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O QUE É BRUXARIA? A ANÁLISE DE UM FENÔMENO E DE UMA PALAVRA Vision of Faust - Luis Riccardo Falero Não há nada mais simples que falar com seu eu interior mais íntimo, sequer algo mais difícil. As primeiras condições para isso são Segredo, Silêncio e Solidão. Austin Osman Spare, The Zoetic Grimoire of Zos Por caminhos complexos e tortuosos uma palavra nasce em determinado momento histórico e cultural. Sem datação precisa, ou mesmo um mapeamento semântico definitivo da mesma através do tempo, torna-se uma tarefa ingrata encontrar sua real acepção. Se assim é com uma palavra em um ambiente recluso como uma instituição de ensino, uma associação de moradores ou mesmo em uma seita, respeitando certos limites geográficos, linguísticos, paradigmáticos e culturais, o que podemos dizer quando ela atravessa o tempo e o espaço, cruza oceanos e gerações? Como podemos de fato isolar o significado e contexto de uma palavra no presente, ignorando que a mesma não foi utilizada de forma isolada através dessa passagem dos séculos, ou deixando de lado que ela foi o alvo último de perseguições, disputas de poder e até mesmo da derivação natural causada pela reinterpretação em outras culturas? Os meandros da investigação linguística têm, por muito tempo, sido aclamados por autores leigos que falsamente utilizam de tais técnicas de forma completamente parcial e as derivam a bel prazer, atuando de forma intencional e direta com o objetivo de tornarem-se detentores de uma verdade e qualificação irrefutável de forma absoluta. Com isso reproduz-se um comportamento arcaico que acompanha a humanidade na reclusão de informações para tornar o domínio da língua algo exclusivo e elitista, proporcionando a alguns poucos escolhidos o real conhecimento e, ao resto da plebe, é reservada apenas a aceitação dormente do que os detentores da verdade decidirem em seus devaneios mais rebuscados. Ao citar autores que utilizam destas falácias em suas conjugações linguísticas, falo aqui daqueles que procuram particularizar esta palavra em específico, que procuram doutrinar segundo sua própria cartilha quando, no ápice de seu verdadeiro momento de sapiência, cansaram e desistiram de ir adiante com pesquisas do que alegam viver. Esse argumento e estrutura de sistematização de um termo são velho conhecido daqueles que falam e leem. Ele consiste em boa parte da utilização de um falso véu de intelectualidade e erudição, fruto da repetição sistêmica, destas pessoas, de argumentos frágeis que tombam diante de um mínimo critério acadêmico ou técnico. Tomam para si uma figura profética e sacerdotal, inexpugnável e irrefutável por aqueles que o rodeiam e desencorajam qualquer questionamento de suas palavras. Categoricamente atuam de forma a inibir o livre pensar e a capacitação dos que alongam suas fileiras. Muitos irão torcer seus narizes com essa introdução com inúmeras alegações. A esses que, embora eu torça, sei que não serão poucos, recomendo que abram os olhos e procurem se libertar das ilusões de poder que a detenção da verdade de uma palavra parece ter. Deixem sua mente ir adiante, que ela percorra o caminho a que esse fenômenos se propõe, agindo em heresia (em sua real acepção) e em questionamento. Lancem a ideia exposta nesse ensaio à energia flamígera da pesquisa e do desenvolvimento, e assim poderão de fato se dizer questionadores, pesquisadores, para quando então encontrarem a identificação factual poderem proclamar para si mesmos serem bruxos, sem que isso soe falso até mesmo para o ego manchado de vaidade e paranoias. O fenômeno que experimentamos hoje com a abertura da diversidade religiosa rendeu a muitos a realização de ilusões de grandeza, fruto de uma espiritualidade pobre, no qual o caminho da sabedoria e da astúcia trilhado por bruxos e bruxas, nos relatos da antiguidade, os encantou com uma semente de questionamento que foi nublada por estranhas verdades, frutos de um caráter vaidoso e temeroso quanto ao desconhecido, sem o menor questionamento. Esse