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Montes Claros/MG - 2012 Clebson Luiz de Brito Letícia de Souza Peixe Língua Portuguesa Semiótica ISBN 978-85-7739-341-1 © - EDITORA UNIMONTES - 2012 Universidade Estadual de Montes Claros CATALOGADO PELA DIRETORIA DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÕES (DDI) - UNIMONTES Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor. EDITORA UNIMONTES Campus Universitário Professor Darcy Ribeiro s/n - Vila Mauricéia - Montes Claros (MG) Caixa Postal: 126 - CEP: 39.401-089 - Telefone: (38) 3229-8214 www.unimontes.br / editora@unimontes.br Luci Kikuchi Veloso Maria Cristina Ruas de Abreu Maia Maria Lêda Clementino Marques Ubiratan da Silva Meireles REVISÃO TÉCNICA Admilson Eustáquio Prates Cláudia de Jesus Maia Josiane Santos Brant Rocha Karen Tôrres Corrêa Lafetá de Almeida Káthia Silva Gomes Marcos Henrique de Oliveira DESIGN EDITORIAL E CONTROLE DE PRODUÇÃO DE CONTEÚDO Andréia Santos Dias Camilla Maria Silva Rodrigues Clésio Robert Almeida Caldeira Fernando Guilherme Veloso Queiroz Francielly Sousa e Silva Hugo Daniel Duarte Silva Marcos Aurélio de Almeida e Maia Magda Lima de Oliviera Sanzio Mendonça Henriques Tatiane Fernandes Pinheiro Tátylla Ap. Pimenta Faria Vinícius Antônio Alencar Batista Viviane Wendell Brito Mineiro Zilmar Santos Cardoso REITOR João dos Reis Canela VICE-REITORA Maria Ivete Soares de Almeida DIRETOR DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÕES Huagner Cardoso da Silva EDITORA UNIMONTES Conselho Editorial Prof. Silvio Guimarães – Medicina. Unimontes. Prof. Hercílio Mertelli – Odontologia. Unimontes. Prof. Humberto Guido – Filosofia. UFU. Profª Maria Geralda Almeida. UFG Prof. Luis Jobim – UERJ. Prof. Manuel Sarmento – Minho – Portugal. Prof. Fernando Verdú Pascoal. Valencia – Espanha. Prof. Antônio Alvimar Souza - Unimontes Prof. Fernando Lolas Stepke. – Univ. Chile. Prof. José Geraldo de Freitas Drumond – Unimontes. Profª Rita de Cássia Silva Dionísio. Letras – Unimontes. Profª Maisa Tavares de Souza Leite. Enfermagem – Unimontes. Profª Siomara A. Silva – Educação Física. UFOP. REVISÃO LINGUÍSTICA Ângela Heloiza Buxton Arlete Ribeiro Nepomuceno Aurinete Barbosa Tiago Carla Roselma Athayde Moraes Ministro da Educação Aloizio Mercadante Presidente Geral da CAPES Jorge Almeida Guimarães Diretor de Educação a Distância da CAPES João Carlos Teatini de Souza Clímaco Governador do Estado de Minas Gerais Antônio Augusto Junho Anastasia Vice-Governador do Estado de Minas Gerais Alberto Pinto Coelho Júnior Secretário de Estado de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior Nárcio Rodrigues Reitor da Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes João dos Reis Canela Vice-Reitora da Unimontes Maria Ivete Soares de Almeida Pró-Reitora de Ensino Anete Marília Pereira Diretor do Centro de Educação a Distância Jânio Marques Dias Coordenadora da UAB/Unimontes Maria Ângela Lopes Dumont Macedo Coordenadora Adjunta da UAB/Unimontes Betânia Maria Araújo Passos Diretor do Centro de Ciências Humanas - CCH Antônio Wagner Veloso Rocha Diretora do Centro de Ciências Biológicas da Saúde - CCBS Maria das Mercês Borem Correa Machado Diretor do Centro de Ciências Sociais Aplicadas - CCSA Paulo Cesar Mendes Barbosa Chefe do Departamento de Artes Maristela Cardoso Freitas Chefe do Departamento de Ciências Biológicas Guilherme Victor Nippes Pereira Chefe do Departamento de Ciências Sociais Maria da Luz Alves Ferreira Chefe do Departamento de Geociências Guilherme Augusto Guimarães Oliveira Chefe do Departamento de História Donizette Lima do Nascimento Chefe do Departamento de Comunicação e Letras Ana Cristina Santos Peixoto Chefe do Departamento de Métodos e Técnicas Educacionais Helena Murta Moraes Souto Chefe do Departamento de Estágios e Práticas Escolares Rosana Cassia Rodrigues Andrade Chefe do Departamento de Educação Andréa Lafetá de Melo Franco Coordenadora do Curso a Distância de Artes Visuais Maria Elvira Curty Romero Christoff Coordenador do Curso a Distância de Ciências Biológicas Afrânio Farias de Melo Junior Coordenadora do Curso a Distância de Ciências Sociais Cláudia Regina Santos de Almeida Coordenadora do Curso a Distância de Geografia Janete Aparecida Gomes Zuba Coordenadora do Curso a Distância de História Jonice dos Reis Procópio Coordenadora do Curso a Distância de Letras/Espanhol Orlanda Miranda Santos Coordenadora do Curso a Distância de Letras/Inglês Hejaine de Oliveira Fonseca Coordenadora do Curso a Distância de Letras/Português Ana Cristina Santos Peixoto Coordenadora do Curso a Distância de Pedagogia Maria Narduce da Silva Autores Clebson Luiz de Brito É graduado em Letras / Licenciatura em Língua Portuguesa e mestre em Linguística do Texto e do Discurso pela UFMG. Tem experiência no ensino de Língua Portuguesa e tem conhecimento de Semiótica francesa, que utilizou em sua dissertação de mestrado e em textos publicados em revistas acadêmicas, e em Análise do Discurso de linha francesa. Atualmente é doutorando em Linguística do Texto e do Discurso pela UFMG. Letícia de Souza Peixe Mestre em Linguística do Texto e do Discurso, pela Universidade Federal de Minas Gerais, tendo atuado principalmente nas áreas de Semiótica Greimasiana e Análise do Discurso de linha francesa. É professora do ensino fundamental e médio de Belo Horizonte/MG. Sumário Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9 Unidade 1 Primeiras noções e nível fundamental 1.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 1.2 O lugar da semiótica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 1.3 O percurso gerativo de sentido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12 1.4 Noções gerais e implicações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13 1.5 Nível fundamental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .14 Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19 Unidade 2 Nível narrativo 2.1 Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21 2.2 Conversão das estruturas fundamentais em estruturas narrativas. . . . . . . . . . . . . . . . .21 2.3 Sintaxe narrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 2.4 Semântica narrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .26 Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31 Unidade 3 Nível discursivo, a realização do sentido 3.1 Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .33 3.2 Sintaxe discursiva: as projeções da enunciação no enunciado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .33 3.3 Sintaxe discursiva: o trato da argumentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 3.4 Semântica discursiva: os temas, as figuras e as isotopias . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . 44 3.5 Para além do percurso gerativo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .51 Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .55 Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .57 Referências básicas, complementares e suplementares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .59 Atividades de aprendizagem - AA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .63 9 Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica Apresentação Prezado acadêmico, nesta disciplina você terá contato com a Semiótica, uma teoria ex- tremamente produtiva no que diz respeito à abordagem do texto e à análise do discurso que este contém. Como você notará, trata-se de estudar não aspectos da língua, mas do sen- tido produzido textualmente. Com efeito, você verá que a produção dos textos/discursos obe- dece a determinadas regras e envolve determi- nados mecanismos geradores do sentido. Esse sentido, por isso, pode ser apreendido pelo estudo desses mecanismos que o constituem. Há uma crença comum segundo a qual entender um texto, interpretá-lo requer sen- sibilidade ou perseverança – seria preciso lê- -lo várias vezes. Embora essa ideia não seja de todo equivocada, é preciso considerar ou- tros elementos envolvidos nesse processo, e você, nesta disciplina, é convidado a fazer jus- tamente isso. Você verá que, para se chegar ao(s) sentido(s) de um texto, para se atingir o seu discurso, é preciso lançar mão de estra- tégias mais ou menos objetivas. Na disciplina de Semiótica, você terá a oportunidade de co- nhecer justamente categorias de análise que tornam possível, por assim dizer, um roteiro de abordagem do texto e de apreensão do(s) sentido(s), o que certamente potencializa o processo interpretativo. Essas categorias, in- clusive, não se restringem aos textos verbais, mas permitem também o estudo e a inter- pretação de textos ditos não verbais (visuais, sonoros, gustativos etc.) e sincréticos, ou seja, textos que utilizam mais de uma linguagem na produção do seu sentido. E você já notou como essa habilidade é cada vez mais exigida na vida contemporânea? Os textos que circulam na sociedade atualmente, não raro, exploram diferentes linguagens na produção do senti- do ou apelam à linguagem visual, fazendo jus à máxima de que “uma imagem vale mais que mil palavras”. Conhecer e utilizar as categorias pro- postas pela Semiótica, portanto, pode ser útil no desenvolvimento de habilidades de leitura e interpretação de diferentes gêneros textuais com os quais se confronta atualmente. A Semiótica não é uma teoria fácil, sobre- tudo porque, para entender as partes dela, é preciso entender o seu todo, a sua propos- ta geral; ao mesmo tempo, esse todo ou essa proposta geral apenas se torna evidente quan- do se