se não tivessem cometido algumas “cagadas” (COSTA, 1980, p. 78), mas que pelo fato de ser mulher sua opinião não foi levada em consideração, por isso ela questiona na citação que colocamos anteriormente, que se ela fosse homem será que as posições que ela estava defendendo seriam ouvidas? Maria do Carmo mostra uma contradição que os “camaradas” participantes da organização eram favoráveis a emancipação feminina, sua inserção no mercado de trabalho, mas por trás disso ainda se encontra uma cabeça machista que considerava que o lugar da mulher não é dentro dessas organizações. Sua memória também nos permite fazer outra ponderação. Maria do Carmo coloca que quando sai do Brasil ela se encontrava fazendo parte do comando da VPR. Com esse fato essa situação toda continua ainda mais contraditória, ela enquanto mulher fazendo parte do comando de uma organização da esquerda. Agora, claro que não era simbólico. Ninguém ia brincar de botar uma mulher num comando naquela altura do campeonato, com todo o mundo morrendo na prisão e tal... Era a sério. Era porque achavam que devia ser eu mesma. Eu achava que não, honestamente achava mesmo que não. Foi um erro muito grave, mas de qualquer maneira, tava eu. Isso mostra a minha situação objetiva dentro da esquerda, naquela época, dentro de uma organização como a VPR. (COSTA, 1980, p.79) Não sabemos o que pensar sobre isso, não compreendemos qual o significado disso, de uma mulher enquanto comandante de uma organização. Não sabemos se era porque de fato acreditavam em sua capacidade, em seu desempenho (o que duvidamos um pouco, por causa até mesmo das suas falas anteriores de que não era muito ouvida), se a organização queria passar uma determinada imagem, e ela foi posta mesmo como um símbolo, ou por que como a organização se encontrava nesse período em crise havia uma ausência de outras lideranças. A próxima memória que a analisamos tem algo muito particular e curioso, não se trata de apenas uma exilada contando suas experiências, o relato aparece em forma de diálogo. Duas mulheres, Sonia e Angelina. Logo no primeiro momento quando lemos esse relato percebemos que as duas eram estudantes que entraram para a militância, mas de início não se nota qual a ligação entre elas. As exiladas contam como foi entrar e viver o exílio, período onde ocorrem grandes mudanças na estrutura da vida delas e o que as une é o fato de Sonia ter sido casada e possuir uma filha com o atual companheiro de Angelina e até o momento em que narram suas memórias os três estão vivendo sobre o mesmo teto. Parece meio confuso a história toda, mas é que Angelina e o marido (o qual o nome não é revelado, é apenas descrito com T.) passam por dificuldades econômicas eSonia os recebe até se reerguerem. Vê-se uma situação um pouco incomum, as duas exiladas dizem que a relação é normal, que olham isso com naturalidade. O exílio proporcionou esse tipo de experiência, uma mudança. Elas trazem uma dimensão até então não discutida por nós que era como funcionava a vida afetiva dentro das organizações. Os “revolucionários” dessas organizações queriam quebrar com os padrões da sociedade, romper com a questão do sexo só poderia ser feito depois do casamento, quebrar com a própria noção de casamento, monogamia. Como já se viu, boa parte das jovens que entraram na universidade a partir do final dos anos 50 teve de se confrontar na pele e na alma com a questão da fidelidade e do sexo antes do casamento – em suma, o ‘amor livre’, para usar uma expressão que já então começava a virar clichê. (ALMEIDA; WEIS, 1980, p. 399) Os autores ainda complementam “O desejo de romper com o modelo burguês de casamento e de família transparece na maneira como várias mulheres envolvidas na luta contra o governo militar iriam depois se referir a suas próprias famílias”. (ALMEIDA; WEIS, 1998, p. 400- 401) Angelina narra esse fato, mesmo elas querendo romper com essas noções consideradas burguesas isso não era uma coisa muito simples e tranqüila. É engraçado, eu gostava desse cara dentro de uma perspectiva militante. O cara me iluminava, me esclarecia politicamente. Foi uma história sofrida, que não gosto de lembrar. O tal cara tinha ao mesmo tempo uma transação com outra menina. Essa situação não me agradava, mas aceitava toda uma teorização a respeito: a relação monogâmica é uma relação atrasada, burguesa, de propriedade, e a gente precisa romper com isso. (COSTA, 1980, p. 249) As exiladas também falam de assuntos anteriormente discutidos por nós, como o caso do aborto. Sonia conta de quando ela engravidou do senhor T. e a organização lhe mandou abortar, pois não consideravam o momento ideal para se ter uma criança, mas uma vez a interferência de como a mulher deve fazer com o seu corpo. Estava me segurando, mas quando a médica disse que não