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Sumário
1.	 Agradecimento
2.	 prefácio
3.	 UM	UNIVERSO	EM	EXPANSÃO:	RAQUEL	TIVERON	ESTÁ
VOCACIONADA	PARA	SER	A	MELHOR	JURISTA	DA	SUA
GERAÇÃO	BRASILEIRA
4.	 INTRODUÇÃO
1.	 PARTE	I
2.	 A	CRISE
3.	 DO	PARADIGMA
4.	 PUNITIVO
5.	 tudo	o	que	é	sólido
6.	 desmancha	no	ar?
7.	 CAPÍTULO	I
8.	 O	SISTEMA	PENAL	POSTO	EM	QUESTÃO	crise	de	legitimidade	da
pena	de	prisão?
1.	 1.1	A	tensão	entre	facticidade	e	validade	no	direito:a	importância	do	reconhecimento	da
legitimidade	da	lei	penal
2.	 1.2	O	déficit	de	legitimidade	da	lei	penal
3.	 1.3	O	uso	político	da	sanção	penal	para	excluir:	uma	visão	agnóstica	da	pena
4.	 1.4	Críticas	às	tradicionais	funções	da	pena:	retribuição	e	prevenção
5.	 1.4.1	Comunicando	a	pena	ao	ofensor:	a	prevenção	especial
6.	 1.4.2	A	ideia	de	prevenção	dirigida	à	sociedade
7.	 1.5	A	cifra	obscura	da	criminalidade
8.	 1.6	Ineficácia	dissuasória	da	pena	de	prisão
9.	 1.7	Os	números	da	eficácia	invertida	da	prisão
9.	 CAPÍTULO	II
10.	 OS	DEPÓSITOS	DE	PRESOS	COMO	FATOR	CRIMINÓGENOa	morte
dos	ideais	de	“ressocialização”?
1.	 2.1	A	prisão	como	fator	criminógeno
2.	 2.2	A	realidade	carcerária
3.	 2.3	O	pessimismo	do	nothing	works
4.	 2.4	O	endurecimento	via	pena	de	morte
5.	 2.5	Just	deserts
6.	 2.6	Poderia	a	pena	de	prisão	ser	abolida?
1.	 PARTE	II
7.	 A	EMERGÊNCIA	DO	PARADIGMA	DA	TRANSMODERNIDADE
11.	 da	insurgência	à	assimilação	da	justiça	restaurativa?
12.	 CAPÍTULO	III
13.	 DIÁLOGOS	ENTRE	A	FILOSOFIA	DO	DIREITO,	A	SOCIOLOGIA
JURÍDICA	E	A	TEORIA	POLÍTICAfundamentos	plurais	do	novo
paradigma
1.	 3.1	Contextualizando	a	revolução:	a	pós-modernidade
2.	 3.1.1	A	superação	paradigmática	rumo	à	transmodernidade
3.	 3.1.2	Justiça	restaurativa	e	transmodernidade
4.	 3.2	O	fundamento	político	da	jurisconstrução:	a	democracia	deliberativa
5.	 3.2.1	A	ampliação	de	atores	para	o	debate	na	jurisconstrução
6.	 3.2.2	Avaliando	o	grau	de	inclusão	participativa	e	de	deliberação	democrática	do	novo
paradigma
7.	 3.2.3	O	enquadramento	do	modelo	jurisdicional	penal	na	teoria	política	democrática
contemporânea
8.	 3.2.4	A	democracia	deliberativa
9.	 3.2.5	A	poliarquia
10.	 3.2.6	A	justiça	restaurativa	como	forma	de	poliarquia	diretamente	deliberativa
11.	 3.2.7	Críticas	à	democracia	deliberativa
12.	 3.3	Compreendendo	a	dinâmica	do	encontro	restaurativo	e	as	suas	bases	filosóficas
13.	 3.3.1	A	justiça	restaurativa	como	esfera	pública	de	deliberação
14.	 3.3.2	Justiça	restaurativa:	um	locus	para	o	reconhecimento	recíproco
15.	 3.3.3	O	impacto	do	encontro	face	a	face	segundo	Lévinas
16.	 3.3.4	O	agir	comunicativo	habermasiano
17.	 3.3.5	A	dinâmica	do	círculo	restaurativo
18.	 3.3.5.1	A	metodologia	da	CNV
19.	 3.3.5.2	O	caso	do	encontro	entre	um	adolescente	autor	de	“sequestro	relâmpago”	e	sua
vítima,	um	policial
20.	 3.3.5.3	O	caso	do	encontro	entre	uma	vítima	idosa	e	o	ladrão	de	sua	residência
21.	 3.4	Uma	nova	racionalidade	para	a	pena:	a	função	comunicativa
22.	 3.4.1	A	racionalidade	comunicativa	de	Habermas
23.	 3.4.2	A	função	comunicativa	da	pena
24.	 3.4.3	As	ponderações	de	Joel	Feinberg
25.	 3.4.4	Críticas	e	respostas	à	proposta	comunicativa	da	pena
1.	 PARTE	III
26.	 ONDE	SE	ENCONTRA	O	FUNDAMENTO	DA	VALIDADE	DA	JUSTIÇA
RESTAURATIVA?
14.	 A	BUSCA	DE	SUA	SUSTENTABILIDADE	TEÓRICA
15.	 CAPÍTULO	IV
16.	 DAS	ESTRADAS	LARGAS	AOS	BECOS	SEM	SAÍDAa	vereda	dos
movimentos	criminológicos	até	a	emergência	restaurativa
1.	 4.1	A	justiça	restaurativa	na	contramão	do	atavismo	positivo
2.	 4.2	Normalidade	e	funcionalidade	do	crime	—	o	influxo	das	teorias	sociológicas
3.	 4.2.1	A	apoteose	do	bem-estar	e	a	frustração	de	status:	uma	contribuição	da	teoria	da
anomia
4.	 4.2.2	A	ordem	social	como	um	mosaico	de	grupos	(teorias	subculturais)
5.	 4.2.3	O	crime	como	resultante	das	interações	psicossociais	do	indivíduo
6.	 4.2.4	As	teorias	do	controle	social
7.	 4.2.5	Prevenção	situacional	do	crime
8.	 4.3	Labelling	approach,	interacionismo	simbólico	e	construtivismo	social
9.	 4.4	Apontando	as	antinomias	do	sistema	penal:	o	papel	das	teorias	críticas
10.	 4.4.1	A	criminologia	radical
11.	 4.4.2	Neorrealismo	de	esquerda
12.	 4.4.3	Minimalismo	penal
13.	 4.4.4	Garantismo
14.	 4.4.5	Abolicionismo
15.	 4.5	Entre	pirâmides	e	círculos:	a	proposta	da	criminologia	pacificadora
16.	 4.5.1	A	pirâmide	de	pacificação	de	Fuller
17.	 CAPÍTULO	V
18.	 A	DINÂMICA	VITAL	DA	JUSTIÇA	RESTAURATIVA	princípios,
características,	procedimentos,	atores	e	apostas
1.	 5.1	Os	princípios	da	justiça	restaurativa
2.	 5.1.1	Um	destaque	para	a	voluntariedade
3.	 5.2	Os	atores	no	procedimento	restaurativo
4.	 5.2.1	Facilitadores
5.	 5.2.2	O	advogado:	aliado	ou	opositor?
6.	 5.2.3	Ofensores	—	uma	nova	visão	do	“inimigo”
1.	 5.2.3.1	Uma	observação	necessária:	a	desumanização	do	ofensor	e	a	mídia
2.	 5.2.3.2	O	caso	da	vítima	de	estupro	que	encarou	seu	ofensor
7.	 5.2.4	Vítimas
8.	 5.2.5	A	relação	entre	ofensor	e	vítima
9.	 5.2.6	Predisposição	vitimária	e	níveis	de	vitimização
10.	 5.2.7	Reaproriação	dos	conflitos	ou	retorno	à	vingança	privada?
11.	 5.2.8	A	vitimização	secundária
12.	 5.3	O	papel	da	comunidade	na	justiça	restaurativa
13.	 5.3.1	A	janela	da	disciplina	social
14.	 5.3.2	A	vergonha	reintegradora
15.	 5.3.3	Riscos	do	incremento	do	controle	social	pela	justiça	restaurativa
1.	 PARTE	IV
16.	 A	PRÁXIS
17.	 RESTAURATIVA
18.	 NO	ORDENAMENTO
19.	 JURÍDICO	BRASILEIRO
19.	 uma	estranha	no	ninho?
20.	 CAPÍTULO	VI
21.	 O	DILEMA	DA	JUSTIÇA	RESTAURATIVA	NO	BRASIL:	política	de
governo	ou	política	de	estado?
1.	 6.1	A	experiência	paulista	de	justiça	restaurativa
2.	 6.1.1	O	diferencial	em	São	Caetano	do	Sul:	a	estratégia	de	sensibilização	de	lideranças	e
de	“mudança	de	lentes”	dos	agentes	públicos
3.	 6.1.2	A	evolução	do	projeto	e	a	situação	atual
4.	 6.2	Justiça	para	o	Século	XXI	em	Porto	Alegre
5.	 6.2.1	A	evolução	do	programa	gaúcho
6.	 6.3	Uma	justiça	para	maiores	no	Distrito	Federal
22.	 CAPÍTULO	VII
23.	 EM	BUSCA	DE	UM	ESTATUTO	LEGALconsolidando	a	justiça
restaurativa	no	ordenamento	jurídico	brasileiro
1.	 7.1	O	espaço	legislativo	para	a	edificação	da	justiça	restaurativa	no	Brasil
2.	 7.1.1	Na	infanto-adolescência
3.	 7.1.2	Nos	juizados	especiais	criminais
4.	 7.2	A	compatibilização	da	justiça	restaurativa	com	a	lei	brasileira
5.	 7.2.1	O	respeito	aos	direitos	fundamentais	dos	acusados
6.	 7.2.2	A	obrigatoriedade	da	ação	penal:	mitos	e	verdades
7.	 7.2.3	A	mitigação	do	princípio	da	obrigatoriedade	da	ação	penal	em	outros	países
8.	 7.2.4	Limites	da	capacidade	operacional	do	estado	(ou	o	estado	de	ineficiência	estatal)
9.	 7.3	A	construção	de	uma	política	pública	de	resolução	de	conflitos
10.	 7.3.1	O	Programa	Nacional	de	Direitos	Humanos	(PNDH-3)	e	a	lei	do	SINASE
11.	 7.3.2	A	política	pública	de	tratamento	adequadoaos	conflitos	do	CNJ
12.	 7.3.3	O	Projeto	de	Lei	nº	7006,	de	2006
13.	 7.4	O	desafio	de	um	novo	papel	para	o	Ministério	Público	brasileiro
14.	 7.4.1	A	participação	ministerial	na	experiência	comparada
15.	 7.4.2	A	nova	identidade	do	Ministério	Público	brasileiro	pós-88:	indutor	de	política
criminal
16.	 7.4.3	Considerações	parciais
24.	 CAPÍTULO	VIII
25.	 PESQUISA	EMPÍRICA	E	ENCONTROS	RESTAURATIVOS	EM
DOIS	CASOS	DRAMÁTICOS	a	busca	da	dimensão	humana	em	meio	a
conflitos	hediondos
1.	 8.1	A	justiça	restaurativa	em	crimes	graves
2.	 8.2	Estudo	comparativo	—	caso	de	estupro	tratado	na	justiça	restaurativa	no	DF	e	no
exterior
3.	 8.2.1	Caso	1	—	Estupro	de	vulnerável	por	três	jovens,	um	deles	menor	de	idade
4.	 8.2.2	Caso	2	—	Estupro	de	vulnerável	entre	irmãos
5.	 8.2.3	Análise	dos	aspectos	relevantes	em	cada	situação
6.	 8.3	A	justiça	restaurativa	para	crimes	cometidos	em	contexto	de	violência	doméstica
7.	 8.4	Pesquisa	de	campo:	comparação	entre	os	graus	de	informação,	comunicação	e
reparação	do	sistema	de	justiça	criminal	e	do	programa	de	justiça	restaurativa	do	DF
8.	 8.4.1	Aspectos	metodológicos	da	pesquisa	de	campo
1.	 8.4.1.1	Objetivo	geral
2.	 8.4.1.2	Objetivos	específicos
9.	 8.4.2	Hipóteses	testadas	na	pesquisa	de	campo
10.	 8.4.3	Sujeitos,	locais	e	instrumento	de	coleta	de	dados
11.	 8.4.4	Metodologiade	investigação	e	análise
12.	 8.4.5	Contextualizando	a	pesquisa
1.	 8.4.5.1	Histórico	e	peculiaridades	das	cidades	pesquisadas
2.	 8.4.5.2	Perfil	dos	entrevistados
13.	 8.4.6	Resultados
14.	 8.4.7	Outras	considerações	relevantes
1.	 8.4.7.1	Descriminalização	de	condutas	de	menor	potencial	ofensivo
2.	 8.4.7.2	Aplicação	de	programas	restaurativos	para	delitos	cometidos	em	contexto	de
violência	doméstica
3.	 8.4.7.3	Uso	abusivo	de	álcool	ou	drogas	e	a	importância	da	integração	da	justiça
restaurativa	com	as	políticas	públicas	de	saúde	e	com	a	comunidade
15.	 8.4.8	Conclusão
26.	 CONCLUSÕES
27.	 REFERÊNCIAS
AGRADECIMENTO
Uma	tese	de	doutorado	não	é	escrita	e	amadurecida	durante	quatro	anos	sem	o	apoio	e	a	colaboração	de
importantes	pessoas.	Quero	registrar	meu	agradecimento	e	carinho	especial:
A	Deus,	pelas	bênçãos	e	pelas	dificuldades	permitidas,	para	que	eu	aprendesse	a	superá-las;
À	minha	mãe	e	ao	meu	pequeno	anjinho,	pois	sei	que	 juntos	assistem	ao	coroamento	do	esforço	que
vivenciaram	comigo.	Aquela,	por	mais	tempo	e	este,	durante	sua	breve	passagem	neste	mundo;
Ao	 Álvaro	 e	 à	 Valentina,	 pelo	 amor	 incondicional,	 pela	 paciência	 e	 pela	 companhia	 nas	 longas
madrugadas;
Ao	 meu	 pai,	 pelo	 seu	 exemplo,	 pelo	 incentivo	 aos	 estudos	 e	 por	 todas	 as	 oportunidades	 que	 me
proporcionou;
Ao	Júnior,	pela	ajuda	com	seu	colossal	conhecimento	informático	e	generoso	coração;
À	 Claudia,	 Dalilian	 e	 Luciene,	 pela	 sua	 dedicação	 à	 pequena	 Valentina,	 para	 que	 eu	 tivesse	 a
tranquilidade	de	estudar;
À	 Rosemari	 Barletta,	 pela	 companhia	 firme	 e	 permanente	 ao	 longo	 desses	 anos	 e	 pelo	 apoio
incondicional	à	confecção	desta	tese,	cuja	“gestação”	vem	acompanhando;
Ao	meu	orientador,	Prof.	Dr.	Roberto	Freitas	Filho,	pela	confiança	em	mim	depositada	e	por	todos	os
seus	ensinamentos,	como	professor	e	como	pessoa;
Ao	amigo,	mentor,	filósofo,	habitante	eterno	do	meu	coração,	Prof.	Dr.	Rossini	Corrêa,	detentor	de	um
conhecimento	 monumental,	 sorriso	 aberto	 e	 amizade	 incondicional,	 pelo	 seu	 amparo	 nas	 horas	 de
desespero,	pelo	incentivo	à	pesquisa	e	à	publicação	e	por	sua	eterna	e	sincera	disponibilidade	em	ajudar;
Ao	Prof.	Dr.	Bruno	Amaral	Machado,	meu	 exemplo	 profissional,	 acadêmico	 e	 humano,	 que,	mesmo
estando	em	um	patamar	de	conhecimento	muito	acima	dos	mortais,	não	se	furta	a	descer	e	iluminar	com
seu	brilho	único	aos	que,	como	eu,	lhe	pedem	socorro;
Aos	 meus	 professores	 do	 UniCEUB,	 na	 pessoa	 dos	 docentes	 Álvaro	 Ciarlini,	 Léa	 Ciarlini,	 Bruno
Amaral	 Machado	 e	 Luciana	 Musse,	 membros	 da	 minha	 banca	 de	 qualificação,	 pela	 disposição	 em
discutir	comigo	a	pesquisa	e	dar	um	norte	a	ela;
Aos	professores	Josué	Silva	e	René	Mallet	Raupp,	profissionais	excepcionais	em	suas	áreas,	sem	cujo
conhecimento	esta	tese	não	seria	possível	da	forma	em	que	se	encontra;
À	Thays	Braga,	pesquisadora	nata,	que	emprestou	sua	gentileza	e	simpatia	ao	trabalho	de	campo;
Ao	Conselho	Superior	do	MPDFT,	pela	confiança	em	mim	depositada,	concedendo-me	licença	para	a
redação	 desta	 tese	 e,	 especialmente	 ao	 Prof.	 Dr.	 Rogério	 Schietti,	 que	 acreditou	 e	 encampou
pessoalmente	este	sonho;
Ao	Dr.	Weiss	Webber	 e	 à	Lúcia	Helena	Barbosa	 de	Oliveira,	 pessoas	 e	 profissionais	 singulares,	 que
labutam	diuturnamente	para	a	humanização	do	sistema	de	 justiça	criminal	e	para	a	 implementação	da
Justiça	Restaurativa;
Ao	 corpo	 de	 funcionários	 do	 UniCEUB,	 nas	 pessoas	 especialíssimas	 de	 Rosilene	 Croner	 Abreu	 e
Rosileide	Oliveira	Nunes,	rosas	na	minha	vida,	que,	com	amizade	e	apoio,	tornaram	essa	missão	mais
leve;
Por	último,	e	não	por	ser	menos	importante,	à	valorosa	equipe	da	Justiça	Restaurativa	do	TJDFT	—	nas
pessoas	da	Helena,	do	Manoel	e	da	Bárbara,	visto	que	acreditam	na	causa	 restaurativa	e	a	vivenciam
inspirando	todos	que	têm	a	sorte	de	cruzar	os	seus	caminhos	—,	pelo	crédito	e	pelo	amplo	e	irrestrito
apoio	para	a	confecção	deste	trabalho;
Sem	a	ajuda	de	todos	vocês,	amigos,	esta	tese	não	seria	possível!
