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Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Área de Engenharia e Arquitetura Luciana Pietrosanto Milla - CRB 8/8129 Regiani, Luana Espig, 1992- R263d RegDiamantina e o percurso da arquitetura moderna : Lucio Costa, Juscelino Kubitschek - e Oscar Niemeyer / Luana Espig Regiani. – Campinas, SP : [s.n.], 2019. RegOrientador: Rafael Augusto Urano de Carvalho Frajndlich. RegDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo. Reg1. Arquitetura moderna - Brasil. 2. Patrimônio histórico - Brasil. 3. Arquitetura colonial - Diamantina (MG) - Obras ilustradas. 4. Oscar Niemeyer. 5. Movimento moderno (Arquitetura) - Brasil. I. Frajndlich, Rafael Augusto Urano de Carvalho, 1982-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo. III. Título. Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: Diamantina and the Brazilian modern architecture route: Lucio Costa, Juscelino Kubitschek - and Oscar Niemeyer Palavras-chave em inglês: Architecture, Modern - 20th century - Brazil Architecture, Colonial - Brazil Architects - Brazil World Heritage areas - Conservation and restoration Modern movement (Architecture) - Brazil Área de concentração: Arquitetura, Tecnologia e Cidade Titulação: Mestra em Arquitetura, Tecnologia e Cidade Banca examinadora: Rafael Augusto Urano de Carvalho Frajndlich [Orientador] Guilherme Teixeira Wisnik Silvana Barbosa Rubino Data de defesa: 15-07-2019 Programa de Pós-Graduação: Arquitetura, Tecnologia e Cidade Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.og/0000-0002-3950-0454 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/3110818847848603 Powered by TCPDF (www.tcpdf.org) Agradeço ao professor Dr. Rafael Urano Frajndlich pelos horizontes de pesquisa que foram abertos com sua chegada na pós-graduação. Obrigada pelas orientações instigantes e revisões atentas. Agradeço à professora Dra. Regina Tirello pelo importante papel para o ingresso no mestrado. Meus agradecimentos aos professores da banca de qualificação: Dr. Eduardo Rossetti e Dra. Silvana Rubino. À professora Silvana, agradeço especialmente pelas preciosas observações desde a Iniciação Científica, essenciais para todas as viagens que se seguiram. Agradeço também ao professor Dr. Guilherme Wisnik pelos pertinentes e atenciosos comentários na banca de defesa. Obrigada, in memoriam, aos Professores Alexandre Eulálio e José Cláudio Gomes, cujas coleções doadas, respectivamente, às bibliotecas da Unicamp e da USP, possibilitaram o início deste trabalho. Agradeço às instituições que disponibilizaram seus arquivos. No Rio de Janeiro, ao Arquivo Central do IPHAN, fundamental para a pesquisa, e agradeço, em particular, à Tatiana Lopes Salciotto e sua atenção em cada pedido. Na mesma cidade, à Fundação Oscar Niemeyer. Em Brasília, ao Memorial JK. Em Belo Horizonte, ao IEPHA e ao fortuito encontro com Bruno Fioravante e André Miranda. Em Diamantina, muitos foram os lugares que, ao preservarem a memória da cidade, colaboraram profundamente com este trabalho. Devo agradecimentos ao Arquivo Público Municipal pela disponibilidade ao abrir o acervo de projetos. Ao Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese, à Verônica de Mendonça Motta, pelo auxílio com os jornais “A Estrela Polar”. À Biblioteca Antônio Torres. Ao Escritório Técnico do IPHAN e à Vanessa de Pádua Mello por compartilharem as bases que possibilitaram a confecção dos mapas. Também ao Instituto Casa da Gloria, que permitiu que utilizasse sua biblioteca para escrever parte da dissertação. Especialmente, agradeço ao Museu Tipografia Pão de Santo Antônio e ao seu secretário, Emanoel Ricardo Maria, pela generosidade ao compartilharem o rico acervo da instituição com os exemplares da Voz de Diamantina, essenciais para recuperar fatos e datas dos eventos narrados. Agradeço também, imensamente, à Casa de Juscelino. Ao Serafim Jardim, pela incansável disponibilidade para contar e manter a história do ex-presidente em sua cidade natal. Ao Rômulo Barbosa, que também abraçou essa missão. Obrigada por abrirem, sem restrições, a biblioteca e os arquivos. Ainda no antigo Arraial, agradeço ao Hotel Tijuco e toda a sua equipe pela recepção nas duas estadias. Em momentos cruciais para a pesquisa, foi um privilégio estar ali e ser tão bem recebida. Especialmente, agradeço ao Rony Odlanier Silva, gerente do hotel, um dos grandes responsáveis por preservar o edifício e sua história e que com muita dedicação atende aos pesquisadores e turistas que se interessam pelo Tijuco. Agradeço ao Professor Dr. Marcos Lobato Martins pela disponibilidade em conversar e compartilhar seus textos. Sua vasta produção sobre a região foi primordial para o trabalho. Muito obrigada ao Professor Erildo Nascimento de Jesus que prontamente, seja numa conversa no Beco do Mota ou por e-mail, esclarecia qualquer dúvida sobre a cidade. Além de emprestar o livro com os desenhos do Lucio Costa. Agradeço excepcionalmente ao Michel Becheleni pela disponibilidade, generosidade e atenção ao realizar as fotos aéreas, fazendo registros atuais expressivos que ajudarão a documentar a cidade pela história. Obrigada também à Telma Pio, pelos materiais compartilhados. À Fernanda Valim, pela gentileza e pelos encontros proporcionados, incluindo a tarde de aquarela. À Dalva, Maria Dalva Aquino, e o seu Cantinho na Rua do Amparo onde encontrava não só a comida mais gostosa, mas também muito carinho. Agradeço ao diamantinense Manuel Dimitri de Almeida Gomes pelas caminhadas e conversas que tanto colaboraram com o mestrado. Obrigada pelo amparo incondicional, sem o qual este trabalho não teria sido feito da mesma forma. Também à Larissa Doalla, pela importante ajuda com o livro esquecido. Em Minas, agradeço ainda ao Paulo T. G. Pinto pelos lindos registros em Diamantina e pela disponibilidade em todos os pedidos de ajuda ao longo dos últimos dois anos. Ao Bernardo Puhler, pelas músicas que traziam a luz da Serra do Espinhaço enquanto escrevia em Campinas, Curitiba ou São Paulo. Em Campinas, agradeço aos colegas do Grupo de Pesquisa de História da Arquitetura: Protagonistas – GHIPARQ. Agradeço aos funcionários da Secretaria de Pós-Graduação - FEC/Unicamp por toda a ajuda e disponibilidade ao longo do processo do mestrado. Também aos funcionários da Biblioteca Octávio Ianni, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, pelo auxílio durante o estudo. Muito obrigada à Taiana Car Vidotto e à Giovana Martino por compartilharem a experiência como monitoras na disciplina de projeto de interesse social. Ao Francisco de Carvalho Dias de Andrade, pelas respostas atenciosas e detalhadas com as referências responsáveis pelo direcionamento do primeiro capítulo. Devo também sinceros agradecimentos à Saeko Suzuke e à Ana Ribeiro pelo cuidado que tiveram comigo e com a minha saúde. Ao Lucas Ariel e ao Maurício Ferreira, pela casa mais aconchegante em Barão. Obrigada por me receberem com tanto carinho. Ao Lucas, agradeço também pelas longas conversas e mensagens de apoio. Ao Fernando Nakandakare, por compartilhar os anseios da pesquisa, mas também momentos de descontração. Ao Flavio Bragaia, pela amizade proporcionada pelo mestrado. Agradeço à Marília Dantas por dividir responsabilidades, amizade e muito carinho. Ao Bruno Geraldi Martins, que sempre tem as palavras mais queridas, a energia mais pura e o abraço para todas as horas. A pesquisa foi escrita em algumas casas. Agradeço a todos aqueles com quem compartilhei as alegrias e também as dificuldades da rotina. Em Barão Geraldo, agradeço ao Pierluigi Pirozzi, Lucas Pacheco, Antoine Beuvain, Dínamis Lara e Walter Gagliardi. Ao Walter, sou especialmente grata pela amizade que continua constante, mesmo com adistância. Em São Paulo, agradeço ao Pedro Murilo Freitas pela receptividade e pela biblioteca que tanto colaborou com o texto. Muito obrigada, sobretudo, à Giulia Vercelli, que entre a Itália e o Brasil esteve sempre presente desde 2013 e que tanto me apoiou no desenvolvimento deste trabalho, além dos essenciais e felizes momentos de viagem, descanso e conversa. Ainda na capital, agradeço à Juliana Reis e à Camila Midori Yoshida, que encararam uma mudança nessa reta final. Estar com vocês no último mês fez toda a diferença. Muito obrigada à minha amiga-irmã, Thaís Marília Fillus, com quem há vinte anos compartilho, diariamente, das pequenas às grandes coisas. Sou imensamente grata por sempre poder contar com você. Obrigada à Angelina Benvenutti Regiani, minha irmãzinha, que sempre pergunta como vai meu trabalho e tem se revelado uma excelente escritora. Agradeço aos meus pais, Eloiza Espig e Jesuan Henrique Felde Regiani, e seus companheiros Luiz Alex Bomfim e Adriana Benvenutti Regiani. Por fim, agradeço especialmente à Eloiza Espig pelo apoio irrestrito em todas as instâncias referentes a este mestrado. Fiel e atenta leitora, meu percurso até aqui seria impossível sem você. Obrigada por estar presente em mais uma fase que se encerra e obrigada pelo amor que tanto acolhe e ensina. Esta dissertação foi realizada com o apoio da FAEPEX – Fundo de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão da UNICAMP. Alumbramento Eu vi os céus! Eu vi os céus! Oh, essa angélica brancura Sem tristes pejos e sem véus! Nem uma nuvem de amargura Vem a alma desassossegar. E sinto-a bela... e sinto-a pura. [...] Eu vi a estrela do pastor... Vi a licorne alvinitente!... Vi...vi o rastro do senhor!... E vi a Via-Láctea