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1 CIS OU TRANS: BUSCANDO UMA IDENTIDADE ERASMO HERA DA ROCHA 2 PREFÁCIO Este livro é oportuno a todos aqueles interessados, estudiosos e/ou ativistas, na discussão sobre gênero e identidade sexual. Sobre a trajetória acadêmica do autor, posso dizer que pude perceber em Erasmo um grande desejo de saber sobre as Ciências Humanas: da História ao Direito, dos estudos de raça aos de gênero. O percurso traçado em sua vida acadêmica estará, em parte, retratado nesta obra, em que elabora uma genealogia das contradições do discurso médico-científico sobre a identidade, do autoreconhecimento e das discussões de gênero. Durante nossas conversas sobre o tema, pude aprender sobre as muitas dimensões envolvidas nessa discussão e suas relações com o contemporâneo. Cada vez mais, este tema assume importância no social e todos os sujeitos são convocados a debater tal tema, o que era anteriormente construído e normalizado, é problematizado e ressignificado. Com esses escritos podemos indagar como a História e o Direito, aliados à teoria crítica, nos ajuda a pensar o conceito de gênero e a construção da 3 sexualidade no contexto social, bem como, identificar as disposições responsáveis por produzir as configurações das identidades de gênero na contemporaneidade. Aponto como marco da obra a análise do caso John/Joan, e como o discurso científico/jurídico/social pode comportar contradições, em um joguete de ilusão que torna o arbitrário cultural normal e legitimo. Em suma, trata-se de uma atenciosa análise sobre as contradições no discurso social sobre gênero! Eduardo Pio, setembro 2020. 4 INTRODUÇÃO O presente trabalho apresenta como tema o desenvolvimento da percepção do conceito de “indentidade de gênero” na contemporaneidade ocidental. “Gênero” para o Dicionário Aurélio 2009 é “7. Antrop. A forma culturalmente elaborada que a diferença sexual toma em cada sociedade, e que se manifesta nos papéis e status atribuídos a cada sexo e constitutivos da identidade sexual do indivíduo.” Segundo Joan Scott: “Mais recentemente (...) as feministas começaram a utilizar a palavra ‘gênero’ mais seriamente, num sentido mais literal, como uma maneira de se referir à organização social da relação entre os sexos (Scott, 1995). E para Butler, apud Scott: “gênero é uma construção social e cultural a serviço da dominação da mulher pelo homem (Scott, 2012). “O homem fode a mulher; sujeito, verbo, objeto (MacKinnon, apud Scott, 2012). Para Joan Scott (1941-) uma “história das mulheres” é sexista, pois coloca a mulher como 5 “diferente” do homem, e por isso subalterna, já que na frase de MacKinnon ela é sempre objeto. Judith Butler (1956-) cita Kristeva: “não se pode dizer que existem ‘mulheres’ (Butler, 2018).” Isso significa que não existe a categoria “mulheres” e apenas “a” mulher! o “segundo sexo”, ou mesmo a “sem sexo”. Na definição de Butler, o significado de “identidade” [subentende] “que as identidades são idênticas a si mesmas, persistentes ao longo do tempo, unificadas e internamente coerentes.” Vem da palavra idem, que quer dizer “igual”. Portanto, “identidade de gênero” não é menos que uma permanência de uma construção social consolidada. A identidade de gênero pode ser “percebida”, quando se define o gênero pela genitália do bebê, ou “autopercebida”, que é a construção do gênero pela própria pessoa que se espelha nos personagens sociais para construir seu próprio gênero. Entrementes, não se pode dizer que o gênero é totalmente pessoal ou social, mas podemos afirmar que a identidade de gênero é uma descoberta que a pessoa faz, que tanto pode reafirmar seu gênero designado no nascimento no 6 caso das pessoas “cis”, ou “transgredir” os papéis sociais e se reconhecer como uma pessoa “trans”. A identidade trans é uma permanência no sentido de que, desde a infância, a maoria desses indivíduos se sente divergente do gênero “percebido”. Com a contribuição da teoria de gênero de Judith Butler e dos estudos de Alfred Kinsey sobre a homossexualidade, a antiga1 definição de “homossexualismo” foi cortada dos textos científicos e tirada dos catálogos de doenças: CID (Código Internacional de Doenças) e DSM (Diagnostic and Estatistical Manual of Mental Disorders) [Manual Diagnóstico e Estatístico e de Doenças Mentais]. Já a transgeneridade, até o ano de 2018, era considerada doença mental; porém, com a edição do CID-11, passou a se localizar na seção de “saúde sexual” e denominar-se 1 Como diria Foucault, em “História da sexualidade” vol.1, pg. 44: “antes a sodomia era uma dissidência, agora homossexual é uma espécie.”. A partir do século XIX descobrem-se várias categorias de “desvios sexuais”, patologizando o “homossexualismo” como doença no primeiro DSM (Diagnostic Estatistical Manual) de 1952 – O “ismo” significa doença, tanto que não existe a palavra “heterossexualismo” no Aurélio de 2009 – o termo só foi retirado do manual em outra publicação do DSM em 1973. 7 “incongruência de gênero”. No último DSM, o DSM-V, atualizado em maio de 2013, o termo utilizado é “disforia de gênero”, podendo ser sintoma de doenças como a esquizofrenia. O CID-11 entra em vigor em janeiro de 2022. De fato a esquizofrenia pode levar ao conflito de identidade de gênero, já que nessa doença o paciente se aflige com tudo que é dicotômico, desde o conflito com o verdadeiro gênero, até a posição política: direita ou esquerda. A transgeneridade, no entanto, não é uma doença mental como bipolaridade, depressão etc. O que pode levar a esses quadros é o preconceito e a exclusão social. Para Georges Canguilhem (1904-1995) (apud COELHO e FILHO, 1999), no séc. XX a medicina dos fenômenos orgânicos e mentais apontou para uma diferença qualitativa entre normal e patológico. Mas “o patológico não é o contraditório lógico do conceito de normal. O patológico não é a ausência de normas, mas a presença de outras normas vitalmente inferiores, que impossibilitam o indivíduo viver um modo de vida 8 anterior, permitido aos indivíduos sadios (COELHO e FILHO, 1999, pg. 24).” O oposto de patológico então seria “sadio”: “O termo saúde, originado do termo latino sanus, possui ascendência grega (saós) e envolve dois sentidos: íntegro, intacto ou bem conservado e infalível ou seguro. Daí a expressão popular são e salvo (...). Canguilhem observa que ao longo da história, a saúde foi tradada como se ela não pudesse ser apreendida pela razão (...). No século XVIII, Kant teria afirmado que a saúde é um objeto fora do campo do saber e que, por isso, não é um conceito científico, mas uma noção vulgar, popular, ao alcance de todos (COELHO e FILHO, 1999, pg. 25). Até o séc. XVI, o louco era um personagem mágico, místico, portador de uma verdade. Ele perambulava pelas ruas contando histórias como um jornalista; os loucos podiam falar por si mesmos. Foi a partir do séc. XVII, com a contribuição de René Descartes (1596-1650) para o pensamento lógico e da razão, que o louco passou a ser silenciado e visto como um objeto de estudo. Primeiro silenciado pelo juiz, que o taxava de “vontade perversa”; depois, pelo médico, por 9 um problema no corpo; então pelo psiquiatra, por deficiência na mente/cérebro. E até hoje continua sendo silenciado pela psicologia/psicanálise.2 Às vezes não é o alienista que sugere a internação e sim o próprio psicólogo que acompanha o paciente. O problema é que quando ocorre um surto ele põe em risco a própria integridade física e de outrem, por isso deve passar por processos disciplinares como o “manicômio” ou o ambulatório. O/a transexual é louco/a? Os manuaisditam