PREFÁCIO
UM	UNIVERSO	EM	EXPANSÃO:	
RAQUEL	TIVERON	ESTÁ	VOCACIONADA	PARA	SER	A
MELHOR	JURISTA	DA	SUA	GERAÇÃO	BRASILEIRA
Rossini	Corrêa	1
Um	 dos	 nós	 górdios	 da	 crise	 da	 modernidade	 e	 da	 construção,	 ainda
embrionária,	 da	 pós-modernidade,	 sem	 a	 mínima	 dúvida,	 se	 encontra	 na
dimensão	 institucional	 da	 Sociedade,	 na	 medida	 em	 que	 a	 crise	 do	 Estado
alcança	uma	ressonância	quase	universal,	a	perpassar	as	organizações	sociais
de	 substrato	 urbano-industrial.	 A	 chamada	 Grande	 Sociedade,	 na	 tessitura
complexa	 de	 elementos	 que	 a	 definiram,	 seguramente	 encontrou	 em	 sua
caminhada	estadual,	em	última	instância,	o	ribombar	da	Revolução	Francesa,
a	 experiência	 da	Codificação	 do	Direito	 e	 a	mística,	 senão	mistificação,	 da
Escola	da	Exegese.
Os	 clamores	 da	 Razão,	 retomados,	 no	 mínimo,	 desde	 o	 século	 XIII	 da
cristandade,	 por	 Santo	 Tomás	 de	 Aquino,	 na	 esteira	 do	 seu	 Mestre	 de
Pensamento,	Alberto	da	Saxônia,	que	se	 tornaria,	em	Paris,	Alberto	Magno,
por	 ser	 considerado	 ali	 o	 maior	 sábio	 de	 todos	 os	 tempos	 e	 um	 preceptor
apoteótico	em	sua	Universidade	e	se	 transformaria,	na	Igreja,	Santo	Alberto
Magno,	 em	 virtude	 da	 proclamação	 dos	 elevados	 serviços	 que	 o	 alçaram,
também,	 ao	 reconhecimento	 como	 Doutor	 e	 à	 sua	 proclamação	 como
padroeiro	dos	cientistas,	não	cessaram	de	avançar.
O	Renascimento	recepcionou	o	espírito	do	racionalismo	medieval,	passando,
entretanto,	 a	 cultivá-lo,	 mais	 por	 ser	 portador	 da	 supostamente	 confiável
ordenação	da	razão,	do	que	por	ser	aristotélico.	Começará	no	Ressurgimento
o	 processo	 de	 desconstrução	 incessante	 do	Estagirita,	 que	 foi	merecedor	 da
melhor	 dedicação	 intelectual	 e	 acadêmica	 não	 apenas	 de	 Santo	 Alberto
Magno	 e	 de	 Santo	 Tomás	 de	 Aquino,	 em	 seu	 resgate	 e	 nos	 comentários
produzidos,	desde	que	ambos	já	dialogavam	com	a	tradição	do	aristotelismo
árabe.
Avicena	era	persa,	nascido	em	980	e	Averróis	era	andaluz,	nascido	em	1126,
constituindo	os	dois	estrelas	polares	de	uma	suntuosa	tradição	da	Era	de	Ouro
do	 Islã,	 religião	em	expansão	no	mundo	desde	o	 seu	nascimento,	no	 século
VII	depois	de	Cristo,	do	Oriente	Médio	para	o	Norte	da	África	e	deste	para	a
Península	 Ibérica,	 enquanto	 procurava	 a	 vastidão	 de	 outros	 horizontes	 da
geografia	conhecida.	Avicena	e	Averróis	 foram	produtos	do	código	ético	do
Islã	original,	a	que	se	reportou	Roger	Garaudy,	quando	os	califas	não	eram	do
petróleo,	 e	 trouxeram	 para	 a	 Península	 Ibérica,	 e	 desta	 para	 a	 Europa,
significativos	 valores	 civilizatórios.	 Ambos	 foram	 mestres	 de	 múltiplos
saberes,	 inclusive	 da	 teologia	 profunda	 e	 do	 direito	 canônico	 muçulmano,
irrigando	 a	 sua	 visão	 de	 mundo	 com	 o	 singular	 conhecimento	 da	 tradição
filosófica	grega,	inclusive,	de	Platão	e	de	Aristóteles.
O	trabalho	de	Santo	Alberto	Magno	e	Santo	Tomás	de	Aquino	foi,	portanto,
de	 resgate,	 comentário	 e	 estabelecimento	 de	 Aristóteles	 no	 ambiente
universitário	 da	Alemanha,	 da	França	 e	 da	 Itália,	 cristianizando-o,	 ao	passo
em	 que,	 do	 Estagirita	 ofereciam	 interpretação	 distinta	 da	 consagrada	 pelo
islamismo	 da	 tradição	muçulmana,	 que	 levaria	 a	 cristandade	 da	 cavalaria	 à
sangrenta	 experiência	das	Doze	Cruzadas,	 por	hipótese,	 em	busca	do	Reino
Cristão	de	Jerusalém.
O	Renascimento	começou	todo	um	processo	de	racionalismo	anti-aristotélico,
por	combater	a	Igreja,	o	Papado	e	o	Estado	Religioso,	cuja	doutrina	teológica
passou	 a	 repousar	 em	 fundamentos	 racionais	 advindos,	 de	 maneira	 mais
próxima,	do	Estagirita,	cuja	filosofia	foi	posta	em	auxilio	de	sua	doutrina	da
fé	desde	a	cristianização	de	Sócrates,	por	São	Justino	e	de	Platão,	por	Santo
Agostinho.	Confrontar	a	Igreja,	o	Papado	e	o	Estado	Religioso,	com	certeza,
passou	a	 ser	 confundido	com	a	negação	de	Aristóteles.	Eis	o	Estagirita,	 em
consequência,	contestado	na	política	de	Nicolau	Maquiavel,	na	epistemologiade	Francis	Bacon	e	na	filosofia	social	de	Thomas	Hobbes,	entre	muitos	outros
que	se	seguiriam,	em	movimento	que	duraria	meio	milênio.	O	Ressurgimento
pretendeu	 retornar	 à	 cultura	 do	 paganismo,	 dela	 retirando	 a	 tradição
aristotélica,	 que	 se	 cristianizara	 na	 sociedade	 medieval	 contestada	 pela
modernidade	em	ascensão.
Os	iluministas	–	cujo	movimento	intelectual	foi	maturado	entre	1650	e	1750,
difundindo-se	da	Holanda	para	 a	França,	 a	 Itália,	 a	Escócia,	 a	Alemanha,	 a
Inglaterra	e	outras	paragens	da	Europa	–	tornaram-se	herdeiros	desta	tradição
racionalista	 advinda	 do	Medievo	 e	 retomada	 no	 Renascimento,	 exaltando-a
como	 instrumento	 de	 reinvenção	 geométrica	 do	 mundo	 da	 vida.	 Neste
sentido,	 advogaram	o	 advento	de	um	Estado,	 de	um	Poder	 e	 de	um	Direito
segundo	 os	 ditames	 da	Razão.	Nos	momentos	mais	 radicais	 do	movimento
iluminista,	sem	cuidados,	a	Razão	foi	o	substituto	simbólico	de	Deus.
Na	 esfera	 jurídica,	 o	 Direito	 dos	 iluministas	 foi	 reivindicado	 segundo	 a
perspectiva	 naturalista.	 Sucede	 que,	 uma	 vez	 conquistado	 o	 Poder	 pela
Revolução	 Francesa,	 caminhou-se	 na	 diretriz	 da	 consumação	 do	 Estado
Nacional	 Soberano,	 que	 começara	 a	 nascer	 entre	 os	 séculos	XIII	 e	XIV	 da
cristandade.	 A	 centralidade	 do	 Estado	 tornou-se	 a	 regra	 magna	 da	 era	 das
nações,	 conformando	as	 ideias	de	 soberania	econômica	e	 soberania	política,
em	um	mundo	de	assimetrias	entre	nações	e	colônias	e	de	embates	imperiais
entre	nações	do	epicentro	da	comunidade	internacional.
As	metrópoles	do	mundo	estatizaram	o	Direito,	positivando-o,	ao	revés	de	sua
reivindicação	naturalista	pretérita	à	Revolução	Francesa	e	difundindo-o	como
o	máximo	de	engenharia	jurídica	racional,	por	meio	da	obra	de	codificador	de
Napoleão	 Bonaparte.	 Aquilo	 a	 que	 denominei	 alhures	 de	 ‘Razão	 Legal’
tornou-se	a	regra	redutora	da	experiência	jurídica,	cujo	positivismo	repudiou,
em	seu	monismo	estatista,	todos	os	pluralismos	jurisprudentes,	para	restringir
o	 Direito	 ao	 Estado,	 na	 reificação	 do	 Legalismo,	 do	 Tecnicismo	 e	 do
Formalismo,	em	Norma	Geral	que	pretendeu	responder	a	 toda	a	complexa	e
variegada	 experiência	 de	 vida	 social,	 no	 suposto	 de	 que	 dispunha	 de
previsibilidade	 e	 de	 completitude	 suficientes	 para	 equacioná-la	 em	 sua
totalidade.
Nada	 mais	 falacioso.	 De	 mim	 para	 mim,	 sonhando	 com	 o	 reverso,	 de	 um
Direito	 que,	 transfigurado,	 servisse	 de	 energia	 de	 transfiguração	 da	 vida
social,	 emancipando-a	de	maneira	 solidaria,	 escrevi	 em	determinado	 tempo:
‘Da	ampliação	das	 referidas	experiências	dar-se-á	a	ponte	para	o	 futuro,	em
que	 poderão	 sobreviver	 os	 julgamentos	 por	 Tribunal,	 mas	 excelerão	 a
negociação,	 a	 conciliação,	 a	 facilitação,	 a	mediação	 e	 a	 arbitragem,	 em	um
mundo	 de	 luta	 por	 um	 Direito	 mais,	 muito	 mais	 comprometido	 com	 a
Sociedade	do	que	com	o	Estado;	com	o	Caso	do	que	com	a	Lei;	com	a	Justiça
do	 que	 com	 a	 Segurança;	 com	 as	 Pessoas	 do	 que	 com	 as	 Coisas;	 sabendo
sempre	 que,	 no	 Caso,	 o	 prioritário	 é	 a	 consideração	 das	 Pessoas,	 centelhas
humanas	e	divinas	de	dramas	e	de	esperanças.	Construí-lo	é	tarefa	de	todos.
Jamais	 valerá	 apenas	 ficar	 à	 espera,	 pois	 a	 tibieza	 é	 contrária	 à	 lição	 da
sabedoria	e	não	transfigura	em	claridade	as	névoas	cinzentas	da	existência’.
A	 ‘Razão	 Legal’	 por	 mim	 criticada,	 impermeável	 ao	 magistério	 de	 Pietro
Verri,	 em	 Observações	 sobre	 a	 Tortura	 e	 de	 Cesare	 Beccaria,	 em	 Dos
Delitos	 e	 das	 Penas	 ,	 duas	 magistrais	 figuras	 do	 iluminismo	 italiano,
programou	 de	 maneira	 diversa	 o	 sistema	 penal,	 em	 paradigma	 totalmente
fracassado,	 por	 sua	 incapacidade	 de	 restaurar	 para	 a	 sociabilidade	 aqueles
que,	regra	geral,	a	sociedade	empurrou	para	a	criminalidade.	De	onde	o	mal
formado	como	‘gente’	do	sistema	prisional	resultar	deformado	como	‘bicho’.
O	 sistema	 penal	 passou	 a	 ser,	 de	 maneira	 crescente	 na	 modernidade,	 a
consumação	da	tragédia.
Eis	que	a	Tese	Doutoral	de	Raquel	Tiveron,	ora	 servida	em	 livro,	 intitulada
Justiça	Restaurativa	e	Emergência	da	Cidadania	na	Dicção	do	Direito	,	a
qual	constitui	a	melhor	contribuição	das	letras	jurídicas	nacionais	à	relevante
temática	em	questão,	vem	significar,	na	melhor	tradição	dialética,	a	presença
da	utopia	no	Direito	à	Esperança,	na	expectativa	de	que	topias	sejam	possíveis
e	tópicas	conquistem	substantivação,	na	dinâmica	da	construção	global	de	um
novo	modo	de	produção	jurídica.
Trata-se	de	uma	obra	de	estreia	adulta	de	uma	jurista	destinada	a	ser	única	em
sua	 geração	 brasileira,	 se	 confirmar,	 como	 está	 desafiada	 a	 fazê-lo,	 com
constante	trabalho,	fidelidade	criativa	e	renovada	reflexão,	a	vocação	de	que	é
portadora.	 Raquel	 Tiveron,	 desta	 maneira,	 acrescentará	 ao	 ser	 humano
excepcional	que	é,	em	sua	aguda	sensibilidade	aberta	à	beleza	e	à	alegria,	os
horizontes	 múltiplos	 do	 trabalho	 intelectual	 fértil	 e	 diferenciado,	 no	 qual
inscreverá,	decerto,	as	digitais	de	sua	personalidade	de	jurista	comprometida,
filosófica	 e	 sociologicamente,	 com	 os	 valores	mais	 expressivos	 da	 tradição
humanística,	em	busca	de	um	ser	mais	humano,	em	uma	ordem	social	em	que
o	todo	seja	mais	de	todos.
