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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Ingrid Müller Xavier O que significam aprender e ensinar filosofia? Notas a partir de uma experiência no Colégio Pedro II Rio de Janeiro Fevereiro de 2010 Ingrid Müller Xavier O que significam aprender e ensinar filosofia? Notas a partir de uma experiência no Colégio Pedro II Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos curriculares obrigatórios para a obtenção do título de doutor em Educação. ORIENTADOR: WALTER OMAR KOHAN Rio de Janeiro Fevereiro de 2010 Autor Xavier, Ingrid Müller Cód O que significam ensinar e aprender filosofia? Notas a partir de uma experiência no Colégio Pedro II– Rio de Janeiro, RJ, [s.n] 2010 Orientador: Walter Omar Kohan Tese de Doutorado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bibliografia:f. 1. Ensinar 2. Aprender. 3 Filosofia. I. Walter Omar Kohan. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro Ingrid Müller Xavier O que significam ensinar e aprender filosofia: Notas a partir de uma experiência no Colégio Pedro II COMISSÃO EXAMINADORA Prof. Dr. Walter Omar Kohan Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (orientador) ______________________________________ Prof. Dr. Alejandro Ariel Cerletti Universidad de Buenos Aires - UBA ______________________________________ Prof. Dr. Miguel Angel de Barrenechea Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO ______________________________________ Prof. Dr. Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP ______________________________________ Profa. Dra. Siomara Borba Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ _________________________________________ ao wok, são muitos os porquês aGradEcimentos Aos corações que me dão ritmos, respiros e silêncios e com seus pulsos fazem do viver sinfonia. Mamiméri, Julika, Nonó, Tweeta, Rena, Celinzin, FLP, Gi , Filó, IU, Tita, Juanita, Sierpe, Paulinho, Paulão, Mig e Pipa, NEFI,V, Sandra e Francisco. Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. - Mas qual a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Kahn. - A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco -, mas pela curva do arco que estas formam. Kublai Kahn permanece em silêncio refletindo. Depois acrescenta: - Por que falar das pedras? Só o arco me interessa. Polo responde: - Sem pedras o arco não existe. Ítalo Calvino, As cidades invisíveis RESUMO O presente trabalho é uma investigação sobre os sentidos de uma tríade de conceitos considerados problemas que atravessam a prática dos ensinantes e aprendizes de filosofia: ensinar, aprender e filosofia. O exame parte de um diagnóstico das inflexões nas subjetividades operadas por duas condições da cultura hipermoderna: a vídeo-imagem e a corpolatria e sugere que a repercussão sobre o ensinar e o aprender filosofia destas condições impulsiona à descentralização do ensino de filosofia do marco eminentemente focado na leitura e na escrita. O solo do trabalho é um conjunto de experiências realizadas no marco de uma tradicional instituição escolar pública da cidade do Rio de Janeiro tendo em vista uma educação filosófica. As experiências nele relatadas incluem encenações teatrais, uso de filmes e o trabalho realizado com textos do corpus filosófico. Os procedimentos adotados para pensar o que é ensinar, aprender e filosofia são de inspiração nietzschiana e privilegiam a filologia e a genealogia. Os filósofos escolhidos para pensar os problemas implicados nas relações entre ensinar, aprender e filosofia são Rancière, Kant, Nietzsche, Ortega y Gasset, Heidegger, Deleuze e Platão. A investigação visita a noção de problema desde três perspectivas filosóficas, examina a questão do sentido e considera a formação de professores de filosofia. Problematiza o modelo ensinar e aprender norteado pela transmissão, bem como a noção de formação e o vínculo filosofia e conhecimento e propõe as noções de experiência e de signo como sugestivas para pensar uma educação filosófica orientada pelo lema pindárico “venha a ser o que és”. PALAVRAS-CHAVE Ensinar, Aprender, Filosofia, Problema, Sentido, Ensino médio, Formação de professores RESUMEN El presente trabajo es una investigación sobre los sentidos de una tríade de conceptos considerados como problemas. Estos conceptos atraviesan la práctica de los enseñantes y aprendices de filosofía: enseñar, aprender y filosofía. La investigación parte de un diagnóstico de las inflexiones operadas en las subjectividades por dos condiciones de la cultura hipermoderna: el vídeo-imagen y la corpolatría y sugiere que la repercusión de estas condiciones sobre el enseñar y el aprender filosofía direcciona hacia un descentramiento de la enseñanza de la filosofía marcada predominantemente por la lectura y la escritura. El suelo del trabajo es un conjunto de experiencias realizadas en una tradicional institución escolar pública de la ciudad de Rio de Janeiro con la finalidad de promover una educación filosófica. Las experiencias relatadas incluyen puestas en escena de piezas teatrales, uso de películas cinematográficas y trabajo a partir de textos del corpus filosófico. Los procedimientos adoptados para pensar los sentidos para enseñar, aprender y filosofía son de inspiración nietzscheana y privilegian la filología y la genealogía. Los filósofos elegidos para ayudar a pensar los problemas implicados en las relaciones entre enseñar, aprender y filosofía son Rancière, Kant, Nietzsche, Ortega y Gasset, Heidegger, Deleuze y Platón. La investigación visita la noción de problema desde tres perspectivas filosóficas, examina la cuestión del sentido y considera la formación de profesores de filosofía. Problematiza el modelo de enseñar y aprender regulado por la idea de transmisión, el concepto de formación y el vínculo entre filosofía y conocimiento. Propone las nociones de experiencia y signo como inspiradoras para pensar una educación filosófica orientada por el lema pindárico “llega a ser el que eres”. PALABRAS CLAVE Enseñar, Aprender, Filosofía, Problema, Sentido, Enseñanza media, Formación de profesores SUMÁRIO Uma escrita em es/xtratos: onde se prefere procedimento a método 1 Es/xtrato 0: TRAÇANDO UM HORIZONTE: relações entre ensino de filosofia, educação e cultura 13 Laranja: Sentido, novidade 13 Branco: Tradição, novidade, filosofia 17 Azul: Possibilidades e impossibilidades do ensino de filosofia na 22 escola Azul marinho: Filosofia em tempos de adrenalina 25Azul celeste: Escrita e vídeo-imagem, espaço/tempo e pensamento 25 Azul cobalto: O declínio da interioridade e o novo indivíduo exterioridade 31 Azul turquesa: Repercussões destas duas condições culturais no ensino de filosofia na escola 37 Es/xtrato I: SOBRE POSSIBILIDADES DE ENSINAR FILOSOFIA NO 43 COLÉGIO PEDRO II Preto: O contexto institucional: breves apontamentos sobre a filosofia na escola brasileira 43 Roxo: A filosofia no Colégio Pedro II: possibilidade de experiências singulares Lilás:Dramatizações 56 Ametista: O banquete (2000) 56 Lavanda: Admirável mundo novo (2003) 61 Orquídea: Em torno ao problema “Relação Homem-Natureza” (2007) 66 Vinho: Cinegreve (2005 e 2006) 73 Violeta: Dois cursos “regulares” 78 Es/xtrato II: PROBLEMA: a noção como problema filosófico; 81 ENSINAR E APRENDER COMO PROBLEMAS Vermelho: Problema: a noção como problema filosófico 82 Carmesin: Aristóteles 83 Coral: Ortega y Gasset 85 Cereja: Deleuze 87 Escarlate: O problema, os filósofos e filosofia 90 Verde: Ensinar e aprender como problemas filosóficos 93 Verde limão: Ensinar (filosofia) como problema: a impossibilidade de ensinar filosofia 94 Verde mar: Ensinar e aprender (filosofia): problemas de uma relação 102 Verde folha: Aprender (filosofia) como problema: o enigma de aprender filosofia 109 Esmeralda: Aprendizagem e experiência 110 Jade: Aprendizagem e signos 113 Es/xtrato III: FILOSOFIA, FILOSOFIAS, FILOSOFAR: PENSANDO UMA EDUCAÇÃO FILOSÓFICA 119 Amarelo: Filosofia, utilidade e sentido 119 Âmbar: Filosofia terreno e territórios 122 Açafrão: Um ideal de mestre: o buscador de verdades 124 Topázio: Um ideal de mestre: o criador de sentidos 128 Jalde: Filosofar como inventar-se 133 Ouro: Vir a ser o que se é 140 Pós-es/xtratos: FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE FILOSOFIA 144 Bibliografia 158 Anexos Uma escrita em es/xtratos: onde se prefere procedimento a método Um homem nunca se eleva mais alto senão quando desconhece para onde seu caminho poderia levá-lo. Emerson Esta tese parte de uma constatação: ensino filosofia em uma escola e não sei muito bem o que seja ensinar. Tampouco me atrevo a dizer o que seja exatamente filosofia, ainda que tenha pensadores favoritos e prefira pensá-la não somente como disciplina teórica e uma relação de problematização com os saberes, mas também como uma maneira de viver. Venho experimentando dar aulas de filosofia há treze anos, inspirando-me nos meus mestres, improvisando segundo a circunstância, o humor e o convite de um problema, buscando dar espaço para o acaso e o imprevisto. Aluna durante os tempos da ditadura, não me foi apresentada a filosofia na escola. A