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EHILA_28_Ensaios_de_micro_historia_2016

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Ensaios de Micro-História,
trajetórias e imigração
Maíra Ines Vendrame
Alexandre Karsburg
Paulo Roberto Staudt Moreira
(Orgs.)
2016
OI OS
E D I T O R A Estudos HistóricosEstudos HistóricosEstudos HistóricosEstudos HistóricosEstudos Históricos
Latino-AmericanosLatino-AmericanosLatino-AmericanosLatino-AmericanosLatino-Americanos
Ensaios de Micro-História,
trajetórias e imigração
E59 Ensaios de micro-história: trajetória e imigração. / Organizadores: Maíra
Ines Vendrame, Alexandre Karsburg e Paulo Roberto Staudt Moreira.
– São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2016.
380 p.; il.; 14 x 21cm. – (Coleção Estudos Históricos Latino-Ameri-
canos – EHILA)
ISBN 978-85-7843-660-5
1. Historiografia. 2. História – Itália. 3. História – Brasil. 4. História
– Rio Grande do Sul. 5. Migração. 6. Imigração. 7. História oral . I. Ven-
drame, Maíra Ines. II. Karsburg, Alexandre. II. . III. Moreira, Paulo Ro-
berto Staudt
CDU 931
Catalogação na publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184
© 2016 – Editora Oikos Ltda.
Rua Paraná, 240 – B. Scharlau
93120-020 São Leopoldo/RS
Tel.: (51) 3568.2848 / 3568.7965
contato@oikoseditora.com.br
www.oikoseditora.com.br
Coleção Estudos Históricos Latino-Americanos – EHILA
Direção:
Eliane Cristina Deckmann Fleck (Coordenadora do PPGH-Unisinos)
Luiz Fernando Medeiros Rodrigues (Editor – Linha de Pesquisa Sociedades Indí-
genas, Cultura e Memória)
Maíra Ines Vendrame (Linha de Pesquisa Migrações, Territórios e Grupos Étnicos)
Marluza Marques Harres (Linha de Pesquisa Poder, Ideias e Instituições)
Conselho Editorial:
Eduardo Paiva (UFMG)
Guilherme Amaral Luz (UFU, Uberlândia, MG)
Horacio Gutiérrez (USP)
Jeffrey Lesser (Emory University, EUA)
Karl Heinz Arenz (UFPA, Belém, PA)
Luis Alberto Romero (UBA, Buenos Aires, Argentina)
Márcia Sueli Amantino (UNIVERSO, Niterói, RJ)
Marieta Moraes Ferreira (FGV, Rio de Janeiro, RJ)
Marta Bonaudo (UNR)
Rodrigo Patto Sá Motta (UFMG)
Roland Spliesgart (Ludwig-Maximilians-Universität München)
Editoração: Oikos
Revisão: Autores e Organizadores
Capa: Juliana Nascimento
Imagem da capa: “A aldeia: paisagem com agricultores”, de Pieter Bruegel (o jovem)
(1564-1636)
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos
Impressão: Rotermund
Sumário
Apresentação ......................................................................... 7
Parte I: Sobre a Micro-História: caminhos e perspectivas
30 anos depois: repensando a Micro-História ........................18
Giovanni Levi
A longa marcha da Micro-História: da política à estética? ......32
Maurizio Gribaudi
História Oral e Micro-História ...............................................52
Alessandro Casellato
História Total versus Global History: a historiografia
antes e depois da queda do Muro de Berlin ............................72
Giovanni Levi
Parte II: Estudos de Trajetórias
Investigação e formalização na perspectiva
da Micro-História ..................................................................86
Alexandre Karsburg
Maíra Ines Vendrame
Entre o duque de Caxias e dois capitães pardos:
escolha biográfica e escrita da história ................................. 114
Adriana Barreto de Souza
A feiticeira do litoral: comunidade, crença e gênero
(século XIX) ........................................................................ 131
Nikelen Acosta Witter
Paulo Staudt Moreira
Arqueologia do Sagrado: crenças, histórias e mitos do Cariri ... 167
Edianne dos Santos Nobre
6
Parte III: Contribuições da Micro-História
para o estudo das e/imigrações
Storia e Microstoria al tempo di internet .............................. 194
Emilio Franzina
“Entre idas e vindas”: a contribuição da Micro-História
para o estudo da migração entre Portugal e o Brasil ............. 211
Ana Silvia Volpi Scott
Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX .............................. 234
Alejandro Fernández
Inmigración y familia: una mirada desde las redes
de inmigrantes italianos en la Argentina .............................. 269
Mariela Ceva
Parte IV: Ensaios de Micro-História
Redes mercantis e familiares na Porto Alegre do século XIX .... 292
Gabriel Santos Berute
Vozes da Ordem: proprietários, trabalhadores livres
e escravos na fronteira meridional do Brasil
(Alegrete 1827-1850) ........................................................... 319
Luís Augusto Farinatti
“Entre o local e o global”: imigração, relações sociais
e perfil ocupacional dos estrangeiros na cidade de Pelotas
(1850-1890) ......................................................................... 338
Jonas Moreira Vargas
Resenha Crítica
“A história de Pierina” ........................................................ 363
Maíra Ines Vendrame
Sobre os autores e as autoras ............................................... 375
7
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
Apresentação
O presente livro reúne artigos de pesquisadores brasileiros
e estrangeiros que estudam objetos variados dentro de temáticas
igualmente diversas. Dentre eles, destacam-se dois textos do his-
toriador italiano Giovanni Levi que, em junho de 2016, foi pro-
fessor visitante no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, onde ministrou um curso
e participou do II Seminário de Micro-História, Trajetórias e Imigra-
ção. A realização das referidas atividades propiciou a criação de
espaços para ouvir e dialogar com um dos principais historiado-
res ligados ao método da microanálise. Em consequência disso,
surgiu a oportunidade de organizar o presente livro, tendo sido
convidados historiadores que pesquisam diferentes temas, mas que
foram influenciados em suas pesquisas pelas orientações teóricas
e metodológicas da micro-história italiana.
Assim como as obras de Carlo Ginzburg, o livro de Giovan-
ni Levi, Herança Imaterial: a trajetória de um exorcista no Piemonte do
século XVII, difundiu em diferentes partes do mundo o método da
micro-história. Defendida pelo referido historiador como uma “prá-
tica historiográfica” de influências variadas e ecléticas, o que im-
porta é a perspectiva escolhida e não o objeto ou o assunto. Nesse
sentido, a proposta da microanálise é partir de uma situação parti-
cular ou individual, analisada na complexidade de seus contextos
específicos, para propor novas perguntas que permitam compreen-
der processos mais amplos. As situações circunscritas e casos indi-
viduais devem, portanto, fornecer indícios, sugerir questionamen-
tos que ajudem a entender melhor fenômenos gerais.
Na Itália da década de 1970, em torno da revista Quaderni
Storici, é que começaram as ser pensadas as práticas que passa-
8
ram a definir a micro-história. A partir desse momento, a referi-
da perspectiva metodológica passou a influenciar a produção
historiográfica italiana e conquistar adeptos em diferentes par-
tes do mundo, incluso no Brasil. Independentemente dos temas
de pesquisas, é grande o entusiasmo dos pesquisadores brasilei-
ros com os referenciais teóricos e metodológicos apresentados
pela micro-história. A inspiração e os desdobramentos são dife-
rentes, como se poderá perceber nos artigos que compõem o pre-
sente livro.
Em relação ao tema das migrações, uma grande reviravol-
ta ocorreu nos estudos que pensavam os deslocamentos de curta
e longa distâncias, graças às análises que buscavam entender as
motivações individuais, familiares e as características locais das
áreas de partida. A microanálise permitiu perceber, através da
reconstrução da trajetória de sujeitos e famílias, as racionalida-
des que orientavam as transferências, indo além, portanto, das
explicações que entendiam os processos migratórios apenas
como consequência de mudanças estruturais econômicas. Os
imigrantes passaram a ser vistos como atores sociais ativos que
estabeleciam estratégias e articulavam as próprias transferências
da Europa Mediterrânica para os países da América.
Um dos objetivos deste livro foi o de reunir artigos que
apresentem reflexões a respeitode temas variados tendo como
inspiração a metodologia da micro-história. Buscamos congre-
gar estudos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros que rece-
beram influências teóricas e conceituais e utilizaram conceitos
como: estratégia, redes sociais, racionalidade limitada, solidarie-
dade e incerteza. Outra prática frequente nos trabalhos influen-
ciados pela micro-história é a preocupação com o levantamento
do maior número possível de informações sobre as situações e
grupos analisados, realizando um cruzamento de fontes de ori-
gens diversas. Esse procedimento ajuda a apreender a complexi-
dade das situações e contextos estudados.
Apresentação
9
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
O livro que apresentamos se encontra dividido em quatro
partes. A primeira parte, intitulada Sobre a Micro-História: cami-
nhos e perspectivas, inicia com reflexões recentes de um dos maio-
res expoentes da micro-história italiana. No primeiro artigo, 30
anos depois: repensando a Micro-História, Giovanni Levi fala da ori-
gem política da Microstorie, do contexto de surgimento e das pre-
tensões dos fundadores, definindo, ao mesmo tempo, o que bus-
cavam e como pode ser definida enquanto metodologia. Ao afir-
mar que a micro-história necessariamente não procura recons-
truir a história das minorias, dos excluídos e dos indivíduos mar-
ginalizados, reforça um dos objetivos principais da microanáli-
se que é alcançar a complexidade dos contextos nos quais os
sujeitos e grupos agem, reconstruindo, portanto, situações, ex-
periências, incertezas, incoerências e não linearidade das traje-
tórias. A redução de escala é um dos pontos que caracterizam a
micro-história, sendo os problemas sociais observados com o
“microscópio” para deles se extrair perguntas gerais. Essa ques-
tão de método, bem como a sua interlocução com a antropolo-
gia, a relação dos homens com os lugares e a necessidade de se
estudar os vencidos ao invés dos vencedores, é algo que Giovan-
ni Levi aprofunda em seu segundo texto, A História Total versus a
Global History, apresentando algumas das ideias do antropólogo
francês Nathan Wachtel.