Compreendendo	o	estrangulamento	moral	do	direito	de	punir	do	Estado,	cujo
sistema	 penal	 instituiu	 a	 decomposição	 do	 humano	 como	 mecanismo
vingativo	 de	 punição,	 Raquel	 Tiveron,	 que	 também	 visualiza	 o	 porquê	 de
outras	 camadas	 sociais	 conhecerem	 a	 impunidade,	 mergulha	 na	 Justiça
Restaurativa	enquanto	semente	de	um	paradigma	criminal	alterativo,	no	qual
Ego	 e	Alter	 ,	 em	 dialogia	 reconstrutiva	 do	 humano	 perdido,	 possam	 em	 si
reinventar	a	humanidade	possível.	É	a	percepção	de	que	a	(re)humanização	de
todos	 é	 um	 produto	 do	 Verbo,	 esta	 própria	 condição	 do	 humano,	 que	 o
humano	 define	 e	 o	 humano	 restaura,	 à	margem	 da	marcha	 do	 ordinário	 no
sistema	 judicial	 do	Estado,	 no	 qual	 a	Lei	Geral	 se	 aplica,	 com	 cegueira	 do
espírito	e	à	distancia	de	toda	e	qualquer	pedagogia,	à	multiplicidade	de	casos
concretos,	como	guilhotina	à	procura	de	pescoços,	sem	sensibilidade	humana
e	moral	frente	às	dores	e	dramas	da	vida	do	mundo	desumano.
Raquel	Tiveron	contribui	de	maneira	decisiva	para	o	debate	em	torno	de	um
novo	 modo	 de	 produção	 do	 direito,	 receptivo	 ao	 concurso	 vertical	 da
Sociedade,	como	alternativa	à	máquina	deficitária	e	em	crise	de	legitimidade,
do	 Estado	 da	 era	 das	 nações.	 Do	 argumento	 teórico	 à	 análise	 empírica,	 o
presente	livro	conversa	com	o	direito	comparado	e	reclama	não	somente	uma
mudança	 legislativa	 no	 Brasil,	 bem	 como	 uma	 renovação	 de	 mentalidade
compatível	 com	 as	 exigências	 da	 sociedade	 pós-moderna	 em	 formação,
exigente	 em	 todas	 as	 latitudes,	 sobretudo,	 nos	 domínios	 em	 que	 não	 há
tradição	de	devolução	dos	poderes	aos	geradores	do	poder.
É	a	situação	do	Brasil,	este	‘acampamento	apressado’	de	que	falava	Gilberto
Amado,	 a	 tremular	 no	 fio	 da	 navalha,	 correndo	 o	 risco	 de	 ‘encontrar	 a
decadência	 sem	 ter	 experimentado	 a	 civilização’,	 como	 sublinhou	 Claude
Levi-Strauss.	Brasil	que	não	pode	ser	objeto	de	desistência,	como	reclamou	a
altivez	 moral	 e	 política	 de	 Eduardo	 Campos,	 candidato	 à	 Presidência	 da
República	 vitimado	 em	 acidente	 aéreo,	 em	 13	 de	 agosto	 de	 2014,	mas	 que
deixou	 um	 legado	 de	 ética	 pública	 que	 fecundará	 os	 sonhos	 das	 novas
gerações,	cuja	bandeira	será	a	de	transformar	o	‘acampamento	apressado’	em
responsável	civilização,	capacitada,	esta,	a	ser	e	a	estar,	aqui	e	no	mundo,	com
a	soberana	consciência	de	que	gente	tem	que	ser	tratada	como	gente.
A	Justiça	Restaurativa	versada	por	Raquel	Tiveron	foi	delineada	com	mão	de
mestra	 e	 compreendeu	 em	 profundidade	 o	 evolver	 do	 rio	 subterrâneo	 a
procurar	a	superfície,	no	compromisso	com	os	seus	mais	relevantes	aspectos	–
‘gestão	 emancipatória	 e	 participativa	 do	 conflito,	 devoluçãoda	 sua
administração	 aos	 seus	 protagonistas,	 o	 empoderamento	 comunitário	 e
elevado	 conteúdo	 pedagógico’	 –	 a	 construir	 uma	 legitimidade	 nova,	 para	 a
combalida	arquitetura	da	justiça	criminal.
Neste	 sentido,	 quando	 o	 polêmico	 Desembargador	 Estadual	 do	 Rio	 de
Janeiro,	Siro	Darlan,	em	entrevista	à	BBC	Brasil,	realiza	a	impugnação	global
do	papel	que	a	Constituição	da	República	Federativa	do	Brasil	–	Artigo	127	-
O	 Ministério	 Público	 é	 instituição	 permanente,	 essencial	 à	 função
jurisdicional	 do	 Estado,	 incumbindo-lhe	 a	 defesa	 da	 ordem	 jurídica,	 do
regime	 democrático	 e	 dos	 interesses	 sociais	 e	 individuais	 indisponíveis	 –
reserva	 ao	 Ministério	 Público,	 o	 livro	 ora	 publicado	 encontra	 em	 Raquel
Tiveron	alguém	que	o	vincula,	por	meio	da	Justiça	Restaurativa,	ao	visceral
compromisso	democrático	e	aos	caminhos	desafiantes	da	transmodernidade.
Se	 se	 quiser,	 entretanto,	 na	 valorosa	 tessitura	 da	 Tese	 Doutoral	 Justiça
Restaurativa	 e	 Emergência	 da	 Cidadania	 na	 Dicção	 do	 Direito	 ,
construída	por	Raquel	Tiveron	como	testemunho	do	seu	excepcional	talento,
encontrar	um	ponto	central,	a	melhor	resposta	será	a	de	que	o	seu	centro	está
em	toda	parte,	segundo	uma	irrecusável	exigência.	Qual?	A	de	que,	em	toda
parte	 deste	 todo	 orgânico,	 de	 maneira	 essencial,	 exista	 o	 compromisso
humano	 com	um	mundo	mais	 humano,	 de	 interminável	 construção,	mas	 de
necessária	 e	 infinita	 procura,	 a	 reconhecer	 o	 fundamento	 de	 validade	 da
magna	 aspiração:	 ‘Bem-aventurados	 os	 que	 têm	 fome	 e	 sede	 de	 justiça,
porque	serão	fartos	’	(Mateus	5.6).
Por	 ora,	 convido	 todos	 a	 saciarem	 a	 sua	 fome	 e	 a	 sua	 sede	 de	 justiça,
realimentando	 a	 constante	 busca,	 na	 bem-aventurança	 da	 leitura	 de	 Raquel
Tiveron	 e	 de	 sua	 decisiva	 obra	 Justiça	 Restaurativa	 e	 Emergência	 da
Cidadania	 na	 Dicção	 do	 Direito	 .	 Desfrutemos	 juntos	 deste	 banquete	 do
espírito	que,	segundo	a	nossa	maior	satisfação,	já	está	soberanamente	servido,
para	 que	 nunca	mais	 se	 tenha	 por	 ‘satisfeita	 a	 Justiça’,	 por	 alguma	 ‘salutar
dureza’	das	Leis,	quando	em	gemidos	não	só	a	Natureza,	mas	a	Consciência,
como	no	verso	de	Manuel	Maria	Barbosa	du	Bocage:
AO	RÉU	QUE	FOI	CONDUZIDO	AO	PATÍBULO
NO	DIA	11	DE	JULHO	DE	1797
Ao	crebro	som	do	lúgubre	instrumento,
Com	tardo	pé	caminha	o	delinquente;
Um	Deus	consolador,	um	Deus	clemente
Lhe	inspira,	lhe	vigora	o	sofrimento:
Duro	nó	pelas	mãos	do	algoz	cruento
Estreitar-se	no	colo	o	réu	já	sente;
Multiplicada	a	morte	anseia	a	mente,
Bate	horror	sobre	horror	no	pensamento:
Olhos	e	ais	dirigindo	à	Divindade,
Sobe,	envolto	nas	sombras	da	tristeza,
Ao	termo	expiador	da	iniquidade:
Das	leis	se	cumpre	a	salutar	dureza:
Sai	a	alma	dentre	o	véu	da	humanidade;
Folga	a	Justiça,	e	geme	a	Natureza’.
Brasília-DF,	agosto	de	2014.
1	Advogado	e	Professor	em	Brasília.	Filósofo	do	Direito,	Rossini	Corrêa	é	autor	de	Saber	Direito	 –
Tratado	 de	Filosofia	 Jurídica;	 Jusfilosofia	 de	Deus;	Crítica	 da	Razão	Legal;	O	Liberalismo	 no
Brasil;	 e	Teoria	 da	 Justiça	 no	Antigo	Testamento	 .	 Pertence	 à	Academia	Brasiliense	 de	Letras.	 É
membro	titular	do	Conselho	Federal	da	Ordem	dos	Advogados	do	Brasil.
INTRODUÇÃO
O	objetivo	do	presente	estudo	é	avaliar	as	condições	para	o	desenvolvimento
da	justiça	restaurativa	no	Brasil	como	um	novo	paradigma	de	justiça	criminal,
cujo	propósito	é	orientar	o	trabalho	dos	órgãos	desse	sistema.
A	 primeira	 parte	 do	 estudo	 será	 dedicada	 à	 análise	 do	 paradigma	 punitivo
atual	 e	 o	 contexto	 fático,	 político,	 jurídico	 e	 filosófico	 da	 sua	 crise.	 Este
paradigma	 apresenta	 sinais	 de	 esgotamento	 que	 podem	 ser	 constatados	 na
realidade	 precária	 do	 sistema	 carcerário	 no	 qual	 ocorrem	 corriqueiras
violações	dos	direitos	 fundamentais	 dos	 apenados	 e	dos	princípios	basilares
do	Estado	democrático	de	direito.	Exemplo	disso	é	o	histórico	“massacre	do
Carandiru”,	com	a	morte	de	111	presos	e	o	recente	assassínio	de	63	reclusos
no	presídio	maranhense	de	Pedrinhas.
Considerando	a	forma	como	são	acautelados	os	apenados	atualmente,	a	pena
de	prisão	tem	sido	aplicada	mediante	o	sacrifício	da	dignidade	humana,	o	que
compromete	 a	 legitimidade	 do	 sistema	 punitivo.	 O	 cárcere	 encontra-se
colapsado	com	a	ocupação	de	mais	de	meio	milhão	de	pessoas	em	trezentas
mil	vagas	e	com	outros	trezentos	e	vinte	mil	mandados	de	prisão	aguardando
cumprimento,	 segundo	 dados	 do	 Conselho	 Nacional	 de	 Justiça	 (CNJ)	 e	 do
Sistema	 Integrado	 de	 Informações	 Penitenciárias	 do	 Ministério	 da	 Justiça
(InfoPen),	explorados	na	primeira	parte	do	trabalho.
Quanto	 ao	 modo	 de	 acautelar	 os	 presos,	 a	 realidade	 brasileira	 viola
frontalmente	 a	 normativa	 internacional,	 tornando	 quimérica	 a	 aplicação	 das
“Regras	 Mínimas	 da	 ONU	 para	 o	 Tratamento	 de	 Prisioneiros”,	 consoante
registrou	a	Comissão	Parlamentar	de	Inquérito	(CPI)	do	Sistema	Carcerário.
O	 embrutecimento,	 a	 ociosidade,	 o	 abandono	 e	 as	 violações	 sexuais	 fazem
com	que	 o	 recluso	 se	 torne	 outra	 vítima,	 gerando	 a	 chamada	 “síndrome	 de
vitimização	 do	 cárcere”.	 Esta	 síndrome	 causa	 revoltas	 e	 motins	 face	 à
impossibilidade	de	se	executar	as	condenações	sob	a	égide	da	legalidade	e	da
humanidade.
Os	sintomas	de	debilidade	do	paradigma	punitivo	atual	se	manifestam	não	só
no	 campo	 fático,	mas	 também	no	político	 e	 no	 jurídico.	Quanto	 ao	 aspecto
político,	 denuncia	 a	 criminologia	 crítica	 que	 atesta	 que	 o	 direito	 penal	 vem
sendo	utilizado	 como	 técnica	 de	 controle	 social	 em	prol	 da	 criação	 de	 uma
sociedade	 de	 controle	 e	 exclusão.	 Nesta	 sociedade,	 são	 selecionadas,	 para
repressão	severa	(por	meio	de	políticas	endurecedoras	do	tipo	“lei	e	ordem”),
as	condutas	conflituosas	praticadas	pelas	camadas	mais	débeis	e	marginais	da
sociedade	(em	geral,	delitos	patrimoniais).
Este	 uso	 de	 sanções	 penais	 é	 incoerente,	 já	 que	 condutas	 que	 causam
prejuízos	muito	maiores	 do	 que	 todos	 os	 roubos	 e	 furtos	 somados	 do	 país,
como	 a	 corrupção,	 são	 pontualmente	 punidos.	 Portanto,	 o	 uso	 político	 e
incoerente	da	sanção	penal	—	que	permanece,	inclusive	no	projeto	de	reforma
do	Código	Penal	—	também	contribui	para	o	questionamento	da	legitimidade
do	sistema.
Para	o	exame	dessas	questões,	será	utilizado	o	estudo	bibliográfico	de	autores
da	 criminologia,	 em	 especial	 da	 corrente	 crítica,	 ou	 seja,	 autores	 como
Alessandro	 Baratta,	 Claus	 Roxin,	 Louk	 Hulsman,	 Lola	 Aniyar	 de	 Castro,
Eugenio	Raúl	Zaffaroni,	Antonio	Beristain	e	Juarez	Cirino	dos	Santos.
Do	ponto	de	vista	jurídico,	as	finalidades	atribuídas	em	lei	à	pena	privativa	de
liberdade	 —	 em	 especial	 as	 de	 prevenção	 do	 delito,	 de	 reinserção	 e	 de
“ressocialização”	 do	 condenado	 —	 são	 diuturnamente	 descumpridas.	 Ao
invés	 de	 desempenhar	 suas	 funções	 jurídicas	 declaradas,	 a	 pena	 de	 prisão
opera	 numa	 eficácia	 invertida,	 que,	 no	 lugar	 de	 reduzir	 a	 criminalidade,
incrementa-a,	 pois	 o	 contato	 com	 outros	 presos	 no	 cárcere	 propicia
oportunidades	para	mais	práticas	criminosas,	à	medida	que	consolida	valores
delitivos,	gerando	a	reincidência.
Desta	 forma,	 a	 seletividade	 das	 pessoas	 a	 serem	 encarceradas	 e	 a
impossibilidade	de	 cumprimento	dos	 fins	 prescritos	 pela	 lei	 incutem	à	pena
certa	dose	de	injustiça,	colocam	em	evidência	a	fragilidade	dos	fundamentos
do	modelo	punitivo	e	põem	em	xeque	a	sua	legitimidade	(SILVA	et	al,	2006,
p.	801	e	KARAM,	2004,	p.	93).
Seria	 impossível	 tratar	 de	 temas	 como	 pena	 e	 prisão	 sem	 perpassar	 pelos
aspectos	 filosóficos	 sobre	 o	 assunto,	 tendo	 em	 vista	 que	 o	 fundamento	 do
direito	 de	 punir,	 a	 natureza	 da	 pena,	 sua	 finalidade,	 o	 emprego	 da	 pena	 de
morte,	 por	 exemplo,	 a	 despeito	 do	 seu	 conteúdo	 marcadamente	 jurídico,
sempre	foram	objeto	de	reflexão	por	parte	dos	grandes	filósofos	da	história.
