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Política de Boa Vizinhança - Apresentação
Política de Boa Vizinhança
Autor(a): Tania da Costa Garcia
E-mail: garcosta@uol.com.br
 
Apresentação
 
A denominada Política de Boa Vizinhança constitui um tema já bastante explorado pela historiografia. Muitas interpretações supervalorizaram a capacidade da política norte-americana em impor o american way of life aos latino-americanos que, sem reação, são tragados pelos tentáculos do imperialismo estadunidense. Mas há também aquelas abordagens em que prevalece um enfoque menos passional e mais analítico. Nessa linha seguem os trabalhos de Gerson Moura, Pedro Tota, Marquilandes Borges, para citar alguns. O que não significa afirmar que esses estudos minimizem as interferências direta e indiretas dos Estados Unidos na região. Muito pelo contrário, a partir de uma documentação farta, tais autores se dedicam a apurar as artimanhas da política de boa vizinhança.
O caráter expansionista do país confunde-se com a construção da identidade da nação, remontando a narrativa da história do povo norte-americano. A conquista do Oeste ? quando terras pertencentes aos índios, aos colonizadores europeus e aos mexicanos foram tomadas e anexadas - constitui o início dessa epopéia. Alcançada a costa do Pacífico, a próxima investida seria sobre a América Central e o Caribe. Para justificar o agressivo e contínuo expansionismo, surgia na imprensa estadonidense, do século XIX, a idéia de Destino manifesto: os anglo-saxões possuíam o direito natural de ocupação e domínio, pois constituíam o povo escolhido pela providência divina para levar aos outros povos os valores da civilização.
Também data desse período a Doutrina Monroe, que, em essência, defendia a “América para os Americanos”, ou seja, não seria permitida nenhuma ação intervencionista dos europeus no continente. Em nome de tais princípios os norte-americanos juntaram-se aos revolucionários cubanos na luta pela independência da ilha. Ao vencer a guerra contra a Espanha, os Estados Unidos tomaram posse não só de Cuba, mas também de Porto Rico, além de anexarem as Filipinas e o Havaí. Posteriormente, em 1904, era estabelecido o Corolário Roosevelt à Doutrina Monroe: Os Estados Unidos interviriam nos países latino-americanos a fim de conter de conter a instabilidade social ou política dessas nações.
As intervenções deram-se, em regra, por meio do envio de tropas de ocupação, desrespeitando o governo dessas nações (Nicarágua, Haiti, República Dominicana). Daí a denominação big stick policy. A política do grande porrete perdurou até os anos 30 do século XX, quando na Conferência Panamericana, ocorrida em Montevidéu em 1933, os Estados Unidos comprometeram-se em respeitar o direito de soberania das nações ao sul do Rio Grande. A aproximação dos Estados Unidos da América Latina seria mediada por um discurso de solidariedade hemisférica. Tal mudança de postura pode ser explicada pela falta de apoio interno a uma política intervencionista e pela pressão exercida pelos latino-americanos exigindo que os EUA renunciassem a esse direito e aceitassem o princípio de não intervenção em suas relações mútuas.
No plano das relações internacionais, a mudança de rumo da política norte-americana para a região deve-se aos acontecimentos do período entre guerras. O expansionismo alemão em direção à América Latina expressava-se nos investimentos comerciais e na intensa propaganda nazista, auxiliada por partidários da ideologia e pela forte presença de imigrantes alemães em países como a Argentina, o Chile e o Brasil. O quadro constituía uma ameaça concreta à hegemonia do vizinho do norte. 
Com a eclosão da Segunda Grande Guerra os Estados Unidos precisavam encontrar uma estratégia eficaz para garantir sua posição no continente. Nelson Rockefeller, um dos maiores e mais antigos investidores da região, apresentou um plano de ação para o reeleito presidente Roosevelt. O documento afirmava que “a segurança da nação norte-americana dependia de uma estreita cooperação-econômica e cultural com todos os governos da América Latina.” Para Rockefeller, a política de boa vizinhança, em curso desde 1933, deveria ser mais ostensiva para ganhar os corações e mentes dos governantes, dos militares e dos principais setores da sociedade brasileira. No dia 16 de agosto de 1940 era oficializada a criação de uma super agência para assuntos estratégicos subordinada diretamente ao Conselho de Defesa Nacional dos Estados Unidos, o Office of Coordinator of Interamerican Affairs, chefiada por Rockefeller e com sede no Rio de Janeiro . A atuação desse birô interamericano se fazia em quatro direções: comunicações, relações culturais, saúde e comércio. Para justificar a presença do birô na América Latina, recorreu-se ao panamericanismo - a cooperação entre as duas Américas, tendo em vista ideais comuns: organização republicana, democracia, liberdade e dignidade do indivíduo e soberania nacional. Das quatro divisões do birô, seguramente a mais importante foi a de Comunicações, subdividida em imprensa e publicações, rádio, cinema, informações e propaganda além de outras. O principal objetivo do Birô era propagar a imagem dos Estados Unidos e de seus paradigmas, liberalismo e democracia, como o modelo ideal de sociedade a ser seguido pelos latino-americano.