Na sequência, Maurizio Gribaudi, no artigo A longa mar-
cha da micro-história, apresenta uma análise sobre os anos iniciais
da micro-história, do final da década de 70 e início dos anos 80, e
como a pesquisa histórica era vivida enquanto “intervenção po-
lítica ativa”. Começa falando da própria experiência como alu-
no de Giovanni Levi e da maneira nada dogmática que o referi-
do professor orientava os jovens pesquisadores, recusando-se a
direcionar as pesquisas com aplicações pré-concebidas de con-
ceitos e de métodos. Gribaudi salienta as próprias dúvidas de
pesquisa, ressaltando, a seguir, a questão do interesse por en-
contrar o sentido da história em toda a sua “contraditória com-
10
plexidade”, finalidade essa que o aproximava, então, das pre-
tensões dos fundadores da micro-história.
Alessandro Casellato, no artigo intitulado História Oral e
Micro-História, analisa algumas das preocupações que conside-
rou ser comum entre os historiadores que passaram a fazer mi-
cro-história e história oral na Itália da segunda metade do sécu-
lo XX. A derrota política da esquerda na década de 60 e a “crise
cultural” levaram à preocupação com o detalhe, com as explica-
ções não mecânicas e à necessidade de inventar modos para apre-
ender as contradições sociais não solucionáveis. Nesse sentido,
Casellato busca mostrar que a história oral e a micro-história
surgiram devido à insatisfação dos historiadores frente à histo-
riografia de seu tempo, bem como da vontade de buscar enten-
der a sociedade como ela era, na sua complexidade e contrarie-
dade. As duas referências metodológicas possuíam muitos pon-
tos em comum, práticas e redes de relações às aproximavam. O
autor identifica as influências da história oral na trajetória de
pesquisa de dois dos principais expoentes da micro-história, antes
mesmo dessa metodologia ter surgido.
A segunda parte do presente livro, denominada Estudos de
Trajetórias, é composta por artigos de autores que foram buscar
na micro-história italiana, principalmente nos livros de Carlo
Ginzburg, inspiração para escrever seus textos. O primeiro de-
les, Investigação e formalização na perspectiva da Micro-história, de
Alexandre Karsburg e Maíra Vendrame, apresenta reflexões de
historiadores que realizaram uma análise das próprias trajetórias
acadêmicas, as relações deles com as fontes, as indefinições quan-
to aos objetivos e a adaptação de métodos de pesquisa que po-
dem (e devem) mudar de acordo com os desafios enfrentados. O
modo com que os historiadores expõem, na própria narrativa,
suas dúvidas e incertezas de pesquisa é a chave de leitura do
presente artigo. Na sequência, Adriana Barreto de Souza, com
o artigo intitulado Entre o duque de Caxias e dois capitães pardos:
escolha biográfica e escrita da história, procurou refletir sobre sua
Apresentação
11
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
experiência de escrita quando realizou uma tese-biográfica so-
bre o duque de Caxias comparando-a a outra completamente
diferente que vem enfrentando atualmente: um estudo sobre dois
capitães do Regimento de Milícias de Homens Pardos do Rio de
Janeiro. Sua intenção, portanto, será justamente estabelecer um
vínculo entre as intervenções metodológicas realizadas durante
cada uma das pesquisas. Dentre suas preocupações está o de
refletir a respeito de uma pergunta simples feita por Marc Bloch
há algumas décadas no Apologia da História (2001, p. 83): “como
posso escrever o que vou lhes dizer?”
Nikelen Witter e Paulo Roberto Staudt Moreira, no A Fei-
ticeira do Litoral: comunidade, crença e gênero (século XIX), partem
de um caso particular para analisar a realidade histórica escra-
vista oitocentista. O evento, sucintamente descrito, permitiu
explorar o teor excepcional de documentos como o processo ju-
dicial que envolveu personagens obscuros para a grande histó-
ria, mas que, uma vez narrado de forma adensada, revelou as
potencialidades que ensejam o entendimento das relações e in-
terdependências comunitárias na sua normalidade e porosida-
de. Através de uma perspectiva microanalítica, os autores pre-
tendem captar o dinamismo comunitário e a circularidade de
crenças, os relacionamentos entre senhores e seus escravizados
e alguns dos papéis e espaços femininos.
Em Arqueologia do Sagrado, Edianne Nobre analisa as cren-
ças, história e mitos do Cariri, região do Ceará que se destaca
por sua vegetação, terras férteis e inúmeras fontes de água mine-
ral. Porém, o que fez a autora abordar essa região específica foi
a forma com que diversos autores narraram o lugar, do início do
século XIX a meados do XX, criando um imaginário que serviu
de legitimação para práticas e manifestações religiosas. O que a
autora propõe no artigo é realizar uma “breve arqueologia” das
histórias que povoam o Cariri e que o conformam em um espaço
sagrado, ressignificado e reinventado continuamente nas vozes
de diversos narradores. O objetivo de seu texto é contar a histó-
12
ria das práticas que legitimam o Cariri cearense como um espa-
ço sagrado no âmbito da religião católica, que se estabelece em
meados do século XVIII e que instaura modos de viver e sentir a
religião que perduram até os dias de hoje.
A terceira parte deste livro, sob o título Contribuições da
Micro-História para o estudo das e/imigrações, é composta por arti-
gos que analisam as migrações transatlânticas entre Europa e
América do Sul no final do século XIX e início do XX. Em Sto-
ria e microstoria al tempo di Internet, Emilio Franzina fala sobre
suas pesquisas recentes a respeito dos imigrantes italianos vo-
luntários que retornaram para a pátria mãe, a Itália, para lutar
como voluntários na Primeira Guerra Mundial. Ressalta a ne-
cessidade de analisarmos a trajetória dos combatentes – suas
expectativas e frustações, utilizando-se de correspondências,
memórias e escritos pessoais – como uma forma de adentar nes-
se grupo desoldados tão pouco conhecidos. A internet, para o
autor, apresenta-se como recurso que atualmente facilita a loca-
lização de material que, em anos anteriores, seria difícil de en-
contrar. Isso tem permitido conhecer vidas anônimas, como a
dos soldados, e inseri-las como objeto de estudo na história.
Estudando a imigração portuguesa para o Brasil, Ana Sil-
via Volpi Scott, com o artigo “Entre idas e vindas”, aponta algu-
mas contribuições da micro-história italiana para o avanço dos
estudos sobre deslocamentos. Partindo das sugestões conferidas
pelos trabalhos que utilizam a microanálise, a autora elenca
novos temas, problemas e possibilidades metodológicas e teóri-
cas para repensar a e/imigração e a estrutura familiar, tanto nos
locais de partida como nos de chegada. Também pensando a
imigração transatlântica, as relações de parentesco, continuida-
de e rupturas entre os lugares de saída e o de chegada, Alejan-
dro Fernandez, em Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX, utiliza o método da micro-
análise para entender as motivações da repentina aceleração do
deslocamento de camponeses de uma aldeia para outra no terri-
Apresentação
13
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
tório espanhol. As relações familiares e afinidades entre os con-
terrâneos foram fundamentais para colocar em marcha as dinâ-
micas migratórias e assegurar a continuidade das transferências.
Encerrando essa parte, Mariela Ceva discute alguns te-
mas que, nos últimos anos, estão no centro dos debates sobre as
migrações transatlânticas no território argentino. Inspirada pe-
los métodos e orientações teóricas sugeridos pela micro-histó-
ria, a autora, no artigo Inmigración y familia. Una mirada desde las
redes de inmigrantes italianos en la Argentina, analisa a relação e os
vínculos entre os membros de um grupo e a imigração. Também
destaca a constituição e o papel das redes relacionais nos movi-
mentos migratórios, na constituição de uma determinada iden-
tidade e “memória familiar”. As cartas e fotografías são utiliza-
das como documentos preferencias para apreender os recursos
acionados para garantir as interações entre indivíduos que se
encontravam afastados espacialmente.
A última parte do presente livro, Ensaios de Micro-História,
reúne estudos que abordam diferentes temas de pesquisa, em
espaços geográficos restritos, mas com preocupações de alcance
mais geral. Os trabalhos tratam de locais específicos do Rio Gran-
de do Sul no decorrer do século XIX. No artigo de Gabriel San-
tos Berute, Redes mercantis e familiares na Porto Alegre do Século
XIX, encontramos um intenso diálogo com a demografia histó-
rica, onde o autor chama a atenção para a potencialidade de
seus referenciais teóricos e metodológicos quando trata de fon-
tes eclesiásticas para os estudos de grupos socioeconômicos.
Nesse sentido, a micro-história é a principal referência, especial-
mente quanto à redução do foco da análise para analisar um
grupo de negociantes que atuava na parte mais meridional da
América portuguesa, permitindo refletir a respeito das rotas de
comércio da primeira metade do século XIX. Um dos métodos
utilizados nessa pesquisa é o cruzamento nominal a partir de
registros de batismo, casamento e óbito, o que permitiu conhe-
cer informações que podem contribuir para investigar a atuação
14
de um determinado grupo socioeconômico. Desse modo, o au-
tor selecionou a família de um comendador para investigar as
relações estabelecidas entre os comerciantes que atuavam a par-
tir de Porto Alegre nas primeiras décadas do século XIX.