tem acesso às partes de forma orientada e paciente. Não se desanime com as dificulda- des iniciais! Tenha paciência, que aos poucos as coisas vão se encaixando. É assim que as coisas acontecem mesmo! Nas unidades deste caderno, você estu- dará as diferentes categorias de análise dessa teoria, de modo que possa conhecê-la satis- fatoriamente e aplicá-la na interpretação de diferentes textos, elegendo, como analista, as mais apropriadas para cada análise específi- ca. Para chegar a esse ponto, porém, é preciso que você tenha sempre em mente o todo pro- posto pela teoria, que é o percurso gerativo de sentido, noção fundamental na Semiótica. Para adiantar-lhe essa proposta geral, nesta disciplina você verá que o sentido parte de uma forma mais simples e abstrata e vai se enriquecendo até atingir o grau de complexi- dade e concretude com o qual o leitor se con- fronta quando está diante de uma produção textual efetiva. Veja, a ideia é de um percurso mesmo, uma trajetória, um caminho que o sentido perfaz até encontrar-se em estado, por assim dizer, comunicável. Para cada nível desse processo de com- plexificação ou enriquecimento ou para cada nível/patamar do percurso gerativo do sen- tido, a Semiótica propõe categorias que per- mitem apreender o sentido tal como ele se apresenta ali. São essas diferentes ferramentas que permitem o exame de diferentes níveis de apresentação do sentido que você, prezado acadêmico, conhecerá nesta disciplina. Inicialmente você terá algumas informa- ções gerais sobre o lugar da teoria Semiótica em relação a outras teorias. Além disso, terá acesso a uma visão geral do percurso gerativo de sentido para poder relacioná-lo às partes que você estudará à frente em maiores deta- lhes. Com isso, poderá compreender como cada nível e suas categorias se articulam nessa proposta geral de descrever a geração do sen- tido. Nesse momento inicial, você conhecerá ainda algumas noções chaves para a compre- ensão da teoria, como o que é texto, discurso, textualização, linguagem etc. Nas demais seções você poderá conhe- cer mais detalhadamente cada patamar do percurso gerativo de sentido: os níveis fun- damental, narrativo e discursivo, observan- do as diferentes categorias e sua aplicação a diferentes textos. Por fim, você conhecerá as possibilidades de aplicação da Semiótica a diferentes objetos, alguns desdobramentos recentes dessa teoria e sua relação com outras disciplinas e áreas. 10 UAB/Unimontes - 8º Período Dito isso, espera-se que, ao final, você conheça os conceitos fundamentais e categorias de análise da Semiótica, consiga aplicar essas categorias na análise de textos verbais, não verbais e sincréticos, dominando os mecanismos que constroem textualmente o (s) sentido (s). Mais que isso, deseja-se que o seu percurso nesta disciplina, prezado acadêmico, seja produtivo e que o conhecimento de Semiótica seja significativamente proveitoso na sua formação. Os autores 11 Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica UNIDADE 1 Primeiras noções e nível fundamental Clebson Luiz de Brito 1.1 Introdução Prezado acadêmico, começa aqui, efetivamente, a sua caminhada pelo terreno da Semiótica. Você terá nesta unidade acesso a uma visão geral da teoria, indispensável para a compreensão das partes que a compõem, partes essas abordadas no transcorrer do curso. Essa visão geral, como já lhe foi adiantado na apresentação deste material, relaciona-se à compreensão do chamado percurso gerativo, simulacro teórico-metodológico da teoria para descrever a geração do sentido. Compreender essa proposta geral leva a uma melhor compre- ensão dos diferentes níveis do percurso gerativo, pois, em cada nível, o sentido se apresenta sob uma forma, uma configuração suscetível de ser descrita pelas categorias propostas pela teoria para aquele nível. Uma vez conhecida a visão geral da teoria, você começará a conhecer de perto os diferentes trechos do percurso gerativo. Você começará conhecendo e examinado o nível fundamental: pa- tamar que apresenta o sentido sob sua forma mais elementar e abstrata. Antes de mais nada, porém, você precisa saber de que teoria semiótica este caderno trata e em que ela se diferencia de outras. Por isso, inicialmente você terá acesso a informações que aju- darão a contextualizar a teoria, seus conceitos fundamentais e suas propostas. 1.2 O lugar da semiótica O termo “semiótica” (do grego semeioti- ké) relaciona-se de modo geral a signo, signi- ficação, sentido. Por essa razão, várias teorias e abordagens que se interessam por esses ele- mentos são chamadas – ou pelo menos são passíveis de sê-lo – de semiótica. É preciso em geral acrescentara esse termo, como você vê, um adjetivo que possa particularizar a teoria em jogo. Qual adjetivo/ quais adjetivos que cabe/cabem à Semiótica que você vai conhe- cer nesta disciplina? Fiorin (1995), talvez o maior semioticista brasileiro, fala de pelo menos três grandes te- orias Semióticas. Veja os adjetivos que ele usa: 1) a americana, que se constitui em torno da obra de Charles Sanders Peirce; 2) a russa, que se desenvolve a partir da obra de Iuri Lotman; e 3) a francesa, que se constrói a partir da obra do lituano, radicado na França, Algirdas Julien Greimas. A que você, prezado acadêmico, es- tudará nesta disciplina é esta última, também conhecida, em razão do seu fundador, como Semiótica Greimasiana e mais recentemente como Semiótica Discursiva (doravante, nesta disciplina apenas Semiótica). Trata-se de uma teoria que dialoga com a Filosofia – sobretudo a Fenomenologia, de Husserl e Merleau-Ponty – e a Antropologia Cultural – Lévi-Strauss e Marcel Mauss, entre outros. Ela, porém, é antes de tudo linguís- tica, herdeira do estruturalismo de Saussure e do linguista dinamarquês Hjelmslev, conti- nuador das ideias do mestre genebrino (BER- TRAND, 2003). A Semiótica, prezado acadêmico, privi- legia o texto, sobretudo, como um objeto de significação, passível de uma análise imanen- te, que, tomando-o como uma máscara, bus- ca explicitar as leis que regem os discursos (BARROS, 2001) ou ainda “os procedimentos de composição discursiva, que se manifestam textualmente” (FIORIN, 2008, p. 125). O obje- tivo da Semiótica discursiva, como você pode ver, é não apenas examinar o sentido dos tex- tos/discursos, mas principalmente explicitar seus mecanismos de constituição do sentido. 12 UAB/Unimontes - 8º Período Por essa razão, no âmbito geral dos estudos do discurso, a Semiótica difere das teorias que tomam o texto primordialmente como objeto histórico e que se preocupam, sobretudo, com a formação ideológica de que o texto é expressão, com as relações polêmicas que, numa socieda- de dividida em classes, estão na base da constituição das diferentes formações discursivas. Vale lembrar-lhe, porém, que a Semiótica não ignora essa dimensão do texto. Com efeito, ela procura apenas contemplá-lo, primordialmente, como um todo de sentido dotado de uma organização específica, privilegiando, em seu escopo, o exame dos procedimentos e mecanismos que o estru- turam, que o tecem como uma totalidade de sentido (FIORIN, 1995). 1.3 O percurso gerativo de sentido A Semiótica postula, na abordagem do sentido que se constitui textualmente, um processo de enriquecimento do sentido. O que isso quer dizer? Retenha de momento que a ideia é a de que o sentido se apresenta ini- cialmente sob uma forma mais simples e abs- trata e vai passando progressivamente a uma mais complexa e concreta à medida que se aproxima da superfície textual. Esse processo de enriquecimento do sentido, noção funda- mental na teoria, é chamado de percurso ge- rativo, suscetível de uma descrição em diferen- tes níveis de abstração (FIORIN, 2006, p. 20). Você estudará em detalhes cada patamar do percurso gerativo ao longo da disciplina. De ime- diato, observe como é o seu funcionamento geral. O percurso da geração do sentido com- preende um nível elementar, em que o senti- do se apresenta sob uma forma extremamen- te simples e abstrata. Essa forma é apreendida como uma oposição semântica, por exemplo: /vida/ versus /morte/, /natureza/ versus /civi- lização/, /liberdade/ versus /opressão/ etc. Os termos da oposição, por sua vez, são inseridos em um quadro de valores, de maneira que, grosso modo, um seja, em dado texto, consi- derado positivo e o outro, negativo. Tome como exemplo o discurso ecológi- co. Como ele se constrói em geral? Se você ob- servar, é a partir da oposição /natureza/ versus /civilização/ e, ao mesmo tempo, pela adoção de /natureza/ como termo positivo em relação à /civilização/, termo tomado como negativo. Um discurso desenvolvimentista, por outro lado, pode usar a mesma oposição semântica, diferenciando-se do ecológico por considerar como positivo o termo /civilização/ e negativo o termo /natureza/. A forma elementar do sentido compreen- de algumas operações elementares que per- mitem dar conta da sucessividade do texto, podendo tudo ser representado de forma ló- gica e abstrata no chamado quadrado semióti- co. São operações simples, lógicas e abstratas, que você conhecerá à frente. Outro nível do percurso gerativo de sentido é o narrativo, patamar mais bem desenvolvido na teoria. Não pense que esse nível é exclusivi- dade de textos narrativos! Em Semiótica, todos os textos apresentam narratividade, entendida como uma sucessão de diferentes estados. Veja que um texto dissertativo-argumen- tativo, por exemplo, apresenta um nível nar- rativo, uma vez que progride de um estado de tese não fundamentada (corresponde