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1 Minha História Um pouco de tudo que nunca te contei Lua Blanco São 22:26 horas numa quinta-‐feira de Rock in Rio, e não consigo parar de sorrir. Estou sentada no sofá vermelho que amo no estúdio Nave 33 no bairro Recreio dos Bandeirantes. Enquanto milhares de pessoas estão curtindo o show de alguma banda de hard rock a poucos quilômetros daqui, Juliano, meu produtor gaúcho e caprichoso, está debruçado sobre a mesa de mixagem terminando de programar os últimos detalhes de percussão e teclados da base guia para a faixa Rir Por Não Chorar, música que está rapidamente furando a fila e se tornando a minha predileta do meu primeiro álbum solo. Ela foi composta pelo Guga, meu namorado talentoso e teimoso, em longas etapas de erros e acertos, e eu “briguei” por sua perfeição e estrutura ideal durante meses. Na minha opinião, a letra inicial da primeira parte era perfeita, mas o refrão não encaixava. Reprovei várias novas opções de letra até resolvermos mudar também toda a melodia do refrão. Mas, foi só numa madrugada da semana passada, enquanto eu estava no aeroporto de Aracaju com a equipe da minha peça, embarcando para Fortaleza, quando terminava nossa turnê teatral, que o Guga me mandou um WhatsApp que me fez respirar aliviada: ele finalmente havia achado a letra perfeita para o refrão que a gente tanto procurava, depois de inúmeras versões descartadas. Vibrei de felicidade! Dois dias atrás, com a ajuda do Juliano, fechamos a melodia definitiva do trecho novo e nos trancamos no estúdio para encontrar o arranjo que desse vida à oitava faixa gravada do álbum. Agora, ouvindo a música tomar forma exatamente do jeito que imaginei que ela soaria, com todos os detalhes de sonoridade e produção que eu sentia que ela pedia, sei que valeu a pena seguir meu instinto e brigar por essa música. Ela resume minha alma e eu a amo por isso. Estou com o coração em festa! A conquista dessa faixa é só mais um indício claro do que ainda não consegui absorver por completo: meu sonho está se realizando. A lenta percepção desse fato está me levando a pensar na minha vida e nos meus anos de trajetória até este ponto. Está me lembrando de onde este sonho nasceu e como ele evoluiu e amadureceu ao longo dos anos. Vejo mais do que nunca o quão necessário foi a demora, a espera e o aprendizado. Tomada por esta sensação, abri meu laptop trambolhão, que carrego sempre comigo nas minhas vindas quase diárias ao estúdio, e comecei a digitar. Eu sempre me pergunto por que meus fãs me amam tanto. Desde que a novela Rebelde estreou, e o número dos meus seguidores no Twitter começou a crescer, assustadoramente rápido, adolescentes suados e sorridentes começaram a aparecer na 2 entrada dos lugares que eu ia. Me enchiam de presentes, cartas e abraços e eu me perguntava o quê – em tão pouco tempo – os havia levado a agir daquela forma comigo. Eu sei que muita gente se identificou e se apegou ao nosso remake da novela mexicana, e por isso se aproximou. Mas, até hoje, quando eu vejo a quantidade de gente que ficou do meu lado depois que o projeto terminou, e o carinho que essa gente tem por mim, eu me pergunto a razão disso. Por que aquela menina morena de cachinhos em Brasília não parou de tremer e chorar quando me abraçou? Por que a loirinha de óculos que conheci em Fortaleza gastou tanto tempo escrevendo aquela carta de dois metros pra mim? Por que aquele menino em Campinas invadiu o palco da minha peça pra falar comigo na coxia? Por que essa mulher vem todos os dias assistir ao musical que estou fazendo em São Paulo? Quando eu conheço ou encontro com um fã, eu olho bem no olho dele e tento entender por que ele foi até lá só para me ver. Estamos entrando, enfim, em uma nova fase da minha carreira e tudo vai mudar a partir daqui. Essa fase conta primordialmente com a ajuda e o apoio de vocês, esse meu grupo lindo de incentivadores que intitulamos de Lunáticos. Quero ter vocês mais perto de mim, participando mais e tendo mais acesso à minha vida. Para isso acontecer, sinto que, antes de tudo, o mais importante é vocês me conhecerem, saberem de fato de onde eu vim, o que passei, e quem eu me tornei. Eu quero que vocês conheçam a Lua mesmo, por fora e por dentro, aquela que sempre esteve por trás da Roberta, e de todos os meus outros personagens. Quero compartilhar com vocês coisas da minha vida, da minha história, que vocês provavelmente não sabem. Quero que vocês conheçam quem vocês querem seguir. Quero que vocês saibam a quem estão ajudando e admirando e por que estou fazendo de tudo para os meus sonhos se realizarem. Quero dividir com vocês a minha vida, a minha história. Se vocês vão gostar ou não, fica a cargo de cada um, mas pelo menos vou saber que quem continua ao meu lado é porque gosta mesmo de mim e vou ficar feliz por ter dado essa oportunidade de compartilhar e me aproximar um pouco mais de vocês. Foi com essa mesma intenção que criei meu canal no YouTube e outras surpresasque ainda vão chegar, onde pretendo dividir coisas com vocês e trocar ideias e experiências sobre minhas produções, emoções, sentimentos, dúvidas e vitórias. Tem muita coisa boa vindo aí e não vejo a hora de tudo ficar pronto logo! Realmente é uma fase muito empolgante, essa que estamos entrando. Pensem nesse eBook, então, como um prólogo para a nossa nova fase, uma introdução a todo o acesso à minha vida que vou disponibilizar pra vocês a partir daqui, ok? 3 Como tudo começou Eu nasci no dia 5 de março de 1987, no bairro da Lapa em São Paulo, para Maria Claudia e Billynho, meus queridos pais, que logo se mudaram de volta pra sua cidade natal e a minha cidade do coração, Rio de Janeiro. Muita gente pergunta sobre minha infância, por que tenho tantos irmãos, por que eu falo inglês e por que passamos a vida toda cantando juntos. Tenho respostas prontas, na versão curta, para cada dessas perguntas, mas hoje vou contar a versão semi longa que é algo sobre o qual eu raramente falo. A verdade é que eu tive uma criação muito diferente dentro de uma comunidade cristã que vivia separada do resto do mundo. Vou explicar. Alguns anos antes de eu nascer, meus pais moravam juntos em Nova York trabalhando com música e estudando teatro nas escolas de lá. Quando minha