Este	assunto	é	tratado	na	primeira	parte	dotrabalho.
Compreender	 os	 fundamentos	 desta	 crise	 de	 legitimação	 do	 direito	 penal,
sejam	 fáticos,	 jurídicos,	 políticos	 ou	 filosóficos,	 pode	 auxiliar	 no
desenvolvimento	 de	 alternativas	 para	 se	 minimizar	 os	 efeitos	 negativos	 da
aplicação	 da	 pena	 e	 fazê-la	mais	 consentânea	 com	 os	 princípios	 do	 Estado
democrático	 de	 direito.	 Neste	 trabalho,	 referimo-nos	 especificamente	 à
alternativa	 representada	 pela	 justiça	 restaurativa	 cujo	 formato	 e	 benefícios
serão	evidenciados	na	segunda	parte	deste	estudo.
Em	resposta	à	crise	paradigmática	relatada,	a	justiça	restaurativa	se	apresenta
como	paradigma	alternativo	que	oferece	uma	resposta	ao	crime	inspirada	nos
valores	 transmodernos	 de	 convergência,	 humanização	 e	 “outridade”.	 Ela
reconhece	o	crime	como	um	conflito	humano	e	propõe	um	modelo	penal	mais
reparador	e	integrador.
A	justiça	restaurativa	promove	uma	intervenção	tridimensional	sobre	o	crime:
mediante	a	reparação	dos	danos	patrimoniais	e	emocionais	das	vítimas,	com	a
responsabilização	 e	 reintegração	 do	 ofensor	 e	 pela	 participação	 comunitária
no	processo.
Ela	o	faz	por	meio	de	um	processo	deliberativo	que	congrega	os	afetados	por
um	 delito	 na	 construção	 de	 respostas	 para	 o	 tratamento	 do	 delito	 (a
“jurisconstrução”,	 anunciada	 por	 Warat).	 Estas	 características	 da	 justiça
restaurativa	conferem	a	ela	componentes	democráticos	significativos,	como	a
participação	 e	 a	 deliberação,	 características	 que	 a	 diferenciam	 do	 sistema
ordinário	 de	 justiça,	 e	 que	 podem	 contribuir	 para	 suprir	 o	 seu	 déficit	 de
legitimidade,	fato	que	é	identificado	na	primeira	parte	deste	estudo.
A	teoria	política	contemporânea	(de	Schumpeter,	Robert	Dahl,	Joshua	Cohen
e	Charles	Sabel)	será	usada	a	para	enquadrar	a	justiça	restaurativa	e	o	sistema
de	justiça	criminal	em	modelos	democráticos	com	o	fito	de	avaliar	qual	deles
promoveria,	em	maior	grau,	os	valores	democráticos	fundamentais.
A	 filosofia	 e	 os	 conceitos	 teóricos	 de	 Jürgen	 Habermas	 (esfera	 pública	 de
deliberação,	agir	comunicativo	e	racionalidade	comunicativa),	de	Emmanuel
Lévinas	 (encontro	 face	 a	 face)	 e	 de	 Axel	 Honneth	 (reconhecimento
intersubjetivo	 recíproco)	 serão	 usados	 para	 se	 compreender	 a	 dinâmica
restaurativa	 e	 os	 seus	 fundamentos.	 Para	 tanto,	 será	 feita	 uma	 revisão
bibliográfica	 do	 referencial	 teórico	mencionado	 sem	o	propósito	 de	 abordar
todas	as	dimensões	da	teoria	completa	de	cada	um	deles.
Por	 ser	 um	 paradigma	 em	 construção	 e	 não	 possuir	 uma	 teoria	 própria,	 a
justiça	restaurativa	se	vale	do	conhecimento	das	escolas	criminológicas	que	a
antecederam	 para	 engendrar	 uma	 teoria	 de	 resposta	 ao	 crime,	 integrando
elementos	 de	 várias	 delas.	 Na	 terceira	 parte	 do	 trabalho,	 com	 auxílio	 do
método	 histórico,	 será	 percorrido,	 por	 meio	 de	 um	 estudo	 longitudinal,	 os
movimentos	criminológicos	que	mais	contribuem	para	a	sua	edificação.
Na	quarta	parte	deste	trabalho	será	avaliada	a	práxis	restaurativa	brasileira	por
meio	dos	 três	programas	pioneiros	de	 justiça	 restaurativa	 iniciados	em	2005
que	já	apresentam	alguns	resultados	nestes	nove	anos	de	atividade.	Optou-se
pelo	 corte	 metodológico	 para	 o	 exame	 de	 apenas	 estas	 três	 experiências
brasileiras	por	elas	possuírem	dados	consolidados	há	mais	tempo	e	por	serem
as	 incentivadoras	 das	 demais.	 Conhecer	 estes	 programas,	 ao	mesmo	 tempo
em	que	se	dissemina	a	informação	sobre	o	que	tem	sido	feito,	torna	possível
se	 identificar	 onde	 estão	 as	 principais	 lacunas	 e	 ausências	 visando	 ao	 seu
aperfeiçoamento.
Procurar-se-á	identificar	seus	méritos,	a	fim	de	testá-los	por	meio	de	hipóteses
junto	à	opinião	dos	usuários	do	sistema	de	justiça	por	meio	de	uma	pesquisa
exploratória	 de	 campo.	 As	 respostas	 quantitativas	 serão	 trabalhadas
estatisticamente,	a	fim	de	confirmar	ou	refutar	as	hipóteses	estabelecidas.
O	estudo	será	completado	qualitativamente	com	a	análise	comparativa	de	dois
casos	de	estupro	tratados	pela	justiça	restaurativa	—	um	no	Brasil	e	outro	no
exterior	—	a	fim	de	aprofundar	a	compreensão	da	dinâmica	e	dos	princípios
restaurativos.	Os	casos	 foram	selecionados	metodologicamente,	procurando-
se	 explorar	 a	maior	 quantidade	 de	 variáveis	 possíveis	 em	 cada	 um	 deles,	 a
despeito	das	diferenças	de	contexto	em	que	ocorreram.	Considerou-se	o	fato
de	se	tratarem	de	crimes	graves,	de	natureza	sexual,	cujas	vítimas	e	ofensores
possuíam	 a	 mesma	 idade	 na	 data	 dos	 fatos	 (treze	 e	 dezoito	 anos,
respectivamente)	 e	 eram	 conhecidos	 entre	 si	 (no	 primeiro	 caso,	 irmãos;	 no
segundo,	namorados).	Dessa	forma,	tornar-se-á	possível	a	sua	avaliação	com
profundidade	 e,	 ao	 mesmo	 tempo,	 a	 comparação	 para	 a	 extração	 de
conclusões	válidas.
A	 partir	 do	 estudo	 dos	 casos,	 será	 possível	 visualizar	 as	 similaridades	 e	 as
diferenças	 das	 intervenções	 restaurativas	 no	Brasil	 e	 no	 exterior,	 e	 também
perceber	 as	 vantagens	 que	 o	 tratamento	 restaurativo	 oferece.	 Afinal,	 tão
válido	 quanto	 o	 conhecimento	 teórico	—	 constituído	 a	 partir	 de	 conceitos
gerais,	efetuado	na	primeira	parte	da	pesquisa	—	é	o	conhecimento	indutivo,
obtido	a	partir	da	prática,	como	a	reflexão	ora	proposta.
A	 justiça	 restaurativa,	 em	 especial	 sob	 a	 forma	 de	mediação	 penal,	 já	 está
incorporada	e	em	vigor	no	ordenamento	jurídico	de	alguns	países	europeus	e
americanos,	 independentemente	 do	 sistema	 de	 direito	 adotado	 e	 está
integrando	ousados	projetos	de	modernização	da	justiça.
Na	 Espanha,	 por	 exemplo,	 mecanismos	 de	 justiça	 restaurativa	 estão	 em
andamento	em	mais	de	quarenta	tribunais.	No	Canadá,	o	Código	Penal	e	a	lei
menorista	 (“Youth	 Criminal	 Justice	 Act”	 —	 YCJA)	 foram	 alterados	 para
incluírem	princípios	restaurativos.	Na	Nova	Zelândia,	há	a	previsão	expressa
no	 “Sentencing	 Act”	 de	 2002	 da	 obrigação	 de	 juízes	 de	 condenação
considerarem	 os	 processos	 restaurativos	 como	 atenuantes	 da	 pena.	 Estes
estatutos	serão	analisados	na	terceira	parte	do	estudo,	todavia	sem	a	pretensão
de	 esgotar	 o	 seu	 exame	 ou	 de	 advogar	 a	 sua	 cópia	 para	 o	 ordenamento
jurídico	brasileiro,	em	respeito	às	especificidades	locais,	tão	valorizadas	pela
justiça	restaurativa.
Neste	processo,	destaca-se	também,	o	necessário	envolvimento	do	Ministério
Público	 em	 virtude	 da	 sua	 posição	 de	 titular	 da	 ação	 penal	 e	 da	 sua
conformação	constitucional	ampliada	pela	Constituição	Federal	de	1988	para
a	concretização	de	suas	promessas	de	cidadania.	Na	Alemanha	e	em	Portugal,
por	 exemplo,	 a	 remessa	 de	 um	 processo	 para	 o	 acordo	 restaurativo	 fica	 a
cargo	do	Ministério	Público.	Neste	último	país,	é	o	Ministério	Público	quem
designa	o	mediador	para	a	causa.	O	mediador	é	escolhido	dentre	vários	que
constam	de	uma	lista	de	profissionais	cadastrados	no	Ministério	da	Justiça.
No	México,	 em	2008,	procedeu-se	 a	uma	 reforma	constitucional	na	qual	 se
permitiu,	 entre	 outras	 medidas,	 a	 mediação	 penal	 no	 sistema	 de	 justiça
criminal.	 Esta	 reforma	 representou	 uma	 mudança	 paradigmática	 muito
significante,	porque	estatuiu,	em	sede	constitucional,	que	as	leis	devem	prever
meios	alternativos	de	resolução	de	disputas	inclusive	em	matéria	penal,	e	que
o	 Ministério	 Público	 pode	 considerar	 critérios	 de	 oportunidade	 para	 o
exercício	da	ação	penal.
Na	 Argentina,	 a	 mediação	 penal	 o	 ocorre	 no	 âmbito	 do	 próprio	Ministério
Público	(no	“Gabinete	de	Resolução	Alternativa	de	Litígios	Departamentais”
do	Ministério	Público).	A	ele	é	 textualmente	atribuída	a	responsabilidade	de
pacificar	 conflitos	 e	 buscar	 a	 reconciliação	 entre	 as	 partes,	 com	 respeito	 às
garantias	constitucionais	e	neutralizando	os	prejuízos	derivados	do	processo
penal.
No	 Brasil,	 por	 não	 haver	 uma	 legislação	 específica	 para	 regulamentá-la,	 a
prática	 restaurativa	vem	encontrando	o	 seu	caminho	em	espaços	 em	que	há
alguma	margem	legal	para	a	justiça	consensuada(como	nos	juizados	especiais
criminais	nos	quais	é	autorizada	uma	solução	conciliatória	para	o	crime)	ou
quando	o	 fato	não	 é	 tecnicamente	 considerado	crime	 (para	 atos	 infracionais
praticados	 por	 adolescentes,	 inimputáveis	 penalmente)	 e,	 por	 isso,	 não	 são
passíveis	tecnicamente	de	pena	ou	de	persecução	penal.
Entretanto,	para	se	desenvolver	e	ser	amplamente	adotada	no	Brasil,	a	justiça
restaurativa	 precisa	 oferecer	 respostas	 a	 dois	 questionamentos:	 como
compatibilizá-la	com	alguns	direitos	e	garantias	individuais	dos	acusados	(por
exemplo,	o	princípio	da	presunção	de	inocência	ou	da	não-culpabilidade),	 já
que	 ela	 tem	 como	 pressuposto	 o	 reconhecimento	 e	 a	 responsabilização	 do
ofensor	pela	prática	do	delito?	 e	Como	compatibilizá-la	 com	o	princípio	da
obrigatoriedade	 da	 ação	 penal	 pública	 pelo	 Ministério	 Público,	 quando
presentes	indícios	de	autoria	e	materialidade	do	crime?
Isso	 porque	 a	 participação	 do	 ofensor	 no	 acordo	 restaurativo	 demanda,	 em
primeiro	 lugar,	 o	 reconhecimento	 da	 sua	 responsabilidade	 pelo	 ato.	 O
problema	 jurídico	 que	 se	 instaura	 a	 este	 respeito	 é	 o	 de	 que	 esta	 exigência
pode,	aparentemente,	contrastar	com	a	garantia	da	presunção	de	inocência	ou
da	não-culpabilidade	do	acusado.
O	 princípio	 da	 obrigatoriedade	 da	 ação	 penal	 pública	 informa	 que	 o
Ministério	 Público	 está	 obrigado	 a	 oferecer	 a	 denúncia	 ao	 tomar
conhecimento	 de	 uma	 conduta	 típica	 e	 antijurídica.	 Assim,	 a	 atuação
ministerial	será	vinculada,	ou	seja,	ele	não	pode	optar	por	não	denunciar	em
tais	casos,	ainda	que	por	razões	de	política	criminal,	tendo	em	vista	a	natureza
indisponível	do	interesse	público.
Entretanto,	a	vigorar	esse	entendimento,	quase	não	haverá	espaço	de	consenso
para	as	partes	deliberarem	a	respeito	do	tratamento	para	as	consequências	do
crime,	o	que	impedirá	o	desenvolvimento	da	justiça	restaurativa	para	abarcar
crimes	 mais	 graves.	 Dessa	 forma,	 os	 programas	 de	 justiça	 restaurativa
continuarão	 restritos	 aos	 conflitos	 de	menor	 potencial	 ofensivo,	 no	 qual	 há
algum	 espaço	 legal	 reservado	 ao	 consenso	 das	 partes	 para	 a	 resolução	 do
conflito	 (nos	 crimes	 de	 ação	 penal	 privada	 ou	 pública	 condicionada	 à
representação	do	ofendido).
Portanto,	 viabilizar	 a	 aplicação	 da	 justiça	 restaurativa	 a	 crimes	mais	 graves
parece	 ser	 a	 saída	 para	 que	 ela	 possa	 ser	 útil	 para	 auxiliar	 no
desencarceramento	e	nas	mudanças	dos	números	e	da	realidade	prisional.
Estas	 são	questões	que	necessitam	 ser	 enfrentadas	—	e	o	 serão	no	decorrer
deste	 trabalho	—	 para	 que	 a	 justiça	 restaurativa	 tenha	 chance	 de	 florescer,
abrindo	 uma	 chance	 para	 que	 as	 partes	 envolvidas	 no	 conflito	 como
protagonistas	alcancem	o	consenso	e	decidam	a	melhor	forma	de	solucionar
os	seus	litígios.
PARTE	I
A	CRISE
DO	PARADIGMA
PUNITIVO
TUDO	O	QUE	É	SÓLIDO
DESMANCHA	NO	AR?
CAPÍTULO	I
O	SISTEMA	PENAL	POSTO	EM	QUESTÃO	CRISE	DE
LEGITIMIDADE	DA	PENA	DE	PRISÃO?
Na	primeira	parte	do	estudo,	analisam-se	os	sinais	de	esgotamento	do	sistema
penal	a	fim	de	compreender	o	contexto	fático	da	sua	crise	de	legitimação.
Os	 sintomas	 da	 debilidade	 deste	 sistema	 se	 manifestam	 na	 realidade	 das
prisões,	 nas	 quais	 ocorrem	 corriqueiras	 violações	 dos	 direitos	 fundamentais
dos	apenados,	o	que	evidencia	a	fragilidade	do	modelo	punitivo,	desafiando	a
sua	legitimidade	e	a	propositura	de	alternativas	a	ele.