que sofrem a chamada “disforia de gênero” ou, mais recentemente, “incongruência de gênero”. O termo mais aceito na comunidade trans é “transgeneridade”. Transgêneros seriam pessoas que divergem dos padrões estabelecidos entre sexo/gênero. Atualmente a sociedade está aceitando mais as “transgressões de gênero” (LANZ, 2015), principalmente depois da calça jeans e os grupos como os emos e 2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=X570ChG5Nas. Acesso em: 07 jun. 2019. about:blank 10 roqueiros que pintam as unhas e se maquiam; mulheres que dispensam a saia no dia a dia e usam cabelos curtos. É verdade que, desde os primórdios, guerreiros vikings usavam cabelos compridos, mas no séc. XIX-XX foi resgatado o estilo masculino dos romanos: cabelos curtos, o famoso “corte militar”. O séc. XX passou pela patologização do transexual e culminou até mesmo com sua naturalização, depois da teoria queer, que foi reforçada pela cultura dos jovens nascidos entre 1990 e 2001, cada vez mais andrógina. Homens e mulheres usam calças apertadas, camisas de time, cabelos longos ou curtos, mulheres de barba, homens sem barba, com ou sem maquiagem. A moda transgênera é capaz até de passar despercebida, o que faz somente você se perguntar: “É moça ou rapaz?” É como perguntar o sexo do bebê: não é visível ao espectador. Só precisamos apenas de nos livrar de alguns preconceitos e assinarmos o “contrato contrassexual” de Paul Beatriz Preciado (1970-) para nos tornarmos corpos falantes e não seres sexuados sujeito a normas e estereótipos de gênero. A sociedade futura é como a de Aldous Huxley, apud 11 Coelho e Filho, 1999, sem médicos nem doentes; todos seriam normais, ou seja, ninguém fugiria da norma, já que a norma não admite a doença, e esta não seria sã, mas patológica. Explica-se a partir do conceito de Canguilhem de que todos são normais e o homem normal saudável teria que se sentir capaz de adoecer e afastar a doença. Se a possibilidade de testar a saúde através da doença lhe fosse eliminado, o ser humano não teria mais a segurança de ser normal e de poder enfrentar qualquer doença que porventura viesse a surgir. Isso, paradoxalmente, configuraria uma nova e devastadora patologia, a patologia da saúde perfeita (COELHO e FILHO, 1999, pg. 23). Entendemos que a transgeneridade não é uma patologia, a sociedade que é doente por excluir essas pessoas diariamente e lhes negar direitos básicos como o nome e o trabalho. Mais que lutar contra o preconceito, devemos encampar a luta LGBT para que esses direitos sejam conquistados plenamente por todos “diferentes”. 12 “Identidade” vem de igual, mas “diferença” vem do latim DIS, “fora, afastado de”, mais FERRE: “levar, portar, carregar”, portanto levar para [deixar de] fora. É assim que a sociedade trata os transgressores de gênero, como forasteiros sociais. O ideal seria nos tratarmos simplesmente como “corpos falantes” (PRECIADO, 2014), corpus: parte animal e falante: parte humana, ou seja, animais dotados de fala. O sexo seria tão individual que existiriam tantos sexos quanto pessoas (DELEUZE; GUATTARI apud BUTLER, 2009)3. Militantes defendem que a transgeneridade, assim como foi a homoafetividade, seja retirada dos manuais diagnósticos. O que aconteceu no novo CID foi que passou a denominar-se “incongruência de gênero” e a ser classificada nem como saúde física nem mental, mas em “saúde sexual”, junto com disfunção erétil e outros diagnósticos4. Porém é também importante o tratamento hormonal e cirúrgico para as/os chamadas/os 3BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018. 4 Disponível em:< https://portugues.medscape.com/verartigo/6502525>. Acesso em 25 nov. 2018. 13 “transexuais verdadeiros”, que, segundo Benjamin (1999)5, são aqueles/as que têm total aversão a sua genitália, podendo automutilar-se ou até tentar o autoextermínio. Para esses casos, Benjamin afirma que, apenas alterando as características sexuais secundárias (barba, seios etc.) visando a alteração das características primárias (orgãos genitais), o indivíduo se sentirá realizado. Quanto à psicoterapia, segundo o médico, é inútil para eles/elas. É também importante o acompanhamento psiquiátrico para aqueles/as que ocasionalmente tiverem depressão ou outro quadro psíquico, geralmente causados pelo preconceito da sociedade. Se em mais ou menos dois anos, durante o “teste da vida real”6, o paciente não apresentar desejo de reconfigurar a genitália ou interromper voluntariamente a terapia hormonal, deve ser 5 BENJAMIN, Harry. The Transsexual Phenomenon. Dusseldorf: Symposium, 1999. 6 É chamado “teste da vida real” o procedimento em que a/o paciente vive integralmente como do sexo oposto por pelo menos dois anos, passo necessário para autorização feita pelo/a psiquiatra para a cirurgia de “transgenitalização”, vulgo “mudança de sexo”. 14 descartado qualquer “transtorno da identidade sexual”7 (CID-10), e começar a tratar isoladamente uma possível doença (esquizofrenia, bipolaridade, depressão etc.). As pessoas trans deveriam se encaminhar para o endocrinologista e cirurgião e, se não for constatada nenhuma doença mental pelo psiquiatra, o próprio clínico geral deve acompanhar o/a paciente (BUTLER, 2009) dali para frente. Neste trabalho, procura-se questionar a comunidade científica quanto a “gender assignment at birth” (gênero designado no nascimento), que acredita-se ser uma falácia, já que, em nossa concepção, o aparelho genital não decide necessariamente o gênero, que é construído mentalmente à medida que a criança cresce. A identidade de gênero começa a se firmar entre os 2 e 3 anos de idade, quando a criança começa a observar os papéis sexuais designados pela sociedade. Também critica-se a ideia de Money e Tucker (1981) de que a pessoa deve escolher entre o gênero masculino e feminino para viver em sociedade, uma vez 7 Usamos o termo do CID-10 (F-64) que corresponde ao “transexualismo, travestismo bivalente”, etc. 15 que a teoria queer8 mostra que os gêneros são infinitos, desde o gênero neutro, bigênero (homem e mulher ao mesmo tempo) ou até mesmo trigênero (homem, mulher e neutrois), ou nenhum dos três, os chamados gêneros não binários (genderqueer).9 Porém não devemos falar de “identidade sexual”, já que a própria definição de “gênero” é fluida (sem permanência), diferente do sexo, que na maioria das vezes já está bem definido ao nascer, com a exceção dos intersexos. Benjamin (1999) define vários tipos de “sexos”: morfológico, cromossômico, genital, legal, social e psicológico. Devemos então falar de 8 A chamada teoria “queer” surgiu nos anos 1980 especialmente com Judith Butler, desestigmatizando o termo queer, que em tradução livre do inglês significa “bicha”. Outras definições que cabem são: “extraordinário”, “diferente”, “esquisito”. A teoria quer desconstruir a estigmatização da sociedade com os sexos opostos e excludentes, mostrando que é possível identificar-se com uma ontogênese diferente do padrão homem/mulher. Assim como o termo “vadia” da Marcha das Vadias. 9 “Termo associado a pessoas cuja identidade ou expressão de gênero não se limita às categorias "masculino" ou "feminino" (...) Uma pessoa não binária também pode se apresentar como genderqueer ou afirmar que tem identidade de gênero não conformista.” Disponível em: <https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2018/03/19/glossario-de-genero-entenda-o-que-significam-os-termos-cis-trans- binario.htm>. Acesso em 19 mar. 2018. 