proximidade com a filosofia adveio com os estudos de filologia que sucederam uma primeira formação em medicina. O estudo sistemático de filosofia só aconteceu de fato em um terceiro momento de formação quando, incentivada por um professor de filologia, acabei por me desviar da filologia para então me dedicar à filosofia e ao seu ensino. Ainda que meus professores e professoras de filosofia na universidade tivessem interesses e preocupações filosóficas as mais diversas, um ponto, pelo menos lhes era comum: o trabalho de leitura e interpretação do texto filosófico. Herança que perpetuei nos primeiros anos de ensinante ao fazer do texto filosófico o principal caminho de iniciação à filosofia. Alguns dos meus alunos dizem que aprenderam filosofia na escola comigo e que isso vem sendo importante para a vida deles. Não sei bem como isso acontece, mas parece que ensino, ao menos para alguns, e alguns acreditam ter aprendido. Neste trabalho, pretendo explorar os sentidos de aprender e ensinar filosofia a partir de minha experiência como professora desta chamada “disciplina” no Colégio Pedro II (CPII), instituição que será oportunamente apresentada mais adiante. O que aqui se quer avaliar é a pluralidade de possíveis encaminhamentos e desdobramentos que emergem quando nos propomos a investigar um campo conceitual ineludível: aquele presente nas diferentes práticas e teorias que fundamentam e promovem o ensino de filosofia; notadamente o território delineado por conceitos centrais como sejam ensinar, aprender e filosofia. A escolha do tema desta tese, ao se concentrar nos três conceitos supracitados, deve-se à insistência sempre renovada com a qual estes conceitos vêm exigindo cada vez mais esclarecimento com vistas a criar sentidos para a minha própria prática docente. Penso ser mesmo impossível aos que se dedicam com cuidado a ensinar filosofia dispensar-se da ocupação de problematizar o que entendem por filosofia, o que consideram ser ensinar e o que julgam ser aprender. O que aqui se apresenta é, pois, um exercício despojado de pretensões outras que tão somente repensar algumas etapas de um percurso, apontar questões, colocar problemas que possam deixar ver minhas próprias dificuldades e algumas que percebo no meu trabalho com os jovens e com os professores em formação com os quais convivo na prática cotidiana. Se algumas das orientações que propus para mim mesma puderem vir a ser úteis para outros professores, isso se deve ao fato deles serem atravessados por inquietações semelhantes e estarem,como eu, em busca de outras experiências na tentativa de exercitarmos encaminhamentos que revigorem e ressituem nossas maneiras de pensar e de agir como ensinantes de filosofia e que nos façam mais capazes de movimentar os problemas, introduzindo-lhes novos elementos e ampliando as questões. E por isso penso que faz sentido não apenas se debruçar sobre os sentidos de ensinar hoje filosofia no ensino médio de uma instituição de ensino federal do Brasil, mas também ter feito disso espaço para uma pesquisa e a redação desta tese. Outro sentido que pode nascer daqui é se o problema de buscar uma política afetiva interessante para o ensino de filosofia for capaz de inspirar também a prática de outros professores neste momento de retomada e renascimento da filosofia como disciplina escolar. O trabalho se pretende um exercício exploratório de três campos constituintes do território a investigar: I. Análise de experiências pedagógicas vinculadas ao ensino e à aprendizagem de filosofia na escola; II. Apresentação, descrição e avaliação de contribuições filosóficas para entender a complexidade das relações entre filosofia e seu ensino, tendo como interlocução preferencial os estudos teóricos referentes às perspectivas educacionais presentes nas filosofias de F. Nietzsche, J. Rancière e G. Deleuze; III. Problematização dos conceitos e modelos pedagógicos que circulam na tradição do ensino de filosofia. De modo algum se trata de campos sem relação. Portanto, eles não serão abordados isolada ou separadamente. Ao contrário, eles se cruzam e perpassam este trabalho em vários planos. O tratamento que a eles dispenso está atravessado por duas linhas procedimentais que apresento a seguir. Procedimento e método Ainda que se tenda a apresentar como sinônimos as palavras método e procedimento, creio que se possa fazer uma distinção significativa entre elas. A palavra método, do grego méthodos, é uma composição do antepositivo metá, com, de acordo com e odós, via, caminho. “Tem-se um método quando se dispõe de um ‘caminho’ para alcançar um determinado fim, proposto de antemão” (FERRATER MORA, J. 2001. p. 2400). Vemos que a palavra está comprometida não apenas com um caminho, mas com uma finalidade previamente estabelecida. Isso parece bastante claro quando no Sofista, Platão ainda bem no início do diálogo (218d -219a) faz uso repetido da palavra método para estabelecer as primeiras coordenadas do caminho ao encalço de uma definição de sofista. A palavra procedimento, claramente derivada de proceder, abstém-se de um caminho já traçado e de finalidades prefixadas e aponta em direção a uma ação, um comportamento, um modo de realizar, desenvolver, nascer e dar origem. Esta tese, de certo modo, buscará fazer-se com alguns recursos tomados de empréstimo a maneira de operar nietzschiana: a filologia e a genealogia. Procedimentos estes que além de influenciarem a minha prática docente contribuíram para ajudar a pensá-la. Filologia “Toda atividade filológica deve estar embasada e delimitada por uma Weltanschaung filosófica”, dirá Nietzsche em seu discurso inaugural de 28 de maio de 1869 (apud HAYMAN,1980 p.110). O filólogo promissor, aos 24 anos indicado para ocupar a cátedra de filologia na Universidade de Basiléia, redimensionará as perspectivas da filologia, “disciplina mortalmente perversa” segundo as palavras de Richard Wagner. Já em seus primeiros trabalhos sobre Teógnis, Diógenes Laércio e Demócrito, Nietzsche buscara desviar-se do cientificismo-lógico atravessado pelo “espírito de gravidade”, distanciando-se da escrita pesada, da explicação gramatical exata, da minudência e da erudição pretensiosa cara aos filólogos. Será seu segundo desvio. O filho e neto de pastores destinado à teologia, uma vez seduzido pela Antiguidade, acabara por migrar do estudo da religião para “a consciência científica”, indo então ocupar-se do estudo científico das letras clássicas. Convertido à filologia – campo do saber fundado sistematicamente no final do século XVIII com a preocupação de se manter no registro, método e perspectiva da ciência1 – Nietzsche busca multiplicar pontos de vista, ampliar horizontes: “Atualmente ciência, arte e filosofia se unem em mim tão fortemente que um dia conceberei centauros”. E seu primeiro centauro será O Nascimento da tragédia, livro no qual a filologia recebe um tratamento inovador ao reunir arte e filosofia. As críticas ferozes não demoram, está aberta a Philologenkrieg, a guerra dos filólogos. Acusado pela comunidade filológica de denegrir o método histórico-crítico da “ciência da Antiguidade”, comprometido com a verdade, e com o controle rigoroso das hipóteses, bem como de “não levar nossa ciência a sério”, Nietzsche estaria subordinando a filologia à filosofia e à música e com isso e por isso estaria a “fundar uma nova religião” ao contaminar a filologia com considerações estéticas e filosóficas. Ou seja, Nietzsche não investe a filologia de uma aura de legitimidade acadêmica e científica; antes, se propõe a comprometê-la com a questão do valor, o que resulta em uma nova estratégia para pensar a linguagem relacionando-a a uma hierarquia dos estados da alma e a formas de vida. Nietzsche, que tem plena convicção de ser um avant-gard, um explosivo outsider e estar fundando uma nova filologia, a “filologia do futuro” – como dirá Rohde, o único filólogo que sai em sua defesa – garante estar confiante de que serão necessárias várias décadas para os filólogos compreenderem “um livro tão esotérico e científico”. “Não sei que sentido poderia ter a filologia clássica se não o de atuar de uma maneira intempestiva, quer dizer, contra o tempo, e, portanto sobre o tempo e, assim espero, em favor de um tempo vindouro”, diz Nietzsche, dois 1 Com Prolegomena ad Homerum de 1795, o kantiano Friedrich A. Wolf postula as tarefas, as possibilidades e os limites da “ciência da Antiguidade”. A fundação da filologia representa uma virada significativa na maneira de abordar a cultura clássica, pois as exigências de Wolf de “explicação gramatical exata, nada de estética ou poética” pretendem demolir a aura de magia e encantamento que acompanhava a imagem humanista do mundo antigo. anos depois, no prefácio da Segunda Consideração Intempestiva” (2000a, p.34). O que ele está encaminhando é pensar diferentemente a filologia e, ao estabelecer aliança com a estética e a poética, inventar um procedimento filológico afastado da via empoeirada e cinzenta da erudição presa à meticulosa investigação de documentos, maçante e massuda, e que tem por lema recusar a obsessão pela verdade. Este gesto – ampliar o horizonte da “ciência da Antiguidade”, inserindo-a em um campo multirrelacional atravessado pela arte – é expressão de uma problematização filosófica da filologia. Ao entendê-la como um conhecimento científico ressequido, “cega atividade de toupeira”, o que orienta o pensador é uma visada bastante desconfiada da “vontade de verdade” aliada ao instinto de conhecimento e à “objetividade” que anima a filologia. Em um texto de 1872, portanto do ano mesmo em que é publicado O Nascimento da tragédia, ele dirá: “A história e as ciências da natureza foram necessárias contra a Idade Média: o saber contra a crença. Contra o saber dirigimos neste momento a arte: regresso à vida” (1984. p. 31). Em última instância, o que Nietzsche postula é que arte e ciência são ambas, igualmente, ilusões; a segunda, ilusão de dar conta da verdade objetiva do mundo, a primeira, ilusão de torná-lo suportável. Sua formação filológica não lhe impediu2 de ver que conceitos não são senão resíduos de metáforas e que estas, por sua vez, resultam de um complexo processo constituído por diferentes transformações e transposições analógicas e singulares que têm início na maneirapela qual somos afetados pelas coisas. Desde essas primevas reações, excitações nervosas são convertidas em imagens que, sofrendo uma segunda transposição e submetidas à identificação do não idêntico, acabam por culminar na linguagem, no entanto, ao se esquecerem de sua misteriosa proveniência, conceitos pretendem-se objetivos, universais e verdadeiros espelhos das coisas. Em um texto de 1873, portanto apenas um ano após O Nascimento da tragédia, Nietzsche reativa a velha questão dos cínicos: O que é então a verdade? Uma multidão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo firmes, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, 2 Por outro lado, a sua imaginação filológica lhe permitiu ver os conceitos como resíduos de linguagem, metáforas. das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam seu cunho e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. (NIETZSCHE, 1984. p.94)3 Apropriando-me do procedimento filológico de Nietzsche, buscarei revisar algumas ilusões de verdade consolidadas em torno do aprender e do ensinar para propor outras ilusões e metáforas que possam desestabilizar sentidos cristalizados. Sem desmedidas pretensões, tentaremos fazer à didática – ou melhor, a uma experiência precisa, limitada da didática do ensino de filosofia – o que Nietzsche fez à filologia: uma invenção filológica que seja também problematização filosófica, por via da estética, sem qualquer ambição de se constituir em ciência, de dar conta de uma verdade objetiva. O que se tenta é apenas retomar e expor o que reiteradas vezes foi feito nos cursos junto com os alunos: ater-se a forças muitas vezes escondida nas palavras pensando-as desde as suas entranhas. Procedimento cuja intenção foi sempre a de contagiar os alunos com o prazer de descobrir os mundos que se ocultam nas palavras. Genealogia Ex-teólogo, ex-filólogo, o filósofo Nietzsche inventa um procedimento que tem por estratégia a genealogia. O procedimento genealógico tem suas raízes na filologia, pois foi a partir de uma “invenção filológica” que ele se configurou4. A genealogia não se limitará a determinar a gênese histórica de um acontecimento, ou fato, mas, sobretudo, avaliar as forças que o engendram, sopesar-lhes o quantum de potência que deflagram ou sequestram, em suma, entendê-las como vetores de valor e atrever-se a examinar a psicologia das formas de vida que consolidam esses valores. O pensamento de Nietzsche, ao introduzir a questão do valor e do sentido, se pretende uma critica total, uma vez que, segundo nosso autor, Kant não teria explorado suficientemente as possibilidades da crítica, uma vez que não se atreveu a defrontar-se com o problema do valor. A genealogia em Nietzsche se faz como procedimento crítico de investigação que visa detectar as condições de possibilidade de uma pretensão, de uma teoria ou de um 3 Tradução de Ana Lobo, levemente modificada. 4 Será a partir da análise filológica da palavra “bom” em várias línguas que Nietzsche assentará o procedimento genealógico. Cf. A genealogia da moral, Ia dissertação “bom e mau”, ”bom e ruim”. valor observando as condições concretas que determinaram seu aparecimento. Explora também a legitimidade dos valores e assim desmascara-lhes as ilusões através um percurso histórico interessado em revelar os jogos antagônicos das vontades de potência configuradas nas redes múltiplas e complexas dos acontecimentos que concorrem para a gênese de um valor, idéia ou teoria. O procedimento, portanto, não busca a origem, o fundamento originário de um valor ou idéia, antes quer rastrear sua proveniência constituída pelas diversas articulações históricas que permitem mostrar a emergência de uma pretensão ao se consolidar como valor. Genealogia é sempre interpretação e avaliação de uma proveniência. Interpretação e avaliação que devem ter uma referência concreta a partir das observações recolhidas pela filologia e pela história, continuamente dependentes das condições vitais. Interpretar e avaliar tem como principal parâmetro os efeitos de potenciação ou coação da vida, única pedra de toque da genealogia. Neste procedimento ressoa a afetividade da ética de Spinoza, onde o aumento da potência de afetar e ser afetado que uma vida experimenta indica a força de um valor. O procedimento genealógico, arma daquele que se diz dinamite, filosofa a marteladas. A genealogia, martelo do pensador, explode ilusões, critica saberes. Insurge-se contra o positivismo, uma vez que este se limita aos fatos e às leis pretensamente objetivas e invariáveis da natureza, ao que a genealogia afirma que todo e qualquer fato é já sempre uma interpretação. A genealogia recusa também o historicismo teleológico que confere à história humana uma finalidade última, ao mesmo tempo em que crê na existência de um progresso científico e moral da humanidade. Nietzsche sustenta que ideias, teorias e valores só podem ser avaliados em razão de seus efeitos: plenificam e potencializam a vontade de vida ou a empobrecem e minguam? A genealogia investiga as práticas da cultura, é um procedimento de relação de palavras, conceitos e valores a formas de vida, a tipos que têm sua realidade configurada pelo modo como vivem, pelas escolhas que fazem. A educação também está associada a modos de vida, a modos de ser, de avaliar e de apreciar. A genealogia e a filologia através do exame das palavras, fazem estes tipos aparecer, mostram as forças que estão agindo, os interesses que estão sendo mobilizados ao conformar uma pretensão, um valor. Assim, uma tese de filosofia da educação, com ênfase no ensino de filosofia, que apela a procedimentos afinados com o modo de fazer filosofia de Nietzsche, tentará investigar e explicitar mediante pesquisa filológico- genealógica, os termos que os problemas do campo aberto pelo ensino de filosofia necessariamente reclamam, tais como, neste estudo: ensinar, aprender e filosofia. Para problematizar os sentidos do que se experimentou no início do século XXI, no Rio de Janeiro, numa escola – embora pública e de massa – herdeira de uma longa tradição que lhe garante um lugar privilegiado no panorama do ensino escolar público, o presente trabalho se ocupa do exame do que pode significar ensinar e aprender filosofia; propõe-se a pensar também algumas orientações e condições para a formação de professores de filosofia. Levando-se em conta o movimento de ampliação deste campo no Brasil atual, apresentar para sua consideração pública os procedimentos e as propostas pedagógicas que tiveram lugar no âmbito de uma instituição também pública, e sugerir gestos que indiquem possíveis linhas inspiradoras para pensar e praticar o ensino de filosofia em nível médio é uma forma de tentar contribuir para o exame do território sempre móvel e por construir que o desafio de fazer filosofia na escola abre. A experiência que provoca esta escrita é, pois, a de uma professora que, por não saber muito bem o que é ensinar, nem como alguém aprende e tampouco que é a filosofia, experimentou algumas cumplicidades possíveis entre os três termos. Cumplicidades que se constituíram como experiências de ensinar e aprender filosofia na escola, algumas das quais este trabalho traz à luz pela escrita. Deste modo, o presente trabalho carrega consigo uma tríplice experiência, ou talvez três dimensões de uma experiência: a) experiência de escrita inscrita numa b) experiência de tornar-se professora de filosofia a partir de c) experiências numa instituição pública de ensino. Porum lado, é experiência de escrita uma vez que não parte de uma verdade pré-concebida que a escrita procuraria transmitir. Ao contrário, é na própria escrita que se constituem os saberes afirmados por ela. Afinal, “Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos, ou sabemos mal?” (DELEUZE, 1988, p.18). Esses saberes não são aqui colocados para serem transmitidos, mas para contribuir à problematização do sentido de ensinar filosofia entre nós, ou seja, para contribuir ao segundo nível da