O	conceito	habermasiano	de	 tensão	entre	 facticidade	e	validade	do	direito	é
utilizado	para	explicar	como	a	dissenção	entre	os	 fins	programados	da	pena
(prevenir	 e	 “ressocializar	 2	 ”)	 e	 a	 realidade	 fática	 do	 seu	 cumprimento
(reincidência	 e	 geração	 de	 carreiras	 criminosas	 a	 partir	 da	 prisão)	 afetam	 a
legitimidade	 do	 direito	 penal	 e	 do	 próprio	 sistema	 de	 justiça	 criminal,	 pois
fazem	com	que	se	questione	o	uso	da	força	e	do	poder	de	punir	pelo	Estado.
A	criminologia	crítica	é	empregada	para	demonstrar	esta	crise	de	legitimidade
e	de	eficiência	do	sistema,	visto	que	as	supostas	vantagens	anunciadas	por	ele
são	muito	 inferiores	aos	custos	arcados	pela	população	sem	que	se	dispense
aos	reclusos	um	tratamento	digno	(o	qual	está	bastante	distante	das	“Regras
Mínimas	da	ONU	para	o	Tratamento	de	Prisioneiros”),	conforme	constatou	a
CPI	do	sistema	carcerário.
Por	fim,	seria	impossível	 tratar	de	temas	como	pena	e	prisão,	sem	perpassar
pelos	aspectos	filosóficos	sobre	o	assunto,	tendo	em	vista	que	o	fundamento
do	direito	de	punir,	a	natureza	da	pena,	sua	finalidade,	o	emprego	da	pena	de
morte,	 por	 exemplo,	 a	 despeito	 do	 seu	 conteúdo	 marcadamente	 jurídico,
sempre	foram	objeto	de	reflexão	por	parte	dos	grandes	filósofos	da	história.
1.1	A	tensão	entre	facticidade	e	validade	no	direito:	
a	importância	do	reconhecimento	da	legitimidade	
da	lei	penal
Antes	 de	 abordar	 a	 crise	 do	 sistema	 penal	 propriamente	 dita,	 é	 preciso
demonstrar	 a	 importância	 do	 reconhecimento	 da	 sua	 legitimidade	 pelos
cidadãos.	 Isso	porque,	a	confiança	na	 lei	e	a	crença	na	sua	 legitimidade	são
pressupostos	de	primeira	ordem	para	o	 funcionamento	exitoso	do	sistema	e,
por	outro	lado,	a	deslegitimação	contínua	da	lei	penal	pode	contribuir	para	o
comprometimento	deste	modelo.
Habermas	 observa	 que,	 para	 existir	 socialmente,	 o	 direito	 deve	 satisfazer
simultaneamente	 a	 duas	 condições	 necessárias,	 ainda	 que	 aparentemente
contraditórias:	a	facticidade	e	a	validade.
O	direito	preenche	os	requisitos	da	facticidade,	ou	seja,	existe	como	um	fato
social	concreto,	à	medida	que	está	positivado	(incorporado	ao	mundo	jurídico
por	um	ato	legislativo)	e	por	ser	dotado	de	coerção	(que	lhe	confere	eficácia).
Essas	 características	 —	 positividade	 e	 coerção	 —	 tornam-no	 apto	 a	 ser
conhecido	e	obedecido	pelos	cidadãos	(COELHO,	2013d,	p.	1).
Além	da	 facticidade,	há	a	necessidade	de	se	conferir	validade	ao	direito,	no
sentido	 de	 que	 seja	 reconhecido	 como	 “valioso”	 pelos	 cidadãos.	 Sobre	 a
importância	do	atributo	da	validade,	assevera	Habermas	(1997a,	p.	9):
o	modo	de	operar	de	um	sistema	político,	constituído	pelo	Estado	de	direito,	não	pode	ser
descrito	adequadamente,	nem	mesmo	em	nível	empírico,	quando	não	se	leva	em	conta	a
dimensão	de	validade	do	direito	e	a	força	legitimadora	da	gênese	democrática	do	direito.
Para	 o	 reconhecimento	 da	 sua	 validade,	 o	 direito	 precisa	 preencher	 duas
condições:	 proteger	 a	 liberdade	 e	 possuir	 legitimidade.	 Na	medida	 em	 que
protege	as	liberdades	individuais,	o	direito	é	considerado	caro	aos	cidadãos.	O
seu	 reconhecimento	 como	 legítimo	 faz	 com	 que	 o	 direito	 obtenha	 adesão
racional	por	parte	dos	indivíduos	(COELHO	2013d,	p.	1).
Consoante	 Habermas,	 as	 duas	 características	 do	 direito	 —	 facticidade	 e	 a
validade	—	 são	 complementares	 e	 essenciais,	 a	 despeito	 de	 se	 encontrarem
em	 constante	 tensão.	 Assim,	 a	 liberdade	 (condição	 de	 validade)	 limita	 a
coerção	 estatal	 (condição	 de	 facticidade),	 mas	 ao	 mesmo	 tempo	 a	 torna
aceitável.	 Já	 a	 coerção	 limita	 a	 liberdade,	 mas,	 por	 outro	 lado,	 a	 torna-a
possível.	Nas	palavras	de	Habermas	(1997a,	p.	49),	“as	normas	do	direito	são,
ao	 mesmo	 tempo	 e	 sob	 aspectos	 diferentes,	 leis	 da	 coerção	 e	 leis	 da
liberdade.”
O	mesmo	se	passa	com	a	positividade	e	a	legitimidade.	Para	Habermas,	não
basta	que	as	normas	tenham	sido	positivadas	para	terem	validade,	pois	o	fato
de	 estarem	 positivadas	 quer	 dizer	 que	 elas	 existirem,	 no	 entanto	 podem	 ter
sido	 impostas,	 por	 exemplo,	 o	 que	 não	 as	 justificaria	 do	 ponto	 de	 vista	 da
legitimidade:
Só	 vale	 como	 direito	 aquilo	 que	 obtém	 força	 de	 direito	 através	 de	 procedimentos
juridicamente	 válidos	 —	 e	 que	 provisoriamente	 mantém	 força	 de	 direito,	 apesar	 da
possibilidade	de	derrogação,	dada	no	direito.	Porém,	o	sentido	desta	validade	do	direito
somente	 se	 explica	 através	 da	 referencia	 simultânea	 à	 sua	 validadesocial	 ou	 fática
(Geltung)	e	à	sua	validade	ou	legitimidade	(Gültigkeit)	(HABERMAS,	1997a,	p.	50).
No	mesmo	 sentido,	 o	magistério	 de	 José	Rossini	Campos	 do	Couto	Corrêa
(2011,	 p.	 175)	 salienta	 que	 existência	 e	 legitimidade	 são	 coisas	 distintas,
sendo	que	esta	seria	fruto	do	procedimento,	como	defende	Habermas:
Não	nasceu	o	Homem	para	o	Estado,	nasceu	o	Estado	para	o	Homem.	E	mais:	ninguém
autorizou	o	Estado,	em	seu	nascedouro,	a	retirar	a	Vida	do	Homem.	E	ainda:	a	simples
existência	do	Estado	e	do	Direito	a	ambos	não	legitima.	O	consentimento	é	consequência
do	procedimento.
Observa	André	 Coelho	 (2013d,	 p.	 1)	 que,	 sem	 legitimidade,	 a	 positividade
consistiria	em	atos	de	decisão	que	não	teriam	por	que	serem	obedecidos.	Por
outro	lado,	sem	positividade,	a	legitimidade	é	impossível:
A	positividade	implica	possibilidade	de	tornar	qualquer	conteúdo	em	direito,	ao	passo	que
a	 legitimidade	 obriga	 a	 que	 apenas	 certos	 conteúdos	 possam	 ser	 tornados	 direito.	 No
plano	 conceitual,	 novamente,	 ambos	 são	 opostos.	 Contudo,	 sem	 legitimidade,	 a
positividade	 consistiria	 em	 atos	 de	 decisão	 que	 não	 teriam	 por	 que	 ser	 obedecidos,
enquanto,	sem	positividade,	os	conteúdos	que	merecem	ser	obedecidos	não	teriam	atos	de
decisão	 com	 os	 quais	 se	 tornarem	 obrigatórios.	 Novamente,	 sem	 positividade,	 a
legitimidade	é	impossível,	mas,	sem	legitimidade,	a	positividade	é	inaceitável	(COELHO,
2013d,	p.	1).
Consoante	Habermas	(1997a,	p.	12),	a	 legitimidade	do	Estado	mede-se	pelo
seu	reconhecimento	por	parte	dos	que	estão	submetidos	à	sua	autoridade.	A
legitimidade	 é	 condição	 direta	 de	 validade,	 que	 faz	 com	 que	 o	 direito	 seja
reconhecido	como	merecedor	de	obediência	(COELHO,	2013d,	p.	1).	Sobre	a
importância	da	legitimidade,	assevera	Habermas:
A	aceitação	da	ordem	jurídica	é	distinta	da	aceitabilidade	dos	argumentos	sobre	os	quais
ela	 apoia	 a	 sua	 pretensão	 de	 legitimidade	 […].	 Os	membros	 do	 direito	 têm	 que	 poder
supor	 que	 eles	 mesmos,	 numa	 formação	 livre	 da	 opinião	 e	 da	 vontade	 política,
autorizariam	as	regras	às	quais	eles	estão	submetidos	como	destinatários	[…].	O	direito
extrai	a	sua	força	muito	mais	da	aliança	que	a	positividade	do	direito	estabelece	com	a
pretensão	à	legitimidade	(HABERMAS,	1997a,	p.	59-60).
Assim,	 por	 causa	 da	 dependência	 recíproca	 entre	 facticidade	 e	 validade,	 o
direito	 (especialmente	 o	 direito	 penal)	 deve	 satisfazer,	 ao	 mesmo	 tempo,	 a
ambas	condições.	Por	conseguinte,	é	necessária	uma	constante	renovação	do
direito	 para	 que	 possa	 gerir	 seus	 eventuais	 déficits	 que,	 no	momento,	 é	 de
legitimidade,	 consoante	 identificaram	os	 criminólogos	 críticos,	 na	discussão
feita	a	seguir.
1.2	O	déficit	de	legitimidade	da	lei	penal
Na	opinião	da	criminologia	crítica	—	que	muito	contribuiu	para	uma	análise
questionadora	do	direito	penal	e	seus	fundamentos	—,	o	paradigma	punitivo
atual	encontra-se	esgotado	não	só	na	sua	eficácia	prática,	mas	também	na	sua
legitimidade	 moral	 (quanto	 ao	 direito	 de	 punir)	 e	 política	 (no	 tocante	 à
definição	 dos	 eventos	 classificados	 como	delitos).	 Segundo	 os	 críticos,	 este
modelo	lastreia-se	em	pressupostos	tradicionais	bastante	contestáveis,	como	o
de	que	há	pessoas	más,	merecedoras	da	pena	de	prisão.	Isso	ocorre	em	razão
de	uma	norma	oriunda	do	consenso	coletivo,	ou	seja,	a	lei	penal.
Quanto	à	 legitimidade	do	direito	de	punir,	 temos	que	a	aplicação	puramente
do	castigo	e	da	punição	sobre	o	condenado	é	oriunda	da	tradição	que	confere
autoridade	religiosa	e	moral	ao	soberano.	Considera	Warat	(2001,	p.	170)	que
o	 direito	moderno	 ostentou	 esta	 autoridade,	 legislando	 os	 significados	 e	 os
padrões	de	justiça	em	nome	de	uma	suposta	ordem	racional	plena.
Habermas	 (1997b,	 p.	 23)	 critica	 esta	 visão,	 asseverando	 que	 o	 conceito	 de
soberania,	 segundo	 o	 qual	 o	 Estado	 monopoliza	 os	 meios	 da	 aplicação
legítima	da	força,	traz	em	si	uma	ideia	absolutista	de	concentração	de	poder,
capaz	 de	 sobrepujar	 todos	 os	 demais	 poderes	 deste	 mundo”.	 Consoante	 o
autor,	o	ideal	é	uma	visão	procedimentalista	de	exercício	do	poder	que	remete
à	 ideia	 de	 soberania	 do	 povo	 e	 “chama	 a	 atenção	 para	 condições	 sociais
marginais,	 as	 quais	 possibilitam	 a	 auto-organização	 de	 uma	 comunidade
jurídica”	(HABERMAS,	1997b,	p.	25).
Aduz	 Beristain	 (2000,	 p.	 59)	 que	 “passamos	 da	 cultura	 mágica	 à	 cultura
mítica	 e	 depois	 ao	 homem	 racional,	 onde	 permanecemos	 estancados,
ancorados,	 há	 muitos	 séculos”.	 O	 atual	 paradigma	 punitivo,	 afirma	 o
professor	 espanhol	 (2000,	 p.	 176),	 “padece	 de	múltiplos	 anacronismos	 que
devem	 ser	 rejeitados,	 como	 o	 seu	 crasso	 maniqueísmo,	 sua	 excessiva
abstração	 filosófica,	 seu	 casamento	 com	 a	 moral	 religiosa,	 seu	 falso
pressuposto	 de	 que	 toda	 a	 sociedade	 está	 de	 acordo	 com	 o	 Estado,	 com	 a
classe	dominante,	 etc.	Esquece	a	diversidade	de	cosmovisões	que	convivem
na	sociedade	e	merecem	seu	amplo	respeito”.
No	 tocante	 ao	 segundo	 tipo	 de	 legitimidade	 (da	 criminalização	 ou	 da
definição	dos	 eventos	 classificados	 como	delitos),	 a	 lei	 penal	declara	 certos
tipos	de	conduta	como	erradas	e	exige	que	todos	os	cidadãos	acatem	os	seus
decretos.	Entretanto,	 tal	 legitimidade	 tem	sido	contestada	em	face	não	só	da
ausência	de	um	consenso	sobre	os	valores	por	ela	afirmados,	mas	porque	suas
determinações	 geralmente	 revelam	 a	 imposição	 de	 princípios	 próprios	 de
cidadãos	mais	favorecidos	socialmente	ou	exercentes	de	algum	poder	3	.
Neste	sentido,	assevera	Ferrajoli	(2010,	p.	18)	que	o	direito	penal	constituiria,
em	verdade,	uma	 técnica	de	controle	social,	conforme	várias	orientações	—
autoritárias,	 idealistas,	 ético-estatais,	 positivistas,	 irracionais,	 espirituais,
correcionais	ou	também	puramente	tecnicistas	e	pragmáticas	—	que	formam
o	fundo	filosófico	da	cultura	penal	dominante	4	.
Maria	Lúcia	Karam	(2004,	p	73)	5	argumenta	que
crimes	 são	 meras	 criações	 da	 lei	 penal,	 através	 da	 seleção	 de	 determinadas	 condutas
conflituosas	 ou	 socialmente	 negativas,	 que,	 por	 intervenção	 da	 lei	 penal,	 recebem	 esta
denominação.	O	que	é	crime	em	um	determinado	lugar,	pode	não	ser	em	outro;	o	que	hoje
é	crime,	amanhã	poderá	não	ser.
Quanto	 a	 este	 aspecto	—	de	 que	 o	 que	 é	 crime	 em	 lugar	 pode	 não	 ser	 em
outro	-	é	exemplar	a	descriminalização	do	uso	de	drogas	para	uso	recreativo,
recentemente	 admitida	 nos	 estados	 americanos	 de	Washington	 e	 Colorado,
num	país	conhecido	por	estar	há	mais	de	quarenta	anos	em	“guerra	contra	as
drogas”.