16 “diversidade” sexual (ou de gênero) com a única diferença que a sexual é a variedade de possibilidades de sexos divergentes num mesmo indivíduo; e “de gênero” é a autopercepção pessoal de cada um que se espelha em algum membro social. Por isso também não existe “ideologia de gênero”, preferências não têm explicação, a pessoa simplesmente “gosta” ou se identifica com alguém. Nem casais héteros tem somente filhos héteros, e nem todo casal gay tem filhos gays. Assim se dá com os trangêneros também! O relato no final desse trabalho (caso John/Joan) mostra que não é possível “moldar” um ser humano para seguir determinado gênero, já que este é uma construção pessoal de cada um, que vê a sociedade com seus próprios olhos encontrando seus espelhos. Há autores que afirmam existirem 7 bilhões de gêneros no mundo, tantos gêneros quanto pessoas. Transformar “gênero” numa categoria de análise apenas reforça que assim como não é possível classificar “mulheres” num único objeto, não se pode falar em uma categoria “de gênero” A própria definição de categoria diz: “2. Série, grupo. 3. Classe, qualidade, ordem (Aurélio, 2009)”. E 17 gênero não é um grupo, é o que diferencia uma pessoa da outra. O que existe é a “mulher” (cada uma com sua personalidade), assim como existe o “gênero” (cada um com o seu). De acordo com o pensamento marxista, não existem o gênero masculino e o feminino, apenas o gênero humano. Somente é possível a generalização com a espécie humana já que existem homens femininos, mulheres masculinas, queers andróginos, semigarotos, semigarotas... Podemos dizer apenas “gênero humano”, já que “gêneros” (no plural) são infinitos, e não se pode medir o infinito. Procuramos aqui diferenciar a identidade de gênero “percebida” da “autopercebida” (autopercepção de gênero). A primeira é a chamada gender assignment at birth, designação do gênero pelo sexo do bebê. Já a “autopercebida” acontece a partir dos 2 anos (a maioria dos/as transgêneros é percebida pela família ou escola entre os três e cinco anos de idade), quando o indivíduo pode tanto manter o gênero que lhe foi designado ou não. Isso não constitui uma “ideologia de gênero” como berram alguns. E por que não é? Porque nós não 18 queremos impor uma visão falsa, ou tentar convencer através da dominação, apenas acreditamos que o que existe é a liberdade para a aceitação do próprio gênero (autopercepção), pela qual todas/os nós passamos, seja para reafirmar ou contestar o que a sociedade nos impôs. Respeitar a identidade de gênero não é ideologia no sentido marxista de “inversão da realidade”10. Os críticos argumentam que essa dita “ideologia” quer “ensinar as crianças a fazer sexo, ensinar a dançar músicas eróticas e mostrar pornografia”11, sendo que a educação sexual serve para conscientizar a criança sobre o que é afeto e abuso, a saber mais sobre o próprio corpo12 e para mostrar-lhe que o relacionamento de pessoas do mesmo sexo não é “anormal”, sendo que diversos tipos de família são aceitáveis. (Frisando que a criança 10 “A ideologia é, assim, uma consciência equivocada, falsa, da realidade. Desde logo, porque os ideólogos acreditam que as ideias modelam a vida material, concreta, dos homens, quando se dá o contrário: de maneira mistificada, fantasmagórica, enviesada, as ideologias expressam situações e interesses radicados nas relações materiais, de caráter econômico, que os homens, agrupados em classes sociais, estabelecem entre si (O Capital, pg. 30).” 11 Disponível em: https://www.almanaquesos.com/educacao-sexual- na-escola-ensina-criancas-a-fazer-sexo/. Acesso em 29/11/2018. 12 Ibd. 19 “descobre” seu verdadeiro gênero, dado que gênero é uma condição, e não uma escolha. O fato somente sai do Id e vai para o Ego). São eles que querem impor através do poder da religião uma visão determinista e formadora. Se a transexualidade fosse uma ideologia existiriam tantos transgêneros quanto cristãos no mundo. O objetivo da pesquisa é identificar a transgeneridade como fenômeno histórico e social no século XXI, com origens no séc. XX, a partir do estudo da literatura científica, comparando os estudos sociológicos de Bento, Butler e Preciado com a literatura médica (Benjamin, Kinsey e Money). Justifica-se pela quase inexistência de trabalhos sobre transexualidade no âmbito da historiografia. A Nova história no entanto, traz a possibilidade desse assunto ser mais trabalhado; e, como diz FOGAÇA, 2019, “amplia o campo de pesquisa e permite que o historiador utilize novas ferramentas para a produção historiográfica”. Assim como as já consagradas história da mulher (DEL PRIORI); da sexualidade (FOUCAULT) e do amor (LINS), a “história da trangeneridade” está sendo escrita, mas, como diria Marc Bloch, “Documentos são vestígios”, e tudo que já foi 20 escrito sobre o assunto pode e deve ajudar a deixar um rastro na história, sejam textos jornalísticos, jurídicos, médicos ou de psicologia, áreas em que a transexualidade é mais explorada. A pesquisa se divide em quatro partes: Na primeira, desenvolveremos o conceito de “Trans” como um “fenômeno transexual” (BENJAMIN, 1966); e discutiremos sobre a transgeneridade em si, como um conceito a priori; a segunda traz o estudo de caso do/a gender fluid Y13; a terceira, o relato de um fato conhecido como caso John/Joan; e por último, a definição de identidade sexual. Enfim chegaremos à conclusão: Não devemos criar nossos filhos e filhas para serem quem nós queremos que sejam. Respeitar a identidade de gênero de cada um é praticar a dignidade da pessoa humana, pilar das sociedades democráticas e pluralistas. Disse a psicanalista Letícia Lanz, em entrevista ao programa “Persona” em 2015, que se as crianças fossem criadas com mais liberdade não existiriam apenas “dois” 13 Gender fluid em tradução livre seria como “gênero fluido”, aquela pessoa que transita entres os gêneros durante a vida. 21 gêneros, mas 7 bilhões.14 Como tem dito Paul Beatriz Preciado, todas e todos nós deveríamos “neutralizar” os próprios nomes, colocando um nome masculino e feminino juntos, como o/a autor/a Erasmo Hera da Rocha. Assim, o conceito de gênero seria diluído e não mais julgaríamos as pessoas por serem homens e mulheres, mas apenas por serem “corpos falantes” humanos. Esta seria a sociedade preconizada pelo Manifesto Contrassexual de Paul Preciado15. 14 Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=MhvO59RjYtc>. Acesso em 06 ago. 2019 15 Preciado, Beatriz. Manifesto Contrassexual. São Paulo, n-1 edições, 2014. 22 1. O QUE É TRANS*? Trans*16 é a categoria de um tipo de gênero binário, podendo significar transgêneros masculinos ou femininos. Os gêneros não binários não pertencem a essa categoria, apesar de que alguns dos seus adeptos acreditem que estão “entre” os gêneros binários, como, por exemplo, os demiboys e as demigirls (dos quais falaremos mais adiante). 1.1 A Ideia Em nossa concepção, para se fazer uma pesquisa, é preciso estabelecer um recorte de tempo e espaço de um tema que seja historicamente relevante para o/a pesquisador/a. O presente estudo se justifica ao considerar o “fenômeno transexual” na leitura de textos médicos e científicos e fazer um estudo comparado com as principais obras que estudaram o assunto no século XX e até o início do séc. XXI com a mudança do CID-11 16O asterisco indica tanto o homem trans como amulher trans. Põe- se o asterisco quando não se especifica o gênero. Por praticidade, no restante do texto optamos por excluir o asterisco. Quando se especificar o gênero ele será indicado. 