experiência, o que diz respeito a um modo de vir a ser professora de filosofia que, por sua parte, alimenta-se de um nível “primário” de experiências concretas que aqui são narradas. Assim, esta tese é uma experiência com a própria escrita, com as palavras ao experimentar seus sentidos, ao arriscar sentidos e inventar palavras. Como apresentar uma experiência dinâmica em forma de uma tese? De que maneira tornar compatível uma experiência de escrita com o formato exigido pelos padrões acadêmicos? De um modo geral espera-se deste tipo de trabalho uma divisão ordenada em capítulos, contendo seções claramente definidas: delimitação do problema; metodologia; desenvolvimento; conclusões. Um capítulo, do latino caput, cabeça, é propriamente uma cabeça pequena. Talvez por isso, prefiro não outorgar esse nome às seções do presente trabalho, porque isso suporia um corpo dividido e porque alude a uma tradição da qual pretendo desviar, inclusive nos modos dominantes de compreender o ensino de filosofia. Penso num trabalho que, embora remeta a uma experiência de vida profissional, seja menos pessoal e afirme uma concepção de ser humano menos dissecado e iluminista. Por isso, considero que as partes deste trabalho estão mais próximas de serem camadas, planos e passagens que se entrecruzam e se complicam – estratos – do mesmo modo que se implicam e atravessam os termos que as animam e dos quais este trabalho buscou extrair algo – extratos; es/xtratos. Conjugo o estrato como plano ou camada, com aquilo que nele foi extraído: extrato. Assim, es/xtrato sinaliza o modo múltiplo e dinâmico de fazer-se desta narrativa. Dessa forma, os sentidos de ‘es’- e ‘ex’- confluem para indicar um movimento para fora e a partir de fora. Um es/xtrato é a tentativa de colocar para fora o que foi tratado, de estar sensível aos signos de fora e de mostrar o tratamento dado aos problemas postos por esta tríplice experiência de escrita. A extensão e subdivisão dos es/xtratos tampouco obedece a uma estrutura convencional. O es/xtrato I, o solo concreto de onde as experiências de ensino e aprendizado emergem, tem um peso, ocupa um espaço diferenciado porque aí é narrado o percurso em torno do qual os demais es/xtratos gravitam. Em vez de numerar as partes e sub-partes de hipotéticos capítulo, foram atribuídas cores e tons às seções e linhas que atravessam cada um dos planos ou camadas chamados es/xtratos. As ramificações dessas seções interiores aos es/xtratos receberam o nome de variações de cor, as linhas que as desenham são suas tonalidades. Para efeito de sua apresentação, o conjunto das experiências foi organizado em quatro es/xtratos. Um primeiro es/xtrato, 0: Traçando um horizonte: relações entre ensino de filosofia, educação e cultura, se apresenta como diagnóstico de um horizonte – desenhado desde uma perspectiva, de um modo de ver e compreender a cultura contemporânea – e sua implicação no ensino de filosofia. A perspectiva se organiza em torno às noções de sentido, novidade, tradição e filosofia. O movimento para traçar as linhas desse horizonte sublinha duas condições supostas como significativas na formação das subjetividades em uma cultura hipermoderna: a vídeo- imagem e a corpolatria. O horizonte traçado pelo declínio da escrita e um corpo superexcitado sinaliza a importância de explorar outras situações educativas que considerem a imagem e a dramatização descentrando o ensino de filosofia da leitura e escrita. O es/xtrato I: Sobre possibilidades de ensinar filosofia no Colégio Pedro II, de viés eminentemente descritivo, considerando o horizonte antes desenhado, recupera algumas experiências de ensinar filosofia no Colégio Pedro II entre os anos 2000 e 2007 e apresenta o marco em que elas tiveram lugar. Desde a inserção em uma tradicional instituição federal de ensino mostro como certas práticas constituíram o meu próprio processo de aprendizado de ensinar filosofia. Dramatizações, projeção de filmes, ocupação do espaço escolar em situações inusuais, cursos organizados a partir de algumas problemáticas, temáticas ou pensadores específicos foram direções orientadoras dessas tentativas de aprender a fazer filosofia na escola. Os es/xtratos sucessivos são menos descritivos e mais conceituais, embora essa distinção seja em si mesma problemática. O es/xtrato II: Problema: a noção como problema filosófico; Ensinar e aprender como problemas organiza-se em duas seções. Em vermelho investiga-se a noção de problema em três filósofos de orientações diferentes e em verde são examinados alguns sentidos dos conceitos de ensinar e de aprender com apoio na filologia e, recorrendo ao pensamento de Rancière, Deleuze e Platão, problematiza o ensino e a aprendizagem de filosofia centrados na transmissão. Avalia-se a concepção dominante do que seja ensinar e aprender e as problemáticas relações entre a impossibilidade de ensinar filosofia e o enigma de aprender filosofia. Para buscar caminhos para pensar o aprender e o ensinar filosofia, são exploradas as noções de experiência e signo. O es/xtrato III: Filosofia, filosofias, filosofar: pensando uma educação filosófica mostra como pensar o que é filosofia na escola, desde uma trajetória de experiências que busca uma educação filosófica, tem uma orientação, implica algumas compreensões e apostas do que pode a filosofia nesse ambiente. Por entender que o fazer filosofia na escola está, de algum modo, comprometido com um ideal de mestre, em lugar de concentrar a discussão sobre ensinar filosofia no âmbito da clássica disjuntiva filosofar/filosofia, ou seja, privilegiar a atividade, filosofar (Kant) ou enfatizar o conteúdo, filosofia (Hegel), são comparados dois ideais de mestre Kant e Nietzsche. O último movimento desta tese, Pós-es/xtratos: Formação de professores de filosofia, problematiza a noção de formação e mostra uma proposta para pensar o aprender a vir a ser ensinante como trabalho compartilhado e experimental que se atualiza no fazer cotidiano da prática docente. Quanto à pessoa de enunciação e o tempo verbal, o trabalho se assume transgressor/ infringente. O problema da pessoa de enunciação, a regra da “boa escrita” impõe escolher: pessoal ou impessoal; se é pessoal, eu ou nós. Decida-se: quem é a primeira pessoa que escreve, a singular ou plural? Quem é o “sujeito” que fala, o que recorda, rememora; quem escreve este texto? Durante a escrita apareceu com força esta tensão entre o impessoal e o pessoal, e nesta última dimensão, entre eu e nós. Ao rever o trabalho fiz algumas modificações, mas aceitei a ambiguidade. Se em vários momentos não há um sujeito específico de enunciação, em alguns outros me situo no corpo coletivo de ensinantes ou no de ensinantes e aprendentes, e em outros reconheço a impossibilidade de extrapolar a singularidade de uma experiência. Embora evitado o gerundismo, o gerúndio foi por vezes empregado quando, para expressar uma idéia de progressão ou de uma ação em curso, o infinitivo precedido por ao, como por exemplo, ‘ao fazer’ no lugar de ‘fazendo’ se mostrou uma forma que parecia debilitar a força de atualidade do movimento. Es/xtrato 0: TRAÇANDO UM HORIZONTE: relações entre ensino de filosofia, educação e cultura Se a palavra perdida se perdeu,se a palavra usada se gastou Se a palavra inaudita e inexpressa Inexpressa e inaudita permanece, então Inexpressa a palavra ainda perdura, o inaudito Verbo, O Verbo sem palavra, o Verbo Nas entranhas do mundo e ao mundo oferto; E a luz nas trevas fulgurou E contra o Verbo o mundo inquieto ainda arremete Rodopiando em torno do silente Verbo. T.S. Elliot , Quarta-feira de cinzas, versos 157 e ss Na condição de professora de filosofia na escola comprometida com o ensino desta “disciplina” e com a formação de professores para multiplicá-lo, o que desde aqui interessa, sobretudo, é se e como o ensino de filosofia na escola pode contribuir para uma educação filosófica. Mais que reiterar a monótona e tão propalada, mas talvez nunca suficientemente legitimada “função instrumental” da filosofia como disciplina redentora que “ensinaria a pensar”, o que me proponho é primeiramente buscar sentidos específicos ao ensinar filosofia e como esta atividade pode ressoar no campo da educação. Pensar o ensino de filosofia não pode dispensar problematizar de início seu ‘para que’. Para que, em uma sociedade niilista, midiática e pós-industrial ensinar filosofia aos jovens? Penso ser o sentido o que orienta o como e o que de todo ensinar. Laranja: Sentido, novidade Parodiando Aristóteles poder-se-ia dizer que o sentido se diz de muitas maneiras; o termo ‘sentido’ é multívoco, abre vários caminhos, portanto, há diferentes perspectivas e diversas vias para uma aproximação a esta noção. Segundo Ferrater Mora uma das vias de acesso seria entender sentido como equivalente a significado e significação (op.cit, p.3233 e ss.), termos estes que, por sua vez, oferecem também várias possibilidades – o filósofo dicionarista aponta dez delas para o termo significação. Sentido pode também ser usado para indicar a direção ou tendência de algo, bem como apontar finalidade, objetivo ou propósito. Diz Deleuze5 que o sentido é