Em Vozes da Ordem: proprietários, trabalhadores livres e escra-
vos na fronteira meridional do Brasil (Alegrete 1827-1850), de Luiz
Augusto Farinatti, percebemos a metodologia serial centrada em
fontes massivas e reiterativas, como inventários post mortem e
escrituras públicas. Contudo, o autor procurou agregar técnicas
inspiradas na micro-história italiana “visando problematizar as
conclusões a que havia chegado a partir de categorias homogê-
neas e, assim, alcançar uma visão mais complexa de meu objeto
de estudo”. Desse cruzamento de fontes e análise detalhada dos
dados, o artigo nos apresenta informações diferentes a respeito
do universo agrário da região estudada (metade oeste do RS),
afastando-se de estereótipos que viam “naqueles campos uma
rígida dicotomia entre grandes estancieiros x peões livres prole-
tarizados.” E comprovando o alcance geral que um estudo de
micro-história permite, o texto nos mostra que a escravidão na
campanha sul-rio-grandense era elemento central na reprodu-
ção da grande pecuária, e, mesmo nos estabelecimentos meno-
res, o trabalho cativo mostrava-se extremamente difundido.
O artigo de Jonas Vargas, intitulado “Entre o local e o glo-
bal”: imigração, relações sociais e perfil ocupacional dos estrangeiros na
cidade de Pelotas (1850-1890), traz a análise das relações sociocul-
turais entre estrangeiros e luso-brasileiros na cidade de Pelotas.
Privilegiando a escala microanalítica, o autor busca oferecer
dados quantitativos a respeito do fluxo de estrangeiros em uma
cidade do interior do Rio Grande do Sul, conhecida no século
XIX como núcleo charqueador dos mais importantes. O traba-
lho tem por finalidade contribuir com o tema das relações de
imigrantes europeus e famílias originárias do local, oferecendo
possibilidades de análise e comparações bem como esclarecen-
do quais foram as estratégias de quem procurava se inserir na
Apresentação
15
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
sociedade de elite da época. Os sujeitos eram permeados por
uma racionalidade limitada e seletiva, jogando com os recursos
disponíveis num emaranhado de relações que podiam ser tanto
amistosas como conflituosas. O artigo conclui afirmando que
Pelotas era muito mais do que um núcleo charqueador, e que
não estava polarizada entre os senhores da carne e seus escra-
vos. No final dos anos 1870, o município possuía quase 30 mil
habitantes e havia se tornado o cenário de um grande número
de profissionais de diferentes áreas, atingindo um notável grau
de desenvolvimento econômico e cultural para os padrões da
província sul-rio-grandense.
Por fim, apresentamos uma Resenha Crítica, realizada por
Maíra Vendrame, da obra A História de Pierina, de Yonissa Wadi,
publicada em 2009. O livro parte da trágica trajetória de uma
mulher de 28 anos, moradora de uma região de colonização ita-
liana no sul do Brasil, que mata sua filha e, a seguir, é internada
em um Hospício em Porto Alegre. O livro resenhado apresenta
novas interpretações sobre a condição feminina, revelando as
tensões da vida familiar numa comunidade rural e as relações
entre subjetividade, sociedade e saber médico psiquiátrico no
Rio Grande do Sul na primeira década do século XX.
A diversidade de objetos, recortes e enfoques presentes nos
artigos deste livro comprova que a micro-história não está res-
trita a esta ou àquela temática, pois o método permite o estudo
de todo tipo de assunto. Porém, os pontos que unem a todos os
textos é o cruzamento de fontes de origens diversas e a preocu-
pação em construir uma narrativa que satisfaça o leitor exigen-
te, mas também seja acessível para público mais amplo – esfor-
ço, aliás, que, embora não restrita a eles, faz parte das preocupa-
ções dos chamados “pais” da Micro-História italiana.
Os organizadores
Parte I
Sobre a Micro-História:
caminhos e perspectivas
18
30 anos depois:
repensando a Micro-História1
Giovanni Levi
Poucas experiências historiográficas suscitaram tantos equí-
vocos como aconteceu com a micro-história. Seu amplo sucesso
aconteceu, com certeza, por responder a uma série de exigências
existentes entre o final dos anos setenta e o começo dos anos oi-
tenta, seguindo a polarização da época: os jovens historiadores e
os desiludidos com a história total que não mais acreditavam na
capacidade de reconstruir, mesmo que parcialmente, a verdade
dos fatos do passado. Os jovens historiadores, por seu turno,tam-
bém se separavam daqueles que pensavam ser possível entender a
realidade por meio de uma série de conceptualizações teóricas,
geralmente de origem positivista, que tornava mais rígido os fe-
nômenos, as relações de causa e efeito e os instrumentos de inter-
pretação. Afinal, era essa a doença da historiografia da esquerda
italiana naqueles anos que os jovens historiadores procuravam
superar. O fascínio do positivismo é aquele de pensar de ter en-
contrado a solução que permitisse a explicação dos fenômenos
sociais, culturais, psicológicos e sociológicos. Uma renúncia à
complexidade, à problematização para poder encaixar tudo den-
tro dos esquemas construídos uma vez por todas. Tudo isso teve
uma série dolorida de efeitos sobre a política, antes mesmo do
que sobre a leitura da história.
A origem do equívoco acerca da micro-história estava tam-
bém no nome, que chama atenção mais para a observação de coi-
1 Tradução e revisão: Francesco Santini, Maíra Vendrame e Alexandre Karsburg.
19
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
sas pequenas, acontecimentos, situações individuais ao invés de
ser visto como um problema de metodologia histórica, de análise
minuciosa, de uma observação profunda e concentrada em um
ponto específico. Podemos, portanto, dizer que a principal das
vulgarizações da micro-história foi ligada a uma série de eferves-
cências, denominadas renascimento da narração ou retorno ao
acontecimento. Partamos, então, desta perspectiva que nasce, a
meu ver, não somente de um equívoco sobre o que a micro-histó-
ria italiana propunha-se, mas também de uma imagem errada do
próprio ofício de historiador e da sua relação com os fatos, e do
problema da tradução da realidade na escrita, da relação entre
conhecimento e fatos como aconteceram “ali fora”.
Malgrado as muitas posições e motivações que levaram a
uma deturpação da micro-história quando comparada à sua ori-
gem em um grupo de pesquisadores italianos, todas essas podem
ser unificadas mais na atenção que foi direcionada aos temas tra-
tados do que aos problemas de método. Assim, podemos dizer
que há somente duas leituras contrapostas na micro-história: uma
que remonta a uma teoria da história tradicional, na qual o con-
teúdo prevalece sobre o método, e a outra que insiste no método e
na discussão do aspecto cognitivo da pesquisa histórica; de algu-
ma forma, prevalece esse aspecto sobre o conteúdo da pesquisa.
Tomarei como exemplo da primeira Peter Burke que, escre-
vendo sobretudo de macro-história, interessou-se bastante pela
micro-história e contribuiu de maneira relevante à propagação de
uma interpretação “por conteúdos”. Em um artigo recente define
a micro-história de três maneiras:
1. A definição genérica é chamar a micro-história de qual-
quer estudo de um local ou de pequena escala que é empreen-
dida a fim de iluminar problemas maiores [...]. O ponto, nas
palavras de Hans Medick,2 é ver a história local como histó-
ria geral [...]. É o estudo de uma comunidade;
2 NDT: Historiador alemão que faz parte da rede internacional de Micro-Histó-
ria (http://www.microhistory.eu/). Também é professor da Universidade de
Erfurt, Alemanha.
20
2. Uma segunda variedade de micro-história pode ser chama-
da de ‘microbiografia’, que é a biografia de um indivíduo re-
lativamente pouco importante;
3. Uma terceira maneira de ver a micro-história é entendê-la
como a narrativa de um evento em pequena escala que pode
ou não ter repercussões mais amplas [...]. O chamado ‘renas-
cimento da narrativa’ também fornece suporte à micro-histó-
ria (BURKE, 2008, p. 262-264).
O nascimento da micro-história está, para Burke, estreita-
mente ligado à “perda de credibilidade na grande narrativa, ca-
racterística da pós-modernidade, seja a liberal ou a marxista [...] e
à crítica das estruturas com ênfase no indivíduo”. Na opinião de
Burke, a novidade e o caráter da micro-história são, portanto, re-
lativos a seus conteúdos, à história vista de baixo, à atenção ao
indivíduo e ao acontecimento como crítica do caráter cognitivo
que a história pensava ter antes da crise das grandes ideologias,
como expressão da desconfiança na pesquisa da verdade do pas-
sado e da dissolução da história na narração e na ficção.
Naturalmente, cada interpretação é legitima, especialmen-
te agora que a “marca” micro-história se espalhou de modo a co-
brir uma quantidade fragmentária de escritos, que de fato reme-
tem à definição à qual Burke refere-se. Todavia, a experiência de
um grupo restrito de historiadores italianos que se ligou à expe-
riência da micro-história no final da década de 70 era totalmente
diferente. Apesar de ser uma posição particular, tentarei transmi-
tir uma imagem da micro-história que talvez possa refletir a opi-
nião de muitos micro-historiadores: afirmo que o seu nascimen-
to, no final da década de 70, teve, antes de tudo, uma origem po-
lítica. Eram anos de cansaço da esquerda italiana, no qual muitas
tensões e muitos acontecimentos misteriosos nunca foram resol-
vidos: entre a restauração conservadora depois do outono quente
e o ano de 1968, houve atentados terroristas e derrotas do movi-
mento sindical e das suas instâncias de conselho. Esse momento
colocou em evidência a fragilidade das forças progressistas na Itália
e os limites e a inércia da sua análise política. Filha de uma longa
tradição operária, a esquerda italiana ficara confinada em uma
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21
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
imagem estática da estrutura social e se adequara a uma ideia de
automatismo, conforme o pertencimento de classe, das escolhas
políticas e ideológicas. Perante as mudanças profundas da orga-
nização da economia e da sociedade, as simplificações de leitura
começavam a mostrar a própria esterilidade. Isto era mais visível
ainda na historiografia, na história do movimento operário e na
interpretação histórica do desenvolvimento distorcido da econo-
mia italiana. A micro-história nascia, pelo menos em minha opi-
nião, da necessidade de recuperar a complexidade da análise, da
renúncia às leituras esquemáticas e gerais para poder observar
realmente como se originavam comportamentos, escolhas e soli-
dariedades.