23 (2018). A importância deste trabalho é estudar o outro lado da transexualidade. Em vez de se pautar no preconceito e dificuldade que as pessoas trans enfrentam, apesar de fazer uma crítica a como a sociedade vê os/as transexuais, o texto propõe um estudo a priori da transgeneridade, sem o julgamento da sociedade e com a perspectiva científica desse fenômeno, que passou a ser estudado a partir do século XX. Busca-se com essa pesquisa uma maior visibilidade para as pessoas trans, mostrando que suas identidades não são apenas construídas socialmente, mas, sobretudo, individualmente. É a chamada “identidade de gênero autopercebida”, que não é influenciada nem pela família nem pela genética, mas pela própria pessoa, que, em contrapartida, se espelha em algum ator social, seja a mãe ou o pai ou qualquer pessoa. Por isso dizem que o papel de gênero está no cérebro, pois somos únicos. Por dentro somos seres fisiológicos (“sexo biológico”), mas por fora somos seres sociais, e o fato de estabelecer a roupa que vamos vestir todos os dias, seja um vestido ou um paletó, diz apenas de nossa “expressão de gênero”. Já 24 a “orientação sexual” diz respeito a atração, ao passo que “identidade” e “expressão” dizem respeito a como encarar o mundo. “A sexualidade, assim como a orientação sexual, não está instalada somente no genital, tampouco a identidade de gênero, que também não pode ser confundida com a expressão de gênero. Contudo, não é possível ignorar e dizer que esses conceitos não se atravessam ou que não estejam relacionados - o que não significa dizer que dependam um do outro17.” 1.1 O Fenômeno A partir dos anos 1980, já no fim da ditadura militar no Brasil, voltou da Inglaterra a atriz Roberta Close (1964-), a primeira mulher transexual brasileira a ser publicamente famosa. Os jornais da época estampavam: “A mulher mais bonita do Brasil é um homem”18. Foi o primeiro caso de destaque de uma mulher transexual que 17Disponível em:< http://www.meupalco.com.br/2015/09/>. Acesso em 14 jul. 2018. 18 Disponível em: http://anos80incriveis.blogspot.com/2010/09/mulher-mais-linda-do- brasil-era-homem.html. Acesso em: 13/07/2018 25 havia feito cirurgia de transgenitalização no exterior, já que aqui era configurado como crime de mutilação genital. Porém isso não impedia que pessoas transgênero o fizessem clandestinamente. O caso de João W. Nery (1949-2018), contado em sua autobiografia “Viagem Solitária” (2011), que retirou os ovários e as mamas e foi proibido de exercer a profissão de psicólogo, já que o diploma foi conseguido com os documentos femininos, e a lei concebia que “mudar o nome” para adequar a identidade de gênero era crime de dupla identidade. João W. Nery, que dá nome ao PL 5.002/2013, de Jean Willys (PSOL-RJ) e Érica Kokay (PT-DF), que regulamenta a identidade de gênero, faleceu aos 68 anos devido a um câncer no cérebro, com o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). A dita manchete sobre Roberta Close apareceu em 1984. O país vivia um momento de redemocratização, mas os direitos dos homens e mulheres trans estavam longe de ser levados em consideração. Roberta só conseguiu mudar seus documentos já nos anos 2000, ou 26 seja, até aquele momento, ela era vista como “um homem que virou mulher”. Ou nem isso, “um homem que pensa que é mulher”. 1.2 A Lei A sociedade demorou a pautar e o CFM (Conselho Federal de Medicina) custou a lançar resoluções regulando o atendimento às/aos transexuais. A primeira delas foi a Resolução 1.482/97 e, atualmente, a Resolução vigente é a 1.955/2010, que revogou uma posterior à de 1997: RESOLUÇÃO CFM n° 1955/2010. (Publicada no D.O.U. de 3 de setembro de 2010, Seção I, p. 109-10). Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM nº 1.652/02. As resoluções são muito parecidas. A primeira tem apenas quatro artigos, que entendiam o “transexualismo” como um transtorno mental, e apresentava como pré-requisito: 3. A seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe 27 multidisciplinar constituída por médico-psiquiatra, cirurgião, psicólogo e assistente social, obedecendo aos critérios abaixo definidos, após dois anos de acompanhamento conjunto: - diagnóstico médico de transexualismo; - maior de 21 (vinte e um) anos; - ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia. A mais nova resolução (2010) já diz: Art. 3°: “Que a definição de transexualismo obedecerá (...) 1. Desconforto com o sexo anatômico 2. Desejo de eliminar genitais e adquirir características sexuais secundárias do sexo oposto. 3. Permanência desse desejo por no mínimo dois anos. 4. “Ausência de outros transtornos mentais” (Leia-se “Ausência de transtornos mentais”). Quanto aos pré-requisitos, só muda de “diagnóstico médico de transexualismo” para “diagnóstico médico de transgenitalismo.” 1.3 A Batalha Em 1910, o médico alemão Magnus Hirschfeld (1868-1935) escreveu um livro intitulado Die 28 Transvestiten [The Transvestites - The Erotic Drive to Cross-Dress] para designar os chamados cross-dressing, ou seja, as travestis. Porém a palavra em português significa muito mais que "vestir-se atravessado", é uma definição de luta dessa classe que se identifica com o gênero feminino. Por isso não existe "o" travesti, o que a mídia e a literatura médica insistem em ignorar. Em 2015 foi proposta na Câmara Federal a alteração de alguns artigos do Plano Nacional de Educação (PNE) de 2010 para enfatizar o combate à discriminação de identidade de gênero e orientação sexual nas escolas brasileiras. Porém o setor reacionário da sociedade se pôs contra, inventando que o governo imporia uma “ideologia de gênero” desde a educação infantil. No Rio Grande do Sul, o PEE (Plano Estadual de Educação) foi aprovado suprimindo as menções a “identidade de gênero”, presentes em 14 artigos do documento.19 Seus algozes acreditam que “discutir sobre gênero” fará as crianças serem sexualizadas mais cedo, 19Disponível em: <http://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/assembleia-gaucha- retira-direito-identidade-de-genero-do-plano-estadual-de-educacao- 16533802>. Acesso em: 20 jun. 2015. 29 ensinando-lhes pornografia, a fazer sexo e dançar músicas eróticas. Em 2013, o deputado Jean Willis (PSOL-RJ) e Érika Kokay apresentaram um projeto de lei para substituir o art. 58 da lei 6.015/73, que dizia: "Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios. (Redação dada pela Lei nº 9.708, de 1998)." Com a nova lei, ficaria: "Art. 58º. O prenome será definitivo, exceto nos casos de discordância com a identidade de gênero autopercebida, para os quais se aplicará a lei de identidade de gênero. Admite-se também a substituição do prenome por apelidos públicos notórios." Porém, até o momento, a lei não foi modificada, o que mantém a população trans marginalizada. O PL 5.002/13 (Também chamado Lei João W. Nery) ainda diminuiria a idade mínima para cirurgias de adequação de gênero para 18 anos (atualmente é aos 21) e facilitaria seus trâmites. 30 1.4 O Conceito “Trans” é um prefixo que em latim significa “do outro lado”20. Serve para identificar pessoas que nascem com um sexo determinado fisiologicamente, mas que pertencem mentalmente ao sexo oposto.O asterisco é usado quando não se especifica o gênero (masculino ou feminino). Harry Benjamin (1885-1986), em The Transsexual Phenomenon [O Fenômeno Transexual] (primeira edição em 1966), identifica vários tipos de “sexos”: Morphological ou anatomical sex; gonadal ou genital sex; endocrine ou hormonal sex; legal sex; e, ainda, o physichological sex, que corresponde à identidade de gênero do indivíduo. O primeiro (sexo anatômico) é a fisiologia do indivíduo; sexo genital ou gonadal é o critério principal na definição do gênero do recém-nascido; sexo hormonal é o que determina as características secundárias um pouco mais tarde na vida; 20 Disponível em: <http://espectrometria-nao- binaria.tumblr.com/post/95841791923/gloss%C3%A1rio-termos- sobre-g%C3%AAneros-sexualidades>. Acesso em 13 jul. 2018. 