ardente... Vi comunhões... capelas... véus... Súbito... alucinadamente... Vi carros triunfais... troféus... Pérolas grandes como a lua... Eu vi os céus! Eu vi os céus! Eu vi-a nua... toda nua! Manuel Bandeira, 1919 Diamantina faz parte da origem e afirmação da história da arquitetura moderna brasileira. Isso se deve ao elo que consolida entre as pretensões de um ideal nativo e de um progresso latente no país, sobretudo pelos discursos de Juscelino Kubitschek e Lucio Costa. O ex-presidente tem o antigo Arraial do Tijuco como berço familiar e de formação pessoal, enquanto o arquiteto, na viagem que realiza em 1924, descobre ali o que considerava ser o autêntico passado colonial. De modos distintos, ambos remontam à materialidade e à narrativa de Diamantina nas justificativas de suas decisões e formas de engendrar a construção cultural do Brasil. Ao elaborar essa ideologia vinculada à cidade, valem-se também de ações executivas concretas através do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e das esferas de poder governamental que viabilizaram, nos anos 1950, o desenho de edifícios públicos por Oscar Niemeyer. Os fatos, documentos, textos, imagens e projetos que articulam a cidade à união extemporânea dos responsáveis por Brasília serão confrontados, lançando luz em como Diamantina é testemunho da arquitetura colonial trabalhada através de sucessivas intervenções para se tornar um dos modelos de conciliação prática e ideológica entre presente e passado na arquitetura moderna brasileira. Palavras-chave: Diamantina; Lucio Costa; Juscelino Kubitschek; Oscar Niemeyer; Arquitetura Moderna Brasileira. Diamantina is widely considered a cornerstone on the notion of origin of Brazilian Modern Architecture. The city connects the pretensions of a latent progress in the country made by two important authors for the diffusion of the avant-guarde trends in Brazil: Juscelino Kubitschek and Lucio Costa. The former President Kubitschek was born and has in the old Arraial do Tijuco his Alma Mater. The architect Costa has travelled to Diamantina in 1924, in a journey where he understood to find the legitimate representations of the Brazilian colonial past. Both intellectuals use in their narratives and in their decisory processes aspects of Diamantina a good formal examples on how to build a modern cultural construction of Brazil. Along with the weaving of this ideology on the city, they made practical executive actions on its form through Costa’s work in the National Historical and Artistic Heritage Service (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN) and Kubitschek’s terms in offices of the Government, which enabled the design of public buildings by Oscar Niemeyer in the 1950s. The facts, documents, texts, images and projects that render the city as common ground for these two protagonists of Brazilian Modernism – and builders of Brasília – will be confronted, revealing convergences and differences of though on how they understood the city. Moreover, it is intended to shed light on how Diamantina has witnessed the works on colonial architecture made in the last century by the modernists to shape a model of practical and ideological conciliation between present and past in Modern Brazilian Architecture. Keywords: Diamantina; Lucio Costa; Juscelino Kubitschek; Oscar Niemeyer; Brazilian Modern Architecture. Figura 1: Rua das Mercês, Diamantina, c. 1920. Fonte: Acervo IMS. Autor: Chichico Alkmim. Em 1924, Lucio Costa viajou até Diamantina. No antigo Arraial do Tijuco, alumbrou uma nova percepção sobre o passado colonial e passou, ao longo dos anos seguintes, a formular uma visão crítica das pretensões de busca de uma identidade nacional conforme intendia seu círculo de intelectuais neocoloniais. O vilarejo é também a cidade natal de Juscelino Kubitschek, que usará seu berço como referência onipresente em sua trajetória política, iniciada em 1933. Em 1937, tem-se a fundação do SPHAN1 – com participação ativa de um Lucio Costa já convertido às postulações das vanguardas, sendo Diamantina tombada em 1938. Acontecimentos reforçados na década seguinte e reafirmados nos anos 1950, quando surge em Diamantina mais um personagem relacionado a arquitetura moderna: Oscar Niemeyer. Nenhum outro conjunto urbano de herança portuguesa preservado teve tantos edifícios projetados pelo arquiteto carioca quanto o antigo Arraial do Tijuco2. À luz dessas questões, Diamantina e o Percurso da Arquitetura Moderna busca traçar a linha entre fatos que, na origem, são eventuais, mas que na sua inter-relação confluíram para a construção de aspectos de uma modernidade arquitetônica nacional. Lucio Costa nasceu em 1902 e morou na Europa até os 14 anos. O retorno ao Brasil é descrito como “uma revelação”3. Do desembarque no Rio de Janeiro destaca “as montanhas diferentes, a mata, o casarão, o céu perto, o mar [...] espetáculo de prender a respiração”4, um comentário que demonstra o encantamento diante da paisagem brasileira. O jovem cursou a Escola Nacional de Belas Artes e, como arquiteto, foi enviado para Diamantina em 1924, descrevendo o deslumbramento provocado pela cidade com a mesma palavra, “revelação” 5, que havia usado para as terras cariocas. Neste importante ano, não por acaso, inicia um traço que o distinguiria: suas ideias são divulgadas através de textos, sendo que uma de suas 1 A instituição foi criada sob a denominação SPHAN, Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, no entanto, em 1946, foi transformado em Diretoria, DPHAN, passando, em 1970, a ser Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, utilizando a sigla IPHAN. De 1990 até 1994, foi denominado Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC), até que, novamente, voltou à sigla IPHAN, designação vigente até hoje. Embora a dissertação utilize documentações e toque em assuntos referentes aos anos de 1937-1959, será utilizado, no decorrerdo texto, a sigla SPHAN. 2 Cf. CALDAS, Bruno Tropia. Hoje, o passado de amanhã: a arquitetura de Oscar Niemeyer em sítios históricos brasileiros. III ENANPARQ. Arquitetura, Cidade e Projeto: uma construção coletiva, 2014. 3 COSTA, Lucio. Rio de Janeiro, in. Lucio Costa: registro de uma vivencia. 2a. ed São Paulo, SP: Empresa das Artes, 1997, p. 27. 4 Idem. 5 COSTA, Lucio. Diamantina, in. Lucio Costa: registro de uma vivencia. 2a. ed São Paulo, SP: Empresa das Artes, 1997, p. 27. primeiras entrevistas publicadas tem como argumento a viagem de estudos recém-realizada6. No começo profissional, Costa foi partidário do movimento neocolonial, para em seguida negá-lo e se tornar, durante as décadas seguintes, “o responsável pela produção e difusão pública de enunciados que deram sustentação” e que tornaram possível “o extraordinário sucesso de uma certa ‘arquitetura moderna brasileira’ ”7. Tamanha responsabilidade atribuída ao arquiteto se deve à atuação multidisciplinar que permeava seus projetos, escritos e atividades públicas e políticas, estas relacionadas a sua participação no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional com funcionário atuante em despachos, pareceres e intervenções. Juscelino Kubitschek teve um início de trajetória diverso, afastado das metrópoles. Saiu de Diamantina pela primeira vez em 1919 para prestar um concurso em Belo Horizonte. A capital mineira ainda era, então, um “esboço cartográfico”, mas para o jovem interiorano, acostumado com o tecido colonial, foi esse contato com a cidade planejada que também provocou “um deslumbramento”8. Das dificuldades nos primeiros anos, Kubitschek passou pela carreira de médico até ter contato com a política, na qual se firmou como expoente, alçando cargos de deputado, prefeito, governador e presidente da república. Diamantina esteve em sua mente e em seus discursos ao longo de seus anos como governante. Referia-se à cidade como berço não só de seus interesses pela escala atemporal, mas conectava as próprias memórias com as do vilarejo. Durante as atuações de Costa e Kubitschek entre os anos 1930 e 1950, Diamantina recebeu tanto projetos de salvaguarda, através do SPHAN, quanto de caráter moderno, com desenho de Oscar Niemeyer. A elaboração de edifícios públicos diamantinenses por Niemeyer passa pelo respaldo que os dois personagens deram ao profissional. Costa foi seu mentor e abriu as portas que o levaram a participar de projetos como o Ministério da Educação e Saúde, o Pavilhão de Nova York e anuiu e defendeu sua primeira intervenção em uma cidade histórica: o Grande Hotel de Ouro Preto. Depois da obra inaugural em Minas Gerais, vieram 6 Cf. COSTA, Lucio. Considerações sobre o nosso gosto e estilo. A Noite, Rio de Janeiro, 18 jun. 1924. 7 LEONIDIO, Otavio. Carradas de razões: Lucio Costa e a arquitetura moderna brasileira (1924-1951). Rio de Janeiro, RJ; São Paulo, SP: Editora da PUC-Rio: Loyola, 2007. p.15. 