mãe engravidou do meu irmão mais velho, o Pedro Sol, eles voltaram para o Brasil com o projeto de reconstruir suas vidas aqui. Minha mãe sempre teve uma espécie de busca pela verdade e o seu lugar no mundo, como muitos de nós temos. A dela tinha sido intensificada pela perda do pai alguns anos antes e por outras dificuldades que ela tinha vivido até aquele ponto. Quando voltaram para o Rio, conheceram um grupo de “cristãos revolucionários”, como se definiam. Eles se encantaram logo, ela em especial, pela energia deles. Sentiram que Deus os tinha chamado para dedicar suas vidas a Ele desse forma especial e original.. Esse grupo fazia parte de um movimento que tinha começado na Califórnia, na década de 70, por jovens hippies que queriam mudar de vida. Como não se conformavam em viver escravos do Sistema, decidiram começar, digamos, sua própria sociedade paralela. Eles eram devotos a Jesus e aos ensinamentos da Bíblia, mas não se filiavam a nenhuma religião organizada. Tinham um líder, seus próprios valores, seu próprio estilo de vida e suas próprias interpretações das escrituras. Um de seus ensinamentos era que o convertido largasse tudo da sua vida passada (incluindo o nome!) e dedicasse sua vida 100% a Jesus. Os membros viviam de forma comunitária em núcleos que chamavam de “lares missionários”. Lá os membros eram divididos em funções (ou “ministérios”), e executavam seus trabalhos de forma organizada, separada da sociedade normal, a fim de cumprir a grande missão deles que era “salvar o mundo pra Jesus”. Eles foram logo se expandindo e formando mais núcleos que se espalharam ao redor do mundo, convidando pessoas para fazerem parte deles. Morava gente junta de diversas nacionalidades, falando todo tipo de idioma. Para que todos pudessem se comunicar, de todos os povos e em todos os lugares, estabeleceram que o inglês seria a língua padrão do grupo. Formaram, também, sistemas de ensino para que toda a educação fosse interna, no formato “homeschooling” (que é quando a criança não vai para a escola, aprende tudo em casa). A renda deles se baseava em doações (como se fosse uma ONG ou um projeto social) e na venda de materiais didáticos, infantis e cristãos. 4 Pareciam a galera do filme A Vila, só que sem monstros e vestidos de época; ou, então, a aldeia dos Outros, ou da Dharma Initiative, na série Lost, só que sem experiências médicas e assassinatos em ilhas misteriosas; ou, até mesmo, freiras em conventos, só que sem o celibato e os uniformes engraçados. Era uma espécie de seita que vivia em paz tentando fazer do mundo um lugar melhor. Eu carinhosamente apelidei essa fase inteira da minha vida de A Bolha e vou chamar assim ao longo do meu relato. Depois que meu irmão tinha nascido e meu pai estava pronto para acompanhar minha mãe num compromisso tão radical e permanente, os três entraram para Bolha e foi lá que eu nasci. (Curiosidade: meu pai passou a se chamar Paulo, e, minha mãe, Cristal; mas anos depois ela mudou pra Nina. Foram os nomes deles por quase vinte anos.) Fui criada lá, vivendo em casas enormes com várias famílias morando juntas, estudando em salas de aula caseiras, e aprendendo tudo sobre a Bíblia e sobre a vida missionária que a gente levava. Fui alfabetizada em inglês por causa disso. Eu tinha pouco contato com o mundo de fora, e dentro da nossa realidade não era necessário falar outro idioma. Visitava meus avós e o resto dos nossos familiares de vez em quando, mas eu não convivi com eles na primeira parte da minha vida; eles eram apenas aquelas pessoas simpáticas, que não entendiam tudo que eu falava, mas que sorriam muito quando me viam. Por causa de todo o suporte que os núcleos ofereciam no cuidado às crianças e bebês, as mães eram incentivadas a ter muitos filhos, e é por isso que minhamãe acabou tendo seis. Nós éramos considerados uma família de médio porte, porque o normal era ter muito mais. Uma das minhas amigas vem de uma família de doze filhos, e isso era ok. Meus irmãos e eu crescemos dormindo em dormitórios enormes cheios de crianças da nossa idade e sempre tendo gente em volta com quem brincar. Ficávamos com nossos pais na hora do jantar e aos domingos, normalmente, e o resto da semana era com a nossa turma sob o cuidado dos nossos professores. Como meu pai é músico, compositor e produtor musical, colocaram-‐no para trabalhar no departamento de criação e produção do material musical da Bolha, tanto externo, quanto interno. Minha mãe trabalhou em diversas áreas da Bolha (quando ela não estava ocupada tendo outro filho), e uma delas era a da evangelização, que se resumia em sair para a rua e passar a mensagem de Jesus nos escritórios, empresas, presídios, restaurantes, hospitais. Além disso, os dois também cantavam juntos, e faziam shows e apresentações em diversos lugares com conteúdo tanto religioso quanto secular. Devido ao trabalho do meu pai na música, ele era transferido com frequência para outros núcleos, dependendo da demanda que cada um tivesse, e provavelmente devido a outras razões também que não eram explicadas para mim na época. Só sei que morei em vários bairros do Rio de Janeiro, em Niterói, em São Paulo, em Salvador, em Lima-‐Peru. 5 Eu sempre gostei da minha infância. Não conhecia nada diferente, não sabia como as outras crianças viviam. Para mim, viver daquela forma era lindo! Eu não ia para escola normal, não assistia televisão, não tinha acesso a balas ou doces como a maioria das crianças tem, e como a alimentação da Bolha focava em ser saudável, eu mal ingeri açúcar branco nos meus primeiros anos de vida... e não sentia falta de nada disso. Eu tenho memórias de acordar cedo algumas manhãs para ajudar meu pai a fazer o café da manhã para o “lar” (os adultos revezavam na função da primeira refeição do dia, e para as outras tinha a equipe da cozinha). Ele quebrava uns cinquenta ovos num pote gigante e me deixava batê-‐los. Aí ele juntava tudo num panelão e fazia ovo mexido suficiente para alimentar todo mundo na casa. Ainda tinham as sete bandejas grandes de bolo de fubá que ele assava para acompanhar (chamava de corn bread), e os litros de café preto que ele preparava para os adultos com os coadores de pano. Tudo na cozinha era tamanho industrial; até hoje nunca sei quantos copos de arroz