uma entidade que não existe e guarda com o não-senso “relações muito particulares” (1974 p.XV); desde este viés o sentido é inseparável de alguma das formas do paradoxo, posto que tem em si traços da presença do não-senso (ibid.73). O sentido, segundo este autor, ao recuperar o λεκτόν dos estóicos, é um incorporal, não sendo jamais origem ou princípio e, já que todo sentido é produzido, vem a ser um efeito, não apenas causal – ainda que coextensivo e imanente à sua causa –, mas efeito de superfície. “o sentido é como a esfera em que estou instalado para operar as designações possíveis e mesmo para pensar suas condições. O sentido está sempre pressuposto desde que o eu começa a falar” (ibid. p.31). Diante desta profusão de possibilidades convém aclarar que tomarei, primeiramente, de empréstimo a Heidegger a noção de sentido. E isto porque este filósofo apresenta dela uma definição que, ademais de parecer bastante abrangente, dá lugar a uma dimensão afetiva, particularmente, interessante 5 Em Lógica do sentido, Deleuze investiga a questão do sentido no âmbito da linguagem e afirma que o sentido seria a quarta dimensão da proposição; para além da designação, da manifestação e da significação, o sentido seria o “expresso da proposição”. E, como o expresso não existe fora de sua expressão, o sentido a bem dizer não existe, somente insiste ou subsiste. ao que importa pensar quanto às relações entre filosofia e educação. Contudo, há também que guardar de Deleuze a idéia de que o sentido é sempre produzido e mais, produtor, uma vez que o sentido, ao manter com sua causa uma relação imanente, preserva seu poder genético (ibid. p. 98). “Sentido é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa. Chamamos de sentido aquilo que pode articular-se na abertura da compreensão” (HEIDEGGER, 1988, p.208). No contexto do pensamento de Heidegger, portanto, sentido e compreensão são termos intimamente associados, a bem dizer, mutuamente correlativos. A compreensão, por sua vez, é um existencial do Dasein6, ou seja, um constituinte ontológico do ente que somos nós e que, juntamente com a tonalidade afetiva7 constitui nossa abertura para o mundo. Pari passu dessa relação do termo sentido com a noção de compreensão, vale recordar que a palavra sentido é, originalmente, o particípio passado do verbo sentir, com o que a posição de Heidegger para o que aqui se encaminha ganha uma força especial, uma vez que a compreensão não se restringe a uma dimensão estritamente racional ou teórica, mas se reveste de uma tonalidade afetiva. Assim sendo, o entendimento que dará orientação quanto à questão do sentido está em copertinência com a afetividade. Ao retomar a preocupação em justificar a presença do ensino de filosofia na escola mais algumas interrogações se impõem. Qual o sentido de fazê-lo, para além das legítimas, mas também insuficientes finalidades pessoais e institucionais? Se é o sentido o que orienta o como e o que de todo ensinar, que efeitos se está pretendendo desencadear quando o que se está propondo é ensinar filosofia hoje? O hoje que fecha a pergunta marca a necessidade de situar bem a pretensão de, nos dias que correm, assegurar a importância da filosofia na escola. Dizer que filosofia e educação sempre foram companheiras de viagem não é defesa consistente, ou pelo menos suficiente, em especial em tempos de descartabilidade fácil. Para que a educação precisaria hoje da filosofia, num contexto em que a própria noção de sentido está em crise face à transitoriedade de uma cultura que valoriza a novidade 6 O conceito de Dasein, ser-aí ou presença, termo proposto por Heidegger para marcar o caráter distintivo da existência humana, é sempre possibilidade, ou melhor, um repertório de possibilidades de abertura para a experiência. O conceito será retomado no es/xtrato II, linha verde limão. 7 Da tonalidade afetiva, disposição e humor, aqui apenas mencionada, nos ocuparemos com mais detalhe também no es/xtrato II, linha verde limão. dos modismos e a flexibilidade adaptativa ao sistema em detrimento de todo movimento que possa desestabilizar o estado das coisas? Na segunda parte de Ser e tempo, Heidegger (1990, p.226 e ss.) examina as três estruturas existenciais que configuram a abertura do Dasein em seu estado de decadência: o falatório, a ambiguidade e a curiosidade. Curiosidade, ainda que seja a tradução dada pelos dicionários, não aponta de modo evidente o propósito do autor em questão ao fazer uso da palavra alemã neugier. Formado pela composição de neu, novo e gier, avidez, este “novidadeirismo” que neugier indica é um modo de estar no mundo que busca vorazmente o novo pelo novo; é o saltar incessantemente de uma novidade para outra, não para compreender o que se vê, ou para transformar-se pela diferenciação no encontro com o diverso, mas para nesta inquietude excitada abandonar-se à impessoalidade de maneira a estar sempre na impermanência e na dispersão. Incapaz de manter-se na atenção, neugier está em todos os lugares e, portanto em lugar algum e, ao sequer compreender o que vê, mantém o Dasein sistematicamente desenraizado. Em concordância com o anteriormente dito, a sociedade de consumo, ao fazer da novidade rotina, promove certa imobilidade de fundo, pois, em um dos seus sentidos, “a novidade nada tem de ‘revolucionária’, nem perturbadora, mas é aquilo que permite que as coisas continuem da mesma maneira” (Vattimo 1998, p. 12). Eis uma forma de pensar a novidade, própria de nossos tempos: ela, paradoxalmente, jogaria a favor do que já existe, do estado das coisas, contraposta a um porvir revolucionário capaz de afetar radicalmente o fluxo que leva à repetição monocórdica do mesmo. Contudo, as coisas não são tão simples quanto parecem à primeiravista. Inspirados na filosofia de Ortega y Gasset pensar é, em alguma medida, exagerar ou, em outras palavras, todo pensamento ou conceito leva consigo uma exageração. Certamente, o que se acaba de apresentar com relação à novidade parece exagerado e unilateral. Porém, o é tão somente para explicitar uma face ou aspecto da busca pelo novo e pela novidade que em geral é menos evidente e costuma passar despercebido. Pois também se aprende, com Foucault (1994c, p.178-182), que pensar é, além de exagerar, perceber o que não aparece à primeira vista ou tornar complexas as percepções mais óbvias do mundo. Portanto, a preocupação com o novo não se resume unicamente à busca irrefletida pela novidade, é ao mesmo tempo uma força de conservação e transformação do homem e seu mundo. O conceito de novidade foi explorado por Hannah Arendt8 nos dois sentidos acima descritos. Por um lado, ela relaciona a novidade ao nascimento, ao fato de seres novos chegarem ao mundo, o nascimento tem a força de introduzir-nos em um tempo em que o porvir não pode ser inferido do presente. Os novos são os que nascem, um novo começo que se afirma, e os velhos os que já habitam o mundo recebem o novo sob o nome das instituições educacionais que preparam para acolhê-los. A novidade então, desde esta perspectiva, a princípio não se desdobra na própria educação, na medida em que o seu trabalho consiste essencialmente em apresentar e inserir os novos na cultura já existente no mundo. A instituição educativa administra aos novos os saberes já instituídos, é um espaço que se sustenta essencialmente na repetição, é “uma estrutura complexa de repetição” (CERLETTI, 2008a, p.82). É na política que a novidade está essencialmente ligada à ação e à criação, pois no germe de toda ação em geral e da ação política em particular se concentra a possibilidade de inventar outro começo. O que caracteriza o novo enquanto tal é sua força de atualização uma vez que a novidade supõe a irrupção de algo imprevisível e capaz de produzir efeitos. A novidade pode ser pensada como desvio, ruptura que exige que o que havia seja reordenado de modo inédito, inaugurando e fundando outras relações. Branco: Tradição, novidade, filosofia Se dermos atenção aos termos, e às possibilidades que por vezes eles têm de escorregar em direções opostas, vemos que na noção de tradição pode haver o mesmo deslizamento que recém encontramos na de novidade. E se pode mesmo reconhecer uma tradição da novidade e pensar a novidade na tradição. Jorge Larrosa sinaliza que na atualidade se haveria alojado uma tradição: a de instaurar a novidade pela mercadoria. “Nosso mundo baseia-se na inovação permanente e sistemática (...) já se converteu numa tradição (...) solicitarmos constantemente a novidade para convertê-la imediatamente em mercadoria”. (LARROSA, 2004, p.191-192). Nosso mundo regido pela lógica 8 O conceito de novidade é examinado na obra de Arendt tanto em Origens do totalitarismo como em Entre o passado e o futuro. do capital funda uma ‘nova tradição’ orientada pelo consumo na qual a ‘novidade’ encontra seu lugar predominantemente nas lojas. Tradição não aponta tão somente imobilismo e permanência, manutenção intocada do que já foi, veneração e clausura sem mais em um passado estático, mas indica, outrossim, movimento de entregar, confiar, dar em mãos, passar a outro – ações contidas no antepositivo do latino