8 KUBITSCHEK, Juscelino. Meu caminho para Brasilia. Volume 1. Rio de Janeiro, RJ: Bloch, 1974, p.59. os contatos que o levaram a Juscelino Kubitschek e, assim, a assinar o complexo da Pampulha e os diversos projetos que sucederam a carreira do político9. Niemeyer ganha relevância junto ao cenário político e ao público das artes e é considerado o mais celebrado arquiteto brasileiro no século XX10. Suas obras em Diamantina, embora pouco comentadas, são seminais para a compreensão da importância da história que conecta os fatos entre Pampulha e Brasília e os nomes de Costa e Kubitschek. Neste cenário cabem questionamentos: de que maneira Diamantina faz parte da mudança de postura de Lucio Costa em relação as vanguardas? Como a cidade foi incluída nos discursos e intervenções de Juscelino Kubitschek? E de que forma os projetos de Oscar Niemeyer se relacionam com este contexto e vinculam a representação de uma Diamantina colonial ao moderno? É mister que a atuação concreta dos intelectuais, entremeando preservação e intervenção e as aspirações das vanguardas com o colonial, associou ao antigo Arraial do Tijuco uma questão ideológica que permeou tanto a imagem pretendida pelo político quanto os aspectos fundacionais atribuídos pelo arquiteto e pode-se pensar em Diamantina como uma das alegorias que levava ao moderno e a consolidação de seus preceitos. Walter Benjamin havia identificado a alegoria como elemento principal na representação de mundo do Barroco11. Através das narrativas alegóricas, seria possível abrir as camadas dos sentidos de obras de arte e de cidades, diante da evocação de outras realidades. 9 Oscar Niemeyer, em seu livro de memórias, relata que o primeiro contato com Kubitschek veio por intermédio de Capanema: “Um dia Capanema me levou a Benedito Valadares, governador de Minas Gerais, que pretendia construir um cassino no ‘Acaba Mundo’. E foi nessa ocasião que conheci Juscelino Kubitschek, candidato a prefeito de Belo Horizonte. Fiz o projeto, que mostrei a Benedito, mas o assunto só foi retomado meses depois, quando JK, prefeito da cidade, novamente me convocou. No dia combinado voltei a Belo Horizonte com Rodrigo. [...]” In: NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo: memórias. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Revan, 1998, p.93. Juscelino Kubitschek, por outro lado, conta que o primeiro contato foi por Rodrigo Melo Franco de Andrade. Insatisfeito com o suposto concurso que havia realizado para a Pampulha, saiu daquela “situação de embaraço” com a indicação dada pelo Diretor do SPHAN: “Estava no meu gabinete quando fui procurado por Rodrigo Melo Franco de Andrade, diretor do Departamento do Patrimônio Histórico Nacional, do Ministério da Educação. Conversamos sobre a Pampulha e, revelando-lhe meu desagrado [...] perguntou-me se não desejava experimentar um arquiteto que, naquele momento, estava em Belo Horizonte e que, apesar de sua pouca idade, já revelava impressionantes dons de originalidade artística. Imediatamente mandei que o trouxessem ao meu gabinete. [...] Oscar Niemeyer – era esse o nome do jovem arquiteto [...]” In: KUBITSCHEK, Juscelino. Meu Caminho para Brasília. Volume 2. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1974, p. 35-36. 10 Cf. LIERNUR, Jorge. The South American Way. Block, Buenos Aires: n. 4, p. 23-41, dez 1999; CAVALCANTI, Lauro Pereira. Moderno e brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-60). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2006. 11 BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. Sérgio Paulo Rouanet (tradução, apresentação e notas). São Paulo: Brasiliense, 1984. Assim, lugares como Diamantina podem ser vistos como espaços, prédios e objetos concretos, mas também apontar para uma “totalidade singular que se apresenta sempre além do alcance de uma visão imediata. Essa visão supostamente sem mediações [...]” é cotidiana e poderia ser a vista do conjunto urbano, mas também uma “visão aurática de um objeto único, permanente e não-reproduzível”12 como um monumento, uma cidade histórica. A alegoria de Diamantina foi aperfeiçoada por Costa e Kubitschek. A cidade era uma dessas relíquias espalhadas pelo território mineiro e as viagens de “descoberta” pelo interior foram fundamentais. A ida de Lucio Costa a Diamantina colaborou para consolidar a visão de redenção nacional nas narrativas alegóricas veiculadas pelos modernos brasileiros. Embora a viagem estivesse dentro do programa que pretendia organizar um estudo dos motivos arquitetônicos do Brasil colonial pelos neocoloniais13, o tempo e a mudança de postura de Costa fizeram com que se alinhasse com as pretensões de vanguarda e seus partidários que se reuniram anos depois no SPHAN. O que se buscava tanto nas excursões modernistas quanto nas neocoloniais era principalmente a produção do século XVII e XVIII. Diamantina, nesse período, seguiu umalógica de formação diferente das demais cidades mineiras que desenvolviam o povoamento ao longo dos caminhos da mineração. A exceção do antigo Arraial do Tijuco, além da descoberta do diamante no início da década de 172014, foi a adoção de uma solução quadrangular e concentrada. Vasconcellos destaca a evolução do traçado urbano no período: Ter-se-iam então três etapas principais cumpridas em seu desenvolvimento: a primeira, de 1700 a 1720, relativa ao povoamento esparso, em vários arraiais, de limitação indeterminada; a segunda de formação polarizada, de 1720 a 12 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retorica da perda: os discursos do patrimonio cultural no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Editora da UFRJ, 1996. p. 128-129. 13 KESSEL, Carlos. Arquitetura Neocolonial no Brasil: entre o pastiche e a modernidade. Rio de Janeiro: Jauá, 2008, p. 133-134. 14 Cf. MARTINS, Marcos Lobato. Breviário de Diamantina: uma história do garimpo de diamantes nas Minas Gerais (século XIX). Belo Horizonte: Fino Traço, 2014; FURTADO, Júnia Ferreira. O livro da capa verde: o Regimento Diamantino de 1771 e a vida no Distrito Diamantino no período da Real Extração. São Paulo, SP: Annablume, 1996. 1750, quando se organizou em reticulado sua parte urbana propriamente dita; a terceira, de 1750 em diante, relativa à consolidação e expansão. 15 Na Figura 2 é possível observar a evolução do Tijuco no século XVIII. A primeira etapa é marcada pela constituição do Arraial Rio Grande, onde no rio de mesmo nome os minérios começaram a ser explorados. Um dos córregos deste rio recebeu o nome de Tijuco e na sua margem direita se instalou o povoamento inicial, correspondente hoje as proximidades da Rua do Burgalhau. Na fase seguinte, os demais arraiais são formados em núcleos esparsos: o Arraial de Baixo, na entrada do caminho que vinha pelo Serro, o de Cima, na saída para Barra do Guacuí e, por último, o dos Forros. Os quatro arraiais seriam as balizas para configurar o território do Arraial do Tijuco, cujas delimitações foram dadas pelos caminhos que conectavam essas aglomerações primitivas16. 15 VASCONCELLOS, Sylvio. Formação urbana do Arraial do Tejuco. Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n.14. Rio de Janeiro, 1959. p. 121-134. 16 Cf. Idem. 19 Figura 2: Mapa do desenvolvimento do traçado urbano do Arraial do Tijuco no séc. XVII Fonte: Elaborado pela autora com base em Cruz (2016, p. 69) e no acervo do Escritório Técnico do IPHAN em Diamantina (2018). 19 Fi gu ra 2 : M ap a do d es en vo lv im en to d o tr aç ad o ur ba no d o A rr ai al d o T iju co n o sé c. X V II Fo nt e: E la bo ra do p el a au to ra c om b as e em C ru z (2 01 6, p . 6 9) e n o ac er vo d o Es cr itó ri o Té cn ic o do IP H A N e m D ia m an tin a (2 01 8) . Com as vias principais e o centro delimitados, o vilarejo se desenvolve. Na primeira metade do século XIX, a localidade chamou a atenção de viajantes estrangeiros e permeou diversos relatos17. Para Tschudi havia “uma aura de mistério que envolve seu nome e sua história”18, sendo o principal elemento mistificante a mineração e as relações dela derivadas. Também como resultado da exploração de diamantes, John Mawe ressalta que o Tijuco era um “lugar florescente”19. A impressão de prosperidade é confirmada por Johann Moritz Rugendas: “há em Tijuco muitos funcionários e negociantes, o que dá maior encanto às relações sociais” e relata que, mesmo merecendo “muito mais do que Vila do Príncipe, que é a sede da comarca, ser chamado cidade ou vila” 20, o Tijuco permanecia como Arraial. A decisão de manter o vilarejo como arraial era uma medida de controle político-administrativo em virtude da exploração dos diamantes21. Pelo interesse da metrópole pela região, as autoridades agiram com maior rigor e influenciaram a conformação urbana concentrada do Distrito Diamantino, que se valia da regra que para melhor vigiar os moradores era melhor não os deixar se espalhar22. O Arraial, por fim, se tornou Vila em 1831 e, em 1838, passou a ser cidade de Diamantina. Apesar do progresso com que iniciou aquele século, as atividades de produção de diamante diminuíram na segunda metade do XIX23. A cidade buscou alternativas na indústria e no comércio e, estando na entrada do sertão, funcionou como o “grande empório do Norte”24, 17 No texto são citados alguns autores e suas excursões pelo Brasil, passando por Diamantina: John Mawe (1809- 1810); Carl Friedrich Philipp Martius e Johann Naptist Von Spix (1818); Auguste de Saint-Hilaire (1817-1822); Johann Moritz Rugendas (1822-1825) e Johann Jakob Von Tschudi (1858). Cf. MUCIDA, Danielle Piuzana et al. Viajantes naturalistas do século XIX: a reconstrução do antigo Distrito Diamantino na literatura de viagem. Caderno de Geografia, V.21, n.36, 2011. PP. 66-86. Disponível em <http://periodicos.pucminas.br/index.php/geografia/article/view/2809>. 18 TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagens através da América do Sul. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e culturais, 2006. v.2, p. 93. 19 MAWE, John. Viagem ao interior do Brasil, principalmente aos Distritos do Ouro e do Diamante. Rio de Janeiro: Ed. Zélio Valverde, 1944. p. 221-222. 