jogar na panela, sempre acaba sobrando. Meu pai cozinha tão bem que as pessoas torciam para chegar a vez dele no rodízio do café da manhã. Tinha o clássico dele: a granola caseira. Levava quilos de aveia e açúcar mascavo e ficava melhor que todas as granolas vendidas em loja. Ele próprio torrava os amendoins no forno. Sempre achei isso fascinante! Claro também tinham os pratos básicos de café da manhã, que eram os mingaus. Meu pai inventava todo tipo de mingau com leite: aveia, fubá, tapioca, sagu, arroz, trigo, canjica... O que tivesse de ingrediente na dispensa ele tacava no mingau! Até hoje sou maluca por mingau por causa disso. Minha mãe me levava para ajudar no berçário, que é onde ela acabou passando boa parte de uma década. Ela me ensinou a trocar fraldas, a segurar um bebê de uma forma segura e confortável, a fazer um bebê parar de chorar e a começar a ensinar coisas a ele. Dependendo do tamanho do núcleo e da época de fertilidade das mães, o número de bebês no berçário variava, mas ter entre cinco a oito bebês lá por vez era algo rotineiro. A partir da época em que a Estrela nasceu, eu já tinha tamanho suficiente para ajudar a cuidar dos meus irmãos mais novos também. Eu lembro que quando o Daniel era bebê, minha mãe ia sair uma noite e me deixou cuidando dele no quarto dela. Tudo bem que ele estava dormindo e, é claro, tinham adultos na casa supervisionando, mas era eu que estava responsável por ele até minha mãe voltar, e isso fez com que eu me sentisse muito grande. Eu tinha sete anos na época. Quando a Marisol nasceu, aí eu já tirava de letra, já nem queria supervisão para cuidar dela. Até hoje eu sou louca por bebês. Iniciação na música A música sempre foi uma parte grande da minha vida. Minha mãe cantava pra mim no berço, e meu pai sempre dedilhava um violão perto de mim. A Bolha era muito rica em cultura musical, e tinha várias músicas próprias que tinham sido compostas internamente 6 pelos seus membros, algumas inclusive eram do meu pai. Todas a crianças aprendiam as músicas e passavam o dia inteiro cantando. Tinham muitas músicas de passagens da Bíblia musicalizadas, que eram para nos ajudar a decorar os versículos mais importantes. Lembro delas até hoje. Também me lembro de que quando a gente morava em Lima, no Peru, entre meus seis e sete anos de idade, o núcleo em que nós vivíamos era enorme, era uma fazenda linda com cavalos e plantações de milho e alcachofra, com várias casas espalhadas pelo terreno. O maior quarto na casa principal era o dormitório das crianças, onde a gente dormia em belichese camas de correr com rodinhas, e fazia a maior bagunça junto. Eu tenho muita memória de lá. Nosso quarto tinha um janelão que dava para o quintal do sítio, e todo dia de manhã meu pai passava pelo quintal dedilhando o violão e cantando uma música linda pra gente acordar. Até hoje eu amo acordar ao som de dedilhado de violão por causa dessa época. Nós tínhamos nos mudado para Lima porque esse núcleo tinha um bom estúdio de gravação e precisavam de um produtor trabalhando nele, nas produções do material da Bolha. Então era lá que meu pai passava os dias dele, trabalhando com música e gravações que era o que ele mais ama fazer. Eu lembro que a minha sala de aula era dentro de uma casinha de madeira em algum lugar do terreno, e eu ficava a aula inteira sonhando e torcendo para um dia meu pai me chamar para gravar uma música com ele. Um dia ele me chamou e eu fiquei louca! Ele tinha uma música infantil para gravar e precisava de uma voz de criança. Essa foi minha primeira experiência em um estúdio de gravação e eu não podia ter ficado mais feliz, ainda mais porque eu estava matando aula. Já começou cedo meu gosto por matar aula. Foi no Peru, também, que o Daniel nasceu, por isso o nome composto dele é Cielo, em espanhol. Eu aprendi espanhol fluente enquanto morei lá, porque minha professora era uma senhora espanhola fofa que se empenhou em me ensinar, e criança realmente tem mais facilidade em aprender novos idiomas. Eu falava perfeito, me diziam, o que só me atrapalhou quando fui aprender português direito porque eu confundia as palavras. Porém, por falta de uso, hoje meu espanhol definhou. Descobri isso nas minhas visitas recentes pra Punta Del Este e Buenos Aires, em que eu parecia uma deficiente mental tentando formular frases num portunhol bem furreca. Mas ainda entendo tudo que dizem e tenho vontade de voltar a praticar para retomar minha fluência. A gente não assistia televisão, mas tínhamos, sim, acesso a muitos filmes. A Bolha, além de fornecer vídeos de produção interna, também fazia seleções de filmes e outras formas de entretenimento que eram permitidos e “edificantes” para a gente. Então, desde pequena, eu fui apaixonada por cinema, principalmente os musicais. Eu mergulhei em tudo que nos permitiam assistir. Vivia à base de toda a coleção de musicais da Shirley Temple, os filmes do Gene Kelly, com destaque para Cantando na Chuva e Brigadoon, e, claro, meu 7 primeiro filme preferido de todos os tempos, A Noviça Rebelde. A gente podia ver alguns desenhos da Disney também, como Bambi, Pocahontas e O Rei Leão, mas Pinóquio só nos era permitido ver o primeiro pedaço. O resto do filme, a partir da hora que ele sai de casa para ir ao colégio e encontra a raposa e o gato que eram os grandes vilões da história, eles cortavam porque não teria uma boa influência na gente. Fui ver o filme inteiro já grande e morri de rir. Quando eu tinha oito anos, minha família voltou para o Brasil e foi morar pela segunda vez (a gente já tinha ido antes, mas não lembrava) no município de Embu das Artes, em São Paulo. Lá, o núcleo era numa casa enorme que eu amava. Tinha piscina, e quadra, e até uma casinha de vidro na lateral externa da casa que eu achava muito espaçosa. Quando voltei para essa casa, já adolescente, descobri que ela é muito menor do eu lembrava, mas o que importa é quando a gente é pequeno e acha que tudo à nossa volta é gigante. Foi em Embu que meu pai começou a ensaiar músicas comigo e com meus irmãos para cantarmos para as pessoas. Ele nos enfileirava e tocava violão do nosso lado, e a gente se apresentava com um sorriso no rosto e um leve passinho de um lado pro outro. Foi nessa época, também, que surgiu na minha vida o fenômeno