O sub-setor “imprensa e publicações” possuía dois focos de ação: difundir a boa imagem da nação estadunidense e contra-atacar a propaganda do Eixo. Em Guarda, publicada em português, espanhol e inglês foi a revista com maior tiragem publicada pelo Office, atingindo, em 1945, mais de 500 mil exemplares. As notícias veiculadas faziam a propaganda da eficiente máquina de guerra norte-americana e dos avanços dos aliados. Outra publicação que se prestou a veicular um discurso favorável à política de boa vizinhança, embora não fosse uma criação do Office, foi Seleções. Seleções era uma publicação da norte-americana Reader Digest Association. Seu primeiro número foi lançado no Brasil em 1942. No contra-ataque às forças do Eixo, a revista reproduziu no Brasil, as imagens do inimigo externo já divulgadas nos EUA pelo Digest e pelo cinema de Hollywood. (...) A Alemanha era um estado exclusivamente militarista, inflexível com pretensões de “escravizar” o mundo. (...) O japonês era apresentado como insensível e duro. Dada sua condição de asiático, queria acabar com a raça branca.
O rádio foi, ao lado do cinema, o mais poderoso aliado da propaganda ideológica estadunidense, atingindo, inclusive, aqueles que não eram alfabetizados. No México, havia uma grande rede de emissoras comandada por um único empresário que distribuía sua programação às rádios filiadas, não só naquele país, mas também na Costa Rica, Colômbia, Equador, El Salvador, Peru, Nicarágua, Panamá, Uruguai e Venezuela. Mesmo antes das ações mais incisivas do birô, a programação já contava com grandes patrocinadores daquele país como Colgate e Coca-cola. O plano de ação da OCIAA foi associar-se a esse grupo que garantiria, com suas retransmissoras espalhadas por todo o país, a difusão da propaganda norte-americana. Foram ocupados espaços na grade de programação já existentes, veiculando programas de notícia sobre o desenrolar da guerra, - El mundo desde México, La lucha por la libertad - e de cultura, La verdade es - programa de perguntas e respostas que tratava das relações entre México e Estados Unidos ? e o Programa Cultural de la Biblioteca Benjamin Franklin - programa de entrevistas com mexicanos renomados no campo das artes da literatura e da ciência. Também se investiu no aumento da potência das emissoras de ondas curtas, possibilitando que a programação estadunidense chegasse ao rádio-ouvinte mexicano. No Brasil, o Repórter Esso, patrocinado pela Standard Oil, era o principal programa de noticiassobre a guerra, trazendo informações sobre a participação de nossos pracinhas no conflito e ressaltando a importância da solidariedade hemisférica. Outras emissoras, como Tupi, Mayrink Veiga, ambas no Rio de Janeiro, Record, em São Paulo e Pampulha em Belo Horizonte, para citar algumas, transmitiam a programação enviada dos Estados Unidos. Aqui, como no México, o conteúdo dos programas buscavam essencialmente aproximar as diferentes culturas das Américas e, sobretudo, exaltar o american way of life, veiculando música, informação e curiosidades. Para garantir a recepção, as revistas Seleções e Em guarda publicavam, no Brasil, os horários de toda a programação. 