20 RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. São Paulo: Martins. Ed. da Universidade de São Paulo, 1972. p.40. 21 O Arraial do Tijuco pertencia a Vila do Príncipe, atual Serro. Ademais, as medidas de controle têm início em 1745, quando a Coroa portuguesa proibiu a livre entrada na região, buscando evitar os contrabandos. Ao persistirem os roubos, surgiu, em 1771, a Real Extração dos Diamantes e o Livro da Capa Verde com uma série de determinações que visavam regular a vida na região. Surgia uma concepção que via na Demarcação Diamantina um “estado dentro do estado”. Cf. MARTINS, Marcos Lobato, op. cit. p.19-25; FURTADO, Júnia Ferreira, op.cit. 22 D’ASSUMPÇÃO, Lívia Romanelli. Diamantina: uma formação urbana original. Revista Barroco. São Paulo, 1993, n. 17. p. 227-230. 23 O ciclo do diamante durou até cerca de 1870, quando a entrada do diamante sul-africano no mercado internacional provocou a baixa nos preços. Cf. MARTINS, Marcos Lobato. op.cit. p. 366. 24 Ibid. p. 401-404 encontrando um mercado consumidor fiel diante da dificuldade de levar os mais diversos produtos para o interior. Desse período, temos projetos como a Fábrica de Tecidos do Biribiri, de 1876, e do mercado, construído em 1835 e adquirido pelo município em 1890 para funcionar como Mercado Municipal25. Além da questão comercial, Diamantina também se afirmou como local de alto poder episcopal após a instalação do Bispado em 185426 e de referência na educação regional, com o Colégio Nossa Senhora das Dores e o Seminário Sagrado Coração de Jesus27, mantendo o retrato enunciado por Saint-Hilaire de uma localidade com “gosto pela literatura e um desejo mais vivo de se instruir” 28. A movimentação do distrito não impedia que a distância que se encontrava dos grandes centros fosse sentida. A paisagem das pedras anunciava ao visitante quanto se avançava pelo interior do continente e o surpreendia: Sente-se o viajante, nesses deliciosos jardins, atraído de todos os lados por novos encantos [...] Volvendo o olhar pacífico e variegado ambiente para a distância, o espectador vê-se todo contornado por altas montanhas rochosas que, iluminadas pelos ofuscantes raios solares, refletem uma luz resplandecente de seus vértices brancos(...) 29 Desse isolamento, vem o retrato formal que se cristaliza no tempo até o início do século XX. Diamantina recebeu tardiamente os traços da modernidade: a iluminação elétrica chega em 1910, a linha de tremem 1914. Datam desse período reinvindicações de melhorias do espaço público, através do embelezamento de praças e parques, e de infraestrutura urbana, 25 Inicialmente construído como “Intendências dos Lages”, o edifício foi adquirido pela Câmara Municipal para atender a demanda de um local apropriado para o comércio. Ibid. p. 277-292. 26 Para criar a diocese foi necessário um decreto-lei do Estado Imperial Brasileiro, neste caso lei civil n. 673 de 10 de agosto de 1853, executada em 1854. Cf. SANTOS, Dayse Lucide Silva. Cidades de vidro: a fotografia de Chichico Alkmim e o registro da tradição e da mudança em Diamantina (1900 a 1940). 2015. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015. p. 133. 27 O Colégio Nossa Senhora das Dores foi fundado em 1866 e funcionava na Casa da Glória. Em 1878, recebeu o conhecido passadiço. Já o Seminário do Sagrado Coração de Jesus, foi fundado em 1864. Cf. BARACHO, Cláudia Elizabeth. Grupo Escolar Professora Júlia Kubitschek: modernização na arquitetura e nas concepções educacionais em Diamantina, 1951-1961. 2016. 142 p. Dissertação (Mestrado Profissional) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas, Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Diamantina, 2016. p. 65. 28 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo Distrito dos diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1974, p.33. 29 SPIX e MARTIUS. Viagem pelo Brasil: 1817- 1820. Vol II. São Paulo: Melhoramentos, em colaboração com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em convênio com o Instituto Nacional do Livro – MEC, 1976 apud D’Assumpção, 1995, p. 77. com os calçamentos das vias e o saneamento30. Foi nesse contexto que cresceu Juscelino Kubitschek, até que ele parte do interior para Belo Horizonte. Lucio Costa, ao fazer o caminho inverso, encontra a imagem de Diamantina com o mesmo conjunto colonial emoldurado pela Serra dos Cristais visto pelos exploradores do século XIX (Figura 3). O visitante que chegava no Arraial dos anos 20 se deparava com um conjunto urbano mais concentrado que as demais cidades mineiras, se assemelhando a retícula portuguesa, mas diferindo dela por não possuir uma centralidade associada a uma grande praça, fato que pode ser explicado pela ausência de uma Casa de Câmara e Cadeia31. O conjunto arquitetônico era composto principalmente por residências e, desde o final do século XVIII, contava também com edificações assobradadas que poderiam ser de uso misto32. Embora o programa das habitações, a conformação no lote e o arranjo das edificações ao longo das vias sejam semelhantes as cidades que surgiram no mesmo período, como Ouro Preto e Mariana, Diamantina possui particularidades. Na escala urbana, nota-se como suas igrejas se relacionam com o conjunto quase se confundindo com o casario, conferindo uma delicadeza peculiar se comparada as demais cidades setecentistas mineiras33. Provavelmente seja um resultado da dificuldade de terrenos livres onde as Irmandades pudessem prever, além da expansão dos templos, o cemitério anexo e o “cenário urbano”34. 30 GOODWIN Jr., James William. As Cidades de Papel: Imprensa, Progresso e Tradição. Diamantina e. Juiz de Fora, MG (1884-1914). Dissertação de Doutorado em História Social. FFLCH/USP, São Paulo, 2007. p. 166-168. 31 Cf. PESTANA, Til. Diamantina. In: Actas do Colóquio Internacional Universo Urbanístico Português – 1415-1822. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001, p. 582. 32 LEMOS, Celina Borges. Diamantina e sua arquitetura nos contextos da formação do arraial e consolidação da vida: registros e manifestos da modernidade na paisagem cultural entre os séculos XVIII e XIX. In: Anais XIII Seminário sobre Economia mineira 2006. Diamantina: CEDEPLAR/FACE, 2006. p. 72-93. 33 D’ASSUMPÇÃO, Lívia Romanelli. Diamantina: uma formação urbana original. Revista Barroco. São Paulo, 1993, n. 17. p. 230. 34 Idem. 23 Figura 3: Panorama de Diamantina no início do século XX. Fonte: Acervo do Museu do Diamante. 23 Fi gu ra 3 : P an or am a de D ia m an tin a no in íc io d o sé cu lo X X. F on te : A ce rv o do M us eu d o D ia m an te . 24 Na escala do lote, destaca‐se a solução formal das fachadas, onde o aproveitamento intencional do afloramento da estrutura de madeira confere tratamento plástico e verdade construtiva às edificações35, além da profusão de cores do conjunto. Brandão afirma que “rudes, mas acolhedoras, os ‘incultos pedreiros’ deram‐nos o selo da simplicidade e da pureza, fazendo inclusive com que se perdessem ‘certos maneirismos preciosos e um tanto arrebitados’ que ainda havia na metrópole”36. Foi essa autonomia e singeleza da casa colonial tijucana que chamou a atenção de Costa. Se em 1924, ao também percorrer o caminho modernista em direção à Minas, Lucio ainda não estava alinhado com o movimento moderno, o discurso já assinalava a necessidade de um diálogo: “Naturalmente será preciso conciliar tais vestígios de uma época passada com o raffinement da vida moderna. Surge justamente aí a principal tarefa do arquiteto”37. Lucio Costa, ao traçar um fio condutor entre origem e futuro da arquitetura brasileira, se insere em um grande projeto de reconstituição ideológico‐cultural do país. Dentro desse projeto, a defesa do patrimônio arquitetônico integra um eixo fundamental. Uma “boa causa” da qual Costa se ocupa, “uma causa, aliás, que, desde a primeira viagem à Diamantina havia sensibilizado Lucio Costa; que, portanto, sempre fora sua”38. Consequentemente, Diamantina também está no contexto das discussões do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Passa a nossa cidade juntamente com outras em todo o Brasil para o patrimônio histórico nacional, sendo aqui criado um departamento. Agora já não se podia fazer nenhum melhoramento por pequeno que fosse sem ordem e direção do Patrimônio, o que tirava um pouco o seu progresso, mas em compensação acabou a dor de cabeça dos católicos para efetuarem os consertos de que tanto necessitavam as nossas igrejas, algumas ainda do tempo do Tijuco. [...] A política estava forte e trazendo grandes vantagens para Diamantina, pois começava a elevar‐se nosso conterrâneo e grande amigo de 35 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Bens tombados de Diamantina. Brasília, IPHAN, 2003. p.22. 36 BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Arquitetura residencial no barroco mineiro. Revista AP, n.5, p.26‐30, 1996. 37 COSTA, Lucio. Considerações sobre o nosso gosto e estilo. A Noite, Rio de Janeiro, 18 jun.1924 38 LEONIDIO, Otavio. Carradas de razões. Lucio Costa e a arquitetura moderna brasileira (1924‐1951). Rio de Janeiro: tese de doutorado, Departamento de História, PUC‐Rio, 2005, p. 195. 25 sua terra natal [...] Juscelino Kubitschek de Oliveira. A nossa cidade começou a progredir assustadoramente e obtinha tudo com facilidade. 