trado que está na raiz de traditionis – a memória. É no próprio gesto de transmissão da memória que se abriga a possibilidade de que ela possa vir a ser atualizada pelas mãos dos que a recebem para reinventá-la e reinaugurá-la ao acolher os atravessamentos do acaso. Certamente, a tradição tem também uma força no sentido de auxiliar-nos a conhecermo-nos a nós mesmos, pois, apropriar-se da memória significa conhecer-se a si mesmo como devedores e tributários daquilo que nos foi legado. Mas também a tradição é algo a construir, a inventar com vistas a situar-se criticamente na ordem do mundo existente. Tradição implica uma dinâmica complexa, agenciamentos de continuidades e rupturas. Que credenciais pode então exibir o ensino de filosofia para reclamar sua presença na educação básica uma vez que a filosofia é intempestiva, ou seja, algo nela impede de ser apreendida como uma moda: ela se ocupa justamente dos conceitos que não são transitórios senão perenes. A filosofia instaura um lugar tão fora da moda que umas das suas imagens mais populares diz que ela está justamente entre o que há de mais vetusto no campo do saber. Nada pior para aspirar a um bom ranking na mídia contemporânea. Mesmo assim, nossa época é tão sofisticada em dispositivos de cooptação e despotencialização, que inclusive certa filosofia hoje pretende ser introduzida na mídia como forma de pensamento light, que outorgaria as “competências” que os cidadãos da ordem deveriam dominar para uma inserção mais exitosa no mercado. Da lógica que busca o sentido na utilidade e esta na competência não escapa sequer o ensino terciário da filosofia: Tania Lemarie (2008, p.526) assinala que a Universidade de Granada desde 2003 começou a investigar alternativas para a inserção de filósofos no mercado de trabalho sob o ditame da “competência” que incluem entre outras o coaching operacional e a consultoria para o controle ético da internet. Decididamente, não é essa a imagem da filosofia que se quer afirmar. Contudo, certos apelos à tradição filosófica também se revestem de ares conservadores e até românticos, como se a sua história contivesse um tesouro incomparável ao qual seria sempre necessário voltar. A tradição da filosofia pode tornar-se então um fetiche, um totem, uma figura que, paradoxalmente, poderia inibir mais do que favorecer a potência do pensar. Curiosamente, nesse ponto se encontram e coincidem os que desconsideram ou vangloriam a tradição: ambos pressupõem com ela uma relação passiva, como se ela pertencesse a um mundo que já não é o nosso, seja a filosofia para ser consumida como produto nobre, nostálgico ou folclórico, ou para ser desprezada por ser vetusta, obsoleta, não contemporânea. Nesse aspecto, a “tradicional” e atual incumbência da filosofia de responsabilizar-se pelo ensino do pensamento parece ter pressupostos incômodos. Pois, se, por um lado, a pretensão de “ensinar a pensar”, e pensar equiparado ao conhecer, é fardo demasiado pesado para qualquer saber isoladamente, cabe então à filosofia, à amizade ao saber, declinar tamanha responsabilidade, ou pelo menos esquivar-se de assenhorear-se dela com exclusividade. Por outro lado, quem sabe se, ao destiná-la única ou principalmente a “ensinar a pensar” em vez de enobrecê-la, esse endereçamento não contribuiria para apoucá-la ao subtrair-lhe, ou desconsiderar outras possibilidades de seus efeitos em dimensões diversas como, por exemplo, o trabalho de resistência ao ilegítimo, seja esta falta de legitimidade de ordem política ou ética, ou o incentivo e encorajamento à produção de sentidos para uma vida mais digna e criativa. Por que a filosofia garantiria, mais do que a história, a literatura ou a matemática, para citar apenas alguns outros saberes, um ensino mais potente e provocador do pensamento? Finalmente, as implicações epistemológicas e políticas de uma disciplina que se arrogasse a pretensão de “ensinar a pensar” - como se o pensar pudesse ser ensinado sem mais, ou como se houvesse uma forma privilegiada de situar-se no pensamento – são por demais inquietantes. O que exatamente, para além de uma frívola arrogância – aliás, bem pouco sustentável e de fato em nada engrandecedora de suas potências – conferiria à filosofia o privilégio de incumbir-se da missão de ensinar a pensar? Dispensando-se desta tarefa de encarregar-se de ensinar a pensar, a filosofia, únicaforma de saber que traz em si um afeto, pode libertar-se do peso desta exigência para afirmar outra relação com o saber: experimentá-lo desde a amizade, afeto, relação que se fortalece desde a aposta de que o hoje poderia ser diferente. E que se confirma num mundo de afetos para pensar o sentido deste modo de se relacionar com o pensamento que contém a philía na sua própria denominação. A clássica defesa da inutilidade da filosofia, como sendo um saber nascido e revitalizado do ócio em tempos dos antigos gregos, carece de interesse, em especial quando praticada por sujeitos para os quais o ócio não é e não pode ser um privilégio ou uma condição. Deleuze foi ainda mais longe na desqualificação dessa possibilidade: o argumento de que a filosofia não serve para nada não causa nenhuma graça, não há do que rir no mundo; ao contrário, a filosofia pode servir para entristecer, uma filosofia que não entristece não é filosofia (DELEUZE ; GUATTARI, 1992, p.17 e DELEUZE, 1973, p.87). Embora caiba perguntar com Spinoza se afinal uma filosofia que serve para entristecer não teria por efeito despotenciar e desvitalizar, indo a contrapelo das forças de uma vida intensa, mesmo assim vale a pena levar a sério a recusa deleuziana de destituir a filosofia de utilidade. A filosofia é intempestiva, extemporânea: “O filósofo (...) sempre se achou e teve de se achar em contradição com seu hoje: seu inimigo sempre foi o ideal de hoje” (NIETZSCHE, 2000, p. 118). O mundo poderia ser diferente. Sempre. Nunca há um mundo só. Um mundo nunca desperta um único afeto. A filosofia nasce de certo inconformismo com o mundo. Com este mundo, com outros mundos, com todos os mundos. É confrontando-se ao incômodo com o presente que a filosofia pode encontrar um sentido que justifique sua prática e lugar na escola; para espantar a besteira, para compartilhar, junto aos jovens, certo incômodo com a besteira, e para desacomodar e desinstalar os que dela se aproximam. Assim, o que foi dito leva a pensar que uma educação filosófica pode ser extremamente fértil no terreno da escola como instauradora de um espaço de resistência capaz de incentivar o rechaço aos imperativos hodiernos que convocam incessantemente ao apetite consumista, à acomodação dissimulada em conforto, ao hedonismo disfarçado em carpe diem, ao salve-se quem puder do cada um por si que vem solapando o interesse pela vida política. No entanto, resistir não é somente rechaçar, não é a mera negação passiva do que há – o que no caso aproximaria a resistência do niilismo –, mas resistir consiste, sobretudo, em afirmar possibilidades e sentidos que permitam inventar e experimentar coletivamente outras formas e modelos de convivialidade passíveis de emigrar do espaço construído através de uma educação filosófica na escola ao ter nos jovens seus intercessores. Insisto: o que parece mais próprio, sugestivo e fecundo para uma educação filosófica é a sua força de impulsionar à desacomodação; efeito que pode ser conquistado pela resistência à platitude dos modos de vida, muitas das vezes, empobrecidos e anódinos nos quais, contemporaneamente, quase que apenas sobrevivemos desencantados e incrédulos. Do mesmo modo que mais vale saber o que pode um princípio do que saber o que ele é, antes de estar dando voltas ao que é a filosofia afirmemo-la pelo seu efeito desnaturalizador. A filosofia de certa forma sempre se nutriu do desconforto provocado pelo estado de coisas, perplexidade que nasce do atrito e do estranhamento com o hoje. Sabemos o que merece ser sabido? O hoje mostra que o tantíssimo saber dos sábios serve bem a aprofundar a desigualdade e alargar as distâncias entre os povos, as classes sociais e as instituições9. Que saberes instauram e configuram este hoje que nos é dado? Que hoje é este que, apoderado pela ciência da técnica, tem no mercantil a significação a priori capaz de in-formar semanticamente as redes simbólicas e conceituais da convivência (DOTTI 1998)? Pensar este tempo, que empoderado como nunca para efetuar velozmente destinações, avança desabalado e pouco tempo se dá para pensar as forças que o orientam, é uma das outras maneiras de expressar um possível sentido para filosofar hoje. Talvez por isso, pela obstinação e voracidade do modo de vida dominante na chamada sociedade pós-moderna para negar ou combater os modos de vida verdadeiramente alternativos, esse sentido aparece como particularmente significativo quando a filosofia situa-se no espaço da formação dos jovens. Em concordância com o dito acima, avalia-se que os sentidos clássicos outorgados à filosofia, tais como ‘ensinar a pensar’, ‘promover a cidadania’, ‘desenvolver o pensamento crítico’, entre outros que vêm sido há tanto reiterados, talvez não sejam os mais significativos ou