Havia modelos importantes desta reflexão, começando da
leitura do Gramsci feita pela historiografia marxista inglesa, por
E.P. Thompson em especial, ou pelo trabalho minucioso dos an-
tropólogos de Manchester (Clyde Mitchell, por exemplo) ou por
pesquisadores isolados, mas muito inovadores, como Natalie Ze-
mon Davis. Portanto, dentro da redação da revista “Quaderni Sto-
rici”, para a qual muitos de nós colaborávamos (Edoardo Grendi,
Carlo Poni, Carlo Ginzburg), começou-se a discutir acerca do
problema que poderíamos definir como o resgate da complexida-
de. Assim, em 1980-81, nascia a coleção “Microstorie”, da editora
Einaudi, com breve manifesto que levava a minha assinatura, mas
que era o produto de uma discussão com outros, antes de tudo
com Ginzburg, que dirigiu a coleção comigo durante algum tem-
po. Acredito que seja esta uma boa ocasião para retomar àquele
documento que depois injustamente desapareceu da discussão:
Os historiadores discutem frequentemente o que queria dizer
o Duque d’Auge, em Fiori blu, de Queneau, quando interro-
gava Don Biroton, o capelão:
– Diga-me, tal Concílio de Basileia, é história universal?
– Mas claro: é história universal em geral.
– E os meus canhõezinhos?
– História geral em particular.
– E o casamento das minhas filhinhas?
– Apenas história événementielle. Micro-história, no máximo.
22
– História como? – grita o duque d’Auge – que diabo de lin-
guagem é esta?
– Que dia é hoje? Pentecoste?
– Desculpe-me senhor, são os efeitos do cansaço.
Esta irônica hierarquia das histórias e o cansaço do cape-
lão são, com certeza, muito diferentes das motivações pelas quais
nasceu a coleção Microstorie. A condenação do acontecimento em
favor de fenômenos estruturais é uma discussão que já foi supera-
da. O problema, porém, permanece. Como chegara generaliza-
ções sem esquecer dos indivíduos e das situações? Ou, vice-versa,
como descrever situações, pessoas sem cair em tipologias, exem-
plos e sem renunciar à compreensão dos problemas gerais?
É, talvez, partindo deste problema não resolvido que os his-
toriadores são frequentemente levados a falar das próprias insa-
tisfações, às vezes enfrentadas com a descoberta de novas realida-
des, novos sujeitos. O resultado corre o risco de se tornar lastimo-
so: a historiografia apagou as classes populares, as mulheres, as
culturas orais, a vida quotidiana, os mundos marginais, as socie-
dades diferentes da nossa. Com isso, não quero de certo escapar
daquelas que são as minhas reclamações, mas não basta falar de
alguém para incluí-lo na história do mundo, para mostrar a pre-
sença e a relevância deste. A questão central é como falamos des-
se sujeito.
Nesse sentido, Microstorie é, antes de tudo, uma tentativa
de narrar sem esconder as regras do jogo que o historiador se-
guiu. Claro, não somente remontando aos documentos – isto faz
parte da normal ética profissional. Porém, com a declaração aberta
do processo por meio do qual a história foi construída: os cami-
nhos certos e aqueles errados, a maneira pela qual as perguntas
foram formuladas e as respostas procuradas. Pois que o minucio-
so trabalho de laboratório não permaneça escondido e a receita
não fique um segredo do cozinheiro. Porque os verdadeiros ex-
cluídos da atenção dos historiadores nãos são os protagonistas
negligenciados dos fatos, mas os leitores esmagados pelas pesa-
das interpretações gerais, opiniões discutidas em condições desi-
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Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
guais entre quem escreve e quem lê, mecanismos causais simplifi-
cados e estabelecidos a posteriori. Destas indagações realizadas a
partir do nome do assassino, o verdadeiro excluído é o consumi-
dor dos livros de história.
Microstorie não é, então, necessariamente a história dos ex-
cluídos, dos pequenos, dos que estão nas margens ou além delas.
Antes de tudo, pretende ser a reconstrução dos momentos, situa-
ções, pessoas que, observados com olhar analítico, em um âmbito
circunscrito, recuperam um peso e uma cor; não como exemplos,
na falta de explicações melhores, mas como referência dos fatos à
complexidade dos contextos nos quais os seres humanos agem.
A escala é reduzida, diversamente do que acontece normal-
mente, e isto coloca em xeque os instrumentos conceituais do nos-
so ofício: consumados por causa do uso frequente, entre alusão e
metáfora, cobriram-se da ferrugem da ambiguidade. Pensemos,
por exemplo, as definições cômodas que já se usam para explicar
posicionamentos e comportamentos políticos ou estratificações
sociais e formas de poder: cultura popular, classe média, classe
operária, estado absoluto, camponeses. Malgrado a sua utilidade
hoje requerem sempre mais a especificação e a verificação de
situações concretas, nas quais o indivíduo abstrato volte a fazer
parte, na realidade, a uma forma particular de sociedade, cujas
circunstâncias concretas permitam entender os sucessos e os in-
sucessos dos seus esforços para mudar.
Escolhendo os títulos da coleção, partimos, então, destas
considerações que nos propunham duas alternativas não mistifi-
cadoras no estudo dos mecanismos de causa nos fatos sociais. De
um lado, o consciente isolamento de um sistema normativo (as
leis dos casamentos entre consanguíneos no livro de Raul Merza-
rio (1981), por exemplo), sem introduzir furtivamente a preten-
são de que isto explique uma sociedade na sua complexidade: é o
isolamento abaixo da lupa do pesquisador e do leitor de uma peça,
que para funcionar será encaixada no contexto global, mas que é
movida, de forma experimental, no vácuo. De outro lado, o estu-
do de situações ou pessoas no próprio contexto, ou seja, na com-
24
plexa relação de escolhas livres e de vínculos que indivíduos e
grupos realizam nos interstícios da pluralidade contraditória dos
sistemas normativos que os governam. Estas escolhas e estas con-
tradições são o motor interno da mudança social, que assim não
é visto em um sentido único, como um poder imóvel e imodificá-
vel e em momentos extraordinários de revolta aberta, mas como
fruto de um contínuo conflito cujos efeitos o historiador só pode
mensurar. O normal e o cotidiano tornam-se protagonistas da his-
tória e as situações singulares assumem a intensidade de pontos
de vista pelas quais explicam os funcionamentos sociais globais.
Muito frequentemente as explicações que simplificam os
mecanismos causais tendem a descrever o passado como um ne-
buloso mecanismo de necessidades biológicas, políticas e econô-
micas. Foi introduzida assim uma visão evolucionista, apologéti-
ca do presente e do fato existente. Neste sentido, as duas alterna-
tivas que procuraremos documentar e as regras em conflito ope-
rantes em cada situação, são também uma perspectiva de pesqui-
sa diversa. Nos escritos de E.P. Thompson, as raízes de todo o
renovamento da história social são, nas suas próprias palavras,
uma resposta àqueles que descrevem “o homem como acorrenta-
do pela necessidade e sobre o qual domina um único absoluto”
(THOMPSON apud LEVI, 1981, p. 14).
As palavras-chave eram claras: lupa ou microscópio, expe-
rimento, contexto, complexidade, escolha, vínculos, interstícios,
conflitos, pontos de vista. Uma série de práticas e de métodos ao
invés de uma teoria. Todavia, a proposta da micro-história chega-
va em um mundo historiográfico muito sensível. Não era somen-
te o caráter da decisiva mudança que caracterizava os anos oiten-
ta desde seu início. Além disso, a crise do sistema soviético que se
aproximava e a fragmentação do sistema mundial depois do fim
do bipolarismo, fizeram sentir com brutal evidência os seus efeitos
no debate historiográfico, colocando em xeque a historiografia
de inspiração marxista, mas também, a história social em geral, a
experiência central dos “Annales” franceses que falaram do mo-
mento crucial de mudança ou dos “Subaltern Studies” indianos,
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Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
que abandonaram o marxismo para uma atenção bastante confu-
sa aos “post-colonial studies”. No centro da atenção apareciam te-
máticas culturalistas que progressivamente se abriam às dúvidas
relativistas do desconstrutivismo ou à identificação da historio-
grafia com a ficção.
A própria historiografia, afinal de contas, havia perdido a
sua centralidade entre as ciências humanas, visto que é difícil es-
tudar o passado quando não há perspectivas para o futuro e tam-
bém porque o papel central que tinha até os anos sessenta a havia
deixado atrasada no que diz respeito ao debate que outras ciências
humanas estavam enfrentando: a definição de uma racionalidade
incompleta e não uniforme na teoria econômica, a autoridade do
cientista em antropologia, a ambiguidade das identidades pesso-
ais e a não linearidade do personagem homem na teoria literária
e no romance. Contemporaneamente, o senso comum historio-
gráfico mudara frente às simplificações e às acelerações com as
quais as mídias propunham as temáticas históricas, que a lenti-
dão da pesquisa e a complexidade reconstruída justamente pela
historiografia não eram capazes de contrastar sem um profundo
renovamento. Também o número de leitores havia diminuído,
atraídos frequentemente mais pelas imagens do que pelas páginas
escritas, mais pela internet do que pelos livros, uma atmosfera
mudada que hoje ainda encontra dificuldades em se colocar em
um quadro mais sólido.