31 sexo legal é aquele registrado no cartório e aceito pela sociedade, (atualmente já se pode mudar o sexo legal sem alterar o sexo genital); por último, o sexo psicológico é o filtro através do qual vemos a sociedade, já que gênero está no cérebro e a sexualidade está no coração. Por exemplo: Uma pessoa classificada como mulher por ter uma vulva pode sentir-se do gênero masculino, assim como um indivíduo que nasce com pênis pode reconhecer-se socialmente como mulher. Elas/eles são, portanto, transgêneros. Para a biociência, “sexos” existem dois: macho ou fêmea (além dos intersexos, vulgo hermafroditas). Gênero é o que pertence ao universo masculino ou feminino; papel de gênero (role gender) é o que a sociedade classifica como “de homem” ou “de mulher”. A transgeneridade ativista prefere que a pessoa seja tratada pelo gênero com que se identifica; já a Medicina usa o adjetivo do sexo biológico do indivíduo para categorizá-lo. “Transexual feminina” é, para as Ciências 32 Médicas, o homem trans para o movimento LGBT, e “transexual masculino”, a mulher trans.21 1.5 A orientação O psicólogo norte-americano Alfred Kinsey (1894-1956) desenvolveu uma tabela que indica que 50% dos homens são exclusivamente héteros, 46% têm preferência pelos dois sexos, mas em graus diferentes, e apenas 4% da população masculina são “homo[s] exclusivo[s]”. Essa classificação vai de 0 a 6 sendo zero o primeiro grupo; 1-2 bissexuais com preferência por mulheres; ‘3’ “homo e hétero na mesma proporção” e ‘6’ os exclusivamente homossexuais. O X corresponde ao assexuado. Trangêneros e travestis podem se encaixar em 21 LGBT: movimento Lésbico-Gay-Bissexual-Transgênero. Fazendo uma crítica a tal movimento, que de certo modo exclui o gênero queer, que não tem as mesmas reivindicações dos demais LGBTs: cirurgia de redesignação e casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo (SILVA, 2016), notamos a necessidade de falar em movimento LGBTQI (queers e intersexos incluídos/as), no sentido em que aqueles/as que não se encaixam na binaridade de gênero possam pautar sua agenda frente a uma sociedade heteronormativa que não respeita a diversidade de gênero e não se identificam nem como homem nem como mulher. 33 qualquer um dos três; até porque existem trans que são héteros (ou seja, gostam de pessoas cis22 heterossexuais ou de outros trans com identidade de gênero oposta) e transgêneros que são gays. Uma relação de um homem trans e uma mulher trans é considerada “heteroafetiva”, enquanto mulher trans com mulher trans e homem trans com homem trans é homoafetiva. O sexo biológico não determina a orientação sexual, e sim o gênero. 22 Cisgênero, ou simplesmente “cis”, é o indivíduo que aceita seu próprio corpo. Já o transexual ou a travesti, como já foi dito, está “do outro lado”, ou seja, pertence ao gênero oposto ao determinado pelo nascimento. Cis em latim significa “deste lado (e não do outro)”, segundo o site “Transfeminismo”. Disponível em: <https://transfeminismo.com/o-que-e-cissexismo/>. Acesso em 13 jul. 2018. 34 1.6 A Origem Os termos Cis e Trans são emprestados da biologia: → Arranjo cis: Em um cromossomo existem apenas alelos dominantes (AB), enquanto no outro encontramos alelos recessivos (ab). → Arranjo trans: Em cada cromossomo homólogo encontramos um alelo dominante e outro recessivo (Ab/aB). Tabela 2. Crédito na imagem:https://www.sobiologia.com.br/conteudos/Genetica/2leidem endel5.php Pela Lei de Mendel, traduzida para a teoria do gênero, o indivíduo “cis” é aquele que tem o gênero e o sexo congruentes: A com B e b com a (maiúscula com 35 maiúscula e minúscula com minúscula). Já no transexual, o sexo e o gênero são divergentes: A com b e a com B (maiúscula com minúscula e minúscula com maiúscula). 1.7. A Transgeneridade em si Já apresentamos Alfred Kinsey com seus estudos pioneiros sobre orientação sexual. A seguir, estudaremos a origem do termo transsexual [transexual] e como ele se popularizou, deixando o armário e as alcovas para virar um fenômeno social no mundo inteiro. Na esteira da tabela de Kinsey, Harry Benjamin criou uma tabela diferenciando tipos de “transexualismos” (sic), o que ele chamou de “fenômeno transexual”. 36 Tradução Livre Tipo Caracterização 1 Fetichista 2 Travesti (TV) de baixa intensidade 3 TV feminofilo23verdadeiro 4 Típico assexual 5 Típico transgênero (transgender) 6 Transgênero sexual intensivo típico 7 Transexual (TS) operado Fonte: Benjamin (1999) pg. 18 Obs: Não existe a palavra feminofilo em português Harry Benjamin não acreditava na psicoterapia como forma de tratar as/os transexuais. A transexualidade seria um fator clínico, e apenas hormônios e a cirurgia poderiam resolver seus conflitos 23 femiphile em inglês e feminofilo em espanhol vem de feminofilia: característica daquele(a) que sente atração (philia) por mulheres. Infelizmente não temos essa palavra ao menos no novo Aurélio de 2009. Travestis “feminófilos” são aquelas que se vestem de mulher, mas têm atração pelo sexo feminino. Diferente dos fetichistas, o “True femiphile TV” não tem propriamente “tesão” em se travestir. No CID-10 caberia nessa definição o diagnóstico travestismo bivalente: F64.1 37 de gênero. Hodiernamente, admite-se a importância da psicoterapia e da psicanálise para o autoconhecimento e descoberta de gênero ou orientação autopercebida, lembrando que um psicólogo ou um psicanalista, segundo o Conselho Federal de Psicologia (CFP), não podem induzir ou ofertar tratamento de “cura” para o homossexualismo (sic) e a transexualidade. Como já foi dito, em 1973, a APA (Associação Americana de Psiquiatria, sigla em inglês), retirou a agora chamada “homossexualidade” da lista de doenças psíquicas. No Brasil, entretanto, só deixou de ser patologia em 1990. Recentemente, em 24 de abril de 2019, o STF concedeu liminar ao CFP reafirmando a resolução 01/99, que proibia a oferta de tratamento de reversão sexual “uma vez que a homossexualidade não é patologia, doença ou desvio”24. Infelizmente, mesmo as pessoas trans repudiando o termo “transexualismo”, ainda há médicos que dele se utilizam para falar dessa “doença” que antes era considerada “transtorno de identidade de gênero” (DSM-IV, publicado em 1994), e agora, com o novo 24 Disponível em:< https://site.cfp.org.br/stf-concede-ao-cfp-liminar- mantendo-resolucao-01-99/>. Acesso em: 01 maio 2019. 38 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), de 2012, é chamada “disforia de gênero” (genderdysphoria). Como dissemos mais acima, agora se fala em “diagnóstico médico de transgenitalismo”. Atualmente há um movimento para tirar o transexualismo (sic) amenizado pelo DSM-V como “disforia de gênero” da lista de doenças. O CID-11 já o tirou da “saúde mental” para a “saúde sexual” como “incongruência de gênero”. Porém na contramão da total despatologização dessa disforia: “inquietação, mal-estar provocado por ansiedade [oposto de euforia]” (Aurélio, 2009), há ainda, segundo Carla Machado, em Arilha M. (2010), pg. 161: “pessoas que se autodenominam portadoras de um desacordo biológico, identificando-se como mulheres ou homens que nasceram com uma disfunção biológica de genital e endocrinológica. Dessa forma, essas pessoas entendem-se portadoras de certa patologia do corpo, e não do gênero, como a medicina impõe.” (grifos nossos). 