pelo menos suficientes para promover uma educação 9 Um dos exemplos que toca diretamente a nós professores é a maneira pela qual os órgãos de fomento à pesquisa distribuem as verbas entre as instituições. Outro, de muito maior abrangência, é o do acesso aos serviços de saúde. filosófica comprometida com a construção de subjetividades preocupadas em inaugurar outros modos de vida. Por isso, pensar as possibilidades do ensino da filosofia em nível médio deve ocupar-se dos mesmos incômodos que indicam hoje os sentidos que a própria filosofia sinaliza para filosofar. Se hoje a filosofia passa a ser objeto de atenção da mídia, ganha a televisão, se multiplicam os cafés-filosóficos, a filosofia clínica e demais práticas filosóficas extra-acadêmicas10, se a filosofia vem progressivamente ampliando sua presença na escola cabe, mais que nunca, dedicar-se a pensar o sentido de sua prática e de seu ensino. A seguir, uma análise de algumas das condições culturais e sociais nas quais se insere hoje o problema do sentido, das possibilidades e impossibilidades do ensino de filosofia. Azul: Possibilidades e impossibilidades do ensino de filosofia na escola A discussão que pretendo encaminhar é atravessada por uma sugestão de Foucault de atribuir à filosofia o trabalho de diagnóstico do presente. Num debate do início dos anos setenta (1994b, p.369), ele nos esclarece que entende diagnóstico “como uma forma de conhecimento que define e delimita diferenças”. Essa tarefa reveste diversas formas e dimensões que Foucault associa ora à filosofia, ora à crítica e que, em diversos trabalhos, remonta a Kant. Por exemplo, num texto célebre sobre Kant (1994c, p. 568), destaca como novidade no filósofo de Könisberg a atribuição à filosofia da tarefa de refletir sobre o presente. Num seminário nos Estados Unidos (1994c, p. 135), atribui à filosofia o papel de “vigiar os abusos da racionalidade política”, retomando o sentido kantiano da crítica, como aquele que impede a razão de extrapolar os limites da experiência. Na política, no exercício do poder, Foucault daria à filosofia uma função semelhante à que Kant dava, na filosofia, à crítica. Certamente, Foucault exerce a crítica filosófica não sobre estruturas formais ou universais, mas sobre as formas históricas que nos constituem no que somos. A crítica, diz Foucault num texto já citado, é genealógica em sua finalidade e arqueológica no seu método (1994c, p. 574). Em todo caso, ela busca não apenas dar conta do que somos, mas também mostrar possíveis 10 CEPPAS, F. Sobre as práticas filosóficas extra-acadêmicas. In: KOHAN, W. (org.) Filosofia: Caminhos para seu Ensino. RJ: DP&A, 2004, p. 155-167. caminhos para a transformação do que somos: eis uma ontologia crítica de nós mesmos (ibid., p. 574-5). Numa entrevista no mesmo ano (1994c, p. 110, Foucault sugere que a filosofia consiste não apenas em refletir sobre a relação que temos com a verdade, mas como devemosnos conduzir a partir das relações estabelecidas. Tendo esta sugestão como orientação duas questões se colocam: como pensar hoje as relações entre filosofia, cultura e educação no marco da denominada “crise de paradigmas” no contexto insinuado nos parágrafos anteriores? E, decorrente da anterior, em que medida a filosofia na escola e em outros espaços culturais pode contribuir para configurar outras subjetividades dispostas a engendrar diferentes modos de convivência? A primeira questão aponta a vigência de chamadas “crises de paradigmas” e convida a pensar a filosofia como experiência de pensamento disponibilizando- se a considerar os efeitos destas crises no panorama atual da educação e da cultura – esta aqui pensada como o conjunto de instâncias simbólicas, códigos de ação e conduta de um povo. Creio que pensar este panorama implica hoje atentar para o papel da mídia11 e seus dispositivos de antropotécnica no horizonte da cultura da visualidade e do espetáculo. Utilizo o termo antropotécnica para fazer referência aos processos produtores de subjetivação e de modelagem corporal que vem, progressiva e sistematicamente ao longo da história, reconfigurando o que entendemos por homem. Há inclusive que considerar que o nosso futuro parece depender bem mais de antropotécnicas possibilitadas pela tecnociência, que progride celeremente à margem da participação da sociedade civil, do que dos processos eleitorais ditos democráticos. Os procedimentos milenares de antropotécnica são correlatos das peripécias que, através de sucessivas rupturas, modificaram o nosso modo de estar e compreender o mundo, de forma a construir e educar o que hoje somos. Entre esses movimentos de transformação destacam-se desde a apropriação do fogo, o ingresso na vida sedentária, a domesticação de animais, a agricultura, a criação de cidades, passando pela invenção da escrita 11Com base em Sloterdijk, (2000, p.18) entenderemos por mídia “os meios comunitários e comunicativos pelos quais os homens se formam a si mesmos para o que podem e o que vão se tornar” e seu consequente enorme poder na formação de classes sociais12, até o domínio e produção crescente de tecnologias que hoje, ao atravessar todos os modos de vida e avançar no sentido de produzir não somente objetos, mas também seres vivos, anuncia um período de decisões biotecnopolíticas em que as reformas genéticas poderão intervir de forma inaudita nos caminhos e destinações do homem como espécie. Nesse contexto de produção de modos de ser e subjetivação, por suposto não há como negar que também o ensino de filosofia, com seus discursos de cuidado dos homens é, tanto na dimensão gnosiológica como ética e política, um dispositivo de antropotécnica. O que se pretende mais especificamente nesse momento do percurso é aquilatar em que medida as transformações nos processos de percepção, cognição e socialização, operadas pela imagem televisiva e pela informática em seus rápidos fluíres, interferem na organização do corpo social e do corpo individual e no próprio sentido da historicidade com que nos percebemos. Sloterdijk (2000, p.14) afirma que, com o estabelecimento da cultura de massa – iniciada com a radiodifusão, impulsionada pela televisão e hoje alavancada pela internet –, a coexistência nas sociedades passou a se organizar em outras bases “decididamente pós-literárias, pós-epistolares” e que apenas marginalmente os meios literários servem à produção da cultura e da política, uma vez que a cultura letrada passou a ser uma “sub-cultura sui generis”. E vai mais longe ao declarar que o modelo de escola e de formação esgotou-se, posto que a derrocada do modelo da sociedade literária não mais sustenta as sínteses culturais que vigiam no humanismo moderno. O autor em questão advoga que o embrutecimento está, e esteve desde sempre, associado à escalada e ao desenvolvimento dos regimes de poder, quer estes sejam de ordem bélica, quer sejam as formas de bestialização pelo entretenimento desinibidor da mídia. Para ilustrar sua tese, ele nos lembra o militarismo e os espetáculos sangrentos que marcaram o Império romano. Qualquer semelhança com nossos dias não é simples coincidência, a fórmula romana forneceu alguns modelos que marcaram a cultura ocidental e a máxima de Juvenal, panem et circenses, não nos é de modo alguma estranha. 12 Novamente, segundo Sloterdijk (op.cit., p.44), a cultura escrita teve um imenso papel seletivo ao criar entre os letrados e os iletrados distâncias de tal modo incomensuráveis que “alcançou quase a rigidez de uma diferença de espécie”. Segundo Jonathan Crary, (2001, p.71) a televisão é o meio mais penetrante e eficiente de controle da atenção. E, uma vez que a atenção é um âmbito estratégico para o controle social, a televisão como um meio que está entrelaçado à vida social e subjetiva emerge como um poderoso modo de produção do imaginário contemporâneo. Do mesmo modo, a internet contribui para confiscar a atenção, bem como para estabelecer novas formas de sociabilidade em que as relações interpessoais são, cada vez mais, mediadas pela tela e pela tecla. Vattimo (op. cit., p.14) fala da “progressiva redução da experiência da realidade a uma experiência de imagens (...) em que tudo se vê em monitores televisivos”. Azul marinho: Filosofia em tempos de adrenalina O cenário que proponho avaliar pode ser examinado a partir de duas condições que marcam a cultura hipermoderna. A primeira aponta uma crise que abala um dos sustentáculos da educação: o registro verbal; e a segunda, ao ter no corpo sua destinação, delineia por outro viés alguns contornos do novo sujeito da educação. Esta seção examina algumas das dificuldades que atravessam o campo da educação e repercutem de maneira particular no ensino de filosofia no qual a leitura e a escrita, por tradição, ocupam um papel relevante. Azul celeste: Relações entre vídeo-imagem, espaço/tempo e pensamento. Crise do paradigma da cultura letrada versus paradigma da cultura imagética. Os informatizados pós-modernos já dão sinal de aprisionamento num mundo pobre de linguagem criativa. Daí a voga crescente das siglas, dos logotipos, das fórmulas de toda espécie. Um processo de graves conseqüências políticas