do “Christmas Push”, que era todo o movimento em torno de alegrar o Natal das pessoas. Por volta do início de novembro, quando os shoppings estavam começando e pendurar enfeites de Natal pelas escadas rolantes, a Bolha se preparava para o nosso movimento natalino. Ensaiávamos músicas fofas natalinas, preparávamos panfletos e CDs de Natal para vender e distribuir. Ficávamos até o dia 26 de dezembro em função deste feriado. Visitávamos festas e eventos de fim de ano, batíamos nas portas dos vizinhos, íamos para parques, restaurantes, e shoppings fazendo nossa apresentação e cantando sobre o Natal. Todos, ou pelo menos a grande maioria, sempre ficava muito feliz e emocionada de ver várias crianças e jovens juntos cantando dessa forma. Mantivemos a tradição do “Christmas Push” até os anos avançados da minha adolescência, e é por isso que o Natal até hoje é uma data (e uma época) muito marcante pra mim. Meu primeiro contato com o mundo real No ano de 1996, a Bolha começou a passar por algumas mudanças e a liderança incentivou algumas famílias a saírem dos grandes núcleos com dezenas de membros e abrirem núcleos menores, Bolhinhas, digamos. Quando eu fiz nove anos de idade, mudei com minha família para um sítio lindo cercado de mato, como piscina, no topo de uma colina em Itaipava, no estado do Rio.A Marisol era bebê nessa época. Nosso sexteto de irmãos já estava completo. Na nossa casa, além da minha família, tinha mais dois outros membros da Bolha que vieram juntos para dar um suporte. Continuamos vivendo segundo 8 os princípios recomendados, mas num contexto bem menor e com algumas mudanças, a maior delas: começar a frequentar a escola! Para nós, que tínhamos nascido dentro da Bolha e não fazíamos ideia de como as pessoas levavam a vida na parte de fora, O Mundo Real era retratado de uma forma distante, perdida e proibida. Chamavam de O Sistema. Finalmente eu teria a chance de conhecer uma escola “sistemática”, cheia de crianças diferentes que não viviam como eu. Eu estava vibrante. O Pedro, a Ana Terra e eu fomos matriculados no IPAE, o Instituto Petropolitano Adventista de Ensino, e a Estrela, o Daniel e a Marisol continuariam sendo cuidados pela minha mãe em casa. Com o tempo, a separação dos dois grupos foi intensificando, e foi-‐se nomeando um de “The Big Guys” (os grandes), e o outro grupo de “The Little Guys” (os pequenos), nomes que até hoje são piada interna entre a gente e motivo de implicância, principalmente com a Estrela que nunca gostou de ser deixada pra trás com os Little Guys. Meu tio Paulinho, irmão do meu pai, morava com a esposa e os dois filhos em Petrópolis também. Na verdade, acho que fomos para lá para ficar perto deles. Eles eram adventistas e tinham muito em comum com o viver fora, isolados da sociedade e tudo mais. Eu adorava meu tio porque ele falava em inglês comigo e me fazia sentir em casa. Até hoje nós o chamamos de Uncle Paulinho (que é tio em inglês), de tanto que nos apegamos a ele naquela época. Tia Gisele sempre foi muito doce com a gente, e meus primos Lisieux e Marcel eram da nossa idade, e como estávamos acostumados a ter muita criança por perto, logo nos apegamos a eles. Eles já estudavam no IPAE, então fomos com eles para o nosso primeiro dia de aula. Ever! (Detalhe engraçado: Durante grande parte da minha vida, eu só conheci meus pais como Paulo e Nina, porque era assim que todos os chamavam. Porém, ironicamente, ao escolher seu novo nome pra Bolha, meu pai acabou ficando com o mesmo nome do próprio irmão, o que sempre me confundiu quando comecei a conviver com meu tio. Eu me perguntava, “por que eles têm o mesmo nome? Será que a vovó ficou sem criatividade?”. Só depois que fui entender que minha linda vozinha não tinha nada a ver com isso.) Meu primeiro dia de aula foi assustador e meio surreal porque tudo era novidade para mim. Eu falava português, mas não tão fluentemente, e ainda confundia muitas palavras com o espanhol. Fora isso, todo o formato de aula e de comportamento dos alunos era desconhecido por mim. Eu fui para 2a série junto com a prima Lisieux, a Terrinha foi pro CA, o Marcel estava na 1a série, e o Pedro acho que foi pra 3a. Fiquei feliz de ter minha prima do meu lado dando suporte, mas logo comecei a entender que a vida fora da Bolha era muito diferente do que aquilo a que eu estava acostumada. Todo o meu processo de adaptação foi lento e cheio de gafes. Os meus colegas chegavam na escola, mas eu não sabia de onde eles vinham, como eles moravam. Tinha uns 9 que chegavam num ônibus cheio de crianças, e fiquei na esperança deles morarem em alguma bolha também, mas tinha vergonha de perguntar. O meu curto vocabulário em português não incluía gírias ou expressões de uso comum, então eu vivia dando bola fora. Um dia eu disse para a professora que meu colega estava me molestando, que em espanhol é implicar. Eu não imaginava que em português fosse algo diferente. Levei uma bronca da professora que dizia para eu não mentir, e muitas risadas dos outros colegas. Na parte da educação, até que eu me adaptei bem. Eu era inteligente e aprendia rápido. Fiz uns testes para provar que eu havia tido uma educação boa entes de entrar na escola e que eu estava pronta para estar na 2a série, e passei tranquila. Aprendi a escrever em letra corrida, já que no inglês se tem mais o costume de escrever com letra de forma e isso me atrapalhava no português quando a professora ditava algo pra gente escrever rápido. Eu era boa com números, habilidade que fui largando quando cheguei no Ensino Médio (não nasci pra mexer com fórmulas). Mas, no geral, eu gostava de estudar. Porém, eu gostava mais ainda era de aprontar. Desde meu primeiro ano na escola eu gostava de transgredir os limites impostos pelas autoridades. Queria conhecer melhor esse mundo fora da Bolha, que não seguia as suas regras e não era castigada por isso. Queria explorar tudo e ver até onde eu conseguiria ir sem ser castigada. Acabei sendo muito castigada ao longo da minha vida colegial por isso, mas, no fundo, até hoje gosto de chegar no limite das coisas e ver até onde elas me permitem. Só assim consigo reconhecer o meu espaço. Para mim foi muito divertido naquela casa em Itaipava. Eu e meus irmãos chegávamos da escola no fim da tarde e