precisava pílula, eu pensei então não precisa, e ai, bumba! Então, a contradição era: fico ou não fico com o bebê. A posição da organização era tirar a criança. A organização baixou, decidiu. A justificativa era a falta de infra- estrutura. Mas a gente nessa época estava em crise com a organização. Não só eu e meu companheiro, mas também outras pessoas. Não sei se a motivação pra sair do Brasil foi pela criança ou se foi por causa da crise com a organização. De um lado já estava achando que as coisas não iam dar certo, do outro, eu tinha uma criança na barriga e estava muito a fim de ter esse filho. E eu já tinha três meses de gravidez, se tivesse menos talvez tivesse tirado a criança em função das dificuldades objetivas, mas com três meses era se arrancar mesmo. (COSTA, 1980, p.245) Sonia e seu companheiro foram contrários a decisão da organização e se viram em uma situação delicada, ela grávida e os dois indo para o exílio sem ajuda financeira e sem conhecer ninguém no Chile. Elas também narram o fato de que as organizações viviam de fachada, que na teoria o homem e a mulher possuíam o mesmo valor, e eram iguais, mas na prática isso não funcionava, as mulheres não possuíam tanta voz assim. Angelina destaca que há uma estrutura de poder, onde as mulheres são reprimidas dentro desses grupos. “Durante muito tempo eu não tive consciência de que existia uma opressão das mulheres dentro dos grupos políticos. Hoje, vejo que essa opressão existia muito marcada pelo tipo de estrutura de poder, pelas relações de poder que existiam nas organizações em geral”. (COSTA, 1980, p.249) A autora Ana Maria Colling também faz essa reflexão, que a história das mulheres e homens terem o mesmo valor dentro das organizações só ficava na teoria, pois a prática era completamente diferente. As próprias organizações não faziam distinção, pelo menos no nível do discurso, entre homens e mulheres: eram todos militantes. No entanto, no cotidiano da atividade política as mulheres militantes tornavam-se namoradas e esposas dos homens militantes, o que demonstra a impossibilidade de eliminar, em que pese ao esforço das organizações, a relação que na sociedade distingue o mundo masculino como espaço público e o da mulher como espaço privado [...] (COLLING, 1997, p.67) Essas mulheres militantes que analisamos não falam muito de como foi o exílio de fato, o centro de suas memórias é esse contar como era a vida delas no Brasil e dentro das organizações. Talvez para nos mostrar como elas chegaram ao exílio, e como foi importante a militância para elas. Analisando essas mulheres notamos que o exílio foi o espaço de mudanças, de novas experiências, mas principalmente de reflexão. O exílio permitiu a essas mulheres analisar suas vidas, suas situações enquanto mulheres e as relações estabelecidas por elas no mundo. Compreendemos que o exílio foi um espaço para reflexão e para mudança. Uma das hipóteses que levantamos é que, sobretudo para o grupo de mulheres militantes, notamos que uma das principais mudanças é que essas mulheres (nem todas) após terem lutado muito para deixarem de serem apenas donas de casa, quando elas vão para o exílio há um retrocesso nisso. Essa possibilidade foi levantada com base nas falas de algumas mulheres, mas é claro sem fazermos generalizações. As que saíram por causa de seus filhos, maridos, companheiros elas fazem uma reflexão dessa situação de como a mulher se encontrava no exílio, e nos mostra que no exílio elas perdem ainda mais seus espaços, por se tornam apenas a mulher de um exilado. O terceiro grupo, é um grupo que não produz muitas reflexões, talvez pelo fato de como entraram no exílio, pela decisão terem partido um pouco delas. Nossa documentação é vasta, analisamos apenas 10 exiladas, poderíamos ter escolhido outras, mas consideramos que essas escolhidas dariam um panorama melhor da situação de nossas exiladas. Ainda há muita coisa a ser pesquisada, algo que faremos em outros momentos futuros. Portanto, este trabalho trouxe uma grande contribuição para minha formação enquanto historiadora, através dela pude entrar em contato com uma documentação e buscar uma metodologia para trabalhá-la. Foi importante também para pensar este momento da história do Brasil e como que essas mulheres se relacionaram com o exílio e traz dele construíram reflexões importantes para pensarmos a situação de mulher neste período. FONTE COSTA, Albertina de Oliveira [et al.]. Memórias das mulheres do exílio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis, RJ. Editora Voz Ltda. 1984 ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de; WEIS, Luiz. Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. In: NOVAIS, Fernando A.; SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). 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