que a globalização promove e planetariza. A linguagem natural vai perdendo sempre mais autoridade, num mundo em que se necessita cada vez menos das línguas naturais. Emmanuel Carneiro Leão13 No Fedro (274c ss.), Platão nos conta o mito de Toth, a quem os egípcios creditariam a invenção de várias ciências entre elas a da escrita. Toth, de posse de suas invenções, procura o então rei do Egito, Thamouz, no 13 http://www.portalseer.ufba.br/index.php/rfaced/article/view/2687/1897 (acesso em setembro de 2009) http://www.portalseer.ufba.br/index.php/rfaced/article/view/2687/1897 intuito de que este divulgue seus saberes. Thamouz interroga a Toth quanto à utilidade de cada uma de suas artes e quando chega a vez da escrita, o rei lhe adverte que uma coisa é inventar uma arte, bem outra é julgar seus benefícios. A resistência de Thamouz em relação ao cultivo da escrita repousa na desconfiança de que esta nova arte faria os homens esquecidos, pois, ao deixarem de exercitar a memória, seriam capazes de lembrar, não dos assuntos em si mesmos, mas apenas dos seus sinais. A memória, com a difusão da escrita, seria substituída pela rememoração. A escrita teria também uma influência nefasta sobre a pedagogia, pois, ao não promover a sabedoria, e apenas disponibilizando uma grande quantidade de informações sem a devida educação, tornaria os homens sábios imaginários. Cerca de dois mil anos separam Platão de Gutenberg e este antecedeu em quinhentosanos a televisão e em mais algumas décadas a internet. A crise atual dos paradigmas da cultura e da educação – estes até bem recentemente orientados pela discursividade – se dá na vigência da mudança dos registros comunicacionais, em que a progressiva passagem de uma cultura letrada à cultura da imagem provoca em muitos de nós inquietações nas quais ressoam preocupações com ecos platônicos. Enquanto Platão alerta para as transformações na configuração das subjetividades que poderiam advir da passagem de uma cultura centrada na transmissão oral para outra que assentaria suas bases na escrita, nós presenciamos a progressiva derrocada da escrita e sua suplantação pela vídeo-imagem14. Pierre Lévy (1995, p.77 e ss.) mostra que nas sociedades ágrafas15, anteriores à distinção escrito/falado, a palavra – para além da prática comunicativa cotidiana – cumpre a função de gerir a memória social de uma cultura edificada sobre as lembranças de seus membros. Nestas sociedades, a inteligência é muitas vezes identificada à memória, em particular a auditiva, o que pode ser exemplificado pelos sumérios, ainda muito próximos da tradição oral, para os quais uma cabeça com grandes orelhas grafa a sabedoria. Nas sociedades anteriores à escrita, o tempo sob a forma do círculo, inspirado no movimento dos astros e das estações, se afirma na reiteração dos movimentos de 14 Inclusive os aparelhos de controle remoto mais recentes já substituíram as palavras indicativas das funções operativas por ícones. 15 Lévy as denomina sociedades de oralidade primária as que antecedem a adoção da escrita, por oposição às sociedades de oralidade secundária em que o estatuto da palavra é complementar ao da escrita. recomeço transmitidos pelos mitos e revividos através dos ritos na roda das gerações. Repete-se, reouve-se, rememora-se, recorda-se, revive-se. É o saber escutar e manter em si a escuta que garante a bardos e aedos o saber narrado ao auditório de ouvidos em pé. A experiência da cena dramática é escuta encarnada que ressoa na proximidade dos corpos. Com a escrita, a memória obtida pela dramatização nas representações que a narrativa dos ritos revive, gradativamente, vai cedendo à criação de séries sistemáticas conectando causas e efeitos sob a forma: se X então Y. A forma hipotético- dedutiva da teoria – que tem seu germe nos tratados de adivinhação e de medicina nos quais a semiologia nascente propõe determinado diagnóstico ou prognóstico inferido a partir de um determinado sinal – constitui uma nova antropotécnica de subjetivação. O olhar de quem lê percorre experiências já desencarnadas narradas à distância. A escrita, de início usada para administrar estoques, a princípio traduziu o espaço-tempo de um mundo agrícola, mas vai ganhando independência de sua função gerencial- adminstrativa à medida que abre a outra experiência de pensamento: a teoria e a especulação. Havelock (apud. LÉVY, op. cit., p. 94) chega mesmo a situar o nascimento da filosofia na transição da oralidade para a escrita; em Hesíodo a Justiça personificada, age e é afetada, na escrita de Platão torna-se conceito. Essa virada mostra o ultrapassamento dos personagens míticos da oralidade pelos princípios abstratos da teoria. A prosa escrita, mais do que apenas modo de expressão da filosofia, é uma de suas forças de constituição. “O declínio da prosa (...) destronada pelas formas de representação que a informática traz (...) anunciaria o declínio da relação com o saber que ela condiciona” (LÉVY, op.cit., p. 94). Contudo, há que se considerar as possibilidades da informática infletindo não apenas nas formas de saber e conhecer, mas também seus efeitos como produtora de formas de subjetividade ao traçar rumos em direção a figuras desconhecidas. É interessante pensar que o que nos preocupa, a falência de um modelo determinado de educação – ocupado antes com a formação16 do que com a informação – é exatamente o que preocupava Platão, no entanto, nós nos 16 No entanto, a própria idéia de formação, tão cara à educação, é algo que merece ser examinado, pois, em princípio, na aspiração a ‘formar’, de algum modo, está presente a pretensão de partir de algo que já se supõe de antemão, um molde ou modelo, uma forma enfim, para, a partir dela adequar e dar os contornos àqueles aos quais se quer educar. O problema será retomado em pós-es/xtratos. ressentimos de perder a escrita, justamente aquilo que para ele nos desencaminharia. Há uma nostalgia comum, um discurso de perda, de conservação, um apelo a um passado impossível de ser mantido. Todavia, há que se considerar as diferenças, não apenas quanto ao ser da palavra e o ser, mero clichê, da imagem midiática, mas também a diferença nos modos/efeitos de suas “capturas” e suas relações com a experiência da temporalidade. É, no entanto, de suma importância para o que se propõe aqui circunscrever o tipo de imagem ao qual faço referência neste trabalho. Claro está que, de modo algum qualquer vídeo-imagem é um simples clichê e por certo é infundado e arbitrário valorizar toda palavra e denegrir, sem mais, qualquer imagem. Não se trata, portanto, de uma condena moral, satanização reacionária e catastrofista da ‘imagem em geral’, mas a preocupação em pensar modos de recriar a educação reconhecendo que vivemos uma era predominantemente imagética e que nos cabe saber como fazer uso da imagem em situações educativas. O termo imagem é, pois, aqui esvaziado de sua possível complexidade de elaboração e apreensão, sendo reduzido àquela imagem veiculada pela mídia mercadológica e pela tecnologia de processamento de dados que, nas palavras de Antonio Negri: Parece-nos totalmente evidente que a máquina da mídia não produz em absoluto esses efeitos com inocência. No atual sistema de poder, produz conscientemente códigos infectos e epidêmicos destinados a curto-circuitar os mecanismos de produção simbólica. (NEGRI. A. In: PARENTE, 1993, p.173) As vídeo-imagens com as quais nos confrontamos na maior parte das experiências cotidianas são aquelas redundantes, cujo poder de distorção e ocultação servem à manipulação e encobrimento da realidade. Grosso modo, poderíamos entender a vídeo-imagem midiática como uma representação de objetos e realidades que se oferecem “resolvidas”, sua apreensão é instantânea. Diferentemente, a linguagem verbal conta com a ambiguidade da palavra, exige deciframento, pede distância, penetrá-la implica outro tipo de esforço de mediação simbólica. Diz Jean Baudrillard: Diferentemente da fotografia, do cinema e da pintura, onde há uma cena e um olhar, a imagem-vídeo, como a tela do computer, induz a uma espécie de imersão (...) entramos na imagem fluída (...) e desde o momento em que estamos diante da tela não percebemos mais o texto enquanto texto, mas como imagem. (1999, p.146) A pergunta que não pode ser eludida é como nós, educadores herdeiros da tradição letrada, atuaremos diante da pregnância e a ascensão do poder da mídia de massa que substitui a primazia das cadeias narrativas? Como lidar com a sedução e o impacto pedagógico da TV, dos chats, Orkut, Facebook e outros cada vez mais efêmeros dispositivos da internet e o desinteresse progressivo pela leitura? De que maneira avaliar as repercussões na subjetividade operadas nesta viragem? Mais que me ater aos conteúdos específicos da imagem midiática, o que se tenta entender é o impacto do fluxo de imagens nas rítmicas perceptiva e cognitiva. O fluxo de imagens, veículo das novas tecnologias dos meios de comunicação de massa, em especial da televisão e da mídia cada vez mais popularizada como internet, participa significativamente na constituição,
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