1.3	O	uso	político	da	sanção	penal	para	excluir:	
uma	visão	agnóstica	da	pena
Para	a	criminologia	crítica,	o	discurso	jurídico	define	o	crime	como	realidade
ontológica	 pré-constituída	 e	 apresenta	 o	 sistema	 de	 justiça	 criminal	 6	 como
instituição	neutra,	que	realiza	uma	atividade	imparcial.	Mas,	em	verdade,	de
acordo	 com	 esta	 escola,	 há	 uma	 criminalização	 desigual	 dos	 fatos	 (uso
político	da	 sanção	penal)	 se	concentrando	nas	drogas	e	na	área	patrimonial,
por	exemplo,	 e	não	nos	crimes	contra	a	economia,	 a	ordem	 tributária,	meio
ambiente	etc.	7
O	 sistema	 de	 justiça,	 por	 seu	 turno,	 funcionaria	 como	 instituição	 que
transforma	o	cidadão	em	“criminoso”,	segundo	o	alvedrio	dos	operadores	do
direito,	 “repletos	 de	 preconceitos,	 estereótipos,	 traumas	 e	 outras
idiossincrasias	pessoais”	(CIRINO	DOS	SANTOS,	2013b,	p.	2).	Ele	serviria,
antes	 de	 tudo,	 para	 diferenciar	 e	 administrar	 os	 conflitos	 existentes	 na
sociedade,	 taxando-os	 de	 “criminosos”	 (BARATTA,	 1987,	 p.	 628).	 Em
perspectiva	idêntica,	acrescenta	Louk	Hulsman	(2003,	p.	195):
somos	 inclinados	 a	 considerar	 “eventos	 criminais”	 como	 eventos	 excepcionais	 que
diferem	de	forma	importante	de	outros	eventos	que	não	são	definidos	como	criminais	[…].
Criminosos	 seriam	—	 nesta	 visão	—	 uma	 categoria	 especial	 de	 pessoas,	 e	 a	 natureza
excepcional	 da	 condutacriminal	 e/ou	 do	 criminoso	 justificam	 a	 natureza	 especial	 da
reação	contra	eles.
Ainda	 acerca	 da	 incoerência	 e	 do	 uso	 político	 da	 sanção	 penal,	Alessandro
Baratta	 (1987,	 p.	 19)	 define	 o	 sistema	 criminal	 como	 um	 “aglomerado
arbitrário	de	objetos	heterogêneos”	(comportamentos	puníveis),	que	não	têm
em	comum	outro	elemento	senão	o	de	estarem	sujeitos	a	respostas	punitivas,
em	 razão	 de	 uma	 definição	 completamente	 artificial,	 resultante	 de	 uma
decisão	 humana	 modificável.	 A	 fronteira	 entre	 o	 crime	 e	 outras	 ações
prejudiciais	ao	homem	é	artificial	e	está	constantemente	sujeita	a	mudanças.
Afinal,	os	crimes	não	são	atitudes	necessariamente	diferentes	de	outras	ações
pelas	quais	as	pessoas	prejudicam	as	outras.
Louk	Hulsman	(1993,	p.	64)	exemplifica	a	afirmativa	do	colega	italiano:	“um
belo	 dia,	 o	 poder	 político	 para	 de	 caçar	 as	 bruxas	 e	 aí	 não	 existem	 mais
bruxas.	(…).	É	a	lei	que	diz	onde	está	o	crime;	é	a	lei	que	cria	o	‘criminoso’”.
Nessa	mesma	esteira,	Alessandro	Baratta	questiona:
O	 que	 mais	 teriam	 em	 comum	 “delitos”	 tão	 diferentes	 entre	 si,	 como,	 por	 exemplo,	 o
aborto	e	o	funcionamento	ilegal	das	instituições	do	Estado,	a	injúria	entre	particulares	e	a
grande	criminalidade	organizada,	os	pequenos	furtos	e	as	grandes	 infrações	ecológicas,
as	calúnias	e	os	atentados	contra	a	saúde	no	trabalho	industrial,	além	do	fato	de	estarem
sujeitos	a	uma	resposta	punitiva?	Como	se	pode	aceitar	a	pretensão	de	um	sistema,	como
o	 penal,	 de	 responder,	 com	 os	 mesmos	 instrumentos	 e	 os	 mesmos	 procedimentos,	 a
conflitos	de	tão	vasta	heterogeneidade?	8	(BARATTA,	1987,	p.	642).
A	constatação	de	diferentes	condutas	a	serem	punidas	com	o	mesmo	remédio
—	a	pena	—	refuta,	portanto,	a	natureza	ontológica	do	crime	ou	do	ofensor.
Assim,	a	 seleção	de	condutas	 como	criminosas	encontraria	muito	mais	uma
justificativa	política	do	que	orgânica,	uma	manifestação	de	poder	do	Estado.
Nas	palavras	de	Maria	Lúcia	Karam	(2004,	p.	82),	“a	pena,	na	realidade,	só	se
explica	—	e	só	pode	se	explicar	—	em	sua	função	simbólica	de	manifestação
de	 poder	 e	 em	 sua	 finalidade	 não	 explicitada	 de	manutenção	 e	 reprodução
deste	 poder”.	 A	 mesma	 lógica	 é	 identificada	 por	 Louk	 Hulsman	 (2003,	 p.
191),	que	não	considera	“a	justiça	criminal	como	um	sistema	que	distribui	a
punição,	 mas	 como	 um	 sistema	 que	 usa	 a	 linguagem	 da	 punição	 de	 uma
maneira	que	esconde	os	 reais	processos	que	acontecem	e	gera	apoio	através
da	 apresentação	 incorreta	 destes	 processos	 como	 semelhantes	 a	 processos
conhecidos	e	aceitos	pelo	público”.
Os	valores	dignos	de	proteção	—	assim	escolhidos	por	quem	tem	o	poder	para
tanto	—	são	refletidos	não	só	na	definição	dos	tipos	penais,	como	na	realidade
carcerária	e	nas	propostas	de	política	criminal	e	atuação	legislativa	brasileira.
Conforme	Fabiana	Costa	Barreto	9	(SENADO	FEDERAL,	2013b,	p.	1),	apenas
nove	 tipos	 de	 crimes,	 na	 maioria	 patrimoniais,	 são	 responsáveis	 por
praticamente	 80%	 da	 população	 carcerária	 atual	 do	 país,	 entre	 eles:	 roubo
(simples	e	qualificado),	tráfico	de	entorpecentes,	furto	etc.	10
A	elaboração	do	projeto	de	reforma	do	Código	Penal	também	é	exemplo	desta
seleção.	 Na	 proposta,	 foram	 descriminalizadas	 condutas	 geralmente
perpetráveis	 pelas	 categorias	 privilegiadas,	 tais	 como	 a	 violação	 de	 direito
autoral	(quando	se	tratar	de	cópia	de	obra,	som	ou	vídeo	de	um	só	exemplar,
para	uso	privado);	a	eutanásia	e	o	aborto	no	caso	de	feto	anencéfalo	11	.	Houve,
além	disso,	um	endurecimento	da	lei	com	relação	aos	crimes	praticados	mais
comumente	pela	população,	como	 jogos	de	azar	 (transformando	em	crime	a
atual	 contravenção	 penal	 do	 “jogo	 do	 bicho”);	 crimes	 contra	 a	 honra	 (que
tiveram	 a	 sua	 pena	 máxima	 dobrada)	 e	 a	 criminalização	 da	 violação	 de
comunicação	 eletrônica	 ou	 intrusão	 informática	 (inspirada	 pela	 divulgação
não	 autorizada	 de	 fotos	 de	 uma	 famosa	 atriz	 televisiva).	 Dificultou-se,
também,	 a	 progressão	 de	 pena	 em	 casos	 com	 violência	 e	 grave	 ameaça	 ou
lesão	social,	como	no	caso	dos	constantes	“arrastões”	em	restaurantes	de	São
Paulo,	 que	 fez	 com	 que	 o	 movimento	 nos	 estabelecimentos	 diminuísse,
motivando	as	alterações,	segundo	declarou	o	relator	da	comissão	12	.
Edson	 Passetti	 13	 identifica	 certa	 seletividade	 em	 relação	 aos	 crimes
patrimoniais,	 asseverando	 que	 ela	 “dimensiona	 os	 privilégios,	 segrega	 os
demais	como	perigosos	e	os	associa	[os	crimes]	aos	mais	pobres”	 (2004,	p.
26).	Desse	modo,	a	igualdade	perante	a	lei	e	a	segurança	jurídica	do	cidadão
vulnerável	“desmoronam	diante	de	sua	clientela	restrita	a	um	limitado	número
de	violadores	 da	 lei	 penal”	 (KARAM,	2004,	 p.	 93).	Consoante	 essa	 autora,
uma	intervenção	assim	seleta	é,	por	isso	mesmo,	injusta,	pois	faz	com	que	a
reação	 punitiva	 se	 dirija,	 necessária	 e	 prioritariamente,	 aos	 membros	 das
classes	 subalternas,	hipossuficientes	 e	 alijados	de	poder	 (KARAM,	2004,	p.
93)	14	.
Esta	seletividade	não	é	só	 injusta	como	também	compromete	a	 legitimidade
do	 direito	 penal,	 construído	 para	 escudar	 o	 oposto	 desta	 realidade,	 ou	 seja,
protege	os	mais	fracos	contra	os	mais	fortes.	A	esse	respeito,	observa	Tatiana
Viggiani	Bicudo:
Entendemos	que	um	direito	penal	legítimo	é	aquele	que	representa	um	limite	máximo	ao
poder	puntivo	do	Estado.	Dito	em	outras	palavras,	 é	o	Direito	que	se	estrutura	como	a
garantia	dos	mais	fracos	contra	os	mais	fortes,	quer	seja	o	mais	forte	representado	pelos
poderes	públicos	quer	seja	pelos	particulares	(BICUDO,	2010,	p.	184).
O	 desenvolvimento	 deste	 modelo	 penalizador	 resultou	 na	 criação	 de	 uma
sociedade	de	controle	e	reclusão	caracterizada	pelo	encarceramento	em	massa
de	pessoas	socialmente	excluídas	devido	à	criação	de	um	complexo	prisional-
industrial	 composto	 por	 uma	 rede	 de	 funcionários	 e	 entidades	 (públicas	 e
privadas)	que	sobrevivem	por	força	da	acusação,	do	policiamento,	da	punição
e	da	continuidade	do	castigo	sob	forma	diversa	(estimagizadora),	mesmo	após
o	término	do	cumprimento	da	pena	(ANIYAR	DE	CASTRO,	1983,	p.	189).
A	esse	 respeito,	 observa	Alessandro	Baratta	 (2002,	 p.	 186)	que	 a	 sociedade
era	quem	necessitaria	de	reforma:
A	 verdadeira	 reeducação	 deveria	 começar	 pela	 sociedade,	 antes	 que	 pelo	 condenado:
antes	 de	 querer	 modificar	 os	 excluídos,	 é	 preciso	 modificar	 a	 sociedade	 excludente,
atingindo	assim,	a	raiz	do	mecanismo	de	exclusão.
Sobre	 uma	 eventual	 imposição	 da	 pena	 a	 um	 ou	 outro	membro	 das	 classes
dominantes	ou	a	algum	condenado	“enriquecido”,	Maria	Lúcia	Karam	(2004,
p.	 94)	 considera	 que	 tal	 fato	 serviria	 tão-somente	 para	 legitimar	 o	 sistema
penal	 e	 melhor	 ocultar	 o	 seu	 papel	 de	 dominação.	 Neste	 mesmo	 diapasão,
Boaventura	 de	 Sousa	 Santos	 (1996,	 p.	 33)	 considera	 que	 o	 combate	 à
corrupção	 é	 apenas	 pontual	 e	 não	 sistêmico.	O	 combate	 tópico	 à	 corrupção
consiste	 na	 sua	 repressão	 seletiva,	 incidindo	 sobre	 alguns	 casos	 eleitos	 por
razões	de	política	judiciária.
A	 sua	 investigação	 é	 particularmente	 fácil;	 porque	 contra	 eles	 há	 uma	 opinião	 forte	 a
qual,	se	defraudada	pela	ausência	de	repressão,	aprofunda	a	distância	entre	os	cidadãos	e
a	 administração	 da	 justiça;	 porque,	 sendo	 exemplares,	 têm	 um	 elevado	 potencial	 de
prevenção;	porque	a	sua	repressão	tem	baixos	custos	políticos	15	(SOUSA	SANTOS,	1996,
p.	33).
Dessa	 forma,	 consoante	 o	 autor,	 um	 ou	 outro	 caso	 de	 repercussão	 seria
selecionado	para	fins	de	repressão	exemplar	com	o	fim	único	de	transmitr	a
ideia	de	que	também	se	realiza	o	combate	à	“grande	criminalidade”.
Ferrajoli	 (2010,	p.	196)	salienta	outro	aspecto	relacionado	à	 legitimidade	da
lei	 penal:	 o	 seu	 custo.	 O	 autor	 não	 se	 refere	 apenas	 ao	 “custo	 da	 justiça”
propriamente	 dito,	 mas	 também	 ao	 “custo	 das	 injustiças”	 inerentes	 ao
funcionamento	 concreto	 de	 um	 sistema	 penal.	 Issoocorre	 porque,	 embora
todos	 estejam	 sujeitos	 às	 leis	 penais,	 nem	 todos	 “criminosos”	 se	 veem
submetidos	ao	processo	e	à	pena.	Muitos	culpados	subtraem-se	ao	julgamento
e	à	condenação	(“cifra	da	ineficiência”)	ou,	sendo	inocentes,	são	obrigados	a
suportar	um	julgamento,	o	cárcere	e	o	erro	judiciário	em	razão	da	inevitável
falibilidade	 do	 sistema	 penal	 (“cifra	 da	 injustiça”	 16	 ).	 Ambas	 as	 cifras	 são
facetas	do	“custo	da	injustiça”,	identificado	por	Ferrajoli.
Para	 o	 professor	 florentino,	 ambas	 as	 cifras	 geram	 complicações,
normalmente	 ignoradas	 quando	 se	 trata	 da	 justificação	 da	 pena	 e	 do	 direito
penal.	 Se	 os	 custos	 da	 ineficiência	 são	 geralmente	 tolerados	 com	 base	 em
doutrinas	 e	 ideologias	 de	 justiça,	 os	 custos	 da	 injustiça	 (impostos	 aos
inocentes),	na	sua	opinião,	são	injustificáveis	(FERRAJOLI,	2010,	p.	196).
Em	suma,	por	todos	os	motivos	elencados	é	que	os	chamados	“abolicionistas”
—	 como	 Juarez	 Cirino	 dos	 Santos	 e	 Eugenio	 Raúl	 Zaffaroni	 —	 não
reconhecem	a	legitimidade	ou	a	justificação	do	direito	penal.	Louk	Hulsman
(2003,	 p.	 198)	 acrescenta	 que	 “a	 justiça	 criminal	 não	 é	 “natural”	 e	 sua
“construção”	não	pode	ser	legitimada.	(…)	a	linguagem	prevalecente	sobre	a
justiça	criminal	tem	de	ser	desconstruída	e	a	justiça	criminal	aparecerá	como
um	problema	público	em	vez	de	uma	solução	para	problemas	públicos”.
Os	críticos	abolicionistas	defendem	a	supressão	do	direito	penal,	por	sua	total
ausência	 de	 fundamento	 ético-político	 e	 transferem	 ao	 Estado	 o	 ônus	 de
justificar	 suficientemente	 a	 utilização	 da	 pena,	 este	 “poderoso	 recurso	 de
coação	de	que	ele	dispõe	para	limitar	os	direitos	individuais	com	o	propósito
de	 assegurar	 a	 convivência	 pacífica”	 (ZAFFARONI;	 OLIVEIRA,	 2010,	 p.