Era inevitável que também a micro-história sofresse altera-
ções, interpretações distorcidas, simplificações. Mesmo assim, sua
proposta teve e continua tendo uma forte ressonância, até porque
teve – me parece – uma sensibilidade maior em comparação à
história mais acadêmica, às novas instâncias que os novos pes-
quisadores e novos leitores colocavam. Esta quis, no fundo, mos-trar não a fragilidade das generalizações na história, mas aquilo
que o historiador pode e deve generalizar são as perguntas, que se
podem pôr em contextos temporais e espaciais diferentes, deixan-
do às situações singulares a sua especificidade não repetível. Em
um mundo que não acredita mais que se possam achar funda-
26
mentos comuns e universais, a interrogação acerca do modo de se
organizar dos homens e sobre como dar sentido ao mundo de
cada um, continua a nos requerer exercícios de micro-história.
Vejamos, portanto, quais são os caráteres da micro-história
que a tornaram algo diferente de uma pura identificação de novos
temas de pesquisa ou da recusa das sínteses e da macro-história.
Eu os esquematizaria desta maneira:
1. Uma definição da atividade do historiador que quer con-
temporaneamente preservar a absoluta não repetitividade dos
acontecimentos e a possibilidade da generalização, partindo dos
casos particulares. Digamos então: a história é a ciência da espe-
cificidade dos casos, da generalização não das consequências, mas
das perguntas. As mesmas perguntas podem ser direcionadas a
contextos diferentes, não para ter confirmações e analogias ou
semelhanças, mas para ter respostas válidas somente naquele caso
específico. A história, partindo do exame de vários casos, ou de
um caso, identifica relevâncias, perguntas gerais que orientam a
leitura dos casos que conservam a sua especificidade. Disso dou
um exemplo um tanto paradoxal: a identificação feita por Freud
partindo de casos singulares do complexo de Édipo, como um
problema relevante na análise, deixa a cada um o seu modo espe-
cífico de gerir o problema, que também se põe como pergunta e
relevância geral.
2. Sendo assim, não é a busca do típico: seria uma traição
da história negar que não há um quadro típico, uma pessoa típi-
ca, um lugar típico, se por típico entendemos que estudado esse
seremos iluminados acerca de outros casos da série. O caso típico
não existe, mas a pergunta de validade geral sim. Não é típico
Ménétra, malgrado que a introdução de Daniel Roche (1982) ao
seu Journal extraia deste os caráteres típicos do compagnonnage,
eliminando quanto de pessoal e interessante há na vida de Méné-
tra. Tampouco Gonzalez (1968) ou Montaillou de Le Roy Landu-
rie (1975), obrigado a menosprezar a história de um grupo de cam-
poneses que sofre violências atrozes por defender a própria fé re-
LEVI, G. • 30 anos depois: repensando a Micro-História
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Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
ligiosa herética, para chamar a atenção dos aspectos que torna-
vam a aldeia uma ilustração típica da sociedade camponesa de
seu tempo.
3. Não quer, contudo, contrapor às grandes narrações o pe-
queno acontecimento ou à história individual, renunciando a uma
busca da verdade. Não é então relativismo, pelo contrário: as gran-
des narrações renunciaram a uma parte fundamental da história,
seguindo os modelos estrutural-funcionalistas de uma ciência in-
dutiva à procura de leis de validade universal e apagando como
irrelevantes o acontecimento e as pessoas. A recusa da história
événementielle de Braudel faz o paralelo com a definição de Rad-
cliffe-Brown da antropologia social:
A continuidade da estrutura social, exatamente como aquela
de uma estrutura orgânica, não para de existir por causa do
variar das unidades singulares. Alguns indivíduos podem de-
saparecer, por causa de morte ou por outras razões, outros
podem começar a fazer parte dela. A continuidade da estru-
tura social se mantém para o processo da vida social (RAD-
CLIFFE-BROWN, 1935, p. 5).
A micro-história não isola o fato observado do contexto
geral, mas busca, em um exame rigoroso de um caso singular, as
perguntas fundamentais que permitam uma reconstrução da rea-
lidade sempre parcial, mas não por isso livre de um fragmento
importante de verdade.
4. Por fim, muda a imagem da realidade. As leituras ma-
cro tendem à linearidade, coerência, continuidade, certeza – até
quando escrevem uma biografia – e tendem a dar o sentido de
uma informação completa ou pelo menos a usar uma autoritá-
ria proposta de informação coerente e total. Creio que, nisso, a
micro-história tenha contrastado um dos atrasos maiores da his-
toriografia frente a outras ciências sociais, recuperando a incer-
teza, a incoerência, a não linearidade. Pensemos que a econo-
mia, nestas últimas décadas, está em um processo de revisão de
suas bases teóricas neoclássicas, que imaginavam protagonistas
por convenção, semelhantes por racionalidade, finalidade e in-
28
formação. Hoje, no centro do debate teórico dos economistas,
está justamente isso: em que termos é possível construir uma
teoria econômica tendo em conta a diferenciação e a incoerên-
cia da racionalidade, dos escopos, das necessidades, dos desejos
e dos valores dos seres humanos?
5. A micro-história parte considerando as incongruências
do real e a parcialidade do conhecimento – o que não quer dizer
que não nos aproximemos da realidade indefinida, mas somente
que sempre é possível rediscutir e encontrar outras perspectivas
de leitura. É, portanto, o método que está no centro do trabalho
dos micro-historiadores. A observação no microscópio de um fato
permite fazer novas perguntas que ampliem a nossa compreensão
da realidade e que aumente nossos procedimentos cognitivos. Não
é uma recusa das grandes narrações, mas tem o mérito de corrigir
as suas simplificações e modificar as suas perspectivas e concep-
tualizações. Além disso, pela consciência que deve ser declarada
e elaborada como parte fundamental do trabalho do historiador,
segundo a qual a história escrita nos documentos é sempre par-
cial e lacunar, além de ser, de muitos modos, falsa.
A atitude experimental que uniu, no fim dos anos setenta, o
grupo de estudiosos italianos de micro-história [...] estava
baseada sobre a aguda consciência que todas as fases que
marcam a pesquisa são construídas e não dadas [...], mas esta
ênfase ao momento construtivo relativo à pesquisa unia-se a
uma recusa explícita das implicações, céticas (pós-modernas,
se preferirem) assim presentes na historiografia europeia e
americana dos anos oitenta e dos primeiros anos noventa
(GINZBURG, 2006, p. 266).
6. Acredito ser necessário destacar o estreito vínculo entre
o nascimento da micro-história e a crítica política. Uma crítica
interna à esquerda nascida de um grupo de historiadores com pro-
fundas raízes no marxismo e, todavia, sempre externos ao Parti-
do Comunista, baseado em posicionamentos liberal-socialistas
(naquela que foi definida a corrente libertária do liberal-socialis-
mo), à esquerda do conservadorismo cultural da política e da his-
LEVI, G. • 30 anos depois: repensando a Micro-História
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Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
toriografia comunista. Contudo, essa é uma referência particular-
mente italiana que remonta ao azionismo e a Carlo Rosselli3 que
não posso pedir que o leitor não italiano entenda plenamente.
7. Estas são, então, as questões e os pontos de interrogação
comuns que caracterizam a micro-história: a redução da escala
de análise, o debate sobre a racionalidade, o indício como para-
digma científico, o papel do particular (não em oposição ao so-
cial), a atenção à recepção e à narrativa, uma definição específica
de contexto e a rejeição do relativismo (LEVI, 1991, p. 110). Esta
era a síntese de um ensaio escrito por mim em 1991, que tinha
como objetivo demonstrar como – por mais que fossem distantes
os temas e as atitudes dos micro-historiadores, divididos entre
história social e cultural – havia uma substancial homogeneidade
de métodos e de problemas.
Portanto, se voltamos a Peter Burke, parece-me evidente
que a sua leitura por temáticas não somente distorce a micro-his-
tória, mas atribui ao nosso trabalho caráteres ideológicos distan-
tes dos nossos objetivos e da realidade do nosso trabalho. Micro-
história é, pela definição de Burke, “um tema particularmente ita-
liano, circunscrito às lealdades locais e às vezes descrito como
campanilismo”.4Sendo assim, o motivo psicológico do nascimen-
to da micro-história estaria ligado ao interesse do historiador em
ocupar-se de uma aldeia ou de uma pessoa. E ainda: “estudos
comunitários do passado apelam à nostalgia e à preocupação com
a sobrevivência das comunidades no presente”. Ou mesmo:
Narrativas históricas de eventos em pequena escala são mui-
tas vezes o que o jornalista chama de “histórias de interesse
3 NDT: o autor refere-se ao período em que surge o Partito d’Azione, durante o
julho de 1942, em plena Guerra Mundial, pela confluência de duas organiza-
ções políticas antifascistas, o movimento Giustizia e Libertà (que entre os seus
fundadores vê o mencionado Carlos Rosselli) e do liberal-socialismo. Para mais
informações consultar a referência a seguir. Enciclopédia Treccani. Disponível
em: <http://www.treccani.it/enciclopedia/partito-d-azione_%28Enciclopedia-
Italiana%29/>. Acesso em: 13 nov. 2016.
4 NDT: campanilismo é sinônimo de história paroquial.
30
humano”, narradas mais ou menos para si mesmas e combi-
nando a atração pelo passado com a de uma história de dete-
tive ou drama [...]. Não poucas micro-histórias têm um forte
cheiro de sexualidade e escândalo, e algumas têm títulos sen-
sacionalistas (BURKE, 2008, p. 263-64).