39 É nesse quadro de dualidade entre preservação e desenvolvimento que o SPHAN aprova alguns projetos modernos no tecido histórico de Diamantina. Repetindo a colaboração desenvolvida em Belo Horizonte, Juscelino encomenda uma série de projetos para Oscar Niemeyer: a Sede Social do Diamantina Tênis Clube na Praça de Esportes; o Hotel de Turismo; o Grupo Escolar Júlia Kubitschek; a Faculdade de Odontologia e o aeroporto40. As demandas viabilizadas por Kubitschek representavam as convicções de um processo modernizador onde, do interior paracentro, das pequenas as grandes cidades, criava‐se uma ideologia política que poderia também ser traduzida pela arquitetura. Para dar nexo ao arco que parte de casualidades dos anos 1920 até coordenadas ações de intervenção na cidade colonial nos anos 1950, a abordagem metodológica da pesquisa buscou cotejar questões arquitetônicas e políticas tecidas nesse período no Brasil com Diamantina. Os trajetos de Lucio Costa e Juscelino Kubitschek no antigo Arraial do Tijuco, traduzidos em textos, desenhos, projetos técnicos e burocráticos, extrapolaram questões locais e contribuíram para evidenciar uma construção ideológica que encontrou em Diamantina uma representação: “[...] e como a humanidade não pode prescindir de representações [...] há, afim de não suportar inconscientemente esse fardo, a necessidade de ‘analistas’.ʺ41 Assim, investigar as questões que culminaram nessa alegoria requer um olhar atento para a história. ”E se a arquitetura tem o seu poder, a história tem outros. [...] Conhecer os limites já é um bom negócio e a história pode contribuir com isso.”42. As delimitações trazidas pelos autores estudados possuem, por um lado, materiais para entender Diamantina e, por outro, criam uma imagem da cidade e das pretensões em relação a ela – e ao país. Para entender a nuance dos fatos, foi preciso buscar as fontes primárias. 39 SANTOS, Luiz Gonzaga dos. Memórias de um carpinteiro. Belo Horizonte: Editora Bernardo Álvares, 1963. p.77‐ 78. 40 O aeroporto não foi construído e existem ressalvas em relação a autoria do projeto da Faculdade de Odontologia. Cf. MACEDO, Danilo, A Matéria da Invenção: Criação e construção das obras de Oscar Niemeyer em Minas Gerais. 1938‐1954, Dissertação de mestrado, Belo Horizonte: UFMG, 2002. 41 TAFURI, Manfredo. apud OCKMAN, J. ʺVenice and New Yorkʺ in. Casabella n.619‐620, 1995, p.67. “[...] and since humanity cannot do without representations – the ‘symbolic forms of Cassirer – thus, in order not to bear this burden unconsciously, the need for ‘analysts’.” Tradução da autora. 42 Idem. “And if architecture has its power, history has others. [...]To know limits is already a good deal, and history can contribute to that. ”. Tradução da autora. 26 As documentações pessoais têm um caráter sentimental, como é o caso das anotações de Costa no verso do recibo do hotel de 192443 ou ainda a carta de Kubitschek para o amigo Augusto44. Elas endossam os relatos enternecidos publicados posteriormente, seja em livros biográficos – exemplo dos textos de Registro de uma vivência e Meu caminho para Brasília, ou nos depoimentos transcritos. Esses discursos, elaborados quando já se sabia o alcance que teriam, afirmam a posição de Diamantina numa elaboração histórica e demonstram as convicções idealizadas em torno da cidade. Nas entrevistas, o conjunto diamantinense aparece como ilustração e Juscelino Kubitschek se mantém mais saudosista ao expressar suas memórias da terra natal, conforme nas falas concedidas a Maria Victoria Benevides45, enquanto Lucio Costa busca explicar o alumbramento causado pelo vilarejo através de elementos arquitetônicos, como na primeira edição da revista Pampulha46. Já nos documentos institucionais, a postura adotada tanto por Costa quanto Kubitschek demonstra um lado mais objetivo, focado em viabilizar projetos na cidade. Nesse ponto, os arquivos do IPHAN ganham protagonismo à medida que são evidenciados os diversos períodos de atuação de Lucio Costa em Diamantina: desde a pouco conhecida visita de 1937 até as polêmicas quanto a necessidade de novas edificações públicas dentro do tecido histórico nos anos 195047. Há também as questões do então governador de Minas Gerais com o órgão de proteção ao patrimônio, visto a troca de telegramas para possibilitar a construção das obras de Niemeyer no perímetro tombado. Quando, no entremeio de textos, surgem informações gráficas através de desenhos, projetos e retratos, o trabalho ganha outra dimensão. A concepção e assimilação imagética de Diamantina é composta pelas fotografias do período feitas por Chichico Alkmim, Erich Hess e Assis Horta e pelos desenhos de juventude de Costa e de outros viajantes contemporâneos ao arquiteto, como Alfredo Norfini e José Wasth Rodrigues. Os desenhos 43 COSTA, Lucio. Verso do recibo do Hotel Roberto. Diamantina, 1924. Acervo Casa de Lucio Costa. Disponível em: <http://www.jobim.org/lucio/handle/2010.3/2888>. Acesso em: 15 maio 2017. 44 KUBITSCHEK, Juscelino. Correspondência a Augusto, 09/03/1941, Palace Hotel Poços de Caldas, In. MEMORIAL JK, 016/A.C. 45 OLIVEIRA, Juscelino Kubitschek de. Juscelino Kubitschek I (depoimento, 1974). Rio de Janeiro, CPDOC, 1979; OLIVEIRA, Juscelino Kubitschek de. Juscelino Kubitschek II (depoimento, 1976). Rio de Janeiro, CPDOC, 1979. 46 PAMPULHA. Belo Horizonte: Caminho Novo Empresa Jornalística e Panela; Instituto dos Arquitetos do Brasil, Seção Minas Gerais, N. 01 nov/dez. 1979, p.12‐20. 47 Exemplo da polêmica quanto ao novo edifício da rodoviária. Cf. COSTA, Lucio. Parecer, 27 de agosto de 1959. BARRETO, Paulo Theodin. Informação sobre pedido para ser levantado o tombamento de quatro prédios (...) de Diamantina, de 27 de julho de 1959. Processo de Tombamento 0064‐T‐38 – ACI/RJ. 27 originais de Costa, expostos no museu Casa de Juscelino em Diamantina, demonstram os detalhes construtivos, enquanto as aquarelas, mais divulgadas em publicações, despertam outras questões. Já as fotografias de Alkmim relatam o cotidiano do antigo Arraial justamente no período que toca a pesquisa, e as de Hess, contratado pelo SPHAN e orientado pelo próprio Lucio Costa na expedição dos anos 1930, apresentam a cidade pelo olhar de um visitante. Há ainda a expressão espacial realizada na década de 1950, quando das linhas articuladas por Oscar Niemeyer surgem os projetos modernos de intervenção no centro histórico. Tafuri afirma que certamente documentos e contexto histórico importam, mas que “não há nada mais enganoso e hermético que uma arquitetura sem desenho”48. Analisar as obras de Niemeyer e o que elas representam naquele momento, seja na tradução do ideal moderno dentro de um perímetro mineiro e barroco tombado, seja na questão política através de Kubitschek, é perceber as intenções e alusões nos seus traços. Para além disso, também é investigar os entremeios das construções dos projetos. Mesmo que a pesquisa não tenha encontrado tantas respostas nos acervos documentais da capital mineira, o arquivo do IPHAN deu o lastro para compreender a relação entre o então governador de Minas Gerais, o Serviço e o arquiteto e, nos arquivos municipais, foi possível encontrar um desenho ainda desconhecido do projeto da Praça de Esportes de 195149. O lastro documental e biográfico para cobrir as três figuras que constroem a dissertação não seria suficiente para entender a protagonista imanente do trabalho. Para compreender Diamantina, a pesquisa de campo foi essencial. Quando fala sobre os bens a serem protegidos ou preservados, Márcia Chuva ressalta a “necessidade incontornável de contato, de experiência e de vivência”. Pode‐se pensar nas primitivas viagens modernistas até as rotineiras excursões que caracterizaram o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sendo que “para a fruição estética, essa experiência é imprescindível. ”50. Ao todo foram cerca de quatro meses de permanência, divididos em duas viagens para o antigo arraial. Nelas, foram registradas imagens, desenhos, anotações e textos afim de48 TAFURI, M. ʺLʹarcheologia del presenteʺ in. BIANCHINO, G. Il disegno dellʹarchitettura. Parma: Centro di studi e archivio della comunicazione, 1983, p. 24. “Intendo dire che no c’è nulla di più ingannevole e di ermetico che un’architettura senza disegno, certo anche senza documenti, anche senza contesto storico, ma in particolare senza disegni.”. Tradução da autora. 49 Arquivo Púbico Municipal de Diamantina – Série Plantas Diversas Antigas. Cx. 07. 50 CHUVA, Márcia. O modernismo nas restaurações do SPHAN: modernidade, universalidade, brasilidade. Revista IEB, São Paulo, n.55, 2012, p.97. 