39 Baseado na publicação do MEC (Ministério da Educação e Cultura), “Escola Sem Homofobia” (2009), que relata que “se permanecermos presos a uma visão que insiste na ideia de dois sexos mutuamente exclusivos e incomunicáveis”, nunca sairemos do binarismo “homem é homem e mulher é mulher”, propomos um novo modelo de classificação de gênero, não exclusivista, mas “complementarista”. É o que chamamos de Relógio de Gênero, que considera o meio-dia representando o genótipo masculino (XY) e 6h, o feminino (XX). Entre eles há uma gama de identidades de gênero que vão desde a travesti ao homem trans não operado; da drag queen ao drag king, do demi boy à demi girl. A seguir apresentamos nossa visão do relógio, com as devidas explicações dos conceitos que podem gerar dúvidas: 40 Legenda: 12 – XY (masculino) (Ser humano “macho”) (gay ou hetero)25. 01 – Drag Queen (Homem biológico que interpreta um papel feminino em performances). 25 É importante definir “gay ou hetero” pois a sociedade considera os homossexuais “efeminados”. Só que, na definição de gênero, não há nenhuma diferença entre um deles com um hetero, se se vestem masculinamente. Podem ter a “expressão de gênero” feminina; mas isso não significa necessariamente que são gays. Ou seja, um homossexual é um Homem (com H). O mesmo vale para as lésbicas (com o feminino). 41 02 – Demi boy (Pessoa que, independente do genótipo, representa um papel masculino e neutro ao mesmo tempo). 03 – Neutro (XY) (Neutrois, em inglês, que não se define como homem nem mulher, mas algo entre eles. Por isso se situa no “meio” do relógio). 04 – Travesti (Homem biológico que se traveste para ter prazer sexual. A diferença com as mulheres trans é que não tem complexo com seu genital. No Brasil, “travesti” é uma palavra política, pois abarca a luta das profissionais do sexo, reduto de grande parcela dessa população). 05 – Mulher trans operada (Homem biológico que se reconhece no gênero oposto, mas que procura também fazer a cirurgia da transgenitalização26; diferente da travesti, que visa apenas alterar as características sexuais secundárias – ganhar peito e perder a barba. 06 – XX (feminino) (“Fêmea” humana) (gay ou hetero). 07 – Drag King (Mulher biológica que se veste de homem em performances). 26 É o procedimento cirúrgico que ou “inverte” o pênis e o torna uma vagina, ou implanta um falo feito do tecido do próprio paciente. 42 08 – Demi girl (Pessoa que, independente do genótipo, se vê como menina e neutrois ao mesmo tempo). 09 – Neutro (XX) (Indivíduo que não se vê como homem ou mulher, mas como algo entre eles). 10 – Homem trans não operado (Seria a travesti com genótipo feminino, mas como esse segmento não tem uma classe organizada como as prostitutas, não há identificação política desse gênero). 11 – Homem trans operado (A única diferença com um homem biológico é o genótipo). A deficiência desse relógio é que não considera os gêneros não binários, mas ousamos dizer que eles “tangenciam” o círculo, e um/a gender fluid funciona como um relógio que não para de girar, transitando entre os gêneros. É o caso do/a Y que contaremos a seguir. O que chamamos de “transgenderização” é a aceitação dos transgêneros e a respectiva inserção desses indivíduos na sociedade. 43 2. MEU NOME É “Y” Estava um dia chuvoso. Eram 5h da manhã quando Y e Lucas voltavam para casa nas ruas desertas e molhadas do Grajaú. Tinham deixado uma amiga no ponto de ônibus, e quando chegaram, um outro amigo, Arthur, estava dormindo. Comeram um arroz soltinho e foram dormir também. Lucas era o dono da casa, estavam ali para comemorar o término das aulas, tinham acabado de completar o 2° período de licenciatura em História na Universidade Protágoras. Foi naquela estiagem da manhã. Já estava tarde, o Arthur já tinha ido embora, almoçaram um prato de feijão com arroz com a boca esturricada dos dois maços de cigarro de palha que haviam fumado na noite anterior, quando de repente Lucas perguntou a Y: “Você quer ter uma relação homoafetiva? Sabe, uma experiência.” Surpreso/a, Y perguntou: “Você quer me beijar?”. Ele disse que não, queria apenas “experimentar”. Foi tomar banho e Y ficou mexendo no celular, pensando na relação que teria dali a uns instantes. 44 Já excitado/a na cama, depois de umas investidas no seu sexo, pediu: “Quer tentar me comer?” Empertigou-se no colchão e o aguardou pegar a camisinha no outro cômodo. Ele voltou nervoso, com a camisinha na mão, mas dizendo que não ia rolar. Y disse tudo bem e voltou a investir no seu falo, mas percebia que ele continuava aflito. (Depois Lucas confessou sentir asco daquilo tudo). Quem visse Y na sua infância não diria que ele/a fosse “diferente”, e apesar de não ser alvo do interesse das meninas da sua idade, Y nunca teve orientação homossexual; interessava-se por meninas acreditando ser um garoto e, como todo garoto que conhecia, se interessava por garotas. Os meninos que não “chegavam” em outras meninas deviam gostar de garotos. Achava um deles lindo, mas nunca criou coragem de se declarar. Pedia para que os amigos “chegassem” nas garotinhas para ele, sendo que a primeira vez que conquistou uma menina sem intermediários foi na festa junina da escola, aos quinze anos, com uma garota um pouco mais nova. 45 Hoje Y acredita ter gênero fluido, às vezes se sente mulher e às vezes homem. Quanto à orientação sexual se declara bissexual. Sua tendência homossexual vem desde os 16 anos, quando abordou um colega antigo pensando ser ele gay também. Mas nunca teve sua sexualidade definida sendo que somente aos vinte anos teve uma relação com outro homem. Quando voltou às aulas, já no 3° período, teve uma briga com o Lucas. Saiu dela muito mal e teve uma crise de choro no dia seguinte. Dois dias depois, manteve uma conversa com ele por meia hora no telefone, em que acertaram as arestas e ele aconselhou Y a se assumir, já que para Lucas ele era “submisso”, “bicha-louca” e “supersensível”. Isso deu uma reviravolta em Y. “Bicha- louca” sabia que não era, mas foi a primeira vez que alguém lhe atribuía características estereotipicamente femininas assim deliberadamente. Desligou o telefone acreditando que a conversa foi melhor do que com qualquer psiquiatra do mundo. Para Y, Lucas havia aberto sua mente para o que sempre esteve lá: a identidade feminina. No passado, colocava fotos e nomes 46 femininos nos seus perfis de redes sociais como Dakota Fanning. Lindsay Lohan e Winona Rider. Mas nunca alguém lhe perguntou se queria ser chamado assim. Houve tempos em que pensava todos os dias antes de dormir que só tinha dois caminhos: o sexo feminino ou o suicídio. Chegou até a cogitar fazer a operação de transgenitalizaçãoquando fizesse 21 anos, mas como as pessoas o chamavam apenas pelo seu nome de cartório, e ninguém, nem seu psicólogo ou sua própria mãe, nunca enxergaram quem realmente era, aceitou todos esses anos ser chamado pelo gênero que lhe foi designado e interpretar o papel de gênero masculino a maior parte do tempo, exceto nas redes sociais. Seu nome feminino era visto como um pseudônimo, ninguém nunca o chamou de "Dakota" na escola ou fora da Internet, e nem sequer ele cogitava em se assumir assim na vida real. Ele mesmo foi esquecendo sua vontade de mudar de sexo, e, com 21 anos teve sua primeira paixão homossexual (já que Lucas era hétero). No mesmo ano conheceu Lucas e Arthur no curso de História e no fim do semestre teve sua relação com o primeiro. Depois da conversa pelo telefone, 47 decidido que era mulher, começou a se vestir como tal. Começou a tomar hormônios femininos no dia 16 jun. 2015, um dia antes do chá-de-panela do seu melhor amigo, um homem cis, heterossexual e futuro