Não quero concluir sem lembrar que hoje a micro-história,
em uma leitura rigorosa, continua trilhando o próprio caminho
de debates, e quem está lendo estas páginas encontrará, em ou-
tros livros e artigos, confirmações e diferenças com os quais estou
fortemente de acordo. Lembrarei ainda dois desses que marcam
esta discussão: o artigo de Edoardo Grendi – o verdadeiro pai da
micro-história – Micro-analisi e Storia sociale (GRENDI, 1977, p.
506-20) e um livro de Henrique Espada Lima que é, talvez, o mais
completo e inteligente exame dos caráteres, dos objetivos e tam-
bém dos limites desta proposta metodológica (LIMA FILHO,
2006).
Escrevendo estas páginas em homenagem a um amigo que
completa 60 anos, voltei a me debruçar sobre um debate em parte
estéril, apesar de achar que a micro-história tenha ainda hoje um
forte potencial de estimulo à pesquisa, em um mundo que muito
mudou e no qual a fragmentação e a fragilidade própria do papel
da historiografia tornaram-se a cada dia mais evidentes. Os mes-
mos livros perderam a sua centralidade esmagados pelas mídias
que sugerem metodologias alternativas, a velocidade e a simplifi-
cação de encontro à nossa lentidão e maneira de complexificar.
Entretanto, Matti Peltonen5 levou muito a sério a micro-história e
a ele devemos a difusão do trabalho da micro-história italiana na
Finlândia: talvez ele se interesse por essas melancólicas conside-
rações.
5 NDT: professor de história cultural na Universidade de Helsinki, Finlândia,
que estuda o desenvolvimento da agricultura na Escandinávia.
LEVI, G. • 30 anos depois: repensando a Micro-História
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Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
Referências
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GRENDI, Edorado. “Micro-analisi e storia sociale”. In: Quaderni Storici.
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RADCLIFFE-BROWN, A. R. “The function concept in social scien-
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ROCHE, Daniel. Journal de ma vie. Edition critique du jornal de Jacques-
Louis Ménétra, compagnon vitrier au XVIIIé sieècle. Paris: Montalba,
1982.
32
A longa marcha da Micro-História:
da política à estética?*
Maurizio Gribaudi
Não sei se estou qualificado para descrever a experiência
da micro-história. Acredito, de fato, ser o único dentre os muitos
alunos de Giovanni Levi a ter defendido, há muitos anos, uma
tese de graduação acerca da permanência das formas modais na
música popular piemontesa. Esta tese, com certeza pouco orto-
doxa, era uma análise de como, em muitas formas da música po-
pular, manteve-se a profundidade de cores e a riqueza expressiva
das antigas tonalidades modais, não obstante a introdução maci-
ça da rígida estrutura tonal durante o século XIX. A tese pouco
tinha a ver com a matéria de docência de Levi, a história econô-
mica. Aliás, “nada mesmo”, como havia literalmente gritado Gi-
ovanni Tabacco, presidente da banca examinadora de graduação
que me “convidou” a sair de imediato da sala. Contudo, pude
voltar a defender a tese graças a Levi que havia insistido com os
membros da banca, defendendo a aproximação metodológica “his-
toricamente válida”. Assim, obtive meu diploma.
Não se trata somente de uma anedota autobiográfica diver-
tida. Antes, acredito ser esta minha experiência um interessante
caso onde se pode visualizar um contexto acadêmico muito parti-
cular – estamos em plenos anos 70 – e de uma atitude específica a
respeito da pesquisa e da cultura universitária de enorme e des-
* Artigo originalmente publicado em: Microstoria: a venticinque anni da L’eredità
immateriale, organizado por Paola Lanaro, Milano (IT), 2011, p. 9-23. Tradu-
ção e revisão: Francesco Santini, Maíra Vendrame e Alexandre Karsburg.
33
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
contraída abertura disciplinar: qual docente de história econômi-
ca correria o risco, hoje, de orientar uma tese deste tipo?
Sobretudo, parece-me difícil escrever a respeito do trabalho
de Giovanni quando se trata de retomar as numerosas problemá-
ticas levantadas pela micro-história e especialmente pelos seus
ensinamentos. Giovanni talvez não se reconheça na minha leitu-
ra, convicto como estou que a micro-história é um pouco como o
Talmude: um corpus de textos rico e variado, no qual se pode ler
de tudo um pouco, no qual todos leram, leem e lerão ainda quase
tudo.
Esclarecido isso, é verdade que esse aspecto faz parte do
conteúdo da nossa discussão, pelo menos por duas razões. Antes
de tudo porque, como Giovanni sempre repetiu até perder a voz,
a variedade de pontos de vista é dada pela própria natureza dos
fatos sociais enquanto produto de interpretações individuais de
imagens normativas, reais ou presumivelmente reais.
A ambiguidade das regras [salientava nas primeiras páginas
da Herança Imaterial], a necessidade de tomar decisões saben-
do estar em uma situação de incerteza, a limitada quantidade
de informações que, mesmo assim, permite agir, a tendência
psicológica a simplificar os mecanismos causais que se consi-
deram relevantes na determinação dos comportamentos e, por
fim, a consciente utilização das incoerências entre sistemas
de regras e de sanções (LEVI, 1985, p. 6).
Em segundo lugar, porque a rica e animada experiência his-
toriográfica que foi a micro-história – e a ainda mais incrível ca-
pacidade de Giovanni de construir uma problemática metodoló-
gica crítica – estimulou uma miríade de leituras diversas e deu
impulso para dezenas e dezenas de jovens debruçarem-se de ma-
neira diferente sobre os objetos da história e das ciências sociais.
O modo de ensinar de Giovanni nunca foi dogmático. Verdadeiro
mestre, ele sempre se recusou a direcionar seus alunos para a apli-
cação cega ou sem originalidade de métodos e problemáticas pré-
moldadas. Ele quis e soube, contudo, valorizar as perguntas de
cada aluno.
34Justamente por estas razões, é impossível retomar todas as
temáticas e os caminhos abertos a partir das sugestões e desenvol-
vidos nos trabalhos realizados sob sua direção. Em parte, esses
emergem das intervenções recolhidas nesta coleção. Deveriam,
contudo, ser lembrados também muitos outros trabalhos impor-
tantes, como aqueles de Sandra Cavallo, Simona Cerutti, Silvana
Patriarca, para citar algumas outras alunas de Giovanni que são,
mais ou menos, da minha geração. De minha parte, limitar-me-ei a
evocar uma dimensão particular da experiência micro-histórica nos
seus anos fundadores, frequentemente esquecida ou até ignorada:
aquela da pesquisa histórica como intervenção política ativa.
A história como ato militante
e tomada de posição política
O sucesso alcançado pela micro-história a partir dos anos
oitenta, a sua internacionalização e a progressiva institucionali-
zação, fez esquecer que muitos de seus protagonistas originais
quiseram abrir uma discussão antes de tudo política, e não so-
mente um debate historiográfico. Na ótica dos anos setenta e na-
quela de alguns de seus historiadores mais expressivos como Gio-
vanni Levi e Edoardo Grendi, isso significava uma tomada de
posição crítica extremamente lúcida no que diz respeito aos mo-
delos e aos instrumentos interpretativos da esquerda. Contraria-
mente ao que seguem afirmando numerosos manuais e textos
apologéticos, surgidos em toda parte nestes últimos anos, os mi-
cro-historiadores não queriam somente criticar a historiografia
conservadora, mas, mais do que isso, mostrar os trágicos impas-
ses teóricos e práticos de uma esquerda que, baseando-se em uma
visão rigidamente teleológica da história, havia implicitamente
adotado uma série de representações do real e das hierarquias das
relevâncias de tipo economicista e fundamentalmente conserva-
dora. Essa historiografia se limitara, afinal, a assumir uma atitu-
de de arrogante distância frente às críticas a ela direcionadas pela
micro-história. A resposta dos historiadores ligados à esquerda ins-
GRIBAUDI, M. • A longa marcha da Micro-História: da política à estética?
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Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
titucional foi uma declaração de guerra, pois acreditavam que a
experiência historiográfica da micro-história era perigosamente
subversiva. As intervenções mais rancorosas contra a micro-histó-
ria vieram, não por acaso, dos contemporâneos que não queriam
colocar em discussão os modelos marxistas que os inspiravam.
E, em parte, os seus medos eram justificados. A batalha
principal que a micro-história dos anos setenta havia empreendi-
do era aquela contra a visão teleológica da história que a esquer-
da europeia (e a historiografia de esquerda) adotara desde a se-
gunda metade do século XIX. A micro-história se opunha a uma
visão dos processos históricos que pareciam determinados por leis
impessoais e finalizadas pela construção progressiva do presente
no qual está inscrito o observador, e, portanto, também à ideia de
um presente entendido como modernidade, como último aperfei-
çoamento, última etapa no caminho do progresso social.
A fragilidade dos mecanismos causais que os historiadores
usam é relacionada ao fato das suas indagações se desenvol-
verem “a partir do nome do assassino” e as causas tornam-se
campo de opiniões que não podem receber verificação por-
que os fatos permanecem iguais, indiferentes às premissas, às
origens, às causas descritas. É, creio eu, por isso que absorve-
mos fácil e superficialmente os instrumentos das outras ciên-
cias sociais e que conceitos macrossociológicos se instaura-
ram sem modificar nada na nossa maneira de explicar (LEVI,
1981, p. 76).
Enquanto Giovanni dizia e escrevia essas coisas, a historia-
dora Dora Marucco reivindicava como sua a definição de história
social dada naqueles anos por Giuseppe Berta em ocasião de um
convênio da fundação Feltrinelli: “história social como análise da
estrutura de classe, modo de trabalho e vida, para o período que vai
da Revolução Industrial em diante” (MARUCCO, 1981, p. 83).