28 apreender as percepções da cidade, além do contato com pesquisadores locais. Também foram visitadas as obras de Oscar Niemeyer e foram percorridos os locais caros a Juscelino Kubitschek na sua cidade natal, com foco na Casa de Juscelino e na preservação da memória do ex‐presidente pelo museu, incluindo uma conversa (transcrita nos apêndices) com Serafim Jardim, presidente da Casa e amigo que acompanhou Kubitschek depois do exílio. O depoimento de Jardim trouxe uma visão da relação de Juscelino com Diamantina extemporânea aos cargos públicos, mostrando uma continuidade de interesse pela terra natal. Sobressaíram‐se também os arquivos que preservaram a memória da imprensa local, com jornais de cunho católico, A Estrela Polar, partidário pessedista, O Nordeste, e popular, Voz de Diamantina. Percorrer a cidade buscando os possíveis caminhos realizados em 1924 permitiu vislumbrar os pontos que constam nos registros de Lucio Costa e que mais tarde também foram preservados pelo SPHAN. Andar pelas capistranas do centro histórico traz a consciência que a Diamantina que se apresenta para o visitante contemporâneo é aquela que os protagonistas das intervenções dos anos 1930 a 1950 quiseram mostrar. Em outro momento do percurso, foi refeito o trajeto de Costa na primeira visita a Minas Gerais, quando, além da permanência em Diamantina, passou brevemente pelas cidades de Ouro Preto, Mariana e Sabará51. Estar nos quatro vilarejos históricos em sequência foi importante para visualizar consonâncias e divergências entre os conjuntos coloniais preservados e o que se sobressai no mais distante deles. Na viagem, incluiu‐se ainda Belo Horizonte, tanto pela pesquisa no Arquivo Público Mineiro, quanto para auxiliar na compreensão do significado da construção da Pampulha, que junto com as obras em Diamantina, é um elo importante que rege a relação de Kubitschek e Niemeyer no período pré‐Brasília. A respeito da capital federal, é ela que, junto com o Rio de Janeiro, fecha o arco das cidades percorridas em virtude da pesquisa. Na busca por fontes primárias, mostrou‐se indispensável ir além de Minas Gerais. Brasília e Rio de Janeiro foram as duas frentes responsáveis por cobrir outros arquivos referentes a Juscelino Kubitschek e Lucio Costa. A consulta restrita permitida no Memorial JK contrasta com a disponibilidade do Arquivo 51 Cf. COSTA, Lucio. Considerações sobre o nosso gosto e estilo. A Noite, Rio de Janeiro, 18 jun. 1924. 29 Central do IPHAN, onde foram encontrados os alicerces para estabelecer as relações entre Costa, Kubitschek, Niemeyer, Diamantina e o patrimônio. No que diz respeito às fontes secundárias, a pesquisa se pautou, inicialmente, nas coleções Alexandre Eulálio, da Biblioteca Central César Lattes da Unicamp e na José Claudio Gomes, da Biblioteca de Pós‐Graduação da FAUUSP. Tanto Eulálio52, professor da Unicamp, quanto Gomes53, professor da USP, tiveram Diamantina como objeto de interesse e estudo. Evidencia‐se a importância do livro raro, “O Discurso de Diamantina”, que pertencia à Eulálio e contém a transcrição do discurso que Kubitschek realiza na cidade natal assim que é eleito presidente e também as análises de Diamantina, que se tem acesso, realizadas por Gomes. Somou‐se à leitura das coleções, a leitura de dissertações, teses, artigos e livros pertinentes ao tema tendo como fio a investigação de Diamantina como parte da construção de uma modernidade. Para aprofundar a visão de Diamantina por Lucio Costa, partindo da percepção da materialidade da cidade através de seus desenhos nos anos 1920 e perpassando o pensamento que desenvolveria nas décadas seguintes quando assimila a conexão entre o passado e as vanguardas, ressaltam‐se as teses de Caion Meneguello Natal e Samuel Silva de Brito. Já ao se ater ao período de transição na obra e no pensamento de Costa, culminando com a atuação no SPHAN e tecendo um círculo de interesse do arquiteto onde a viagem a Diamantina permeou questões primordiais, merecem destaque os trabalhos de Otavio Leonidio e Cristiane Souza Gonçalves. A fim de dialogar com esses e outros autores e embasando os argumentos tecidos pela dissertação, valeu‐se, principalmente, da vasta produção textual do próprio arquiteto e dos seus inúmeros depoimentos para os meios de comunicação. Assim como Lucio Costa, Juscelino Kubitschek publicou diversos escritos, além de deixar registrados discursos e entrevistas. Para debater com as falas do político e buscando 52 Cf. MACEDO, Sílvia Quintanilha. Alexandre Eulalio: retrato de um intelectual singular. Tese de Doutoramento. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2004; Obra Completa de Alexandre Eulálio. In: <http://www.unicamp.br/~boaventu/page20.htm> 53 Cf. SILVA NETO, Manoel Lemes. “Do todo à parte”. Revista Óculum, n. 15. Campinas: FAUPUCCAMP, 2012. < http://periodicos.puc‐campinas.edu.br/seer/index.php/oculum/article/view/880> RETTO JUNIOR, Adalberto da Silva; CONSTANTINO, Norma Regina Truppel ; ENOKIBARA, Marta . José Cláudio Gomes. Entrevista, São Paulo, ano 06, n. 023.01, Vitruvius, jul. 2005 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/06.023/3315>. 30 perfazer os modos pelos quais a ideologia de Diamantina foi construída, destaca‐se o livro de Josanne Guerra Simões e também o texto de Marcos Lobato Martins. Buscando compreender a figura de Kubitschek no contexto de diversas interpretações sobre as tradições, necessárias para a modernização em meio a um cenário de busca por uma identidade nacional tanto política quanto arquitetônica, evidenciam‐se a biografia elaborada por Claudio Bojunga e os trabalhos de Maria Victoria Benevides. Ao relacionar os trajetos de Costa e Kubitschek em Diamantina ao percurso da história da arquitetura moderna brasileira e aos reflexos no vilarejo através dos projetos dos anos 1950, a dissertação também se apoia em nomes como Adrián Gorelik e especificamente, pensando nas edificações desenhadas por Oscar Niemeyer, nos estudos de Danilo Macedo e Bruno Tropia Caldas. A argumentação busca, no seu conjunto, expor como Diamantina precisou ser continuamente revisitada. Embora estivesse sob o signo ideológico da pureza para os intelectuais modernistas, existia, em sua condição originária, uma inadequação com os intentos mais literalmente progressistas, o que demandava diferentes pensamentos e ponderações que frequentemente recaiam na necessidade de conciliar preservação e intervencionismo na cidade. Em si isso é um dilema comum nos tecidos tombados, mas o peso ideológico de uma Diamantina lendária conforme aparecia nos discursos de Kubitschek, nos ideais de Costa e no SPHAN forçaram o debate a se tornar mais afinado. Os dilemas estéticos que conectam o casario diamantino com as casas de Warchavchik, por exemplo, são traço estético dos desdobramentos vanguardistasda viagem de Costa em 1924. As querelas acerca da demolição do mercado da cidade, das residências no Beco do Mota ou acerca da construção da Rodoviária e dos projetos de Niemeyer são o outro lado: as intervenções práticas. Ambos demonstram a distinção de Diamantina nos salões e sucursais em Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e, posteriormente, em Brasília. A dissertação busca dar perspectiva aos ideários lançados em uma cidade cuja noção de pureza eventualmente poderia ser pretexto para a tornar a‐histórica. Seguindo o percurso dos intelectuais que nela passaram e cujo legado a define, é nítida a inserção de Diamantina no começo do século XX em amplos debates do seu tempo. Sua condição atual é igual testemunho desse posicionamento (Figura 4). 31 Figura 4: Panorama de Diamantina, 2017. Em vermelho, alterações destacando as obras de Oscar Niemeyer. Fonte: Acervo da autora. 31 Fi gu ra 4 : P an or am a de D ia m an tin a, 2 01 7. E m v er m el ho , a lte ra çõ es d es ta ca nd o as o br as d e O sc ar N ie m ey er . F on te : A ce rv o da a ut or a. 32 1. LUCIO COSTA: O DESENHO DA PUREZA Em Diamantina, Lucio Costa elaborou uma série de desenhos. Na maioria deles, seus traços evocavam detalhes construtivos. As doze ilustrações que se tem acesso são registros a lápis de fechaduras, balaústres, portas, janelas, púlpitos e beirais. Porém, as imagens mais divulgadas como referências da sua viagem de 1924 são as poucas aquarelas que mostram, em cores, representações da perspectiva interna da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, da externa do passadiço do antigo Colégio Nossa Senhora das Dores e de uma via, talvez o Beco da Tecla1 (Anexo A, Imagens I, II e III). De sua autoria, não chegou até nós um panorama amplo que mostre visualmente a cidade descrita por ele na entrevista concedida para o jornal A noite, logo após retornar da excursão mineira, ou no depoimento, décadas depois, em Registro de uma vivência. Conhece‐se a visão inicial de Diamantina através de suas palavras: A janela do meu quarto, no Hotel Roberto2, dava para a rua (...). Um piano distante tocava quando desci e me pus a caminhar pelas capistranas, trilha de lajes maiores no meio das ruas empedradas: no alto de uma ladeira os dois sobrados do colégio de freiras, um ainda setecentista, o outro já do Império, ligados por um elegante passadiço; no largo fronteiro a uma igreja o típico cruzeiro de madeira guarnecido dos símbolos do martírio, com uma figueira enroscada, nascida do seu pé3. Depois a fachada da casa de Chica da Silva, a 1 O desenho aparece na reportagem do Jornal A Noite com a legenda: “uma das ruas mais interessantes de Diamantina, conservando em quase todos os seus aspectos a feição hispano‐árabe”. Pela descrição e pela imagem, acredita‐se ser o Beco da Tecla. Em 1943, Mariano usará a perspectiva para ilustrar seu texto. Cf. COSTA, Lucio. Considerações sobre o nosso gosto e estilo. A Noite, Rio de Janeiro, 18 jun. 1924; MARIANO FILHO, José. Influências muçulmanas na architectura tradicional brasileira. Rio de Janeiro: Editora A Noite, 1943, p.67. 2 O Hotel Roberto ficava na Rua Direita, consta nos jornais dos anos 1920 o endereço “No largo da Sé” ou nos recibos emitidos “em frente a Sé”. Ressalta‐se que a Sé ainda era a colonial, demolida em 1932. Numa busca para compreender qual era o edifício do Hotel, constatou‐se, através de uma fotografia de época, que provavelmente o Hotel estava instalado no mesmo sobrado no qual, na virada do século XIX para o XX, possuía parte como residência o avô de Juscelino Kubitschek e onde, em 1902, o ex‐presidente nasceu. Mais tarde, o hotel foi transferido para o sobrado na esquina da Rua Direita com a Travessa do Carmo. 