à explicitação da tese) a um estado de tese fun- damentada, após a apresentação dos argu- mentos que a sustentam. Não é dessa transfor- mação de estados que depende o sucesso do texto dissertativo-argumentativo? Sem validar a tese, pode-se atingir minimamente o obje- tivo de sustentar uma perspectiva num dado debate? Evidentemente que não. No nível narrativo, o sentido se constitui, dessa forma, a partir de uma organização nar- rativa abstrata que simula as transformações promovidas e/ou sofridas pelo homem, além de explicar por que tais transformações ocor- rem e quais os seus desdobramentos. O percurso gerativo do sentido apresenta ainda o nível discursivo do percurso gerativo de sentido. Trata-se, resumidamente, da apro- priação das estruturas abstratas dos níveis an- teriores pelo sujeito da enunciação, que, não necessariamente consciente, as converte em algo comunicável, por assim dizer. Observe que, com a oposição fundamen- tal /vida/ versus /morte/ e a organização narra- tiva: <<sujeito A leva sujeito B à disjunção com o objeto de valor vida>>, por exemplo, um enunciador jornalista pode noticiar um assas- sinato ou um suicídio (neste caso, se A e B es- tiverem sincretizados em um mesmo ator dis- cursivo). É possível dizer mais. Como o sujeito A fez o que fez com B, infere-se que ele tinha um /poder/ e um /saber/ fazer isso, elementos abstratos do nível narrativo. Isso pode, no ní- vel discursivo, ganhar a forma de uma arma de fogo, no caso do assassinato, ou de uma corda, no caso de suicídio por enforcamento. O nível 13 Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica discursivo, como você pode notar, é aquele em que se preenchem, quando da enunciação, estruturas narrativas abstratas e regulares com elementos mais concretos que constroem o discurso propriamente dito. Isso não é tudo. Como o discurso (enun- ciado) é o produto de uma enunciação, você deve levar em consideração que esta dei- xa marcas no enunciado que geram efeitos de sentido. A instância da enunciação pode projetar, no discurso, a terceira pessoa (ele), criando um efeito de sentido de objetividade, uma das características do discurso jornalísti- co, por exemplo; ou a primeira pessoa (eu), o que gera efeito de sentido de subjetividade. Ele pode, ainda, disseminar figuras pela cadeia discursiva, isto é, termos capazes de criar um simulacro do mundo natural, como é o caso do gênero romance, gerando efeito de sentido de realidade (ou de irrealidade, se for o caso); ou se limitar a produzir o discurso com temas, se o objetivo é discutir, explicar de forma abstrata o mundo, como é o caso dos discursos filosóficos. Há até mesmo uma série de outras esco- lhas que, assim como as anteriores, são por- tadoras de sentido; por isso, como você pode ver, longe de aleatórias (pelo menos para al- guém proficiente em relação ao discurso), são operaçõesdestinadas, em última instância, a levar o enunciatário a aceitar como verdadeiro o discurso produzido. Você examinará ao lon- go do curso essas possibilidades. 1.4 Noções gerais e implicações A Semiótica, prezado acadêmico, toma o discurso como a parte mais superficial e con- creta do plano de conteúdo, resultado, como você viu, da enunciação. O plano do conteúdo, por sua vez, constitui o texto quando se liga a um dado plano de expressão, seja ele verbal, não verbal (sonoro, gustativo, visual etc.) ou sincrético, como é o caso do cinema, das histó- rias em quadrinhos, entre outros. A textualiza- ção, como você pode ver, é a junção do plano de expressão com o plano de conteúdo. Para entender os conceitos de plano de expressão e plano de conteúdo, você pode relacioná-los às noções de significante e signi- ficado de Saussure, que você já deve ter estu- dado. Isso porque aqueles se originaram des- tes. Juntos o significante e o significado não formam o signo linguístico? O texto pode ser entendido, da mesma forma, como um signo complexo formado por um plano de expres- são e um plano de conteúdo. Este é o plano do sentido e aquele é a(s) linguagem(ns) que permite(m) a veiculação de tal sentido. A Semiótica busca primeiramente anali- sar o plano de conteúdo dos textos a partir do percurso gerativo de sentido; procura, num segundo momento, analisar também o plano de expressão dos textos, quando essa análise é pertinente e produtiva. Quando isso ocorre? Quando o texto apresenta uma função estéti- ca (o poema, o ballet, a pintura etc.), ou seja, quando o plano de expressão não apenas vei- cula o plano do conteúdo, mas lhe agrega sen- tido (BARROS, 2003). Como você já deve ter notado, a Semió- tica apresenta-se como um arcabouço teórico que busca explicitar a maneira como o senti- do de um dado discurso se organiza indepen- dentemente do plano de expressão a que ele se ligue e do texto em que ele se manifeste. Quais são as implicações disso? Como você já viu na apresentação deste caderno, ape- sar de sua ligação com a Linguística, a apli- cação da Semiótica não se restringe ao texto verbal, abarcando qualquer produção textu- al/discursiva. Essas considerações sobre os planos de conteúdo e de expressão permitem que você apreenda alguns conceitos básicos que foram empregados até aqui. Eles são importantes e, por isso, você os verá repetidas vezes ao longo deste trabalho. Não se preocupe se a princípio parecerem de difícil assimilação: a repetição é a mãe da retenção, já diz o ditado. Retenha inicialmente que, em Semiótica, “texto” é uma unidade que se dirige para a manifestação, distinguindo-se, portanto, do “discurso”; este, por sua vez, faz parte do plano de conteúdo, que se junta a um dado plano de expressão, constituindo o texto, no processo chamado de textualização (FIORIN, 2007a, p. 79). Outra informação importante: conhecen- do as categorias disponibilizadas pela teoria, você não precisa trabalhar com todas; é preci- so eleger aquelas que sejam mais apropriadas para cada análise específica. Como se adquire essa proficiência em relação à escolha das ca- tegorias pertinentes em cada caso? Deriva da própria prática analítica, que pode permitir uma potencialização da leitura, da interpre- tação e mesmo da produção textual, já que revela que, no discurso, nada é gratuito e que suas operações pelo enunciador são sempre geradoras de sentido. GLOSSáRIO Enunciação: o ato de produção do enun- ciado. Em semiótica, esse processo implica a conversão das estru- turas abstratas dos níveis fundamental e narrativo em estruturas discursivas. Sincrético: tem a ver com sincretismo, que é uma junção de elementos distintos. Em semiótica, sua aplica- ção ao texto designa a existência de mais de um plano de expressão veiculando o sentido. 14 UAB/Unimontes - 8º Período Dito isso, é hora de você, prezado acadêmico, conhecer de perto os diferentes níveis do chamado percurso gerativo de sentido e o seu funcionamento. Lembre-se de que, em cada um desses níveis, há um componente sintáxico e um componente semântico: respectivamente, um conjunto de mecanismos que ordenam os conteúdos e os conteúdos que se investem nos arran- jos sintáxicos (FIORIN, 2006). Há, portanto, sintaxe e semântica fundamentais, narrativas e discur- sivas. Nesta unidade, você passa agora ao estudo do nível fundamental, o mais abstrato e sim- ples do percurso gerativo. 1.5 Nível fundamental A Semiótica postula a existência de uma forma elementar e abstrata como o ponto de par- tida na geração do sentido e como base do discurso. Essa configuração do sentido é examinada no chamado nível fundamental, que você passa agora a conhecer. No componente semântico desse primeiro patamar, você vai observar que, subjacentes a todo discurso, há determinadas estruturas elementares da significação (FIORIN, 2006). Já no componente sintáxico, vai conhecer as operações abstratas que permitem apreender o discurso na sua sucessividade. 1.5.1 Semântica fundamental: o sentido nas oposições No nível fundamental, a forma elementar do sentido se apresenta como uma oposição se- mântica: um discurso fala de /vida/ versus /morte/, /liberdade/ versus /opressão/, /identidade/ versus /alteridade/, /totalidade/ versus /parcialidade/ e assim por diante. Para examinar um texto por esse primeiro nível do percurso gerativo, você deve, portanto, realizar um processo de abs- tração que permita identificar uma forma elementar do seu sentido geral. A título de exemplo, observe algumas palavras do célebre discurso sobre “A origem da desi- gualdade entre os homens”, de Rousseau: A extrema desigualdade na maneira de viver, o excesso de ociosidade de al- guns, o excesso de trabalho de outros, [...] os alimentos muito requintados dos ricos [...], a má alimentação do pobre [...], aí estão os funestos fiadores de que a maior parte dos nossos males são nossa própria obra e de que poderíamos evitá-los quase todos, conservando a maneira de viver simples, uniforme e soli- tária que nos foi prescrita pela natureza. [...] Cremos que se faria com facilidade a história das doenças humanas seguin- do a história das sociedades civis.