471).	 Adiantam,	 outrossim,	 ser	 impossível	 essa	 justificativa,	 já	 que	 as
supostas	vantagens	do	sistema	criminal	são	inferiores	aos	seus	custos	(como
os	de	limitação	da	liberdade	de	ação	para	a	população	em	geral,	de	sujeição	a
um	processo	por	aqueles	tidos	como	suspeitos	e	de	punição	dos	condenados)
(FERRAJOLI,	2010,	p.	196).
Os	 abolicionistas	 acusam	 o	 sistema	 de	 justiça	 criminal	 ter	 se	 tornado	 um
arranjo	 de	 extremos,	 variando	 entre	 “prisões	 infamantes”	 e	 a	 “liberdade
condicional	 ineficaz”,	 sem	 abrir	 a	 possibilidade	 de	 outra	 resposta	 mais
eficiente	e	particularizada	aos	conflitos.	Usando	uma	analogia	médica,	Jerome
Miller	(1989,	p.	1)	17	diz	que:
seria	 como	pedir	 a	 um	médico	 uma	 solução	 para	 o	 alívio	 da	 dor	 de	 cabeça,	 sendo-lhe
informado	que	há	apenas	dois	tratamentos:	uma	aspirina	ou	uma	lobotomia.	Ou	então	ir
ao	médico	com	um	braço	quebrado	ou	com	uma	apendicite	aguda	e	ele	 lhe	oferecer	os
mesmos	dois	tratamentos	disponíveis:	uma	aspirina	ou	uma	lobotomia.
Esta	excrescência	 resulta	do	 fato	de	que,	como	qualquer	outra	doença	 física
ou	social,	o	comportamento	criminoso	não	é	unitário.	Da	mesma	forma	que	a
enfermidade,	 se	 as	 opções	 de	 tratamento	 são	 limitadas,	 a	 probabilidade	 de
sucesso	também	será.	A	conclusão	é	que	as	chances	terapêuticas	do	ofensor	18
são	tão	maiores	quanto	mais	opções	existirem.
No	mesmo	sentido,	acrescenta	Maíra	Rocha	Machado	(2012,	p.	1):
Não	há	dúvida	de	que	o	baixíssimo	grau	de	criatividade	para	se	pensar	sanções	que	sejam
adequadas	 e	 eficientes	 para	 lidar	 com	 as	 mais	 diversas	 modalidades	 de	 crimes	 são	 as
causas	da	obsolescência	do	sistema	penal.	Nos	crimes	que	lesionam	o	patrimônio	público,
causa	estranheza	que	o	foco	seja	a	prisão	e	não	a	recuperação	do	patrimônio	público	ou	o
aperfeiçoamento	de	mecanismos	de	controle	e	transparência	para	que	tais	práticas	sejam
evitadas.
Além	 de	 tornar	 o	 sistema	 ineficiente,	 esse	 cenário	 contribui	 para	 a
superlotação	 das	 prisões	 brasileiras.	 Temos	 quase	 meio	 milhão	 de	 pessoas
presas	e	somos	—	em	um	ranking	pouco	louvável	—	o	quarto	país	que	mais
encarcera	no	mundo	(perdendo	para	EUA,	China	e	Rússia).
Neste	ponto,	a	justiça	restaurativa	tem	muito	a	oferecer,	como	soluções	mais
apropriadas,	 reparadoras,	 criativas,	 estabelecidas	 pelas	 próprias	 partes.	Num
acordo	 restaurativo,	 as	 soluções	 são	 lastreadas	 na	 diversidade,	 com	 alta
sensibilidade	 para	 as	 condições	 locais	 e	 pessoais	 da	 ofensa	 e	 de	 suas
circunstâncias.	 Uma	 vez	 cada	 conflito	 é	 único,	 sentenças	 padronizadas	 não
seriam	adequadas	para	sua	solução,	embora	situações	semelhantes	anteriores
possam	servir	como	base	para	a	construção	de	uma	resposta.
Neste	diapasão	entre	minimalismo	ou	abolicionismo	do	direito	penal,	a	justiça
restaurativa,	 segundo	a	classificação	de	Luigi	Ferrajoli	 (2010,	p.	196),	pode
ser	 tida	 como	 uma	 doutrina	minimalista,	 reformadora	 do	 sistema	 penal,	 na
medida	 em	 que	 preceitua	 a	 redução	 da	 esfera	 de	 intervenção	 penal,	 ou,	 na
mais	ousada	das	suas	versões,	a	abolição	especifica	da	pena	de	reclusão	em
favor	de	sanções	penais	menos	aflitivas.
De	 todo	 modo,	 em	 quaisquer	 destas	 vertentes,	 a	 justiça	 restaurativa	 pode
auxiliar	 numa	 resposta	 à	 crise	de	 legitimidade	do	poder	punitivo	 estatal	 em
três	aspectos:	diminuindo	a	violência	estatal	representada	pela	pena	(mediante
a	apresentação	de	alternativas	para	reparação,	que	não	as	penas	excessivas	e
inutilmente	aflitivas)	19	;	minimizando	o	impacto	da	seletividade	das	condutas
criminosas	(visto	que	confere	voz	e	poder	decisório	aos	excluídos,	dando-lhes
substancial	 acesso	 à	 justiça)	 e	 mitigando	 (ou	 eliminando)	 os	 “custos	 das
injustiças”,	na	expressão	de	Ferrajoli,	uma	vez	que	o	acordo	restaurativo,	com
suas	 implicações,	 somente	 é	 firmado	 se	 contar	 com	 a	 voluntariedade	 e	 o
consenso	do	autor	do	fato.
Destarte,	 a	 justiça	 restaurativa	 apresenta	 o	 potencial	 de	 aplacar	 a
“brutalidade”	 do	 sistema	 penal,	 tal	 como	 referido	 por	 Juarez	 Cirino	 dos
Santos,	 na	 medida	 em	 que	 oportuniza	 ao	 ofensor	 ser,	 de	 fato,	 escutado;
dispensa	tratamento	não	só	respeitoso,	mas	também	digno	e	humano	durante
o	 procedimento.	 A	 justiça	 restaurativa	 também	 possui	 mecanismos	 que
garantem	 que	 as	 obrigações	 constantes	 no	 acordo	 restaurativo	 não	 sejam
desmedidas	e	injustas,	já	que	necessitam	do	assentimento	do	ofensor,	do	seu
advogado	 (se	 for	 o	 caso)	 e	 do	 Ministério	 Público	 e	 do	 juiz	 (GARCÍA-
PABLOS	DE	MOLINA;	GOMES,	2012,	p.	367).
A	justiça	restaurativa	oferece,	ainda,	novas	propostas	finalísticas	para	a	pena,
como	a	de	reparação	e	de	comunicação	ao	ofensor	da	reprovabilidade	de	sua
conduta	 (presente	 na	 chamada	 “vergonha	 reintegradora”).	 São	 propostas
diversas	dos	 tradicionais	propósitos	de	 retribuição	ou	prevenção	da	pena,	as
quais	se	encontram	superadas,	conforme	justificado	a	seguir.
1.4	Críticas	às	tradicionais	funções	da	pena:	
retribuição	e	prevenção	20
O	artigo	59	do	Código	Penal	estabelece,	como	finalidades	da	pena	(na	qual	se
inclui	a	de	prisão),	a	retribuição	e	a	prevenção	do	crime	ao	determinar	ao	juiz
que	aplique	a	pena	“necessária	e	 suficiente	para	 reprovação	e	prevenção	do
crime”.
Edmundo	Oliveira	 explica	 que	 o	 caráter	 retributivo	 da	 pena	 não	 decorre	 de
considerações	de	ordem	moral,	mas	da	própria	natureza	do	mecanismo	usado
pelo	Estado	para	ilidir	a	criminalidade	e	aduz:
Até	 hoje	 não	 se	 inventou	 outro	 mecanismo	 diferente,	 até	 porque	 nenhum	 novo	 Pasteur
descobriu	a	vacina	contra	o	crime,	ainda	que	grande	parte	do	trabalho	dos	criminólogos
consista	 em	 identificar	 as	 causas	 da	 criminalidade	 e	 apontar	 a	 terapêutica	 dos	 crimes
(ZAFFARONI;	OLIVEIRA,	2010,	p.	472).
Ressalta	 o	 autor	 a	 função	 e	 a	 necessidade	 da	 pena	 a	 perpetuação	 do
funcionamento	deste	sistema:
sempre	que	houver	a	possibilidade	de	delitos,	será	então	forçoso	lançar	mão	da	ameaça
penal	para	evitar	o	crime	e	executá-la	se	ele	não	for	evitado,	a	fim	de	que	a	pena	não	se
desmoralize	como	promessa	lírica	que	não	se	cumpre	(ZAFFARONI;	OLIVEIRA,	2010,	p.
472).
Entretanto,	criminólogos	críticosapontam	outro	significado	para	a	pena	como
retribuição.	Consoante	informam,	retribuir	pela	imposição	da	pena	consistiria
simplesmente,	em	expiar	ou	compensar	o	mal	injusto	causado	pelo	crime,	sem
qualquer	racionalidade	utilitária,	unicamente	com	base	no	conteúdo	religioso
de	 expiação,	 à	 semelhança	 retributiva	 da	 justiça	 divina	 (CIRINO	 DOS
SANTOS,	2012b,	p.	3)	21	.
O	autor	faz	referência	à	época	em	que	se	atribuía	uma	compreensão	religiosa
à	justiça	penal.	Como	o	crime	suscitava	a	cólera	divina,	ela	só	seria	aplacada
com	o	respectivo	castigo,	o	que	tornava	necessária	a	expiação	do	culpado.
No	mesmo	rumo,	a	crítica	de	Louk	Hulsman	(1993,	p.	126	e	127):
O	“programa”	de	atribuição	da	culpa	típico	da	justiça	criminal	é	uma	cópia	verídica	da
doutrina	do	“último	julgamento”	e	do	“purgatório”	desenvolvidas	em	certas	variedades
pela	teologia	crista	ocidental.	É	marcado	também	pelas	características	da	“centralidade”
e	 do	 “totalitarismo	 específicas	 dessas	 doutrinas.	 Naturalmente,	 essas	 origens	 -	 essa
“velha”	 racionalidade	 -	 estão	 escondidas	 por	 trás	 de	 novas	 palavras:	 “Deus”	 é
substituído	por	“Lei”,	“consenso	do	povo”,	“purgatório”	é	 substituído	por	“prisão”	e,
em	certa	medida,	por	“multa”.
A	 retribuição,	 conforme	 descrevem,	 conceberia	 a	 pena	 como	 um	 fim	 em	 si
mesmo,	de	forma	absoluta,	como	um	“castigo”,	uma	“reação”	ou	“vingança”
pelo	crime.	Historicamente,	a	retribuição	é	associada	ao	princípio	bíblico	da
“lei	de	talião”	ou	“da	lei	da	vingança”.	Sintetizada	pela	expressão	“olho	por
olho,	dente	por	dente”,	este	ponto	de	vista	punitivo	argumenta	que	o	ofensor
deve	experimentar	o	mal	que	atraiu	para	si.
Nilo	 Batista	 (2004,	 p.	 111)	 assinala	 que	 esse	 sentimento	 de	 vingança,
atualmente	se	encontra	revertido	pelo	cognome	“justiça”,	exemplificado	pelo
jargão	publicitário	“não	se	cogita	de	vingança,	e	sim	de	justiça”.	Ao	mesmo
tempo,	assevera	Beristain,	esta	expressão	não	oculta	o	 sentido	vindicativo	e
expiacionista	do	sistema	penal	(2000,	p.	172).	Ela	estaria	ainda	radicada	num
suposto	nexo	entre	culpa	e	punição,	fundando-se	na	convicção	de	que	é	justo
“transformar	mal	em	mal”	(FERRAJOLI,	2010,	p.	236).
As	teorias	de	índole	retributiva	justificam	a	pena	pelo	seu	valor	axiológico,	ou
seja,	 a	 pena	 não	 seria	 “um	 meio”	 ou	 “um	 custo”,	 mas	 um	 dever-ser
metajurídico,	 que	 possui	 em	 si	 seu	 próprio	 fundamento.	 A	 legitimidade	 da
pena	 seria,	 portanto,	 apriorística,	 no	 sentido	de	 que	não	 é	 condicionada	por
finalidades	extrapunitivas	(como	prevenir	outros	delitos,	desestimular	crimes
na	comunidade,	reeducar	o	ofensor),	senão	como	reação	ao	delito.
Ferrajoli	 explica	 que	 as	 teorias	 retributivas	 contêm	 influência	 da	 ideia
kantiana	segundo	a	qual	a	pena	é	uma	retribuição	ética,	que	se	justifica	pelo
valor	moral	da	lei	penal	violada	e	pelo	castigo	que	é	imposto	ao	culpado	22	.	Em
sua	obra	“Fundamentação	da	Metafísica	dos	Costumes”,	publicada	em	1785,
Kant	 argumentou	 que	 os	 seres	 humanos	 são	 agentes	 livres	 e	 racionais	 23	 ,
portanto,	 devem	 reconhecer	 suas	 ações	 e	 aceitar	 suas	 consequências.	Desta
forma,	a	pena	como	retribuição	respeitaria	a	dignidade	do	ofensor,	porque	o
trataria	como	agente	responsável	por	seu	ato	(COELHO,	2012,	p.	1).
A	justificação	retributiva	é	chamada	quia	peccatum	,	ou	seja,	diz	respeito	ao
passado.	As	 razões	 utilitárias	 para	 a	 pena,	 por	 seu	 turno,	 a	 consideram	 e	 a
justificam	como	meio	para	a	prevenção	de	futuros	delitos,	isto	é,	são	do	tipo
ne	peccetur	,	ou	seja,	referem-se	ao	futuro	(FERRAJOLI,	2010,	p.	29	e	236).
Maria	 Lúcia	 Karan	 (2004,	 p.	 81)	 questiona	 a	 irracionalidade	 da	 pena
retributiva:
Por	que	razão	o	mal	deveria	ser	compensado	com	outro	mal	de	igual	proporção:	se	o	mal
é	algo	que	se	deseja	ver	afastado	ou	evitado,	por	que	se	deveria	reproduzi-lo,	por	que	se
deveria	 insistir	 nele	 com	 a	 pena?	 […]	 Decerto	 pareceria	 mais	 lógica	 a	 opção	 pela
reparação	 do	 dano	material	 ou	moral	 causado	 pelo	 crime,	 especialmente	 porque	 aí	 se
levariam	em	conta	os	interesses	das	pessoas	diretamente	afetadas.
Zaffaroni	 (1991b,	 p.	 210)	 complementa	 a	 crítica	 informando	 que	 o	 próprio
nome	“penalização”	indica	um	sofrimento.	Entretanto,	o	sofrimento	existe	em
quase	todas	as	penas	da	lei:	“sofremos	quando	se	embarga	a	casa,	quando	se
cobram	 juros	 de	mora,	 quando	 se	 anula	 um	processo,	 quando	 se	 coloca	 em
quarentena,	 quando	 se	 conduz	 à	 força	 para	 depor	 etc.”	 Nenhum	 desses
sofrimentos,	pontifica,	é	chamado	de	“castigo”,	porque	eles	têm	um	sentido,
isto	 é,	 servem	 para	 resolver	 um	 conflito.	 A	 pena,	 por	 outro	 lado,	 seria	 um
sofrimento	—	“órfão	de	racionalidade”	—,	que	há	séculos	procura	um	sentido
e	 não	 pôde	 ser	 encontrado,	 simplesmente	 porque	 existe	 a	 não	 ser	 como
manifestação	do	poder	24	.
Mais	modernamente,	 o	 ideal	 retribuicionista	 encontra-se	 preocupado	 com	 a
proporcionalidade	 na	 aplicação	 desta	 “vingança”.	 Seus	 defensores	 visam,
ademais,	garantir	que	os	ofensores	recebam	“a	justa	punição”	para	seus	erros,
de	 forma	proporcional	à	gravidade	de	sua	ofensa,	como	apregoa	a	 teoria	do
just	deserts	25	.