A indústria cinematográfica aliou-se, desde sempre, ao esforço de guerra dos Estados Unidos. Seguindo as orientações do birô, os filmes de Hollywood veiculados na América Latina deveriam difundir uma imagem idealizada da sociedade norte-americana. Problemas raciais e religiosos ou temas moralmente polêmicos eram censurados. O fundamental era promover filmes capazes de estreitar os laços entre os povos do norte e do sul do continente. Caberia ao cinema mostrar que tínhamos muita coisa em comum e as diferenças poderiam ser resolvidas numa relação de complementaridade. Os filmes musicais, gênero de grande sucesso nos anos 40, serviram como uma luva para corroborar as diferenças entre as duas Américas como positivas. Nas comédias da 20th Century Fox com a participação de Carmen Miranda (Serenata Tropical, Uma Noite no Rio, Aconteceu em Havana), as oposições, diluídas em risos e música, não ficavam só a cargo dos protagonistas, mas eram enfatizadas pela comparação entre uma América do Norte civilizada e uma América Latina primitiva e selvagem. O american way of life era representado pela disciplina no trabalho, pela estética eugênica, pelo nacionalismo e pelas vantagens do mundo tecnológico. A América Latina tinha sua imagem associada à uma urbanização incipiente e ao comportamento rústico que caracterizavam os homens e mulheres da região. Claro que tudo isso permeado pelo som de muita rumba, fox e samba. Outra figura que colaborou para estreitar os laços de amizade entre os bons vizinhos foi Zé Carioca. Em 1941, Walt Disney fez uma viagem pela América Latina, encomendada pelo birô, para conhecer a realidade da região e criar personagens plenipotenciários. Inspirando-se na cultura carioca, Disney criou Zé Carioca, um tipo malandro, morador do morro que adorava a vida mundana da zona sul. A estréia de Zé no cinema foi no ano de 1943, em Alô amigos. Mas ganhou popularidade em 1945, em Você já foi à Bahia?, contracenando com Aurora Miranda. Quem também esteve por aqui, nessa ocasião, foi Orson Welles. O famoso diretor de Cidadão Kane veio para fazer uma série de filmes documentários encomendado pela RKO. Particularmente, no Brasil, sua estada foi bastante conturbada e seus filmes, jamais concluído. Welles era irreverente demais para servir aos interesses do birô. 
Vale lembrar que paralelamente ao OCIAA, cuja atuação se restringia à America Latina, havia ainda o Office of War Information. Este órgão recomendava que as produções de Hollywood se concentrassem em seis assuntos: o inimigo, os aliados, as Forças Armadas, a frente de combate, a vida dos civis durante a guerra e o serviço de aprovisionamento militar. Em Little Tokyo, USA, a 20th Century Fox colocava na tela japoneses-americanos conspirando contra os EUA, propensos a sabotagens e intencionados a ocupar a Califórnia. No final do filme, os malfeitores amarelos eram mandados para campos de concentração. 
No Brasil, a participação do Departamento de Imprensa e Propaganda nesse “intercâmbio cultural” também foi intensa. Criado em 1939, durante o Estado Novo, o DIP ? inspirado no Ministério de Propaganda do governo nazista ? passou, a partir de 1942, ano do alinhamento do Brasil junto aos aliados, a fazer a defesa da democracia contra as potências fascistas do eixo. 
Mas, se Nelson Rockfeller e seu birô foram muito eficientes nos seus projetos e ações em prol das boas relações entre os Estados Unidos e a América Latina, promovendo acordos comerciais e políticos de cooperação, nem todos apreciavam o american way of life. Para muitos brasileiros os filmes realizados pela 20th Century Fox, com a participação de Carmen Miranda, não traduziam o que era a verdadeira intérprete dos nossos sambas e marchinhas. Carmen estava americanizada. Aliás, numa de suas visitas ao Brasil, num show no Cassino da Urca para convidados da primeira dama, Dona Darci Vargas, Carmen foi vaiada ao cumprimentar o público com um “good night people.” 8 A artista que admitia ter incorporado alguns trejeitos da terra do Tio Sam deu, no entanto, o troco ao gravar a canção Luis Peixoto e Vicente Paiva:
Disseram que eu voltei americanizada
Com o “burro” do dinheiro, que estou muito rica
Que não suporto mais o breque de um pandeiro
E fico arrepiada ouvindo uma cuíca
Disseram que com as mãos estou preocupada
E corre por aí que ouvi um certo zum-zum
que já não tenho molho, ritmo, nem nada
E dos balangandãs já nem existe mais nenhum
Mas prá cima de mim, prá que tanto veneno?
Eu posso lá ficar americanizada?
Eu que nasci com samba e vivo no sereno
topando a noite inteira a velha batucada
Nas rodas de malandro, minhas preferidas
eu digo é mesmo “eu te amo” e nunca “I love you”
Enquanto houver Brasil... na hora das comidas
eu sou do camarão ensopadinho com chuchu!
Em 1946, o birô encerrava suas atividades, Nos anos 50, os eficientes resultados da ostensiva política de boa vizinhança provocavam reações nas ruas de Copacabana. Os mais resistentes reclamavam que o bairro carioca não era mais o mesmo. Os botequins se transformavam em lanchonetes e serviam milk shake. O garçom olhava torto para quem sentava numa mesa e gastava o tempo fumando um cigarro e lendo um jornal, time is money. A clientela esperada era outra: meninas usando saias balonês e rapazes com jaqueta de couro.
O fato é que o poder de difusão da indústria cultural estadunidense foi, desde sempre, assombroso e mais violento tonou-se ao ser apropriado como arma de guerra. Entretanto, se os nacionalistas de plantão não conseguiram impedir a penetração dos good neighbors, o american way of life, para ficar, teve que se adaptar ao ronco da cuíca e se aclimatar ao calor dos trópicos.

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