[...] Com tão poucas fontes de males, o ho- mem no estado natural não tem, pois, necessidade de remédios, menos ainda de médicos. O primeiro que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: “isto é meu” e en- controu pessoas bastante simples para acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores não teriam sido poupados ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: não escutem esse im- postor! Vocês estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a que a terra não é de ninguém (ROUSSEAU, s.d, p. 35). O discurso de Rousseau se constrói tendo, por base, a categoria /natureza/ versus /civiliza- ção/, que o resume como um todo. A tese defendida pelo filósofo suíço é a de que as desigual- dades entre os homens derivam do próprio processo civilizatório que afastou o homem de sua condição natural de igualdade. Você pode notar que Rousseau defende que a organização do homem em sociedade, sobretudo pela instituição da sociedade civil, é o que o levou a uma série de mazelas, uma vez que altera o modo de ser natural do homem. A categoria semântica do nível fundamental, como você pode ver, apresenta uma contrarie- dade tal, que os termos se pressupõem de forma recíproca. O sentido de /liberdade/, por exem- plo, poderia existir sem a noção de /opressão/ ou o contrário? Lógico que não! O mesmo se dá com oposições como /vida/ e /morte/, /liberdade/ e /opressão/, /sacralidade/ e /profanidade/, / totalidade/ e /parcialidade/, entre outras. Ambos os termos se constituem, portanto, narelação GLOSSáRIO Sintáxico: é em- pregado para tratar de mecanismos que operam com arranjos. É equiva- lente a sintático, que também é usado em Semiótica, mas que foi preterido aqui, a exemplo de Tatit (2002), para evitar confusão com a acepção de sintaxe da gramática norma- tiva. DICAS Nem sempre é fácil determinar a oposi- ção que dá sentido ao texto, organi- zando-o semanti- camente. Por isso, não fique aflito caso pareça difícil precisar a categoria semân- tica de base numa dada análise. Caso haja dificuldade em examinar o nível fun- damental, pode ser que, para a análise do texto em questão, esse nível não seja tão produtivo quanto os demais. Aos pou- cos você aprenderá a eleger as categorias mais apropriadas para cada caso. 15 Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica de contrariedade que mantêm entre si. Ao mesmo tempo, essa relação de contrariedade pressu- põe um nexo entre os termos. Faz sentido opor /sensibilidade/ a /horizontalidade/? Não, porque nada há em comum entre esses termos. /Masculinidade/, porém, se opõe a /feminilidade/, por- que ambos pertencem ao domínio da sexualidade (FIORIN, 2006, p. 22). 1.5.2 Semântica fundamental: o sistema abstrato de valores No componente semântico do nível fun- damental, além de apreender a categoria se- mântica que está na base do discurso em aná- lise, é preciso que você observe o sistema de valores em que ela se inscreve. Em todos os discursos, um dos termos da oposição é mar- cado, grosso modo, com um traço de positivi- dade e o outro, com um traço de negativida- de. O traço de positividade recebe o nome de euforia, e o termo por ele marcado é definido como eufórico; o traço de negatividade, por sua vez, recebe o nome de disforia, e o termo por ele marcado é definido como disfórico (GREIMAS; COURTÉS, 2008). No fragmento do discurso de Rousseau, você consegue perceber qual dos termos é positivo e qual é negativo na categoria semân- tica de base do texto: /natureza/ versus /civili- zação/? Não é difícil ver que o primeiro termo, /natureza/, é tomado como eufórico (positivo) e o segundo, /civilização/, como disfórico (ne- gativo). Como você viu, o filósofo defende que as mazelas sociais aumentam à proporção que o homem se afasta do seu estado natural e avança no processo civilizatório. Nesse trágico progresso, a instituição da sociedade civil é um marco negativo cujo reflexo são crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores. Ao estado de natureza, por sua vez, o autor relaciona saúde, liberdade, simplicidade e igualdade. Acerca das marcas de positividade (eufo- ria) e negatividade (disforia), lembre-se de que elas não são dadas a priori, mas se inscrevem nos discursos individuais, sob pena de erro de avaliação. Não se deve, por exemplo, supor que /vida/ seja sempre um termo eufórico, po- sitivo. Como explica Fiorin (2006, p. 23), /mor- te/, em um discurso que prega o valor do mar- tírio – como o de muitos fundamentalistas –, receberá o traço positivo e /vida/, o negativo. Em muitos discursos que valorizam o progresso humano, diferentemente do que ocorre com o discurso de Rousseau, analisa- do anteriormente, é o termo /natureza/ que é disfórico, associado, não raro, à barbárie. Ou- tro exemplo pode ser visto no exame de nar- rativas míticas indígenas elaborado por Brito (2011), que observou que era regular, na base dos discursos analisados, a mesma categoria semântica observada no discurso de Rousse- au: /natureza/ versus /civilização/. Neles, po- rém, o traço eufórico repousa sobre o termo / civilização/, que remete à coletividade, à nor- malidade, às coerções morais que garantem a vida dos grupos, em oposição à /natureza/, to- mada como um negativo domínio do individu- alismo, da singularidade, do que é estranho e nocivo ao “eu-tribo” (BRITO, 2011, p. 107). Outro lembrete importante: o sistema de valores estabelecido graças às marcas euforia/ disforia sobre a oposição semântica de base não pode ser confundido com a manifestação da ideologia. Esta, como visão de mundo, tem seu espaço de manifestação privilegiado no nível discursivo, sobretudo no seu componen- te semântico, pois é ali que se apreendem os temas e as figuras que o sujeito da enunciação utiliza para concretizar, no seu discurso, os ele- mentos abstratos do nível fundamental (FIO- RIN, 2006). /Liberdade/ e /dominação (opressão ou coerção)/, por exemplo, podem ser concre- tizados pelo tema do consumo, em que o primeiro termo seria positivo e implicaria a propriedade sobre um carro potente, capaz de levar o proprietário a todos os lugares aos quais desejasse ir; ou podem ser concretizados ainda, respectivamente, como governo demo- crático e governo totalitário. A /liberdade/, por outro lado, em discursos que valorizam a ação de governos conservadores, pode remeter à bagunça, desordem, confusão, em oposição a uma /dominação/ positiva (eufórica), enten- dida como ordem, regra, como explica Barros (2003, p. 190). A organização do nível elementar, por- tanto, apresenta um sistema abstrato de valo- res; a ideologia se manifesta no nível mais su- perficial e concreto do percurso gerativo, pois é ali que o sujeito da enunciação concretiza os níveis mais abstratos com temas e figuras que expressam uma dada visão de mundo. Você verá isso na unidade 3, que tratará do nível discursivo. ATIVIDADES Exercite agora sua ca- pacidade de abstração e apreensão das opo- sições semânticas que organizam os textos. Segue uma sugestão: você já assistiu ao filme “Narradores de Javé”, dirigido por Eliane Ca- ffé? Assista a esse filme (ou veja-o de novo se for o caso) e procure identificar as oposições semânticas fundamen- tais que estão na base da história, bem como o que permite identifi- cá-las no filme. 16 UAB/Unimontes - 8º Período 1.5.3 Sintaxe fundamental: as operações de asserção e de negação Você viu, anteriormente, o componen- te semântico do nível fundamental. É preciso agora abordar as operações que permitem dar conta da sucessividade do texto. A sintaxe fundamental analisa justamente essas opera- ções básicas que estão na base dos discursos. São duas as operações elementares: a asserção (afirmação) e a negação (FIORIN, 2006, p. 23). Trata-se de operações que permitem que, dada uma determinada categoria semântica, possa haver uma transição de um termo a outro e, por- tanto, um percurso fundamental que dê conta do que se mostra na sucessividade do texto. O fragmento do discurso de Rousseau, já dis- cutido, permite que você observe o funciona- mento das operações fundamentais de nega- ção e afirmação. Ali, quando o homem ainda se mantinha em estado selvagem, tinha-se a afirmação inicial da /natureza/; com a progres- siva civilização do homem, porém, ocorre a operação elementar de negação da /nature- za/. Depois, há a operação de afirmação da / civilização/, com, sobretudo, a instituição das sociedades civis. Trata-se de um percurso dis- forizante, isto é, em direção ao termo disfórico, marcado, portanto, por um final “negativo”, já que, como você viu, no discurso de Rousse- au, a natureza é o termo eufórico. São essas operações elementares que estão na base do discurso do filósofo, cuja tese é a de que a pas- sagem da igualdade à desigualdade entre os homens, acompanhada do surgimento de inú- meras mazelas sociais e morais, deu-se com a organização do homem em sociedade. Os percursos fundamentais, possíveis graças às operações sintáxicas de asserção e negação, podem apresentar movimentos diferentes do visto em Rousseau? Sim. Brito (2011), já citado, observou, por exemplo, que as transformações míticas dos diferentes dis- cursos sobre a aquisição do fogo pelo homem (índio) implicavampara os animais, de for- ma geral, o seguinte percurso fundamental: civilização→não civilização→natureza. Isso porque alguns dos animais apresentavam tra- ços de humanidade e estavam, antes de o per- derem para os homens, de posse do fogo, que se liga ao estado de /civilização/. A perda do fogo para os homens expressa a negação da / civilização/ e a consequente afirmação da /na- tureza/ para os animais, que perdem os traços humanos e passam a apresentar apenas seus aspectos naturais (BRITO, 2011, p. 65). Veja ainda o caso da letra da canção “O pulso”, do grupo Titãs. Ali há uma lista de di- ferentes tipos de doenças e paixões (“Peste bubônica, câncer, pneumonia, raiva, rubeula, tuberculose e anemia, rancor, caxumba, difite- ria...”) e o seguinte refrão: “e o pulso ainda pul- sa”. Nesta letra, a oposição que está na base do texto é /vida/ versus /morte/. O acúmulo de doenças faz parecer certa a morte, que, no entanto, não vem, já que a pulsação ainda existe. Nesse caso há uma espécie de percurso fundamental esperado, próximo ou iminente, que seria: vida → não vida → morte. Observe, porém, que esse percurso não se realiza, pois mantém-se a afirmação da /vida/, que teima em resistir às diferentes e acumuladas doenças. Por fim, nos exemplos destacados,você pode observar algo que é importante frisar: as operações sintáxicas fundamentais obede- cem a uma lógica, em que a afirmação de um termo da oposição apenas ocorre após uma necessária negação do termo oposto. Não se passa de maneira direta da afirmação de um termo à afirmação do seu oposto; é pre- ciso sempre postular a negação de um termo como transição para a afirmação do oposto. Em alguns textos, isso pode ficar mais eviden- te; a negação da /vida/ pode, por exemplo, ser explorada de forma mais prolongada em um texto, sob a forma do coma. Porém, ainda que não seja tão evidente, não se esqueça de que há sempre a negação de um termo antes da afirmação do termo oposto. 