caminho descrito permitiu que costumes de povos de outras eras fossem redescobertos ou recebessem de volta seus nomes antigos, pelo qual em muitos casos se consagraram e foram demonizados, relegados a uma posição no qual estranhamente sempre se sentiram à vontade, à marginalidade. Com este fenômeno a pós-modernidade pode experimentar o glamour do que os sonhos infantis entenderam, em boa parte de forma verdadeira, ser a autonomia e a ausência de necessidade de seguir um caminho adotado pela maioria dominante. Independendo se agiam na contramão da sociedade, os assim chamados “bruxos” alegaram remontar seus costumes a tempos pré-históricos não mais sob a égide ferrenha dos ditames da Igreja de Roma. Talvez, como todo adolescente aja em sua idade característica, esses muitos invocaram rebeldia em excesso para romper com todos os laços que lhe incomodavam e agiram de forma equivalente ao que alegaram a seus detratores, demonizando e transformando em algo inconveniente, não natural e execrável tudo aquilo que os ligava a esse antigo cárcere. O momento de ruptura no qual essa rebeldia foi invocada pode até ter sido inicialmente passível de nobreza, mas com a falta de um ponto firme sob os pés tornou-se atroz, pérfida e até mesmo elusiva sem jamais alcançar seu objetivo. Ora, essa inversão de papel do oprimido para opressor é claramente compreensível em crianças ou mesmo em humanos não dotados de conhecimento ou verdadeira sabedoria, mas como considerá-la em Bruxos que deveriam ser, em primeira instância, os que procuram harmonia e entendimento de forma holística do que é o mundo e a humanidade? Por um momento essa pergunta ressoa aos ouvidos, pois como estaria a rebeldia não sendo digna de um Bruxo? A resposta é simples: A rebeldia em questão não é executada com dignidade, mas sim de forma exacerbada, tomada no calor do momento onde a balança pende para o lado que a vaidade deseja, onde incertezas são tomadas como certezas para justificar ações infantis de forma agressiva e clamando defender algo que jamais precisou de defesa. Se foi dada vazão a essa atitude, de fato a palavra sabedoria não estava dentre os atributos exercidos por essa pessoa, dessa forma torna-se descabia a alegação dede ser um “Bruxo”, que em maior compreensão significa ser um sábio. Com atitudes semelhantes a estas o mistério de seus atos cai por terra ante a percepção de que agem como falsos gurus da bruxaria, com a intenção torpe de passarem por grandes sábios, por pessoas que teriam ouvido o chamado perene da terra e do sangue. Em minha busca durante os anos por essa informação cheguei a esbarrar algumas vezes nas obras de pessoas que, como descrevo acima, pregam interpretações pessoais que excluem qualquer outra possibilidade, com o objetivo claro de controlar aqueles que aceitam suas meias verdades. Percebi que o caminho da análise da palavra se perde em origens obscuras, não existe um caminho realmente correto que indique a origem da palavra bruxaria. Com o tempo encontrei informações que indicavam uma possível datação no final do século 13, sem indicar de fato a origem dessa alegação. No entanto já a partir de 1396 há um texto em aragonês chamado “Ordinaciones y Paramientos de Barbastro” onde estaria o registro mais antigo da palavra “broxa” que é equivalente tanto a bruxa em português, quanto a “bruja” em espanhol ou “bruixa” em catalão. Sendo todas elas línguas românicas originadas do Latim Vulgar, a busca pela origem da palavra se perde atualmente dados os registros históricos que temos. Sendo assim, assumir o desconhecimento do significado original do termo torna-se a solução mais honesta para qualquer pessoa, estudiosa ou não, deste fenômeno descrito. Como foi dito anteriormente, os que professam significados concretos para a palavra por base em sua origem estão incorrendo em um erro, resta-nos entãodescobrir se tal erro deve-se à falta de conhecimento ou da falta de acesso à informação confiável, ou se é a apenas fruto de um gosto pessoal que pode ser uma tentativa de criar