Eram estes os interlocutores explícitos com os quais a mi-
cro-história tentava dialogar e abrir um debate. Também era este
o tipo de redução simplista da complexidade histórica – estrutura
de classe, modos de trabalho, revolução industrial... – que ela ten-
tava combater. Os instrumentos analíticos da micro-história per-
36
mitiam perceber as incertezas e as hesitações dos percursos so-
ciais, individuais e coletivos, que aquelas reduções drásticas e
simplificadoras tendiam a conjugar em uma ideia de desenvolvi-
mento linear e determinado pelas leis imanentes da história. Não
sei se Dora Marucco reivindicaria ainda tal definição. Provavel-
mente não. Mas este tipo de concepção é ainda muito presente no
campo da historiografia do movimento operário contemporâneo
e da história política.
De tal leitura se extraía, e se extrai ainda, a introjeção acrí-
tica da imagem positivista de progresso que se instaurou nas ciên-
cias sociais da segunda metade do século XIX. Uma imagem que
identificava a razão histórica do idealismo hegeliano com o mo-
delo econômico e de produção dominante, tornando-o a única
realidade consubstancial e possível do presente das sociedades con-
temporâneas.
Lembrar esses aspectos com tais termos poderia parecer ex-
cessivamente banal. Infelizmente, acredito que o sentido profun-
do de muitas das ideias desenvolvidas pela micro-história em ge-
ral e por Giovanni Levi em especial, já trinta anos atrás, continue
a não ser entendido plenamente pelos debates atuais, quando não
é até ignorado ou julgado inaceitável. Acredito que não seja inú-
til, portanto, lembrar como a batalha da micro-história contra a
história teleológica, no contexto da época, visava a uma dupla
operação: por um lado, romper com a ideia de necessidade linear
dos processos históricos e, por outro, restituir a complexidade a
cada fragmento do passado, a plena historicidade de cada presen-
te da história.
O problema para o historiador [continuava Giovanni Levi na
ocasião do debate antes mencionado] não é aquele de negar a
verdade dos mecanismos descobertos, mas de inseri-los no
contexto de uma rede menos restritiva do passado e do quan-
to o nosso senso comum está disposto a resolver as contas
com o passado através do passe-partout do progresso: deve-
mos, talvez, diminuir o passado para simplificar apologetica-
mente a aceitação do presente. Os nossos antepassados esco-
lhiam, lutavam, mudavam o mundo nos interstícios do con-
GRIBAUDI, M. • A longa marcha da Micro-História: da política à estética?
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Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
junto incoerente de normas que a natureza, o poder e as ins-
tituições sobrepunham a eles de forma ambígua. Disso surgi-
am infinitas estratégias de defesa e de ataque, cujo alcance
histórico não se pode entender sem partir da tomada de certo
ponto de vista como central. Por exemplo, a resistência cam-
ponesa à introdução do milho que, apesar das possibilidades
alimentares que se multiplicavam, não era uma luta contra o
progresso. Os camponeses perceberam que o cultivo do mi-
lho perturbava as estruturas de produção dos espaços rurais
provocando um desequilíbrio que favorecia a exploração e a
pelagra. Em outro exemplo, não foram desimportantes as es-
tratégias clientelares com as quais os grupos sociais resolvi-
am ou enfrentavam as suas pequenas querelas com o Estado:
o otimismo com o qual se atribuiu de forma moralizante o
epíteto de ‘atrasado’ a cada tipo de organização de grupo e
da escolha de leaders que não fosse aquela institucional pro-
posta pelos sistemas políticos gerais da sociedade complexa,
obscureceram a compreensão dos conflitos, escolhas políti-
cas, formas sociais (LEVI, 1981, p. 78-79).
Os conteúdos desta longa citação são extremamente im-
portantes e mereceriam uma reflexão muito mais aprofundada.
Limitar-me-ei a salientar como Giovanni Levi manifestou expli-
citamente uma crítica a todas as posturas historiográficas que se-
rializam e conectam comosignificativos unicamente aqueles fa-
tos e aquelas práticas sociais que parecem ligar-se às formas finais
ou mais recentes de um processo histórico. É aquilo que as insti-
tuições e os grupos dominantes fizeram e fazem quando constro-
em suas histórias colocando à frente das instituições e das fontes
de arquivo discursos e representações. Há a necessidade de supe-
rar o vício, profundamente humano, mas extremamente perigoso
para o historiador, de considerar o presente como um estágio mais
avançado do passado, transformando automaticamente este últi-
mo em um momento necessariamente mais hostil e limitado.
Parar de diminuir o passado significa, então, restituir o sen-
tido da sua modernidade relativa, encontrar novamente todos os
elementos que lhe restitua a plenitude, todas as práticas plenas de
futuro que possam adquirir uma coerência naquele momento, mas
que foram sucessivamente apagadas da nossa memória, ou sim-
38
plesmente, interpretadas como marginais e irrelevantes. Resga-
tar, portanto, a complexidade da história além da linearidade apa-
rente induzida pelo prisma deformante das categorias macrosso-
ciológicas utilizadas pelos modelos historiográficos ainda domi-
nantes. Além disso, resgatar as incontáveis coerências sociais di-
ferentes daquelas colocadas em evidência pelos grupos, removen-
do-as assim da sua posição de subalternidade cultural e política.
Tende-se a cair em mecanismos automáticos de explicação
baseados em duas premissas não neutras: a primeira é que as
situações locais, ou pessoais, não são nada mais que o reflexo
– para aquilo que é relevante – do “macro” e que, portanto,
podem ser utilizadas somente para o que possuem de geral
ou como exemplos, somente na falta de uma explicação me-
lhor. [...] Há uma ordem de relevância que assume como in-
discutíveis dicotomias do tipo: cidade-campo, civil-primiti-
vo, culto-ignorante, nos quais a primeira palavra possui uma
prevalência que deriva do progresso e da direção da história.1
Estas propostas, na ótica dos debates dos anos setenta e
oitenta, colocavam explicitamente o problema do protagonismo
social, a necessidade de individualizar, avaliar e mostrar, para cada
indivíduo, a sua qualidade de agente da história.
Não por acaso a micro-história havia aberto um diálogo
importante com a história oral. Desse período, existem numero-
sos textos e projetos, além de uma grande pesquisa dirigida por
Giovanni Levi, acerca dos bairros operários de Turim no inter-
valo entre as duas guerras. Pesquisa que brotou durante a orga-
nização de uma exposição e na criação de um centro de anima-
ção historiográfico no bairro de San Paolo. Era o ano de 1978-
79. Trabalhar com os materiais da história oral parecia impor-
tante também para contribuir em reverter a ordem das relevân-
cias, evitando analisar as práticas sociais através das grades dos
modelos macroestruturais, entrando diretamente na matéria viva
1 NDT: Gribaudi afirma que extraiu esta citação de uma ficha que havia feito no
livro Villaggi: studi di antropologia storica, organizado por Giovanni Levi, Il Mulino,
Bologna 1981. Infelizmente, ele diz que não sabe a referência exata da página.
GRIBAUDI, M. • A longa marcha da Micro-História: da política à estética?
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Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
da história por meio das palavras e das lembranças dos próprios
protagonistas:
Recuperar o sentido histórico das pessoas e dos lugares, dos
objetos e das atitudes é, antes de tudo, a proposta pela qual
em borgo San Paolo, como nos outros bairros de Turim, come-
cei, em conexão com a escola e com as organizações políti-
cas e sindicais de base, um trabalho de discussão, de recolhi-
mento e de reflexão que amplie o mais possível, para além
dos especialistas da área, o número de produtores de história
(LEVI, 1978, p. 44).
Produzir a história, ao invés de ficar passivos a ela. Resti-
tuir a sua dignidade e o seu protagonismo a estas e a todas as
outras experiências sociais esquecidas, apagadas ou removidas.
Este era o sentido da pesquisa e das animações criadas em torno
da exposição de Turim no intervalo entre as duas guerras. Captar
as práticas e as formas culturais apagadas ou ocultadas pelos câ-
nones historiográficos das academias universitárias, mas também
de muitas organizações políticas e sindicais. E, talvez, este era
também o projeto da minha estranha tese acerca da música popu-
lar. Trabalhar os pontos cegos da historiografia oficial para resga-
tar a complexidade dos mecanismos sociais; resgatar o sentido
dos projetos locais e das perguntas que esses carregavam; desven-
dar as lógicas e o impacto sobre os processos históricos. Um pro-
jeto que o grupo de jovens historiadores reunidos em torno de
Giovanni levava com o entusiasmo de uma verdadeira militância
historiográfica.
Abriam-se contatos, discutia-se com os comitês de bairro ou
de aldeia, com organismos sindicais e pequenos grupos políticos.
Frequentemente partia-se à tardinha para discutir com um grupo
de história oral de Milão, Aosta ou Asti. Depois, participava-se da
reunião de bairro em Alessandria, Gênova ou Mântova. Verdadei-
ras expedições que tinham o mesmo sabor e a mesma intensidade
das panfletagens nas fábricas que havíamos conhecido durante os
primeiros anos da década de setenta. Giovanni fizera, tardiamente,
a carteira de habilitação. Não controlava bem o carro. Mesmo mí-
ope, acelerava loucamente para tentar superar os obstáculos. Como
40
magnetizado pelo horizonte e puxado por um volante enlouqueci-
do, levava-nos a uma velocidade insana para estes encontros con-
versando de história, de política e de literatura. Era realmente um
bom período, pelo menos nas minhas lembranças.