1.5.4 O quadrado semiótico: uma representação abstrata e lógica do sentido geral do discurso Você verá agora que toda a organização fundamental dos discursos é suscetível de uma re- presentação lógica e abstrata no chamado quadrado semiótico. O quadrado semiótico, por isso, é uma forma econômica, lógica e abstrata de representação do sentido. Veja o caso do discurso de Rousseau, que apresenta a oposição semântica /natureza/ versus /civilização/, como você já viu. Cada um desses termos pode projetar, por meio de uma operação de negação, um outro termo que lhe é contraditório (BARROS, 2001). Isso faz com que, de /natu- reza/, se chegue à /não natureza/ e de /civilização/ se chegue à /não civilização/, o que leva a um total de quatro termos. Além disso, você observou que, na sucessividade do discurso de Rousse- au, há uma transição de um termo a outro. 17 Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica Em outras palavras, há as operações da sintaxe fundamental: o discurso aponta que ha- via uma afirmação inicial da /natureza/, estágio em que se via igualdade entre os homens; esse termo, porém, é negado (chega-se à /não natureza/) no processo civilizatório, vindo depois a afir- mação da /civilização/, sobretudo pela instituição da sociedade civil e das desigualdades que ela implica. Veja como tudo isso pode ser representado no quadrado semiótico: Veja outro exemplo da organização fundamental do sentido e de sua representação no qua- drado semiótico na letra da canção da banda Legião Urbana. Soldados Nossas meninas estão longe daqui Não temos com quem chorar e nem pra onde ir Se lembra quando era só brincadeira Fingir de ser soldado a tarde inteira? Mas agora a coragem que temos no coração Parece medo da morte mas não era então. Tenho medo de lhe dizer o que eu quero tanto Tenho medo e eu sei por quê: Estamos esperando Quem é o inimigo? Quem é você? Nos defendemos tanto tanto sem saber Por que lutar Nossas meninas estão longe daqui E de repente eu vi você cair Não sei armar o que eu senti Não sei dizer que vi você ali Quem vai saber o que você sentiu? Quem vai saber o que você pensou? Quem vai dizer agora o que eu não fiz Como explicar pra você o que eu quis Somos soldados Pedimos esmola E a gente não queria lutar E a gente não queria lutar E a gente não queria lutar E a gente não queria lutar (LEGIÃO URBANA, 1985) ◄ Figura 1: Esquema de representação do quadrado semiótico do discurso de Rousseau Fonte: Elaboração própria 18 UAB/Unimontes - 8º Período Na letra da banda de Brasília, pode-se observar a oposição /liberdade/ versus /opressão (co- erção ou dominação)/. O primeiro termo da categoria semântica é que recebe a marca da eufo- ria, ao passo que o segundo recebe a da disforia. Observe que a /opressão/ se revela a partir do contexto de combate, de guerra, em que os soldados lutam sem saber por que e são submetidos a uma realidade cruel em que a morte está constantemente presente; revela-se, porém, de forma mais explícita na reiteração de que não se queria lutar (“E a gente não queria lutar”). Em oposição a essa dolorosa opressão, a /liberdade/, termo eufórico, se manifesta, sobretudo, pelo que falta aos soldados: as meninas (que estão longe), que remetem ao prazer do namoro/sexo. Quanto às operações elementares da sintaxe fundamental, pode-se observar, novamente, um percurso disforizante. Veja que há uma anterior e pressuposta afirmação da /liberdade/, pois, no texto, há uma referência a um tempo em que ser soldado era só brincadeira, um agradável fingimento de criança. Com a imposição dos soldados aos horrores de uma guerra de que eles não queriam participar, há a negação da /liberdade/ e a afirmação da /opressão/. Representando tudo isso no quadrado semiótico, veja como ficaria: 1.5.5 O nível fundamental em textos não verbais Fechando a descrição do funcionamento do nível fundamental, veja agora a importân- cia da apreensão da organização elementar do sentido na análise de textos não verbais. Ob- serve a figura de Obama a seguir, uma criação, a princípio, espontânea de um artista ameri- cano que quis contribuir com a campanha do democrata na corrida à Casa Branca, em 2008. A força do discurso contido nesta figura, que apresenta algumas variações na linguagem verbal, foi tão grande, que ela foi incorporada à campanha oficial de Obama. Veja! Figura 2: Esquema de representação do quadrado semiótico da letra de Soldados Fonte: Elaboração própria. ► PARA SABER MAIS Há um livro que pode ajudá-lo a desenvol- ver a habilidade de interpretação especifi- camente de textos visu- ais. Chama-se “Semióti- ca Visual: os percursos do olhar”, de Antônio Vicente Pietroforte. Esse livro, que aparece como sugestão de leitura nas referências suplementares deste material, é bastante didático e mostra como podemos guiar nosso olhar em busca do sen- tido nos textos visuais. Vale a pena lê-lo! ◄ Figura 3: Pôster de Obama. Criação de Shepard Fairey. Fonte: Disponível em < http://en.wikipedia.org/wiki/ Barack_Obama_%22Hope%22_poster>. Acesso em 01 set. 2011. 19 Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica O discurso expresso, nesse texto, por um plano de expressão predominantemente visual se organiza a partir da categoria semântica de base: /identidade/ versus /alteridade/. O texto, em que as cores são determinantes para o sentido, expressa o termo /alteridade/, sobretudo, como diferenças raciais. Esse termo é, por isso, o termo disfórico, pois o discurso apela ao sentimento de unidade nacional, tomando, como positivo, o termo /identidade/. Como se observa isso? Inicialmente, considere que a questão racial poderia levar muitos americanos, de maioria branca, a não se verem representados pelo então candidato democra- ta, um homem negro. Você pode pressupor, por isso,uma afirmação da /alteridade/, entendida como diferenças raciais. Aí entra a força do texto em questão. O discurso contido na figura nega (no sentido da operação sintáxica de negação, apenas) a /alteridade/ e promove a posterior afir- mação da /identidade/ quando pinta o negro Obama com as cores da bandeira norte-americana. Veja que Obama é, assim, legitimado como representante da sociedade norte-americana como um todo, pois as diferenças raciais são, no discurso analisado, suplantadas pela identidade na- cional. Essa é a organização fundamental que está na base desse poderoso e persuasivo discurso em favor do sentimento de unidade americana em torno de Obama. Referências BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3. ed. São Paulo: Humanitas; FFLCH/USP, 2001. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz (Org.). Introdução à Lin- güística – II. Princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003, p. 187-219. BERTRAND, Denis. Caminhos da Semiótica literária. Trad. Grupo Casa. Bauru: EDUSC, 2003. BRITO, Clebson Luiz de. Outras harmonias insuspeitas: um estudo da (in)variabilidade discursi- va em mitos indígenas à luz da Semiótica francesa. 2011. 116f. Dissertação (Mestrado em Linguís- tica do Texto e do Discurso) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, Belo Horizonte, 2011. FAIREY, Shepard. Pôster de Obama. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Barack_ Obama_%22Hope%22_poster> Acesso em 01 set. 2011. FIORIN, José Luiz. A noção de texto em Semiótica. Organon, Porto Alegre, v. 9, n. 23, p. 163-173, 1995. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2006. FIORIN, José Luiz. Enunciação e Semiótica. Santa Maria: Letras (Santa Maria), v. 33, 2007a, p. 69- 97. Disponível em <http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_r33/revista33_6.pdf> Acesso em 20 ago. 2011. FIORIN, José Luiz. A Semiótica Discursiva. In: LARA, Glaucia M. P.; MACHADO, Ida Lucia; EMEDIA- TO, Wander (orgs.). Análises do Discurso Hoje. v. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p. 121- 144. GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 2008. LEGIÃO URBANA. Soldados. In: Idem. Legião urbana. Rio de Janeiro: EMI Music do Brasil, 1985. ROUSSEAU, Jean-Jacques. A origem da desigualdade entre os homens. São Paulo: Escala, s. d. TATIT, Luiz. A abordagem do texto. In: FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à Linguística I: Obje- tos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 187-209. TITÃS. Comida. In: Idem. Jesus não tem dentes no país dos banguelas. Rio de Janeiro: WEA, 1987. ATIVIDADES Para praticar o exame do nível fundamental, vá ao endereço eletrô- nico: <http://www.se- nado.gov.br/atividade/ pronunciamento/Deta- lhes.asp?d=388285> e leia o texto disponível. Trata-se de um discurso do Senador pelo Espírito Santo, Magno Malta. Após ler o texto, procure responder: O que ele tem de comum e diferente com a imagem de Obama? Explore o máximo de elementos observado nesta unidade. 