controle com esse significado. O termo bruxaria talvez tenha designado em algum tempo determinadas práticas exclusivas, parametrizadas e até institucionalizadas, no entanto é possível também que seu significado tenha sofrido mudanças com o passar do tempo e a relação entre as culturas, da mesma forma que obeso em sua acepção original designava alguém fraco, delgado. Os processos linguísticos que fazem com que uma palavra possa se originar de uma forma e, em intervalos de tempo irregulares, ter seu significado transformado, não são processos controláveis. Essa falta de controle não é possível a longo prazo, como provam os estudos das línguas, nem mesmo a curto prazo, algo que a globalização (falsamente concebida como um fenômeno moderno) torna possível que mudem até mesmo de um ano para o outro. A exemplo do processo rápido, uma vez que o processo lento pode ser lido com o exemplo de “obeso”, tomemos a palavra “Louco” que indicava até algum tempo alguém com distúrbios mentais de forma unicamente pejorativa mas que, atualmente, é utilizada como gíria para mesurar qualitativamente tanto de forma positiva quanto negativa, dependendo do tom empregado. Logo, traduzir o que bruxaria significa, é uma tradução deveras pessoal e, como tal, carregada de valores, dramas, traumas e sortes de um indivíduo. De face a esse problema, percebi que talvez fosse mais interessante encontrar um significado que abraçasse da forma mais ampla possível todo o fenômeno descrito. Para tal tarefa foi necessário então buscar os vários significados e usos desta palavra e traçar lentamente o que as unia, o que de fato essas situações traziam em comum para apenas então conseguir obter um termo neutro o suficiente. Esta pesquisa demonstrou que foram chamadas de “bruxaria” as práticas de diversos povos, cultos, religiões, seitas e ofícios nos mais diferentes lugares e nas mais variadas faixas temporais. Como exemplo podemos citar com propriedade as traduções bíblicas, os correlatos das palavras latinas “maleficae”, da inglesa “witch” ou mesmo “hag”, passando pelo alemão “hexe” e pelo francês “sorcière”. Com exceção de “hag” que designa originalmente uma criatura não humana, de hábitos canibais, descrita sempre como uma velha feia, que nos trânsitos linguísticos foi traduzida para o português como bruxa (de forma pejorativa indicando uma megera), todas essas palavras designaram em algum momento algo bem parecido. Cultos, religiões, seitas e ofícios que estavam à margem da sociedade dominante e de sua lei, não se prendiam a fenômeno algum que fosse produzido individualmente, de fato, eram apenas fenômenos não aceitos ou não entendidos pela razão “natural” desta dominância em questão. Não importa qual tenha sido o dominante, se foi o senado Grego, o Império Romano, ou até mesmo o Sacro Império Romano-Germânico. Em todos os momentos históricos a sociedade possuía seus caminhos oficiais para questões sociais, médicas, intelectuais e metafísicas, o que caracterizava a bruxa e suas bruxarias era o fato de seus caminhos serem marginalizados e muitas vezes considerados crimes. Como exemplo podemos tomar o sábio que entendia das propriedades mais secretas e intrínsecas das plantas que poderia facilmente compreender o veneficio, a arte de envenenar alguém, até mesmo o ferreiro que guardava sua profissão às sete chaves, mantendo os segredos de seu ofício sobre a temperatura e a têmpera. Em ambos os casos em diversas potências dominantes, temos o exemplo claro de alguém que era portador de um segredo, conhecimento ou dom, que não fosse ordinário, comum a todos. Estes fatos podem ser pesquisados por aqueles que desejarem ir mais a fundo, se espalham pelo tempo e pelo planeta e não são poucos nem sequer limitados, vejamos alguns exemplos; Da antiga babilônia temos registros de tabletes de argila que eram tábuas de maldições e de bonecos utilizados para amaldiçoar ou curar; De Roma e da Antiga Grécia, as figuras clássicas que são lembradas como bruxas que povoam os mitos e os épicos eram capazes de uma gama infindável