historiador, como ela. Ele era baixo e nesse dia estava menor que sua noiva, por conta do salto alto que a moça usava. Y percebeu imediatamente o poder de uma mulher de salto. Baixinha e acanhada no dia do noivado, agora mostrava confiança e apagou qualquer superioridade que ele poderia ter sobre ela. Numa conversa com uma amiga, esta lhe disse que devia se inspirar nas mulheres trans. Só que Y não as achava tão bonitas quanto as mulheres cis. Mas depois se lembrou da Ariadna, participante do Big Brother Brasil 11, a primeira trans-mulher de que teve notícia, e a achava uma das mulheres mais bonitas que já vira na vida. Depois conheceu Laerte, Léa T, Laverne Cox e muitas outras, e quando teve seu primeiro contato com o texto de Daniela Andrade (ativista trans), se identificou definitivamente com essas mulheres, tão lindas e 48 emponderadas como qualquer outra cisgênero que um dia quis ser. Assim termina o relato de uma pessoa que desde a adolescência se indaga sobre seu verdadeiro gênero. É a razão do título desse livro: “Cis ou Trans: Buscando uma Identidade”, a qual é um conflito, uma luta de todos/as gender fluid do mundo. Lutamos pela “transgenderização”, para que cada vez mais, gêneros não conformistas sejam reconhecidos socialmente. 49 3. JOHN/JOAN CASE Mostramos pessoas como Roberta Close e João W. Nery que decidiram mudar consciente e voluntariamente suas identidades de gênero percebidas. O caso abaixo aconteceu com uma criança que foi designada como do sexo masculino, mas que, por conta de um acidente, foi levada a crer que era uma menina. Em 2000, o jornalista da revista “Times”, John Colapinto (1958-), trouxe essa história a público e causou muita polêmica com o relato da experiência que foi considerada um sucesso pelo médico responsável, segundo seus relatórios em “Man & Woman, Boy & Girl” (EHRHARDT, MONEY, 1973). Em 22 de agosto de 1965, na cidade de Winnipeg, Canadá, nascem os gêmeos Bruce e Brian Reimer. Porém um acidente, quando eles tinham oito meses, marcou suas vidas futuras. Um urologista, num procedimento de circuncisão, mutilou o pênis de Bruce. Segundo o especialista, nenhum reparo cirúrgico poderia ser feito. Os familiares procuraram em vão outros médicos até que 50 ouviram o Dr. John Money (1921-2006) no programa de televisão canadense “This Hour Has Seven Days” [Esta Hora Tem Sete Dias] e resolveram procurá-lo. Entraram em contato com o sexologista, e ele sugeriu que o visitassem em Baltimore (EUA), em sua clínica na Universidade de Johns Hopkins (John Hopkins Gender Identity Clinic). Segundo o psicólogo e sexologista especializado em transexualidade John Money, a criança, nos dois primeiros anos de vida, não tem um gênero preestabelecido. Se a família de Bruce e Brian criasse Bruce como menina, por não ter pênis (já que foi mutilado), assim ele se identificaria com o sexo feminino. Sua teoria de “neutralidade de gênero” (gender neutrality) poderia ter uma comprovação nesse caso que ficou conhecido como John/Joan case. Para John Money, haveria o nature versus nurture [inato x adquirido]; o gênero, nesse ponto de vista, é “adquirido”, ou seja, construído socialmente. Para alguns autores (MONEY e TUCKER, 1981), a construção da identidade de gênero requer a identificação com um dos sexos (homem ou 51 mulher). Não se pode, como o caso John/Joan confirmou, criar uma mulher em um organismo masculino. A identidade de gênero só se faz necessária quando nos deparamos com uma sociedade que não consegue ver fora da caixinha binária homem/mulher. Paul Beatriz Preciado, no Manifesto Contrassexual (2014), é favorável à abolição dos gêneros, ao reconhecimento do corpo como “produtor de dildos27” e à renúncia à propriedade dos “fluxos seminais” ou do produto do útero. Assinando o “contrato contrassexual”, o indivíduo renuncia a quaisquer “laços de filiação (maritais ou parentais)”. Renuncia à “condição natural” de homem ou mulher, para se tornar apenas um “corpo falante”, reconhecendo as outras pessoas também como corpos falantes. Portanto a identidade de gênero nessa sociedade, que substitui o contrato social pelo contrassexual, seria abolida. O sexo genital não nos diz nada quanto à orientação sexual ou identidade de gênero, assim como 27 Dildo é um objeto cilíndrico, podendo representar um pênis ou um símbolo sexual. Em Preciado (2014) há uma explicação de “como masturbar um braço”. 52 nem o sistema hormonal ou morfológico; apenas o psychological sex (sexo psicológico) nos diz o que somos, e, se for assim, existem tantos sexos como existem pessoas (DELEUZE e GUATTARI apud BUTLER, 2009)28, pois cada uma/um é unique, como se diz nos países de língua inglesa. Voltando ao caso de Bruce Reimer (John/Joan case), John Money retirou os testículos de Bruce e orientou a família para jamais revelar que ele havia “nascido homem”, e foi decidido que ele (agora ela) se chamaria Brenda. Brenda cresceu orientada pelo psicólogo/sexologista juntamente com seu irmão Brian, que também desconhecia a condição da irmã. Numa sessão em conjunto, Money pergunta “quem mandava” entre os dois. Brenda responde: “Brian, porque ele é menino”. Brian é questionado se ele “revida” [fight back] quando as outras crianças o provocam, e ele diz que sim. John pergunta se Brenda também “revida às vezes” e ela 28 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018, p. 206. 53 diz que não. Por ser uma menina e “girls don´t fight back, do they?” Brian conclui dizendo que as garotas não revidam porque “batem fraquinho” [don’t kick very hard]. Numa sessão individual, Brenda é questionada por Money o que diferencia um menino de uma menina e ela responde “I don´t know” [Eu não sei]. Mesmo com a insistência do psicólogo, sugerindo que os garotos tinham uma “coisa” entre as pernas e as garotas não, Brenda continua enfaticamente: “I don´t know”. Está claro que Bruce/Brenda, nessa época com sete anos, está em conflito com seu verdadeiro gênero. Ela gosta de brincar com os bonecos de Brian e por isso não tem muitas amigas na escola, e os meninos não a incluíam em suas brincadeiras por causa de sua aparência feminina. Em mais uma sessão, John Money tenta convencer Brenda e Brian a tirar a roupa e tirar fotos para ela ver as diferenças entre os meninos e as meninas. Brenda sai dali com asco do médico e anuncia a sua família que preferia morrer a voltar a vê-lo. 54 Foi então que, segundo a família, Bruce/Brenda iniciou seus desejos suicidas que acabarão portirar sua vida quando tinha 38 anos. Antes disso, John Money sugere que a família enfim revele o “segredo” de Bruce/Brenda (nessa época com 15 anos) e quem é o mais atingido é Brian, que desenvolve esquizofrenia e morrerá de overdose de medicamentos psiquiátricos em 2002. Por outro lado, a partir dali, Brenda começa a sentir pela primeira vez “um pouco de esperança”. Muda seu nome para David Reimer e se casa com Jane Fontaine em 1990 (aos 25 anos), além de fazer uma cirurgia de transplante de pênis. Porém o jovem David se sente frustrado em relação à esposa por não poder dar-lhe filhos (já que ele havia sido castrado). E com a morte de seu irmão congênito acaba tirando a própria vida com um tiro de pistola a cinco de maio de 2004. A família ainda culpa o médico John Money pelo suicídio, mas seu ex-aluno Richard Green (1936-) garante que Money fez a escolha certa naquele tempo, e que ele faria o mesmo hoje. 55 4. IDENTIDADE SEXUAL Ingenuidade do seu pai e da sua mãe, que assim como John Money no caso de David Reimer, acreditavam que podiam definir para você um papel de gênero para a vida toda. É costumeiro dizer: “Fulano nasceu