21 Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica UNIDADE 2 Nível narrativo Letícia de Souza Peixe 2.1 Introdução Você começa agora a estudar o nível narrativo do percurso gerativo de sentido, o qual, como vale lembrar, consiste em uma sucessão de níveis, que vão do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto, passando-se por um “processo de enriquecimento semântico” (FIO- RIN, 1995, p. 164), no qual o primeiro nível é concretizado pelo segundo, que, por sua vez, é con- cretizado pelo terceiro e último. No nível narrativo, ocorre a concretização das categorias semânticas do nível fundamental, que você estudou na Unidade 1. Ou seja, os valores abstratos e virtuais desse nível são atuali- zados, assumidos por um sujeito na sua relação com um dado objeto (que se torna, assim, um objeto-valor ou Ov). Constrói-se, dessa forma, um simulacro da ação do homem no mundo. Nessa passagem, as operações lógicas fundamentais convertem-se em transformações nar- rativas operadas por um sujeito; as categorias semânticas de base tornam-se valores do sujeito inscritos nos objetos com os quais ele se relaciona; e as determinações do sistema abstrato de valores do nível fundamental (traços de euforia e disforia) convertem-se em modalizações que modificam as ações e os modos de existência do sujeito e suas relações com os valores (BARROS, 2003). 2.2 Conversão das estruturas fundamentais em estruturas narrativas Para observar como a conversão das estruturas fundamentais em estruturas narrativas ocor- re, retome a passagem de “A origem da desigualdade entre os homens”, de Rousseau, exemplo analisado anteriormente. Nele, você observou, quanto ao nível fundamental, a oposição /natureza/ versus /civiliza- ção/, em que a /natureza/ é eufórica e a /civilização/ é disfórica. Como esses valores se transfor- mam em estruturas narrativas no texto? Veja que, quando se analisa a mesma passagem, pelo viés do nível narrativo, os valores abstratos daquele nível são investidos na relação de um sujeito com um objeto. A extrema desigualdade na maneira de viver, o excesso de ociosidade de al- guns, o excesso de trabalho de outros, [...] os alimentos muito requintados dos ricos [...], a má alimentação do pobre [...], aí estão os funestos fiadores de que a maior parte dos nossos males são nossa própria obra e de que poderíamos evitá-los quase todos, conservando a maneira de viver simples, uniforme e soli- tária que nos foi prescrita pela natureza. [...] Cremos que se faria com facilidade a história das doenças humanas seguin- do a história das sociedades civis.[...] Com tão poucas fontes de males, o ho- mem no estado natural não tem, pois, necessidade de remédios, menos ainda de médicos. O primeiro que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: “isto é meu” e encontrou pessoas bastante simples para acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade ci- vil. Quantos crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores não teriam sido pou- pados ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: não escutem esse impostor! Vocês estarão per- didos se esquecerem que os frutos são de todos e a que a terra não é de ninguém (ROUSSEAU, s. d, p. 35, grifo nosso). DICAS Retorne à Unidade 1 e relembre o estudo das estruturas funda- mentais, uma vez que ele será imprescindível para a compreensão das estruturas narrati- vas, nas quais aquelas são convertidas. 22 UAB/Unimontes - 8º Período Como exemplo, observe a parte final do discurso. Nela, o sujeito “homem”, especificamente o primeiro a se autointitular dono de um terreno, obteve o objeto “propriedade”, enquanto as demais pessoas, que também desempenham papel subjetivo, passam, simultaneamente, a não dispor do objeto “propriedade”. Perceba, prezado acadêmico, que os termos /natureza/ e /civilização/ são, assim, atualiza- dos: o primeiro, na relação das demais pessoas que não possuem propriedades, estado, segundo Rousseau, natural do ser humano; o segundo, na relação do “verdadeiro fundador da sociedade civil”, que se apossou de uma propriedade, dando início à civilização. Como cada nível é composto por uma semântica e uma sintaxe, em que a semântica é en- tendida como os conteúdos investidos nos arranjos sintáxicos, e a sintaxe, como um conjunto de mecanismos que ordena os conteúdos, você passa agora ao estudo da semântica narrativa e da sintaxe narrativa, como fez no exame do nível fundamental. 2.3 Sintaxe narrativa 2.3.1 Os enunciados elementares e as relações de junção No âmbito da sintaxe narrativa, há dois tipos de enunciados elementares: os enunciados de estado e os enunciados de fazer. O que os distingue? Os primeiros são determinados pela relação de junção – conjunção ou disjunção –do sujeito com o objeto, podendo, portanto, ser conside- rados estáticos. Já os enunciados de fazer são dinâmicos, pois englobam as transformações de um estado para outro. Se você retornar ao exemplo do texto de Rousseau, pode perceber, inicialmente, que o su- jeito de estado “homem” – “verdadeiro fundador da sociedade civil” – estava em disjunção com o objeto “propriedade”, enunciado de estado que pode ser, desta forma, representado: S¹ (homem) U Ov (propriedade) U = disjunção Da mesma maneira os demais sujeitos, as outras pessoas, estavam também em disjunção com o objeto “propriedade”: S¹ (demais pessoas) U Ov (propriedade) O sujeito “homem”, entretanto, transforma seu estado, operando ele mesmo a transforma- ção ao, cercando um terreno, se lembrar de dizer: “isto é meu”. Note que, com isso, ele passa a atuar como sujeito de fazer, alterando a junção do sujeito de estado, ele próprio, com os valores expressos pelo objeto, por meio da apropriação: PN = F (apropriação) [S¹ (homem) → (S² (homem) ∩ Ov (propriedade))] F = função → = transformação ∩ = conjunção É importante salientar que só com a transformação operada pelo S¹ (homem) é que efeti- vamente constitui-se o objeto “propriedade”. Note que, de acordo com Rousseau, foi a partir do momento em que o “verdadeiro fundador da sociedade civil” apropriou-se de um terreno e afir- mou ser ele seu que se estabeleceu a propriedade, até então inexistente, pela oposição do direi- to de um frente ao dever dos outros de não o afrontar. No exemplo dado, tem-se um programa narrativo – ou PN –já que, nesse caso, o enuncia- do de fazer é um enunciado modal, aquele que rege ou “modaliza” um enunciado descritivo, que, em um programa narrativo, é o enunciado de estado. GLOSSáRIO Programa narrativo (PN): sintagma elemen- tar da sintaxe narrativa que ocorre quando um enunciado de fazer rege um enunciado de estado. 23 Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica 2.3.2 Articulação de PNs e percursos na formação do esquema narrativo canônico Uma sequência de PNs, por sua vez, caracteriza o percurso narrativo. Os actantes sintáxi- cos, sujeito de estado, sujeito de fazer e objeto, presentes no PN, são redefinidos como papéis actanciais no âmbito do percurso narrativo, transformando-se, no último nível da hierarquia das unidades sintáxicas – o esquema narrativo –, em actantes funcionais, como você pode observar no quadro abaixo: QUADRO 1 Esquema Narrativo Unidades sintáticas Actantes Esquema narrativo Actante funcional (sujeito, objeto, destinador, destinatário) Percurso narrativo Papel actancial (Ex.: sujeito competente, sujei- to do querer) Programa narrativo (e enunciado elementar) Actante sintático (sujeito do estado, sujeito do fazer, objeto) Fonte: BARROS, 2001, p. 36 Note que uma narrativa centra-se, portanto, na transformação de estado entre sujeito e ob- jeto, tendo, como unidade operatória básica, o PN (LARA, 2004). O esquema narrativo canônico compreende quatro fases ou quatro PNs (organizados em três percursos – o da manipulação, o da ação e o da sanção) que se encadeiam, podendo alguma(s) dessas fases estar pressuposta(s). O que caracteriza cada um desses PNs apontados? O primeiro PN é o de manipulação (o fazer-fazer). Nele, um sujeito leva outro a /querer/ e/ ou a /dever/ praticar uma ação, constituindo-se, dessa forma, no percurso do destinador-mani- pulador. São quatro os tipos de manipulação mais recorrentes: 1) tentação, em que o destinador-manipulador oferece valores que ele crê que o destinatário quer obter; 2) intimidação, em que o destinador apresenta valores que ele acredita que o destinatário teme e, portanto, deve evitar; 3) provocação, em que o destinador apresenta uma imagem negativa do desti- natário, devendo este reverter tal imagem; 4) sedução, em que o destinador apresenta uma imagem positiva do destinatá- rio, que este quer manter (BARROS, 2003, p. 197-198). Talvez um dos exemplos mais claros que ilustram os tipos de manipulação em língua por- tuguesa e, provavelmente, o mais trabalhado é aquele que retrata uma mãe tentando fazer com que seu filho coma, empregando, para tanto, as diversas formas de manipulação: Tentação – “Se você comer, ganha um refrigerante”; Intimidação – “Se você não comer, não vai assistir televisão’; Sedução – “Pus essa comida no seu prato, porque você é grande e é capaz de comer tudo”; Provocação – “Pus essa comida