3 Sabe‐se que é a Igreja de Nossa Senhora do Rosário por citar a condição única do cruzeiro. O templo foi construído por volta de 1772 e na frente do edifício, onde está uma praça, nasceu uma gameleira e não uma figueira, como confunde‐se Costa, que cresceu emaranhada com o cruzeiro ali existente. 33 famosa amante do contratador, resguardada por extenso muxarabi, e, defronte, a capela do Carmo, construída para ela (...).4 O texto sugere pontos percorridos pelo arquiteto em extremos do perímetro que mais tarde seria tombado pelo SPHAN (Figura 5). Os edifícios no passeio são representativos diamantinenses de rezar, morar e educar e demonstram como Costa, em um primeiro momento, não ateve suas análises a uma única função, mas ao uso total da cidade. A maioria das particularidades esmiuçadas são formais, como “beirais fortemente balanceados, tratados em madeira com caibros aparentes e perfilados, balcões com balaústres torneados, portas de ricas almofadas, ferragens, gelosias, alpendres”5 (Anexo A, Imagens IV a XII). Detalhes “convenientemente documentados” para ajudar a “definir a nossa arquitetura”6, cumprindo o intuito do convite de José Mariano Filho para que Lucio Costa fosse à cidade. No final da década de 1910 e início da década de 1920, as novas construções passavam pelo embate do que seria uma arquitetura nacional autêntica. A historiografia nos conta que, até então, a preocupação de se representar uma brasilidade não existia e a arquitetura seguia correntes como o neoclassicismo, neogótico, art nouveau e demais formas do ecletismo7. Intelectuais passaram a questionar o modelo em vigor e a defender a busca por um estilo nacional pautado pelo estudo da arquitetura colonial, escolhida como aquela que representava as origens brasileiras do construir. Dessa forma, surge o neocolonial. Mariano, recifense radicado no Rio de Janeiro, fazia parte da corrente carioca de personalidades que era partidária do novo estilo. A arquitetura era um tema caro ao médico que, como presidente da Sociedade Brasileira de Belas Artes8, financiou as excursões que fomentaram argumentos e imagens em prol do uso do vocabulário colonial como meio de expressar, de modo preciso, o que seria o tão buscado estilo nacional. Com este objetivo, Mariano convidou profissionais de sua estima para visitarem as cidades mineiras. Nestor de 4 COSTA, Lucio. Diamantina, in: Lucio Costa: registro de uma vivencia. 2a. ed São Paulo, SP: Empresa das Artes, 1997, p. 27. 5 COSTA, Lucio. Considerações sobre o nosso gosto e estilo. A Noite, Rio de Janeiro, 18 jun. 1924. 6 Idem. 7 Cf. REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2004; CZAJKOWSKI, Jorge. Guia da arquitetura eclética no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2000. 8 Além de presidir a Sociedade Brasileira de Belas Artes por muitos anos, foi diretor da Escola Nacional de Belas Artes entre 1926‐1927 e também fundou o Instituto Brasileiro de Arquitetos e a Sociedade Central de Arquitetos em 1921, presidindo ambas e as unindo em 1924 como Instituto Central de Arquitetos. 34 Figueiredo foi a Ouro Preto, Nereu Sampaio a São João Del Rei e Congonhas do Campo, Ângelo Bruhns a Mariana e a Lucio Costa coube a última cidade do sentido Rio de Janeiro‐ Minas Gerais da antiga Estrada Real9: “Eu era o mais novo, então, me mandaram para mais longe”10. Porém, Costa não foi o único viajante que percorreu as 36 horas de trem até Diamantina em nome das pesquisas de grupos neocoloniais. Ricardo Severo ‐ engenheiro, arqueólogo e arquiteto português residente em São Paulo, promoveu excursões com objetivos semelhantes na mesma época11. Sob seu patrocínio, os pintores José Wasth Rodrigues e Alfredo Norfini foram enviados para interior do Brasil e Diamantina fazia parte do roteiro. JoséWasth Rodrigues era paulistano, conhecido por pinturas de painéis, azulejos e de paisagens antigas do estado. Em 1916, Monteiro Lobato escreveu um artigo elogiando o artista12, que passaria a fazer ilustrações para a Revista do Brasil e para livros de autores como Guilherme de Almeida e Alcântara Machado. Alfredo Norfini, por sua vez, era florentino e se fixou em São Paulo em 1911, após passagens por Buenos Aires, Campinas e Rio de Janeiro. No mesmo ano, por recomendação de Ramos de Azevedo, foi nomeado professor titular do Liceu de Artes e Ofícios. No momento das excursões para o interior brasileiro, os dois pintores tinham carreiras mais consolidadas que o jovem Lucio Costa. 9 Cf. NATAL, Caion Meneguello. Da casa de barro ao palácio de concreto: a invenção do patrimônio arquitetônico no Brasil (1914‐1951). Tese (doutorado) ‐ Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, 2013, p. 113‐114 e TELLES, Augusto da Silva. Neocolonial: la polémica de José Marianno. In: AMARAL, Aracy (cord.). Arquitetura Neocolonial: América Latina, Caribe, EUA. São Paulo: Memorial/Fundo de Cultura Econômica, 1994. 10 COSTA, Lucio. Sobre o Patrimônio. Boletim do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural ‐ IBPC, 27 de fevereiro de 1992. In: NOBRE, 2010, p. 215. 11 No final da década de 1910, o português Ricardo Severo patrocinou as excursões dos pintores José Wasth Rodrigues, Alfredo Norfini e Felisberto Ranzini pelo Brasil. Através delas, seria possível desenvolver um material que fundamentasse o vocabulário neocolonial. Os estados percorridos foram São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará, Pará e Maranhão, dando privilégio às cidades interioranas, sobretudo as mineiras. Cf. MELLO, Joana. Ricardo Severo: da arqueologia portuguesa à arquitetura brasileira. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra/Annablume, 2012, p. 65‐67 e NATAL, op. cit., p. 103‐105. 12 LOBATO, Monteiro. A propósito de Wasth Rodrigues. O Estado de São Paulo, São Paulo, 9 de janeiro de 1916. 35 Figura 5: Mapa do Percurso de Lucio Costa em 1924. Elaborado com base nos relatos de Lucio Costa em Registro de uma Vivência e nos desenhos realizados na viagem em 1924. Na legenda, os edifícios foram nomeados de acordo com a função que ocupavam na época. Hoje, a Câmara Municipal (9) é o fórum da cidade. O Grupo Escolar Matta Machado (8) era, entre os séculos XVIII e XIX, a Casa de Intendência. No século XX e até recentemente foi a prefeitura, sendo que hoje continua a abrigar órgãos administrativos. A Casa do Muxarabi (7) é a Biblioteca Antonio Torres. Na Casa de Chica da Silva (5), funciona a sede do escritório técnico do Iphan em Diamantina. Já o colégio Nossa Senhora das Dores (3) pertence a UFMG e abriga o Instituto Casa da Glória. Na primeira sede do Hotel Roberto (2) funcionam lojas comerciais. A antiga Estação de Trem (1) é a Sede do Corpo de Bombeiros. Fonte: Elaborado pela autora (2018) 35 Fi gu ra 5 : M ap a do P er cu rs o de L uc io C os ta e m 1 92 4. El ab or ad o co m b as e no s re la to s de L uc io C os ta e m R eg is tr o de u m a V iv ên ci a e no s de se nh os re al iz ad os n a vi ag em e m 1 92 4. N a le ge nd a, o s ed if íc io s fo ra m n om ea do s de a co rd o co m a fu nç ão q ue o cu pa va m n a ép oc a. H oj e, a C âm ar a M un ic ip al (9 ) é o fó ru m d a c i da de . O G ru po E sc ol ar M at ta M ac ha do (8 ) e ra , e nt re o s sé cu lo s XV II I e X IX , a C as a de In te nd ên ci a. N o sé cu lo XX e a té re ce nt em en te fo i a p re fe itu ra , s en do q ue h oj e co nt in ua a a br ig ar ó rg ão s ad m in is tr at iv os . A C as a do M ux ar ab i ( 7) é a B ib lio te ca A nt on io T or re s. N a C as a de C hi ca d a Si lv a (5 ), fu nc io na a s ed e do e sc ri tó ri o té cn ic o do Ip ha n em D ia m an tin a. Já o c ol ég io N os sa S en ho ra d as D or es (3 ) p er te nc e a U FM G e a br ig a o In st itu to C as a da G ló ri a. N a pr im ei ra s ed e do H ot el R ob er to (2 ) f un ci on am lo ja s co m er ci ai s. A a nt ig a Es ta çã o de T re m (1 ) é a S e d e do C or po d e Bo m be ir os . Fo nt e: E la bo ra do p el a au to ra (2 01 8) 36 A viagem de Norfini para Minas Gerais foi realizada em 1921 e dela resultaram mais de uma centena de registros. Dos que foram divulgados, cinco são do antigo Arraial do Tijuco (Anexo A, Imagens XXVII a XXXI). Rodrigues, por sua vez, visitou o estado em 1919 e em 1930, elaborou maior quantidade de materiais sobre Diamantina e foi mais rigoroso nas pranchas de detalhes, dando atenção, assim como Costa, aos pormenores das construções diamantinenses (Anexo A, Imagens XIII a XXVI). Dos pontos em comum entre os registros, destaca‐se o passadiço da Casa da Glória13. A ponte surge tanto na aquarela de Costa, quanto no desenho de Rodrigues (Anexo A, Imagens III e XIII). Ressalta‐se ainda as imagens da Casa de Chica da Silva, presentes na narrativa dos enviados por Severo e que atestam a importância dessa personagem central no imaginário construído em torno de Diamantina (Anexo A, Imagens XV e XXX); as perspectivas do Beco da Tecla, uma de cada extremo, denotando a peculiaridade da viela (Anexo A, Imagens II e XVIII) ; e os desenhos precisos feitos por Costa e Rodrigues do muxarabi da edificação construída no século XVIII na Rua da Quitanda (Anexo A, Imagens IV e XXII). Porém, todo o esforço feito ao enviar os profissionais para elaborar materiais que guiassem os intelectuais pelo neocolonial acabou restrito às mãos daqueles que patrocinaram as excursões. Ricardo Severo e José Mariano não publicaram os desenhos resultantes das viagens de seus enviados. Sem as imagens, Diamantina nos anos 1920 foi divulgada pelas