menino, mas virou mulher”. Simone de Beauvoir já dizia: “Não se nasce mulher, torna-se”. Com o gênero masculino se dá o mesmo. A designação do sexo no nascimento é só baseada no genital do bebê [gender assignment at birth]. Nascemos, e nossa família nos impõe aquilo que por incrível que pareça está respaldado na lei. Para comprar presente, principalmente para bebê, não se pergunta do que a criança gosta e sim se é menino ou menina! No mercado há artefatos e roupas separados por gênero, mas parecem ignorar o neutro, o agender, o intersexo, e assim por diante. Como se tudo se resumisse ao binarismo e à falsa dicotomia entre masculino e feminino. Esses são gêneros que se complementam como yin e yang, mas a vida não se resume a isso. Existem as forças divergentes que não se encaixam no padrão dualista, os gêneros não binários; que nem por isso estão 56 em desarmonia com a natureza. Imagine se todos/as fôssemos héteros e gerássemos uma grande quantidade de filhos? O mundo iria entrar em colapso! A própria infertilidade é uma forma natural de controle da população, e os intersexos (vulgo hermafroditas) estão aí para mostrar que o homem e a mulher têm a mesma origem e são em muito quase idênticos. Como uma fábrica que trabalha com a mesma matéria-prima na confecção de carros diferentes; por vezes pode rolar uma confusãozinha e trocarem-se algumas peças e deixá-los meio “ambíguos”. Porém nem tudo no ser humano tem explicações físicas ou mecânicas. O diagnóstico de uma doença mental não se dá por exames fisiológicos, e sim pela subjetividade de cada paciente. Um/a transexual geralmente não tem nenhuma discrepância hormonal ou genética, apenas uma identidade de gênero divergente daquela que se espera ao nascer. Ninguém, quando a filha (ou filho) nasce, pensa: “Ela vai ser uma transexual primária” ou “Ele vai ser um travesti bivalente”. Todo mundo crê que se forem educados pelos padrões vigentes, eles/elas crescerão de maneira saudável e serão 57 pessoas “normais” no futuro. A palavra já indica: Normal: “o que está dentro da norma”, no caso, a heteronormatividade. Engravidar “por acidente” é normal? “Brincar” de matar e morrer é normal? Podem até estar no campo do instinto de sobrevivência ou preservação da espécie, mas, por favor! Somos seres racionais; a cabeça está aí para ser usada. Tudo bem se alguns a usam para entender coisas fúteis, e que o uso da violência às vezes é justificável e necessário. Entretanto não podemos esquecer da violência institucional ou velada. Seja da tropa de choque, do professor explosivo ou do apresentador inescrupuloso; todos justificam o revanchismo e a resistência da outra parte. O sexologista John Money supunha que aos dois anos de idade a criança “fechava as portas” de sua identidade sexual. Dizia que apenas uma travesti com duas personalidades podia “reverter a direção após os primeiros anos”. (MONEY, 1981, pág. 104). Mas o que é trans*? O que essa palavra significa para nós? Falamos de pessoas transexuais como João W. Nery e Roberta Close. Mas o que isso quer dizer? 58 A primeira vez que a palavra surgiu na literatura científica foi em 1949, com David Cauldwell (1897- 1959), num ensaio intitulado “Psycopathia Transexualis”. No entanto, é atribuído a Harry Benjamin, a difusão do termo “transexual”. Em The Transsexual Phenomenon, disserta sobre o “transexualismo” e “travestismo”. Ele acreditava que para os “verdadeiros transexuais” (sic), apenas a cirurgia de transgenitalização podia causar certo alívio, sendo que a psicoterapia era praticamente inútil nesses casos. (BENJAMIN, 1999). Quanto aos “transvestites”, reconhece também os “verdadeiros” (true TVs), que NÃO se travestem apenas por fetiche, mas que também NÃO sentem necessidade de passar por cirurgia de reconstituição genital. Em 1910, o médico alemão Magnus Hirschfeld (1868-1935) escreveu um livro intitulado Die Transvestiten [The Transvestites – The Erotic Drive to Cross-Dress] para designar os chamados cross-dressing, ou seja, as travestis. A palavra em português, porém, significa muito mais que “vestir-se atravessado”, é uma definição de luta dessas pessoas que se identificam com o 59 gênero feminino. Por isso não existe “o” travesti, o que a mídia e a literatura médica insistem em ignorar. 60 CONCLUSÃO O estudo do caso John/Joan possibilitou conhecer um pouco mais o que antes estava encoberto da ciência. Apesar de basicamente só os testículos produzirem testosterona (o principal dos hormônios masculinos), como esse estudo propôs esclarecer, a “identidade de gênero” está muito além de hormônios e genitálias, ela é um construto individual de cada um e, sem medo de errar, podemos reafirmar: existem 7 bilhões de “gêneros” ao redor do mundo. O Facebook estadunidense, por exemplo, dá para seus usuários a opção de 52 gêneros diferentes29. O binarismo feminino/masculino, boy or girl, não passa de uma imposição cultural, baseada em argumentos tradicionalmente consolidados como o utilizado por altos manuais de Medicina como o DSM-5, que, ainda em 2013, categoriza a transgeneridade como “disforia de gênero”, e pressupõe preferência a “brinquedos 29Disponível em:<https://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/03/52- opcoes-de-bidentidade-sexual-no-facebookb.html> Acesso em 30 out. 2019. about:blank about:blank 61 estereotipicamente” femininos ou masculinos30 para diagnosticar um ser humano que quer apenas viver sua individualidade e brincar e ser o que ela/ele quiser, independente da sociedade castradora e do “espírito de grupo”, que apenas reafirma essa castração, impondo normas de convivência do que é ser “homem” e o que é ser “mulher”, desde a tenra infância. Portanto, a teoria de John Money não se sustenta. Não nascemos “sexualmente neutros”. A presença ou não de um pênis intriga a criança desde o parto, e a chamada “gender assignment at birth” [designação sexual determinada pelo genital do bebê] é sim, como diria Kant, uma característica da “menoridade” intelectual, pois é uma característica mesquinha do ser humano, que ainda não alcançou sua “maioridade”. Como o caso John/Joan mostrou, não dá para você criar a criança para ser de tal gênero. A identidade de gênero é construída (descoberta?) por cada um, à medida que cresce. A identificação não é uma patologia, é a questão central para o desenvolvimento da criança como “sujeito 30Manual diagnóstico e estatísticode transtornos mentais [recurso eletrônico]. Porto Alegre, Artmed, 2014. 62 sexuado” (WOODWARD, 2014); é uma condição! Entretanto o nosso instinto, pervertido pela civilização e principalmente pela “fala”, quer dar nome a tudo que se vê, e categorizar tudo que existe. A separação do que é de homem e o que é de mulher é apenas uma normalidade patológica (arbitrário cultural), doentia. A heteronormatividade considera que tudo que não é homem-hétero-masculino é inferior. A dominação masculina parte do princípio de que a mulher é um ser que precisa ser subjugado, e a própria categorização dela como inferior justifica essa sujeição. Chegamos à conclusão de que a identidade de gênero é construída individualmente e socialmente, se espelhando nos papéis sociais com que nos identificamos. E, repetindo, não podemos “moldar” nossos filhos e filhas para serem quem nós queremos que sejam. O que devemos fazer é respeitar as identidades de gênero. Um menino pode ser menina ou uma menina pode ser menino. Gênero é uma condição, não uma escolha, e não depende da genitália. 63 REFERÊNCIAS AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. (APA). 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