no seu prato, mas eu sei que, como você é pe- queno, não consegue comer o que está aí”. (FIORIN, 2006, p. 30) A fase seguinte, a competência (o ser-fazer), é entendida como a capacitação do sujeito por meio de um /poder/ e um /saber/ realizar a ação. É, dessa forma, um PN pressuposto da perfor- mance (pressuponente), que, por sua vez, é o PN no qual ocorre a transformação central da nar- rativa, ou seja, a realização da ação propriamente dita (o fazer-ser). Os PNs de competência e de performance juntos constituem o percurso da ação ou do sujeito. Observe a narrativa de Millôr Fernandes: 24 UAB/Unimontes - 8º Período Fábulas fabulosas – O Rato que tinha medo (A maneira dos … Marroquinos)? (Millôr Fernandes) Um Rato tinha medo de Gato. Nisso não era diferente dos outros ratos. Pavor, tremor, ânsia, vida incerta. Mas igual a todos outros de sua espécie, o nosso Rato teve, no entanto, um fato diferente em sua vida – encontrou-se com um Mágico(1). Conversa vai, conversa vem, ele explicou ao Mágico a sua sina e o seu pavor. O Mágico, então, transformou-o exatamente naquilo que ele mais temia e achava mais poderoso sobre a terra – um Gato. O Rato daí em diante, passou a perse- guir os outros ratos, mas adquiriu imediatamente um medo horrível de cães. E nisso também, não sendo diferente de todos os outros gatos. A única diferença foi que tornou a se encontrar com o Mágico. Falou-lhe então do seu novo medo e foi transformado outra vez na coisa que mais temia – um Cão, que pôs-se logo a perseguir os gatos. Mas passou a temer animais maio- res: como Leão, Tigre, Onça, Boi, Cavalo, tudo. O Mágico surgiu mais uma vez e resolveu transformá-lo então, num Leão, o mais poderoso dos animais(2). Mas o nosso ratinho, guindado assim a letra O da classe animal, passou, porém, a recear quando ouvia passos de Caçador. Então o Mágico chegou, transformou-o de novo num Rato e disse, alto e bom som: Moral: Meu filho, quem tem coração de rato, não adianta ser leão. Ainda há alguma magia. Será? (FERNANDES, 2011, s/p) Nela, você pode notar que o Rato está inicialmente em conjunção como o objeto-valor “medo”, do qual quer se ver em disjunção. Tem-se, portanto, um enunciado de estado que pode ser assim representado: S¹ (Rato) ∩ Ov (medo) Todavia, um Mágico que o Rato conhece oferece-se para ajudá-lo, realizando, para tanto, um PN de competência, em que dota o Rato de um valor modal /poder/, quando “transformou-o exatamente naquilo que ele mais temia e achava mais poderoso sobre a terra – um Gato”, para que o mesmo entre em disjunção com o objeto-valor “medo”. PN (competência) = F (transformar o Rato em Gato) S¹ (Mágico) S² (Rato) ∩ Ov (medo) Ov = Objeto-valor Note que ocorre, desse modo, uma doação, em que um sujeito de fazer (S¹) confere, a um sujeito de estado (S²), um objeto-valor; transformação essa realizada por atores diferentes, no caso, o Mágico e o Rato. Além da doação, o programa de aquisição pode se dar também por meio de renúncia, na qual o sujeito de fazer (S¹) possibilita que o sujeito de estado (S²) entre em disjunção com um objeto-valor, sendo o sujeito de fazer e o sujeito de estado realizados pelo mesmo ator. PN (competência) = F (transformar o Rato em barata) S¹ (Rato) S² (Rato) U Ov (medo) A espoliação, por sua vez, ocorre quando o sujeito de fazer (S¹), realizado por ator diferente do sujeito de estado, fazcom que o sujeito de estado (S²) entre em disjunção com um objeto-valor. PN (competência) = F (transformar o Rato em barata) S¹ (Mágico) S² (Rato) U Ov (medo) Na apropriação, o sujeito de fazer (S¹), representado pelo mesmo ator do sujeito de estado (S²), torna possível sua conjunção com o objeto-valor. PN (competência) = F (transformar o Rato em Gato) S¹ (Rato) S² (Rato) ∩ Ov (medo) 25 Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica Quanto à fábula de Millôr Fernandes, perceba que, apesar de o Rato ter entrado em con- junção com o valor modal /poder-fazer/, por meio da transformação perpetrada pelo Mágico, o mesmo não aconteceu com o valor modal /saber-fazer/. Mesmo transformando o Rato nos ani- mais que mais temia, o Mágico não lhe forneceu um /saber-fazer/ que o possibilitasse empregar o objeto-valor modal que lhe foi doado, /poder-fazer/, com o objetivo de entrar em disjunção com o objeto-valor “medo”. A descrição que você observou é a de um programa narrativo complexo, formado por um programa narrativo de base, a transformação do estado inicial do Rato de conjunção com o objeto-valor “medo” para o estado de disjunção; e por um programa de uso, pressuposto ne- cessário para que isso ocorra, na fábula, o auxílio do Mágico, que transformaria o Rato em um animal temível. Já a última fase do esquema narrativo consiste no PN de sanção (o ser-ser), em que se tem o percurso do destinador-julgador. A sanção implica duas operações: uma cognitiva e outra prag- mática. O que as diferencia e como elas funcionam? A primeira operação, a cognitiva, é a constatação da ocorrência (ou não) da ação, conforme o acordo estabelecido com o destinador-manipulador, culminando, portanto, no reconhecimen- to do “herói” ou no desmascaramento do “vilão”. Nela, “o destinador interpreta os estados resultantes do fazer do sujeito, definindo-os como verdadeiros (que parecem e são), falsos (que não parecem e não são), mentirosos (que parecem e não são) ou secretos (que não parecem e são)” (BARROS, 2001, p. 40). Para entender melhor, releia apenas este fragmento do mesmo texto de Millôr Fernandes e observe a análise posterior: Mas o nosso ratinho, guindado assim a letra O da classe animal, passou, porém, a recear quando ouvia passos de Caçador. Então o Mágico chegou, transfor- mou-o de novo num Rato e disse, alto e bom som: Moral: Meu filho, quem tem coração de rato, não adianta ser leão. Na história, o sujeito Rato sofre sanção cognitiva, já que o Mágico constata que a verdadei- ra transformação, o programa de base no qual o Rato entraria em disjunção com o objeto-valor “medo”, não ocorreu. Interpreta, portanto, o estado a que o sujeito Rato chegou, a conjunção com o objeto-valor modal /poder-fazer/ e a disjunção com o /saber-fazer/, e o define como men- tiroso, pois, apesar de parecer, o Rato não é um leão, o qual não teme ninguém. A segunda forma de sanção, a pragmática, implica a retribuição; seja ela positiva, a premia- ção, ou negativa, o castigo. Voltando ao texto usado como exemplo, você pode perceber que o Rato é também sancio- nado de forma pragmática pelo Mágico ao ser transformado novamente em Rato, função inter- pretada de maneira negativa de acordo com a ideologia veiculada pela narrativa, a qual depende do sentido do percurso narrativo realizado (BARROS, 2005). Você verá melhor essa questão da ideologia no nível discursivo, na Unidade 3. No quadro a seguir, você visualizará sinteticamente o esquema narrativo canônico descrito, constituído dos três percursos – o da manipulação, o da ação e o da sanção – e dos PNs que os constituem: QUADRO 2 Esquema narrativo canônico Fonte: BARROS, 2005, p. 37 26 UAB/Unimontes - 8º Período Cabe lembrar-se, prezado acadêmico, que muitas fases podem ficar ocultas e devem ser, portanto, pressupostas em uma narrativa. Além disso, muitas delas não se realizam completa- mente, enquanto outras podem, ainda, relatar, preferencialmente, somente uma das fases (FIO- RIN, 2006). 2.4 Semântica narrativa 2.4.1 As modalizações A sintaxe, que você estudou anteriormente, é mais autônoma do que a semântica, já que a relação sintáxica pode receber diversos investimentos semânticos. O componente semântico do nível narrativo, dessa maneira, ocupa-se da modalização, que pode ser de dois tipos: a modalização pelo /ser/ e a modalização pelo /fazer/, que se referem, respectivamente, ao sujeito de estado (na sua relação com o objeto-valor) e ao sujeito de fazer (conforme viu-se acima, na descrição dos PNs). Observe o quadro 3: QUADRO 3 Modalizações de /ser/ e /fazer/ Fonte: BARROS, 2001, p. 50 Assim, o sujeito manipulado, ou seja, aquele que detém um /querer/ e/ou um /dever-fazer/ é um sujeito virtual (ou virtualizado); o que adquire um /saber/ e um /poder-fazer/, referentes à competência, é um sujeito atualizado. Porém, apenas depois de realizada a performance, é que o sujeito se torna realizado. Você pode visualizar isso no quadro 4. 