palavras. Em abril de 1926, Wasth Rodrigues concede uma entrevista para o jornal Estado de São Paulo. O depoimento fazia parte da série que ficou conhecida como “inquéritos sobre arquitetura colonial”14. Apesar do pintor ressaltar que “sua pena dispõe de eloquência mais 13 A Casa da Glória é constituída por dois sobrados, sendo que o mais antigo foi construído por volta de 1775, e deve o nome à sua antiga proprietária, Josefa Maria da Glória. Em 1813, ali passaram a residir os intendentes de diamantes. Em 1864, passou a abrigar a sede do 2º Bispado de Minas Gerais. Em 1867, foi repassada às Irmãs de São Vicente de Paulo que nela criaram um educandário feminino, o colégio e orfanato Nossa Senhora das Dores. Em 1878, as irmãs construíram o passadiço ligando o orfanato ao prédio da frente, edifício de 1850 que havia pertencido ao Cel. Rodrigo de Souza Reis. Na metade do século XX, com a desativação do Colégio, passou por um período de abandono até ser adquirido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1979, onde abrigou o Centro de Geologia Eschwege até 1999, sendo transformado no Instituto Casa da Glória – IGC/UFMG até o presente. Cf. MARTINS, Marcos Lobato, Martins, Júnia Maria Lopes, O Colégio Nossa Senhora das Dores de Diamantina e a Educação Feminina no norte\nordeste mineiro (1860‐1940)‐ Educação em Revista, Belo Horizonte (17): 11‐19,11‐19, jun. 1993 14 “Sob direção do jornalista Fernando de Azevedo, a série de nove artigos objetivou reavaliar o movimento neocolonial para estabelecer critérios rígidos à utilização do vocabulário arquitetônico antigo na realização de novos projetos. [...] contaram com a opinião de Ricardo Severo, José Marianno, José Wasth Rodrigues, Alexandre 37 sugestiva do que sua palavra”, são compartilhadas posições relevantes do estudioso da arquitetura antiga brasileira, lembrando que “de nove anos a esta parte é nessapesquisa que se absorve todo o meu tempo e se concentra o meu maior interesse”. Das repetidas viagens para o interior, Minas se mostrou “manancial inesgotável de documentação arquitetônica”, considerando Diamantina um dos “principais núcleos de arte e tradições antigas”. O parecer de Wasth Rodrigues ainda diz: Olhemos, pois, para o passado, se quisermos inspirar‐nos melhor. [...]O que a caracteriza [a arquitetura antiga] é a harmonia de linhas, admirável bom senso que presidiu a maior parte dessas construções. 15 Lucio Costa seguiu uma orientação semelhante no depoimento de 18 de junho de 1924 para o jornal A Noite, onde o argumento central da entrevista foi o retorno do arquiteto da sua excursão. Das conclusões, é possível perceber como o tempo pretérito se apresentava como o lugar de resgate das proporções: É preciso aproveitar o que herdamos de nossos avós. Mas fazê‐lo conservando, antes que tudo, a beleza das proporções: proporções gerais – onde as linhas horizontais dominam dando ao todo uma impressão de calma e tranquilidade [...] 16 Para relacionar a redescoberta das heranças coloniais com a atualidade, os artistas demonstravam a preocupação por uma técnica alinhada com o presente: “As exigências e as condições da vida moderna não permitiriam copias servis de modelos de construções que satisfaziam a outros tempos de menos exigências”, como disse Wasth. Mantém‐se a ideia da beleza impressa pela proporção, mas ela deve ser polida de complicações construtivas e relativizada por objetivos racionais, mediados pela sinceridade ‐ naquele momento expressa pela influência colonial em contraponto aos “exageros” ecléticos17. Para ambos, existia um despropósito dos estilos em vigor, contra os quais a arte Albuquerque e Adolpho Pinto Filho, além da perspectiva do próprio Azevedo sobre o assunto.” In: NATAL, op. cit., p. 82. 15 RODRIGUES, José Wasth. In: Architectura Colonial IV: uma palestra com o Sr. Wasth Rodrigues. Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, 16 de abril de 1926. 16 COSTA, Lucio. Considerações sobre o nosso gosto e estilo. A Noite, Rio de Janeiro, 18 jun. 1924. 17 Cf. LEONIDIO, Otavio. Carradas de razões. Lucio Costa e a arquitetura moderna brasileira (1924‐1951). Rio de Janeiro: tese de doutorado, Departamento de História, PUC‐Rio, 2005, p. 33‐35. 38 colonial poderia oferecer um respiro e uma direção. Quando Rodrigues foi questionado se era a favor do movimento neocolonial, afirmou: Não faço mais que seguir um movimento que me parece universal. O regionalismo é consequência do excesso de cosmopolitismo [...] É preciso, pois, conhecer perfeitamente a arquitetura colonial para podermos extrair o estilo “internacionalmente” de uma arte toda feita “espontaneamente”.18 Apesar da aparente proximidade de discurso entre pintor e arquiteto, é possível perceber nuances. Costa já sinalizava para o apreço das construções passadas “sem a preocupação de chamar a atenção pela extravagância das formas” e convidava o leitor para “olhar um pouco para esse nosso céu” onde nevoeiros e neves não precisavam ser levados em consideração. Se “a beleza absoluta não existe”, a arquitetura deveria acompanhar também as condições do lugar e a finalidade para a qual era destinada19. O arquiteto ainda menciona o excesso de ornamentos e a dissimulação dos materiais: Acabar com essas pequenas complicações que, a título de embelezamento e a pretexto de efeito decorativo, todo o construtor se acha com o direito de “criar”, e cujo verdadeiro fim é, além de “epater ler bourgeois”, justificar o custo excessivo em que ficar a obra e mascarar a inferioridade do material e acabamento.20 Wasth Rodrigues acreditava que a modernidade viria pela forma e agilidade com a qual poderiam ser feitos e empregados os elementos coloniais nos dias atuais. “Do ponto de vista pitoresco”, os motivos de decoração das “casas modernas” viriam não das residências coloniais, mas do “interior das igrejas”. Quanto à atribuição do arquiteto, só era necessário que desviasse os olhos dos “catálogos econômicos” para esses “magníficos exemplares”: Para que as construções inspiradas nessa arte tradicional satisfaçam a sensibilidade moderna, bastará que o arquiteto que as projeta, associe ao “estilo 18 RODRIGUES, José Wasth. In: Architectura Colonial IV: uma palestra com o Sr. Wasth Rodrigues. Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, 16 de abril de 1926. 19 COSTA, Considerações sobre o nosso gosto e estilo, op. cit. 20 Idem. 39 profundo da arte colonial” o espirito ágil e flexível, vivo e atual, a cujo sopro se renove, sem perder a sua fisionomia, a arte antiga.21 O pintor se atém à decoração como o meio pelo qual a arte colonial seria traduzida nas novas construções. A função do edifício a que se destinam, por outro lado, não aparece como questão. Para Lucio Costa e seus colegas, era o oposto: O estilo vem por si. [...] Basta que cada arquiteto e cada proprietário tenha sinceramente o desejo de fazer uma obra que preencha da melhor maneira possível os fins a que se destina.22 As diferentes visões de Costa e Wasth Rodrigues são comprovadas também pelos desenhos. No Anexo A é possível observar como o arquiteto seguiu a proposta de uma documentação técnica, com desenhos dimensionados e escalas indicadas, ao passo que os detalhes construtivos registrados por Wasth Rodrigues, embora tanto ou mais numerosos que os de Costa, parecem buscar ser apenas um catálogo de elementos para serem conhecidos ou copiados, sem apresso ao anotar as medidas das proporções originais. Essas divergências se mostraram cruciais na atuação profissional dos viajantes nas décadas seguintes. Em Diamantina, cerca de dez anos depois das excursões registradas pelos intelectuais, o caso da Catedral exemplifica as posturas contrárias adotadas. A Matriz de Santo Antonio, feita em 1750 e exemplo central da escala dos templos do conjunto, foi demolida em 1932 e José Wasth Rodrigues projetou o edifício que a substituiu (Figura 8). A polêmica em torno da demolição da antiga Sé e construção da nova Catedral pode revelar uma vontade por parte do desenhista de dar, segundo seus parâmetros, uma igreja que se destacasse no tecido diamantinense, enquanto o bispado pretendia expressar sua imponência. Se a Sé com seus largos e materiais criava uma relação de proporção com as construções civis ao redor, o novo edifício foi desenhado fora da escala da cidade e, apesar de se apropriar de alguns fragmentos do repertório barroco, se aproxima mais das regras compositivas do ecletismo. O eixo de implantação, em relação ao edifício original, foi rotacionado e a lateral da Catedral ficou para a Rua Direita, onde antes era a frente da Sé, interferindo na preservação da trajetória urbana 21 RODRIGUES, Architectura Colonial IV: uma palestra com o Sr. Wasth Rodrigues, op. cit. 22 COSTA, Considerações sobre o nosso gosto e estilo, op. cit. 40 do antigo Arraial do Tijuco. Previsivelmente, Lucio Costa considera o novo projeto uma “porcaria” que “não tem nada com Diamantina”23 (Figuras 6 e 7). 23 COSTA, Lucio. Entrevista: Lucio Costa. Revista Pampulha. Belo Horizonte: Caminho Novo Empresa Jornalística e Panela; Instituto dos Arquitetos do Brasil, Seção Minas Gerais, N. 01 nov/dez. 1979, p.16. Figura 6: Antiga Sé de Diamantina, c. 1920. Fonte: Santos (2015, p. 147). Autor: Chichico Alkmim. Figura 7: Panorama com a nova Catedral de Diamantina, década de 1940. O edifício destaca‐se no centro, no meio das construções coloniais. Fonte: Santos (2015, p. 149). Autor: Chichico Alkmim 41 Figura
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