de sortilégios e feitiços; Na Europa, sob a cristandade, existiam as mulheres que iam à missa, e quando a noite chegava, comungavam com criaturas sobrenaturais consideradas demoníacas. Na Ásia, nas planícies da Mongólia existiam os domadores de cavalos que eram capazes de feitos sobrenaturais nessa arte, o que não era bem visto pelos outros treinadores que não conseguiam aquela qualidade de resultados. Percebemos que estes segredos, dons ou conhecimentos guardados eram fatores que colocavam seus portadores à parte do fluxo comum da humanidade, da tal potência dominante, em uma margem por alguns vista como abençoada, por outros, como amaldiçoada. De frente a essa miríade de evidências, percebi a recorrência de um fragmento ígneo que iluminava e queimava e alimentava todas essas ditas transgressões e as conectavam, era a marginalidade já dita aqui. A forma que encontrei que melhor descrevia todos esses casos foi em uma expressão um tanto quanto estranha ao primeiro olhar “manifestação fenomenológica marginal”. Longe de ser um limitante, mas sim um ponto em comum entre todas essas formas de manifestação estava a marginalidade e, portanto, por ela seria possível entender o significado dado à palavra através do tempo e dos povos. Como dedução simples, percebi que não seria possível então delimitar a uma regra que faz jus ou não ao título de bruxo ou bruxa, pois de fato não existe uma prática que as delimite quanto a religião, culto ou ofício. Enfim um significado fora dado a essa palavra, tão importante que reflete a tristeza de algumas pessoas e as leva a negar a alguém a possibilidade de usar essa palavra em seus devaneios mais estapafúrdios. O bruxo de fato não era sacerdote, sábio ou nada, tal qual a bruxa, pois eles podiam ser tudo isso e muito mais do que foi exposto aqui. Como sucessão de algo contínuo e ininterrupto através de toda história humana, o único fragmento seria a marginalidade, muitas vezes do qual faziam parte pessoas com vida dupla em meio a uma sociedade que não lhes permitia exercer esse diferencial. Um dos aspectos mais fascinantes desse fenômeno é que ele sequer se prendia a classes sociais, e nem mesmo aos não letrados que não eram capazes de perpetuar algo se não por uma tradição oral. As benzedeiras e parteiras são exemplos conhecidos dos que já pesquisaram sobre esse assunto, são manifestações clássicas ultimamente invocadas por aqueles que vêm aceitando-as gradualmente como bruxas, no entanto equivocam-se ao afirmar que somente elas eram exemplos do fenômeno. Por não deixarem registros escritos elas são mencionadas com certa cautela, e ainda assim em caráter último apenas para validar muitas vezes os interesses que não possuem comprovação escrita. No entanto, em alguns casos até mesmo no Clero (vídeo caso do Papa Honório III) e na Realeza de alguns países podem ser encontrados (a exemplo, a casa dos Stuart na Inglaterra) indícios claros de bruxaria. Com tantos exemplos, logo se torna evidente de que a compreensão do que é bruxaria não é possível de ser passada adiante com meia dúzia de palavras, é preciso analisar esses muitos casos com sobriedade e um verdadeiro espírito inquiridor. Fica claro o porquê de tanta discussão, desinformação e brigas a respeito dessa palavra e o porquê de seu uso em casos isolados e muitas vezes não conectados diretamente uns aos outros. Com isso aflora a percepção de que bruxaria é uma palavra ativa, que suas conotações e significados podem ter mudado com o tempo, mas a atmosfera no qual ela é envolta é uma só: Sem dono ou deus, sem código ou ética, de espírito livre e rebelde, liberta das amarras de unificaçãoe da falta de compreensão das diferenças alheias. Através os séculos e da carne, manifesta no sangue ou na terra, Bruxaria é uma palavra que permite a si mesma a permutação através das eras, transforma-se no piscar de um olho e não pode ser capturada em um significado completo, é um termo que libera e que inspira, é uma palavra viva! Ghad Arddhu
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