pulávamos direto na piscina.Passávamos muito tempo brincando do lado de fora, descíamos as ladeiras de grama deitados em caixas de papelão, escalávamos as árvores, corríamos com os cachorros. Costumávamos ir para Nogueira andar a cavalo, uma das minhas atividades preferidas. Meu pai nos levou ao cinema pela primeira vez, nessa época, para assistir O Corcunda de Notre Dame. Foi surpresa. Ele colocou os “Big Guys” no carro sem dizer para onde íamos. Levou junto uma caixa grande de uvas passas. Quando chegamos no cinema de Petrópolis e vimos a tela daquele tamanho não acreditamos na maravilha daquilo tudo. Comemos as uvas passas na maior felicidade enquanto curtíamos um corcunda que tinha o tamanho do nosso carro. Passávamos muito tempo com a família do Uncle Paulinho, eles nos ajudaram bastante no processo de adaptação ao mundo real. Meus primos me explicavam muita coisa, e intermediavam algumas situações de falta de comunicação com colegas que não nos entendiam. Eu adorava a casa deles e até hoje, quando vou lá, sinto um gostinho de infância feliz. Eles me ensinaram a calçar sapatos resistentes para fazer trilhas pelo mato, como construir um balanço no galho de uma árvore, e a apreciar queijo quente com mel jogado em cima. Lições muito valiosas até hoje. A gente até acompanhava meus primos nos cultos da igreja adventista para conhecer. Eu gostava por que falavam da Bíblia e de tudo que eu conhecia, só não entendia por que não deixavam bater palmas e, ao invés disso, ficavam dando tchauzinho. 10 Minha vozinha por parte de pai, Ruth (Tetê, pros íntimos), também vinha nos visitar muito. Ela é uma linda que sempre foi muito dedicada a gente, mesmo quando morávamos longe. Ela preparava bolos enormes para os nossos aniversários, e dava muito carinho quando nos via. Ela morava com o meu avô em Copacabana, num apartamento grande que até hoje tem cheiro de infância, cheiro de vozinha. Foi nessa época, também, que eu comecei a me interessar por meninos, mas não sabia muito bem como lidar com isso. A minha única referência de atração pelo sexo oposto era os filmes antigos que eu assistia, mas não ensinavam muita coisa. O fato do personagem do Gene Kelly ficar com (spoiler alert!) a Kathy Selden no final de Cantando na Chuva, não me ensinava como que eu conseguiria chamar a atenção do David, o menino mais lindo da turma do meu irmão. Um dia meu pai me deu 1 real para comprar minha merenda na escola (eu sempre levava lanche de casa, mas esse dia era uma ocasião especial e, na época, 1 real era muita coisa). Mas, ao invés de comprar algo pra comer, lembro que comprei um drops de Halls (mesmo não sendo permitida chupar bala) só pra eu ter algo para oferecer ao David quando eu cruzasse com ele no pátio da escola. E não era nem para ter desculpa para puxar um assunto, o assunto era esse! -‐ “Quer uma bala?” “quero.” Ele aceitou duas vezes e na terceira recusou, mas eu fiquei feliz porque vi que estávamos avançando na nossa relação. Um tempo depois, entrou uma menina nova na escola que se chamava Juliana, e o David só dava atenção à ela e só aceitava as balas dela. Fiquei arrasada. Um dia, cara de pau que sou, perguntei porque ele gostava mais dela. Ele olhou para mim e disse: — Lua, você é muito inteligente, mas a Juliana é bonita. — Fiquei chocada com essa resposta. Desde quando ser inteligente é uma coisa ruim? Tomei como elogio, e desisti de oferecer balas a ele. Ele não me merecia. Um belo dia chegou a epidemia do piolho. Estava por todas as partes. Todas as crianças começaram a pegar e, quando vi, eu estava coçando a cabeça como se não houvesse amanhã. Minha mãe tentou de tudo, passou todos os remédios e nada deles morrerem. Kwell era praticamente água com açúcar para esses piolhos que estavam tão acostumados a continuar vivos. Um dia ela veio com um remédio novo que teve uma reação alérgica na minha cabeça e começou a queimar meu couro cabeludo, eu gritava e minha mãe corria para enxaguar. Foi uma cena horrorosa. Depois disso ela desistiu da luta e me levou, junto com a Terra e a Lisieux (que também não escaparam da epidemia), para o salão e mandou cortar nosso cabelo curto, no estilo joãozinho. A vantagem foi que o piolho foi embora. A desvantagem foi que eu passei os dois próximos anos dando razão ao David por não ter me achado bonita, porque quando meu cabelo começou a crescer, encarei de vez a fase tenebrosa da pré-‐adolescência. Perdida entre dois mundos 11 Nos mudamos de volta para o Rio, e fomos morar em Vargem Grande na casa que mais marcaria nossas vidas. Não tinha piscina, mas tinha muito mato, e dois andares, e uma mangueira enorme no quintal para gente escalar e pendurar um balanço; e ela estava, também, a cinco minutos da praia mais linda da cidade, a Prainha. Tenho muitas memórias do nosso tempo naquela casa. Até agora, a maior parte da minha vida foi dentro daqueles portões. Não vou me estender falando dessa fase porque precisa sobrar história para eu contar no meu Blog, e porque quero continuar um pouco misteriosa também! Mas, vou dar uma resumida. Eu dividia quarto com aTerra e nos aproximamos mais que nunca por causa disso; a Estrela, o Daniel e a Mari ficaram juntos no quarto das crianças; e o Pedro improvisou um canto para ele porque já se considerava bem grande e não queria dormir com as irmãs. Minha mãe nos matriculou no extinto Colégio Cidade – Unidade Recreio, que era perto da nossa casa, e como ela é amiga de infância da dona, ela conseguiu bolsa pros três mais velhos. Fui bolsista praticamente minha vida toda. Foi graças à generosidade das pessoas que tive uma boa educação pós-‐Bolha, e serei eternamente grata a todas elas por isso. Os “Little Guys” continuaram estudando em casa por um tempo. Depois de alguns anos, a Estrela foi matriculada no colégio também, e assim por diante. Aos poucos cada um dos pequenos foi introduzido a esse encantador mundo mágico que é a vida real. E cada um lidou com isso de uma forma diferente. Vou tentar resumir a minha experiência. Foi nessa época que comecei a sentir o contraste entre meus dois mundos. Eu ia para a escola e tentava me enturmar com os meus colegas, fazia de tudo para convencê-‐los de que eu era um deles, só uma adolescente qualquer. Mas, toda hora a minha realidade vinha à tona. “Por que você fala inglês com seus irmãos?”; “Por que você não pode ir lá pra casa depois da aula?”, “Por que você não pode ir com a gente na matinê domingo?”, “Por que você não conhece o Silvio Santos?”