Naqueles anos Giovanni organizava, na sua casa, algumas
reuniões nas quais se discutiam vários textos e projetos. Reuniões
que nos marcaram emotivamente e intelectualmente. Dentre as
minhas anotações da época encontro, recorrentemente, longas dis-
cussões sobre a temática da cultura alternativa, da cultura popu-
lar pensada não como alteridade, mas como diferença, como dis-
crepância. Uma leitura diferente de uma mesma realidade. Ex-
pressões de formas de bifurcações possíveis. Eram anos nos quais
ia se desenvolvendo um intenso debate acerca de textos como
aquele de Bakhtin ou de Zemon Davis (BAKHTIN, 1970; DA-
VIS, 1971). Contudo, a especificidade da reflexão micro-histórica
naqueles momentos consistia em inserir estas discussões no inte-
rior de uma perspectiva ao mesmo tempo metodológica e políti-
ca, que colocava explicitamente o problema de subverter centrali-
dades e hierarquias de espaços e de experiências sociais.
Assim, a crítica à história teleológica e quantitativa era tam-
bém uma dura censura ao conceito de progresso e de centralidade
da cultura universitária, vista como primeira e principal expres-
são da evolução histórica das sociedades ocidentais. Edoardo
Grendi, que compartilhava esta aventura – mas de forma mais
distante e menos militante –, chegava lucidamente ao ponto cen-
tral do problema quando escrevia: “Uma proposta de acultura-
ção ao nosso comum etnocentrismo: este é o verdadeiro sentido
político da história como disciplina institucional” (GRENDI,
1981, p. 68).
Perguntas importantes, portanto, e de conteúdo totalmen-
te subversivo, mas que, como há pouco lembrei, tinham sido to-
talmente mal entendidas pela esquerda, com poucas exceções,
talvez somente por alguns componentes da esquerda liberal ou
católica: o resto da esquerda italiana havia recusado as sugestões
da micro-história, interpretando a atenção aos mecanismos inter-
GRIBAUDI, M. • A longa marcha da Micro-História: da política à estética?
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Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
nacionais como uma recusa reacionária dos modelos historiográ-
ficos marxistas, profundamente identificados com a ideia de de-
senvolvimento teleológico da história.
Repensando agora, acredito que a não atenção a propostas
deste tipo, atentas às dimensões da complexidade e da incoerên-
cia dos fatos sociais, talvez constituaum dos numerosos mecanis-
mos que contribuíram para restringir o horizonte dos possíveis
aberto nos anos sessenta e setenta do século XX. Por um lado,
esta ‘surdez’ significou o fechamento e a rigidez ulterior da es-
querda a respeito das posturas historiográficas clássicas, desde
sempre indecisas entre o economicismo e o idealismo. Por outro
lado, este fechamento “político” impulsionou, provavelmente, este
tipo de aproximação em procurar sempre mais os próprios inter-
locutores no exterior e quase unicamente dentro do debate histo-
riográfico. A superação das fronteiras significou de alguma for-
ma o sucesso acadêmico da micro-história, permitindo-lhe ocu-
par, por muitos anos, um lugar central no campo de pesquisa his-
tórica em nível mundial.2 Todavia, este mesmo sucesso a empur-
rou para uma posição paradoxal, levando-a a participar ao pro-
cesso de “acculturazione al nostro comune etnocentrismo” claramente
denunciado por Levi e Grendi.
2 As etapas e os percursos dessa difusão são interessantes e mereceriam um estu-
do próprio. Estes colocam em destaque a geografia dos laços e das hierarquias
institucionais do mundo científico. Introduzida na França e nos Estados Uni-
dos graças a historiadores como Jacques Revel, Natalie Zemon Davis ou Ste-
ven Kaplan, a presença micro-histórica alastrou-se sucessivamente para os cen-
tros subordinados às academias parisienses e americanas, com tempos e dinâ-
micas típicas dos fenômenos de contágio. Seguindo o percurso de difusão da
micro-história, analisando simplesmente as traduções dos artigos principais de
“Quaderni Storici” e as traduções dos livros de Giovanni Levi e de Carlo Ginz-
burg (mesmo que seria importante separar e analisar em particular os projetos
micro-históricos e as realizações propostas por estes dois historiadores), perce-
bia-se, então, que a micro-história impôs-se na França e na América do Norte
durante os anos oitenta e sua influência se estendeu sucessivamente às univer-
sidades do Norte da Europa por volta do fim da década e o começo dos anos
noventa, para depois alastrar-se em seguida para os países do Leste Europeu,
portanto rumo à Europa do Sul, ao Norte da África, à Ásia e à América Latina
(neste último continente com ritmos e percursos particulares).
42
Evolução histórica e modelos historiográficos
Houve também razões institucionais: o isolamento dos
micro-historiadores ao interno das estruturas acadêmicas italia-
nas, o caráter disperso e ao mesmo tempo difuso em diversos pa-
íses e instituições de um grupo que havia construído e mantido
viva uma discussão comum que ligava estreitamente a história e a
pesquisa à política. Provavelmente, isso não chegou a enfraque-
cer a proposta da micro-história, mas deixou para outros, aos “in-
terpreti”, o leme da difusão de um projeto incompleto, porém de
um componente essencial que podia talvez ter consequências mais
radicais. Se uma reflexão em parte crítica sobre aquela experiên-
cia pode ser operada hoje, é justamente essa.
Parece-me que a micro-história, no momento em que con-
seguia alcançar e conquistar um público internacional, encontra-
va-se “fechada” em um debate interno às ciências sociais e ao
papel da história em especial. O contato com outras tradições his-
toriográficas – particularmente com a francesa, mais atenta do
que a italiana aos problemas metodológicos – transformou o proje-
to político e científico da micro-história em prática metodológica,
colocando-a de fato diante de um paradoxo, baseado no fato de ter
desenvolvido um discurso historiográfico que buscava desconstruir
o conceito de progresso – e dos modelos de pensamento que o acom-
panhava – com os instrumentos metodológicos e as práticas insti-
tucionais desenvolvidos a partir deste mesmo conceito.
A micro-história, portanto, encontrava-se também naquele
círculo vicioso que frequentemente limita a força de qualquer apro-
ximação historiográfica que tente romper com as práticas domi-
nantes. Paradoxo que Walter Benjamin expressa bem a propósito
da experiência do movimento operário e daquele operaismo3 her-
dado pelas esquerdas europeias do pós-guerra:
3 NDT: Na linguajem política e sindical, tendência que atribui um papel preva-
lente às reivindicações da classe operária, individuada como única força que
tem a função histórica e a capacidade de atuar na transformação das relações
econômicas e políticas entre as classes. Enciclopédia Treccani. Disponível em:
http://www.treccani.it/vocabolario/operaismo/, consultada em: 13 nov 2016.
GRIBAUDI, M. • A longa marcha da Micro-História: da política à estética?
43
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração
Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a
opinião de que ela nadava com a corrente. O desenvolvimen-
to técnico era visto como o declive da corrente, na qual ela
supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que
o trabalho industrial, que aparecia sob os traços do progresso
técnico, representava uma grande conquista política. A anti-
ga moral protestante do trabalho, secularizada, festejava uma
ressurreição na classe trabalhadora alemã. O Programa de
Gotha já continha elementos dessa confusão. Nele, o traba-
lho é definido como “a fonte de toda riqueza e de toda civili-
zação”. Pressentindo o pior, Marx replicou que o homem que
não possui outra propriedade que a sua força de trabalho está
condenado a ser “o escravo de outros homens, que se torna-
ram... proprietários”. Apesar disso, a confusão continuou a
propagar-se, e pouco depois Josef Dietzgen anunciava: “O
trabalho é o Redentor dos tempos modernos... No aperfeiço-
amento... do trabalho reside a riqueza, que agora pode reali-
zar o que não foi realizado por nenhum salvador”. Esse con-
ceito de trabalho, típico do marxismo vulgar, não examina a
questão de como seus produtos podem beneficiar trabalha-
dores que deles não dispõem. Seu interesse se dirige apenas
aos progressos na dominação da natureza, e não aos retro-
cessos na organização da sociedade. Já estão visíveis, nessa
concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflo-
rar no fascismo. Entre eles, figura uma concepção da nature-
za que contrasta sinistramente com as utopias socialistas an-
teriores a março de 1848. O trabalho, como agora compreen-
dido, visa uma exploração da natureza, comparada, com in-
gênua complacência, à exploração do proletariado. Ao lado
dessa concepção positivista, as fantasias de um Fourier, tão
ridicularizadas, revelam-se surpreendentemente razoáveis.
Segundo Fourier, o trabalho social bem organizado teria en-
tre seus efeitos que quatro luas iluminariam a noite, que o
gelo se retiraria dos polos, que a água marinha deixaria de ser
salgada e que os animais predatórios entrariam a serviço do
homem. Essas fantasias ilustram um tipo de trabalho que,
longe de explorar a natureza, libera as criações que dormem,
como virtualidades, em seu ventre. Ao conceito corrompido
de trabalho corresponde o conceito complementar de uma
natureza, que segundo Dietzgen, “está ali, grátis”.4
4 NDT: A citação foi retirada diretamente da tese n°11 de Walter Benjamin so-
bre o conceito da história (BENJAMIN, 1987, p. 227-28).
44
Texto fantástico, esta undicesima tesi sulla storia, que interro-
ga abertamente e de maneira crítica às visões historiográficas do-
minantes mostrando o seu nefasto impacto sobre a realidade. Todo
o pensamento e o trabalho de Benjamin tende a encontrar no modo
de pensar a descontinuidade da experiência histórica: a sua frag-
mentação, mas também a remoção constante e programada de
todos os liames históricos que geram problemas, de todas as dis-
crepâncias e de tudo aquilo que apresente incoerências com o que
aparece como único e determinante. Benjamin pensa o presente
histórico por meio da imagem da constelação, de um universo de
elementos diversos e contraditórios, aberto a cada momento a mil
possibilidades. Uma visão e uma sensibilidade não distantes das
primeiras reflexões da micro-história, muito próximas à ideia – cen-
tral na Herança Imaterial – de uma configuração

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