27 Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica QUADRO 4 Modalizações do sujeito Fonte: BARROS, 2001, p. 52 A modalização pelo /ser/ engloba dois tipos: a modalização veridictória e a modalização pelo /querer/, /dever/, /poder/ e /saber/ ser. Como se caracteriza cada uma delas e como elas atuam? Você já vai saber, começando pela primeira. A modalização veridictória abarca a oposição /ser/ versus /parecer/; o primeiro termo do par relacionado à imanência (ser e não-ser) e o segundo, à manifestação (parecer e não-parecer). Ob- serve que essa modalização permite determinar o tipo de relação existente entre o sujeito e o objeto, classificando-a como verdadeira, falsa, mentirosa ou secreta. A verdade é um estado que articula o /ser/ e o /parecer/; a falsidade, um estado que conju- ga o /não-parecer/ com o /não-ser/; a mentira, o /parecer/ e o /não-ser/; e o segredo, o /ser/ e o /não-parecer/, conforme você pode ver na figura semiótica que segue: Para compreender melhor a modalização veridictória, tome como exemplo o livro “Harry Potter e a pedra filosofal”, de J.K. Rowling. Nele, o menino Harry Potter, então com onze anos, descobre-se bruxo ao ser informado disso por Hagrid, um meio-gigante que trabalha na esco- la de bruxaria de Hogwarts, na qual Harry é convidado a ingressar. A seguinte passagem ilustra uma fala de Hagrid ao ser confrontado com a descrença do menino frente à revelação. Veja: ◄ Figura 4: Modalizações veridictórias Fonte: BARROS, 2001, p. 55 28 UAB/Unimontes - 8º Período - Não é bruxo, hein? Nunca fez nada acontecer quando estava apavorado ou zangado? Harry olhou para o fogo. Pensando bem... cada coisa estranha que deixara os seus tios furiosos tinha acontecido quando ele, Harry estava perturbado ou com raiva... perseguido pela turma de Duda, pusera-se de repente fora do seu alcance, receoso de ir para a escola com aquele corte ridículo, conseguira fazer os cabelos crescerem de novo, e da última vez que Duda batera nele, não fora à forra sem perceber que estava fazendo isto? Não mandara uma cobra atacá-lo? Harry olhou para Hagrid, sorrindo, e viu que ele ria abertamente para ele (RO- WLING, 2000, p. 54). Analisando esse trecho pelo viés da modalização veridictória, você pode perceber que Har- ry, por não se saber bruxo, passa do segredo (pois é, mas não parece bruxo) à verdade (é e pa- rece bruxo), a partir do momento em que se descobre como tal. É essa busca pela verdade que dá o tom a toda a primeira parte da narrativa, pois nela Harry Potter mostra-se desconfortável e deslocado no mundo onde vive. Descobre-se posteriormente que a razão dessa inadequação é justamente o segredo que os tios de Harry, com os quais o garoto, por ser órfão, mora, escon- dem: sua origem mágica. Com essa revelação, o menino pode, enfim, reconhecer-se como bruxo (manifestação/parecer), algo que,na verdade, sempre fez parte da sua natureza (imanência/ser) (PEIXE, 2009, p. 44). Sobredeterminando a modalização pelo /ser/ e pelo /parecer/, tem-se a modalidade do / crer/. Assim sendo, o enunciado de estado é certamente verdadeiro quando se articulam /crer- -ser/ e /parecer/; é provavelmente verdadeiro quando conjuga /não-crer-não-ser/ e /não-crer- -não-parecer/; certamente falso quando coordena /crer-não-ser/ e /não-parecer/, bem como o falso incerto conjuga /não-crer-ser/ e /crer-não-parecer/ (BARROS, 2001, p. 57). Você pode ver as relações de certeza, impossibilidade/exclusão, probabilidade e incerteza representadas a seguir: Para exemplificar o exame das modalidades descritas no quadro, considere o exemplo da narrativa do primeiro livro da série que tem, como personagem principal, o jovem bruxo Harry Potter, “Harry Potter e a pedra filosofal”. No trem que levará os alunos a Hogwarts, Harry, que di- vide uma cabine com seu novo amigo Rony Weasley, rejeita o fazer persuasivo de Draco Malfoy, tam- bém aluno novato de Hogwarts, que, na condição de destinador-manipulador, oferece a Harry sua amizade, que, segundo ele, é de grande valia, dada a importância de sua família (manipulação por tentação, ou seja, oferecimento de Ov(s) positivo(s), que – se imagina – o sujeito quer obter). Virou-se para Harry. - Você não vai demorar a descobrir que algumas famílias de bruxos são bem melhores do que outras, Harry. Você não vai querer fazer amizade com as ruins. E eu posso ajudá-lo nisso. Ele estendeu a mão para apertar a de Harry, mas Harry não a apertou. - Acho que sei dizer qual é o tipo ruim sozinho, obrigado - disse com frieza (RO- WLING, 2000, p. 96). Figura 5: Modalidades do /crer/ Fonte: BARROS, 2001, p. 57 ► 29 Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica Você deve ter imaginado, nesse caso, que a amizade de alguém que se diz importante se- ria um valor desejável para o protagonista da história, já que todo novo aluno quer ser aceito, no meio escolar, por seus semelhantes. O que explica, então, sua negativa? Harry, no seu fazer interpretativo, toma Malfoy como certamente falso (/crer-não-ser/ e /não-parecer/) ou como pro- vavelmente falso (/não-crer-não-ser/ e /não-parecer/), não se deixando manipular e, consequen- temente, renegando o contrato de amizade proposto. Não realiza, assim, a performance que Mal- foy dele espera: apertar sua mão (o que indicaria aceitá-lo como amigo), pois Harry não apenas / quer/, mas /sabe/ e /pode/ (competência) decidir por si só quem é ou não confiável e, portanto, digno de amizade (o que ele fará durante sua estadia em Hogwarts). 2.4.2 Modalizações e estados passionais Já a modalização pelo /querer/, /dever/, /poder/ e /saber/ ser “incide especificamente sobre os valores investidos nos objetos” (LARA, 2004, p. 72), tornando-os desejáveis, proibidos, necessá- rios etc e gerando, dessa forma, efeitos passionais no/sobre o sujeito (de estado). Note que uma espada é necessária ou desejável, por exemplo, para um príncipe de um con- to de fadas, já que modalizada pelo /poder/ matar o dragão e, com isso, resgatar a princesa. O mesmo ocorre em uma caça ao tesouro, na qual o mapa representa a modalização do /saber/, tornando-se, assim, necessário à descoberta do tesouro. O que o estudo dessa modalização significou? A partir da modalização do ser surgiu a Se- miótica das Paixões, segundo a qual as paixões são “efeitos de sentido de qualificações modais, que, na narrativa, modificam a relação do sujeito com os valores” (BARROS, 2005, p. 88). As paixões simples ou paixões de objeto resultam de um arranjo modal da relação sujei- to-objeto, na qual o sujeito está em conjunção ou disjunção com o objeto, resultando da modali- zação pelo /querer-ser/. Veja alguns exemplos de paixões simples: QUADRO 6 Paixões simples Fonte: BARROS, 2001, p. 63 Nas paixões complexas, “várias organizações de modalidades constituem, na instância do discurso, uma configuração patêmica e desenvolvem percursos” (BARROS, 2001, p. 62). Tome como exemplo novamente a história escrita por J.K. Rowling. Na sequência da narra- tiva de “Harry Potter e a pedra filosofal”, o garoto vem a enfrentar seu inimigo Lord Voldermort, que planejava obter a Pedra Filosofal, com cuja força poderia fortalecer-se para colocar em prá- tica seu plano de segregação dos bruxos sangues-puros dos mestiços, filhos de bruxos e trouxas (não bruxos). Quanto às paixões, você vai notar que há, pelo menos, duas maiores que “modulam” a narra- tiva (ambas paixões simples, decorrentes da modalização pelo querer-ser). A seguinte passagem ilustra a busca de Harry e seus amigos para descobrir quem é Nicolau Flamel, o bruxo a quem pertence a Pedra Filosofal, a partir da qual se pode produzir o Elixir da Vida, que torna imortal aquele que o bebe (ROWLING, 2000); razão pela qual Lord Voldemort, ainda enfraquecido, almeja obtê-la. 30 UAB/Unimontes - 8º Período - Só queremos saber quem é Nicolau Flamel, só isso - falou Hermione. - A não ser que você queira nos dizer e nos poupar o trabalho? - acrescentou Harry. - Já devemos ter consultado uns cem livros e não o encon- tramos em lugar nenhum. Que tal nos dar uma pista? Sei que já li o nome dele em algum lugar. - Não digo uma palavra - respondeu Hagrid decidido. - Então vamos ter que descobrir sozinhos - disse Rony, e saíram depressa para a biblioteca, deixando Hagrid desapontado. Andavam realmente procurando o nome de Flamel nos livros desde que Ha- grid deixara escapá-lo, porque de que outra maneira iam descobrir o que Snape estava tentando roubar? O problema é que era muito difícil saber por onde começar, sem saber o que Flamel poderia ter feito para aparecer em um livro. Não se encontrava em Grandes sábios do século, nem em Nomes notá- veis da mágica do nosso tempo, não era encontrável tampouco em Importan- tes descobertas modernas da mata nem em Um estudo aos avanços recentes na magia. E, é claro, havia também o tamanho da biblioteca em si, dezenas de milhares de livros, milhares de prateleiras, centenas de corredores estreitos (ROWLING, 2000, p. 170-171). Observe que, nessa passagem, está retratada a primeira paixão simples da narrativa, a curio- sidade (querer-saber), sem a qual os sujeitos não teriam obtido as informações necessárias para descobrir o mistério que envolvia a Pedra Filosofal e salvá-la do mal. Essa é uma característica marcante das crianças, recorrente em muitos contos de fadas, cujos protagonistas são jovens, por exemplo, em “João e Maria”, em que duas crianças, por curiosidade, embrenham-se na flores- ta e ficam perdidas: Era uma vez um menino chamado João e sua irmã Maria, que moravam em uma casa perto da floresta. Um dia, sua mãe pediu que fossem buscar galhos secos para acender o fogo. Não precisavam trazer muitos, apenas o bastante para acender a lareira. - Não vão muito longe. Os galhos que temos aqui perto já servem, não vão se perder por aí... - Pode deixar, mamãe, vamos voltar logo! E lá se foram os dois procurar gravetos secos por ali, entre várias brincadeiras. Não queriam ir longe, mas estavam tão curiosos com a floresta que resolveram arriscar só um pouquinho. Maria teve uma idéia genial: foi marcando todo o caminho, para saber por onde voltar: assim não iriam se perder. E brincaram à vontade. Já estava querendo escurecer quando resolveram voltar. Maria foi logo procu- rando os pedacinhos de pão que deviam estar marcando o caminho, mas... Os passarinhos que moravam ali estavam achando ótimo aquele lanchinho, e não deixaram nem um miolinho de pão sobrar. Não havia como achar o cami- nho de volta para casa. A idéia de marcar o caminho tinha sido ótima, mas não com pedacinhos de pão. Fonte: <http://feijo.com/~flavia/joaoemaria.html>. Acesso em 23 set. 2011. Outra paixão que você pode observar na trama é a ambição ou cobiça, que move
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