. Tinham inúmeras situações onde a única explicação para pergunta de um amigo era “porque eu moro em uma Bolha que não segue os mesmos costumes que o resto do mundo”. Eu lembro que quando me perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, eu ficava na dúvida. Será que a Bolha ia me deixar seguir uma profissão, ou eu tinha que fazer o que meus pais faziam para o resto da minha vida? Uma vez eu respondi pra uma amiga que queria ser missionária, e ela perguntou, “o que é isso?”. Nunca mais dei essa resposta; era muito difícil de explicar. Gostava muito de ir à escola e socializar, e conhecer melhor essas pessoas e seus costumes engraçados, suas referências e piadas estranhas, e seu universo de cultura nova e desconhecida. Mas quando eu voltava para casa na hora do almoço, tudo voltava ao normal. Eu tinha tarefas na parte da tarde, e horário certo para fazer dever de casa, estudar a Bíblia e cuidar das crianças. A gente revezava para lavar a louça, mas sempre era bastante louça, eram muitos pratos, talheres e panelas, então fui criando um desgosto grande por essa 12 tarefa. Até hoje gosto de deixar acumular um pouco a louça na pia antes de lavar, só porque agora eu posso. No Rio, havia muitos núcleos da Bolha, grandes e pequenos, espalhados pela cidade, então tínhamos um grande leque de convivência. Nosso núcleo continuava pequeno, mas as pessoas que vinham morar com a nossa família se revezavam com frequência e também passamos a visitar, quase que diariamente, os grandes núcleos, um deles, inclusive, tinha um estúdio onde meu pai passou a trabalhar. Eu tinha os meus amigos mais próximos, a Esther, a Melo, a Sharon, o Sean, e mais uma galera que a gente encontrava nos finais de semana e nos encontros e eventos da Bolha. Todos moravam em núcleos maiores e continuavam estudando em casa. Para eles, então, eu e meus irmãos éramos os liberais do círculo, a gente conhecia O Mundo. Eu me sentia muito bem com eles e criamos um vínculo forte que dura até hoje. Sinto que, fora da minha família, são eles que mais me conhecem porque sabem da onde vim, e porque passamos pelas mesmas coisas juntos. Então passei a maior parte da minha adolescência nesse contraste entre os dois mundos, me sentindo quase uma agente dupla, tentando fazer parte e me encaixar em dois universos totalmente diferentes. Imagina o meu conflito! Se ser adolescente já é sofrido, imagina tentar achar o seu lugar em dois mundos! Provavelmente por isso, eu aprontava muito nessa época. Continuei querendo testar os limites dos dois contextos. Perdi um pouco o medo das consequências, e desafiava as autoridades a me colocarem no meu lugar. E me colocavam. Na sexta série fui expulsa do colégio por mal comportamento. Minha mãe até poderia ter recorrido, mas ela escolheu me manter em casa durante os seis meses restantes daquele ano para eu “aprender minha lição”. No ano seguinte repeti a sexta numa turma cheia de “pirralhos”, e no ano depois disso cursei a sétima e a oitava série no supletivo. Não curti essa experiência porque no supletivo não tinha amigos, e eu odiava ficar sem minha vida social. Então quando voltei para o Colégio Cidade, no Ensino Médio, passei a me comportar muito melhor. Um dia, para minha total alegria, a Melo, minha amiga inseparável (desde os dez anos de idade, quando ela me viu aos prantos assistindo Titanic no cinema e me consolou durante a sessão inteira) veio morar na minha casa com os pais dela. Eu não podia acreditar na minha sorte. Nenhuma colega minha da escola tinha a chance de morar com a melhor amiga, e lá estava eu, convivendo diariamente com a minha. A Melo (curto pra Melody, que é melodia em inglês – sim, nome diferente era normal na Bolha)veio dormir no quarto meu e da Terra, e nos divertimos muito durante o tempo em que ela esteve lá. É claro que ficou ainda mais difícil de explicar para os meus amigos do condomínio porque eu tinha uma amiga morando na minha casa, mas eu não me importava. Poder dividir o fardo da vida com ela já fazia tudo valer a pena. O pai da Melo é uma pessoa muito iluminada e especial. Ele era pastor de jovens na Bolha, e passou a cuidar da gente diretamente quando foi morar lá em casa. As regras 13 ficaram mais rígidas, e os estudos da Bíblia mais intensos, mas ele ensinou tanto para a gente que eu sei que devo muito a ele pelo que sou hoje. O nome dele é John, mas eu só descobri isso recentemente. A vida toda chamamos ele de Uncle Phil, que era seu nome na Bolha. Ele é americano e ex-‐atleta, então nos ensinou a jogar basquete, baseball, softball, e vários outros esportes americanos que ele tinha jogado na juventude. Ele era muito legal. Conversava muito comigo. Ele plantou uma semente no meu coração em relação ao amor por Deus e o porquê de a gente estar vivendo daquela forma, e pela primeira vez, eu entendi de verdade porque meus pais tinham escolhido aquilo tudo. Tudo que vivi até aqui, e o fato de eu não me arrepender de nada, é graças a essa semente. Um tempo depois, a família da Esther foi morar em Vargem Grande também, bem perto da minha casa, e eu vibrei mais ainda por ter minhas duas melhores amigas perto de mim. Mas, um dia, o pai da Esther decidiu que eu não era uma boa influência para ela (realmente, eu aprontava muito!), e passou a proibir nossa amizade. Passei três anos sem falar com ela e arrasada porque a gente estava perdendo as melhores histórias para contar uma pra outra. Sentia muito a falta dela, mas ela era minha irmã, e não se perdem irmãs. Eu sabia que era só uma questão de tempo. Quando ela fez 18 anos voltamos a nos falar e nunca mais saí da sua vida. Fui madrinha do casamento dela, e hoje sou a madrinha da sua linda filhinha, Alice. Quando chegar minha vez de fazer essas coisas de casar e ter filho, pode ter certeza que a Esther também vai estar do meu lado. Uma outra pessoa muito marcante dessa época foi o Stephen, meu amigo canadense. Ele nunca chegou a morar com a gente, mas que era muito próximo da minha família e vivia lá em casa. Passava os fins de semana conosco e participava de tudo da nossa vida. No meu aniversário de 15 anos, ele gravou uma versão personalizada de As Long As You Love Me, dos Backstreet Boys, em que ele mudou a letra para “as long as you’re Lua” (contanto que você seja a Lua) e fez todo um rap para acompanhar o refrão. Era para tocar na minha festa de 15 anos, que fiz num haras de uma amiga. Mas, rolou uma falta de comunicação e eu só fui descobrir o CD na manhã seguinte, quando fui abrir os presentes. Agradeci muito a ele na época, mas nunca deixei de zoar ele pelo rap. Hoje ele tem uma banda linda nos Estados Unidos, com mais dois amigos daquela época, chamada Saints of Valory, onde ele é o tecladista. Torço muito pelo sucesso contínuo deles. A questão dos meninos A existência dos meninos continuava sendo uma grande questão na minha vida. Eu gostava deles, e queria a sua atenção, mas não sabia a forma certa de me relacionar. Eu me sentia como se existisse algum código relacional universal para se seguir, mas que ninguém tinha me ensinado. Eu queria viver um grande amor como eu via nos filmes, mas não sabia por onde começar. Os meninos da minha sala e os da Bolha eram muito diferentes dos caras 14 dos filmes. Esses conflitos imagino que sejam comuns para maioria dos adolescentes que começam a descobrir sua sexualidade. Mas, no meu caso, acho que era mais complicado ainda. Conforme eu fui crescendo, fui aprendendo uma das principais regras da Bolha: a segregação. A regra era para todos os membros: só pode se relacionar com gente de dentro da Bolha. Os “sistemáticos”, como chamavam as pessoas de fora, eram proibidos. Diziam que essa regra era para garantir que o vírus do HIV não entrasse no grupo, e para manter as famílias e as relações internas, etc. Nunca me preocupei muito com as razões. A minha dúvida era: essa regra vale também para mim? Aos doze anos de idade? Será que eles vão vir para minha escola conferir se eu estava beijando os meninos do Sistema? Depois do meu primeiro beijo – que foi no parquinho da escola com um menino da minha sala chamado Antônio – vi que os adultos pareciam não se importar com quem eu estava beijando. Então fiquei mais tranquila. Mas todo o formato relacional da galera da escola era novidade para mim. Eu lembro quando surgiu na minha vida o termo “ficar”. Eu não fazia ideia do que era aquilo. Não sabia que era o nome dado para um acontecimento isolado e único, e que para ele se repetir, você teria que “ficar” de novo. Pra mim a palavra ficar dava um sentido de continuidade para a relação. Ela por definição era algo que se mantinha. Nessa época eu estava encantada com um amigo do meu irmão, o Rodrigo,que eu sonhava em namorar. Mas não sabia que esse era o nome que se dava. Eu queria estar do lado dele na hora do recreio e na hora da saída do colégio, queria sempre ser vista com ele, e poder estar pertinho dele toda hora. Eu queria que ele ficasse do meu lado. Logo, na minha cabeça, isso significava que eu queria ficar com ele. Acho que alguém acabou comentando do meu interesse, porque um dia ele me ligou. — É verdade que você quer ficar comigo? — eu queria explodir de alegria! — Ah... É... — Então, mas onde a gente ficaria? — Minha mente começou a embolar. O que ele queria saber? Quais seriam os locais definidos em que andaríamos de mãos dadas? — Ah... Em todos os lugares. — Óbvio. Como são os namoros normais, pensei. Acho que o assustei com esse papo, ou então ele não entendeu nada mesmo, porque desconversou e logo desligou. Nunca fiquei com o Rodrigo. Quando eu aprendi a terminologia correta, dei muita risada pela minha idiotice, mas a essa altura, Inês já era morta. Um tempo depois, comecei a me envolver com um menino que estudava em outro colégio, amigo de uma amiga, chamado Bernardo. O Bernardo era uma graça! Moreno, 15 surfista, tinha uma skooter (na qual eu era proibida de andar), e um papo muito bom. Ele, sim, queria ficar. Passávamos horas ao telefone durante toda a tarde, e ia, de vez em quando, para minha casa, de skooter, para visitar. Aos poucos comecei a me sentir mal por estar me envolvendo com um menino fora da Bolha, e toda aquela culpa de estar quebrando a regra da segregação me veio à tona. Não estava certo. Eu tinha que ser fiel às minhas origens e ao meu estilo de vida, por mais que eu não entendesse muita coisa. Um dia chamei o Bernardo ao shopping para dizer que a gente não podia continuar se vendo. Ele resistiu muito e ficou cobrando uma explicação. Afinal, a gente estava se dando tão bem. Eu não fazia ideia de como explicar tudo pra ele, mas mesmo assim eu tentei. Me enrolei tanto no meu discurso que no final ele perguntou, — Então você tem que terminar comigo para eu não te passar Aids?? — Eu ri alto na cara dele quando percebi o quão maluca eu estava sendo, mas não ia voltar atrás só porque ele não entendia meu mundo. Terminamos e nunca mais nos falamos. Eu até o vi na praia algumas vezes, anos depois, mas fiquei com vergonha de cumprimentar. Ele nunca mais me levaria a sério. Outro menino que marcou muito essa época foi o João Rodolfo. Eu fui apaixonada pelo João por uma boa parte da minha 5ª série. Ele era músico e tinha uma banda com o irmão, e um cabelo comprido, loiro escuro, até o ombro. Meu próprio Taylor Hanson personificado. Acho que até hoje sou atraída a músicos de cabelo comprido por causa do João. Ele também gostava de mim, eu acho, porque depois que nos beijamos pela primeira vez, ele continuou me procurando e querendo estar perto de mim. Um dia ele foi numa radiozinha local com a banda dele e dedicou a mim a música Sozinho, do Caetano. Eu achei a coisa mais romântica do mundo, mas isso porque eu não entendia a letra ainda. Eu cantarolava “fala que me ama, só que é da boca pra fora” pensando nele, e achando linda a forma com que ele se declarou pra mim. Muito infelizmente, a culpa da minha dupla identidade bateu em relação ao João também, e lá fui eu planejar o meu término com ele. Eu até escrevi tudo que eu ia dizer num papelzinho na noite anterior e decorei o discurso. Não queria soar maluca de novo. Mas não tinha jeito. O João não entendeu nada e ficou muito triste comigo. O pior foi que eu não sabia lidar com “ex”. Não sabia qual era o protocolo de comportamento nesses casos, então sempre que ele vinha falar comigo depois do “término”, eu virava a cara e ignorava ele, porque achava que era assim que se fazia. E ele não tinha feito nada de errado! Minha iniciação em relacionamentos foi um desastre. (Estou rindo muito em voz alta ao escrever este capítulo. Estou achando que preciso procurar esses meninos hoje, que já são homens, e pedir desculpas por ter sido tão maluca.) Fui vivendo minha vida nesse conflito todo e nessa dúvida do que eu podia fazer ou não fazer, dividindo minha vida social entre a escola e os eventos jovens paralelos, entre o Mundo e a Bolha, por alguns anos. Tenho muito mais histórias engraçadas e 16 constrangedoras dessa época, mas vou guardar para outra hora, preciso continuar meu relato. Com os anos, conforme eu crescia, fui me afastando um pouco da minha certeza de que as regras da Bolha estavam certas, ou de que elas serviam pra mim. Eu era jovem, saudável, cheia de curiosidades, meu cabelo já tinha crescido, os meninos estavam reparando mais em mim, e eu queria viver um pouco. Nessa época, eu e meus irmãos começamos a frequentar uma academia que tinha um ótimo programa de natação. A Terra e eu, que éramos a dupla imbatível da época, logo nos enturmamos. A academia, assim como o colégio, virou uma fonte primordial de vida social. Um núcleo novo da Bolha se abriu ao ladodessa academia, e veio uma família da Colômbia morar nela. Conhecemos o Javi e a Nina, dois irmãos dessa família que eram da nossa idade, e logo viramos amigos inseparáveis. Por eles estarem no mesmo conflito que a gente, vivendo na Bolha e convivendo no mundo, nos identificamos em praticamente tudo e decidimos ser “melhores amigos pra sempre”. Foi uma época muito feliz, de intensa convivência e de um mundo de piadas internas. Amo o Javi e a Nina até hoje e morro de saudade deles! Queria muito que voltassem para o Brasil. Foi nesse mesmo núcleo da família do Javi, onde também conheci o James, um americano nascido no Chile que vivera na Bolha a vida toda também, e a quem me apeguei automaticamente. O James é a pessoa mais inteligente que conheço e um dos meus amigos mais queridos até hoje. Sempre zoei ele por ser nerd, mas a verdade é que ele veio com uma dose de neurônios a mais mesmo, e sempre foi um pouco inconformado com o fato da vida toda ser um pouco mais devagar do que o seu raciocínio. É um excelente fotógrafo e um programador digital de não sei o quê (nunca sei o que esses nerds fazem vidrados tanto tempo no computador). Mais incrível do que ele, só a mulher com quem ele escolheu se casar, a Goreti, com quem teve a linda Alice. A Gory é uma pessoa muito especial que amo de paixão. Foi nessa academia, ao lado da casa do Javi e do James, que tive minha primeira decepção amorosa. Eu estava ficando com o Tiago, que era da nossa galera lá da academia, amigo do irmão mais velho do Javi e da Nina, e dessa vez eu senti que era diferente. Ficamos pela primeira vez na Festa Junina da Bolha, onde ele tinha ido para me ver e eu logo me encantei. Ele tinha (tem ainda!) olhos verdes, a pele bem clarinha, ombros largos, altura perfeita. A gente já estava bem apegado, se vendo todos os dias, e indo ao cinema junto de vez em quando. Ele falava inglês (o que sempre foi um motivo meu de identificação imediata com uma pessoa), era muito inteligente, bom de conversar, e parecia entender a situação toda da Bolha. Como eu própria já estava me resolvendo com essa questão, sentia que estava pronta para algo mais sério. Eu tinha certeza de que a gente ir namorar. Meu primeiro namoro! Eu estava muito feliz. 17 Um dia, na academia, o Tiago pediu para conversar comigo e logo pensei, “é hoje que ele pede!” Fomos sozinhos para um canto, mas ele estava com a cara bem séria. Então falei brincando, pra aliviar o clima: — Que foi? Vai terminar comigo? — e ri, me achando muito brincalhona. Ele continuou com a mesma expressão facial e disse, — Mais ou menos, — meu sorriso caiu na hora. Por que eu não tinha percebido? Por que essa resposta era a última que eu esperava? Eu pensei que ele estava apaixonado! (Emoji da cara sofrida.) Ele continuou: — Na verdade, eu ia sugerir que a gente parasse de ficar com tanta frequência. É que eu acabei de sair de um namoro sério e não estou pronto para outra relação agora. Eu gosto de você, e acho que a gente ainda pode ficar de vez em quando. Fiquei sem palavras. Não queria fazer um escândalo no meio da academia. Mas a minha vontade era de gritar “de vez em quando??? Você está me oferecendo um downgrade??? Você está verbalmente pedindo pra eu ficar à sua disposição pra quando VOCÊ quiser?” E pra piorar, eu não entendia essa história de “saindo de um relacionamento”. Eu nunca tinha namorado. Eu não sabia como era terminar. Eu nunca tinha passado pela dor excruciante de ter que arrancar uma vida da sua e ainda continuar vivendo. Por que ele não podia emendar? Mas essa dele propor da gente esfriar um pouco nossa relação, achei demais. Era como um chefe propor dimiuir o salário de um empregado que esperava um aumento. Não se faz! Foi nessa hora que tomei uma decisão: a partir daquele momento, eu ia me valorizar, e por mais apaixonada que eu estivesse, só me permitiria ficar vulnerável pra alguém que merecesse o meu coração. Disse pro Tiago que achava melhor a gente parar por ali, que seria melhor assim. Ele resistiu sem muita convicção e logo saiu da minha vida. Eu não guardei mágoa do Tiago, tadinho. Ele foi até bem correto comigo. Foi honesto e não me deixou às escuras, sozinha me perguntando porque ele tinha perdido interesse (que é a mania hoje em dia entre os caras mais imaturos — preferem sumir do que encarar conversas difíceis). Admiro ele por isso. Sempre prefiro ouvir a verdade, por pior que seja. Mas eu gostava demais dele, e não estava disposta a ficar sentada com o coração na mão esperando ele decidir o dia mais confortável para sair comigo de novo. O que mais doeu foi não ter sido correspondida no envolvimento que eu achava que era mútuo. Nunca é fácil quando você é o lado mais entregue da relação e suas expectativas são frustradas. Mas é algo que a gente vai aprendendo a lidar. Não se pode ganhar todas. 18 Cultura POP Enquanto eu passava por todas essas descobertas na minha vida amorosa, eu também descobri um mundo de cultura fascinante fora da pequena redoma