Passos	e	Penso	(2009,	p.	81)	destacam	que	a	função	da	pena	é,	portanto,	mal
compreendida,	pois	até	hoje	a	sociedade	a	associa	à	vingança,	enxergando	as
medidas	alternativas,	por	exemplo,	como	formas	de	impunidade:
Ainda	 não	 conseguimos	 diferenciar	 vingança	 de	 punição	 e	 a	 sociedade	 não	 consegue
visualizar	 resposta	 para	o	 delito	 sem	a	 pena	privativa	 de	 liberdade,	 entendendo	que	 as
medidas	e	penas	alternativas	refletem	a	impunidade.	Isso	significa	que	estamos	longe	de
compreender	a	punição	como	uma	função	de	controle	social,	no	qual	os	métodos	punitivos
têm	 sua	 especificidade	 e	 a	 sua	 validade,	 compreendendo	 a	 pena	 como	 um	meio	 e	 não
como	fim.
Aponta	 Beristain	 (2000,	 p.	 184)	 que,	 realmente,	 a	 pena	 representou	 um
progresso	 se	 comparado	 à	vingança	 imediata	 e	 ilimitada	 (especialmente	das
sociedades	 primitivas).	 A	 pena	 procura	 evitar	 os	 excessos	 de	 uma	 reação
incontrolada,	introduzindo	o	processo	no	lugar	da	vingança.	Não	obstante,	ele
mantém	 a	 disposição	 primitiva	 de	 inimizade	 das	 vítimas	 (e	 de	 toda	 a
sociedade)	 contra	 o	 ofensor.	 O	 processo	 penal	 não	 eliminaria	 essa	 relação
adversarial,	mas	a	 ritualizaria.	Ele	conservaria	o	“castigo”,	a	 inflição	de	dor
ao	ofensor	e	despreza	as	vítimas	para	que	o	Estado	ocupe	seu	lugar	26	.
A	 justiça	 restaurativa	 se	 opõe	 ao	 ideário	 meramente	 retributivo	 da	 pena	 e
propõe	um	novo	modelo	de	justiça	no	qual	a	resposta	para	o	crime,	ao	invés
de	 impor	 danos	 adicionais	 sobre	 o	 ofensor,	 procura	 restabelecer	 a	 situação
violada.	 Ela	 introduz	 a	 ideia	 de	 um	maior	 respeito	 pelo	 ofensor,	 resgata	 a
vítima	e	propicia	uma	atmosfera	de	diálogo,	visando	ao	entendimento	sobre
as	formas	de	restauração	do	“malefício”	causado,	em	substituição	do	tom	de
expiação	e	castigo	retributivos	(BERISTAIN,	2000,	p.	184).
Ao	 substituir	 a	 ideia	 de	 retribuição	 pela	 de	 reparação,	 a	 justiça	 restaurativa
busca	atitudes	positivas,	verdadeiramente	úteis	e	de	baixos	custos	 sociais	 (a
chamada	“restituição	criativa”),	cujo	foco	está	em	ações	futuras,	ao	invés	de
condutas	 do	 passado,	 sintonizando	 as	 exigências	 sociais	 e	 expectativas	 em
torno	de	uma	solução	do	crime	(BERISTAIN,	2000,	p.	185).
1.4.1	Comunicando	a	pena	ao	ofensor:	a	prevenção	especial
As	 doutrinas	 utilitaristas	 (ou	 relativas)	 são	 tradicionalmente	 divididas	 entre
teorias	da	prevenção	especial	e	da	prevenção	geral.
A	prevenção	especial	é	dirigida	ao	ofensor	e	comunica-lhe	as	consequências
da	pena.	É	subdividida	em	duas	categorias	—	negativa	e	positiva	—	conforme
a	 sua	 forma	 de	 atuação.	 A	 negativa	 (ou	 de	 neutralização	 do	 ofensor)	 se
verifica	 com	 a	 prisão	 do	 condenado	 e	 o	 seu	 confinamento	 no	 cárcere.	 A
dimensão	 positiva	 é	 a	 de	 correção	 do	 condenado	 por	 meio	 da	 pena	 (ou
“ortopediamoral	do	estabelecimento	penitenciário”,	no	dizer	de	Juarez	Cirino
dos	Santos	(2013c,	p.	5)).
O	ideal	de	prevenção	especial	negativa	visa	à	proteção	da	sociedade	contra	o
ofensor	e	pressupõe	que	o	condenado,	ao	longo	do	período	em	que	cumpre	a
pena	 de	 prisão,	 estaria	 neutralizado,	 ou	 seja,	 impedido	 de	 cometer	 novos
delitos	por	estar	fora	da	circulação	social.
Na	 prática,	 este	 efeito	 é	 contestado	 pelo	 fato	 de	 que,	 mesmo	 na	 prisão,	 o
condenado	pode	 cometer	 alguns	 crimes	 simples	—	agressão	a	outro	 interno
ou	 a	 um	 agente	 penitenciário	 —	 ou	 complexos	 —	 comandar	 o	 crime
organizado.	É	certo	que,	de	modo	geral,	as	oportunidades	para	cometimento
de	novos	delitos	são	reduzidas,	mas	o	contato	com	outros	presos	propicia,	na
verdade,	 oportunidades	 para	 mais	 práticas	 criminosas	 após	 a	 liberação	 do
cárcere	visto	que,	 imerso	em	um	ambiente	corrompido,	o	detento	estabelece
conexões	 com	 outros	 “delinquentes”,	 assimila	 novas	 técnicas	 criminais	 e
consolida	valores	delitivos	(SIMÕES,	2010,	p.	38).
Outra	 crítica	 feita	 ao	uso	da	 pena	de	 prisão	 como	 forma	de	neutralização	 e
proteção	da	sociedade	é	a	de	que,	considerando	a	forma	como	são	acautelados
os	reclusos	atualmente,	não	se	pode	defender	a	pena	mediante	o	sacrifício	da
dignidade	humana.	A	infamação	dos	seus	cidadãos	não	poderia	ser	vista	como
meio	íntegro	de	defesa	da	sociedade	(GALVÃO	JÚNIOR,	2003,	p.	2).
A	prevenção	especial	positiva,	por	seu	turno,	presume	a	alteração	dos	valores
do	 ofensor	 por	 meio	 da	 punição	 (a	 chamada	 “reabilitação”	 ou	 “reforma”).
Com	a	prisão,	imagina-se	que	o	ofensor	também	seria	demovido	de	cometer
crimes	futuros,	devido	a	sua	experiência	de	suplício	e	à	ameaça	de	ser	punido
novamente,	caso	reincida	(SIMÕES,	2010,	p.	37-38).	O	campo	de	inferência
da	prevenção	especial	positiva	vai	além:	o	condenado,	após	cumprir	a	pena,	já
não	 cometeria	 crimes,	 não	 só	 porque	 teme	 a	 punição,	 mas	 porque	 estaria
convencido	de	que	o	comportamento	criminoso	é	equivocado.
Segundo	a	criminologia	crítica,	o	insucesso	deste	uso	da	pena	é	comprovado
pelos	altos	índices	de	reincidência	e	pela	influência	negativa	da	subcultura	da
prisão	 sobre	 o	 condenado.	 O	 cumprimento	 da	 pena	 marca	 a	 entrada	 do
ofensor	 pela	 “porta	 giratória”	 das	 prisões,	 onde	 sempre	 volta	 a	 entrar,
marcando	o	início	de	uma	carreira	delitiva,	na	qual	o	crime	prediz	o	próprio
crime,	 iniciando	 um	 círculo	 vicioso	 e	 consolidando	 a	 “profecia
autorrealizável”	 (self-fulfilling	 prophecy	 )	 (MERTON,	 1948,	 p.	 196).	 Dessa
forma,	 é	 improvável	 que	 o	 encarceramento	 contribua	 para	 uma	melhora	 do
interno,	pois	se	encontra	imerso	na	subcultura	carcerária.
A	 crítica	 feita	 à	 pena	 como	 prevenção	 especial	 baseia-se	 no	 fato	 de	 que	 o
efeito	de	reabilitação	pode	ser	alcançado	também	por	meios	não	punitivos	e,
quiçá	com	maior	eficácia,	como	a	 justiça	 restaurativa,	muito	mais	profunda,
abrangente	e	democrática	(SIMÕES,	2010,	p.	38).
Em	 primeiro	 lugar,	 o	 padrão	 preventivo	 ordinário	 implica	 uma	 intervenção
tardia	 no	 problema	 criminal	 (déficit	 etiológico),	 de	 forma	 reativa	 e	 não
preventiva,	 sem	que	 possa	 impedi-lo	 ou	 solucioná-lo.	 Incide	 ainda	 sobre	 os
efeitos	 do	 crime	 e	 não	 sobre	 os	 conflitos	 propriamente	 ditos.	 Em	 segundo
lugar,	 revela	 um	 acentuado	 traço	 individualista	 e	 ideológico	 na	 seleção	 dos
seus	destinatários	e	no	desenho	dos	seus	programas	(déficit	social)	e,	por	fim,
concede	um	protagonismo	desmedido	às	 instâncias	oficiais	do	 sistema	 legal
(déficit	 comunitário)	 (GARCÍA-PABLOS	DE	MOLINA;	GOMES,	 2012,	 p.
356).
Prevenir	o	delito	seria	algo	mais	do	que	dissuadir	o	“infrator”	potencial	com	a
ameaça	 do	 castigo.	O	 conceito	 de	 prevenção	 não	 poderia	 se	 desvincular	 da
gênese	do	fenômeno	criminal,	isto	é,	de	uma	intervenção	dinâmica	e	positiva
que	neutralize	suas	origens.	A	mera	dissuasão	deixa	essas	causas	intactas.	No
lugar	de	compor	conflitos,	reprime-os,	e	eles	adquirem	um	caráter	mais	grave
do	que	o	próprio	contexto	originário	(BARATTA,	1987,	p.	628).
A	prevenção,	por	conseguinte,	deve	ser	contemplada	numa	perspectiva	mais
ampliada,	com	a	mobilização	de	todos	os	setores	comunitários	para	enfrentar
solidariamente	o	problema	do	crime.	Ademais,	 refrear	o	crime	não	interessa
exclusivamente	 aos	 poderes	 públicos	 e	 ao	 sistema	 legal.	 Interessa	 a	 todos.
Não	 é	 um	 corpo	 “estranho”	 alheio	 à	 sociedade,	 mas	 um	 problema	 que	 diz
respeito	a	ela	(GARCÍA-PABLOS	DE	MOLINA;	GOMES,	2012,	p.	356).
1.4.2	A	ideia	de	prevenção	dirigida	à	sociedade
A	prevenção	geral,	assim	como	a	especial,	apresenta	uma	dimensão	positiva	e
uma	 negativa,	 ambas	 direcionadas	 aos	 demais	 membros	 da	 sociedade.	 Sua
dimensão	negativa	 reside	no	poder	 intimidador	da	pena,	pelo	qual	o	Estado
espera	desestimular	potenciais	“infratores”,	contendo	impulsos	criminosos	da
população,	com	a	ameaça	do	castigo	27	.
A	 prevenção	 geral	 negativa	 se	 vale	 da	 dimensão	 simbólica	 e	 apelativa	 da
pena,	em	especial	da	cominação	de	altas	penas	em	abstrato	28	.	Consoante	esta
perspectiva,	a	pena	seria	essencial	para	reforçar	as	proibições,	para	indicar	o
que	 é	 permitido	 e	 para	 mostrar	 aos	 cidadãos	 que	 a	 observância	 aos
mandamentos	 legais	 é	 absolutamente	 necessária.	 Segundo	 Zaffaroni	 e
Oliveira	 (2010,	 p.	 471),	 “é	 a	 dosagem	 de	 vigor	 da	 pena	 que	 desperta	 na
consciência	 de	 cada	 um	 o	 efeito	 inibidor	 da	 norma	 penal	 imperativa”.	 A
prevenção	 equivaleria,	 portanto,	 à	 dissuasão	mediante	 o	 efeito	 inibitório	 da
pena.	 No	 rigor	 e	 na	 severidade	 da	 pena	 é	 que	 estaria	 a	 suposta	 eficácia
preventiva	do	mecanismo	intimidatório.	Prevenção,	dissuasão	e	 intimidação,
nesta	 perspectiva,	 seriam	 termos	 correlatos	 (GARCÍA-PABLOS	 DE
MOLINA;	GOMES,	2012,	p.	360).
Consoante	 aponta	Maria	 Lúcia	 Karam	 (2004,	 p.	 79),	 “a	 história	 demonstra
que	 a	 função	 de	 prevenção	 geral	 negativa	 jamais	 funcionou.	 A	 ameaça,
mediante	 leis	 penais,	 não	 evita	 a	 formação	 de	 conflitos	 ou	 a	 prática	 das
condutas	qualificadas	como	crimes”.
As	razões	para	esse	insucesso	já	foram	identificadas	por	Beccaria,	em	1764,
para	 quem	 o	 que	 importa	 não	 é	 a	 gravidade	 das	 penas,	 mas	 a	 rapidez
(imediatidade)	com	que	são	aplicadas.	Para	ele,	o	fundamental	não	é	o	rigor
do	castigo,	mas	sua	certeza	ou	infalibilidade	29	,	ou	seja,	a	pena	que	realmente
intimida	é	a	que	se	executa,	pronta	e	implacavelmente,	de	forma	proporcional
ao	delito	e,	cabe	acrescentar,	que	seja	percebida	pela	sociedade	como	justa	e
merecida	(GARCÍA-PABLOS	DE	MOLINA;	GOMES,	2012,	p.	362).
Edmundo	Oliveira	observa:
De	que	adianta	a	lei	cominar	penas	gravíssimas,	se	certos	delinquentes	têm	bons	motivos
para	achar	que	não	as	sofrerão?	Reafirme-se:	a	força	intimidativa	das	penas	previstas	em
lei	reside	na	certeza	da	punição	(ZAFFARONI;	OLIVEIRA,	2010,	p.	473)
Thomas	 Mathiesen	 acrescenta	 que	 o	 insucesso	 das	 penas	 severas	 como
método	de	prevenção	reside	na	própria	brutalidade	das	penas.	A	mensagem	é
claramente	direcionada	 aos	mais	 fracos	 e	vulneráveis	 do	 sistema	que,	 ao	 as
receberem,	desfiam-nas	ou	a	as	desconsideram,	cientes	da	impossibilidade	da
sua	execução:
Vocês	podem	perguntar:	por	que	esses	resultados?	Deixe-me	lembrar,	resumidamente,	que
a	 ineficiência	preventiva	da	prisão	se	constitui	em	um	problema	de	comunicação.	Nesse
contexto,	 a	 punição	 é	 um	 modo	 pelo	 qual	 o	 Estado	 tenta	 comunicar	 uma	 mensagem,
especialmente	a	grupos	particularmente	 vulneráveis	na	 sociedade.	Como	um	método	de
comunicação,	 é	 extremamente	 rude.	 A	 própria	 mensagem	 é	 difícil	 de	 ser	 transmitida,
devido	à	 incomensurabilidade	da	ação	e	da	reação.	A	mensagem	é	 filtrada	e	deturpada
durante	 processo	 e	 é	 confrontada	 com	 uma	 resposta	 cultural	 nos	 grupos	 que	 a
desconsidera,	acabando	por	neutralizá-la	(2003,	p.	92).
A	realidade	e	a	doutrina	criminológica	têm	demonstrado,	portanto,	o	contrário
do	que	pregaa	prevenção	geral	negativa,	ou	 seja,	 tem	mostrado	que	a	pena
dura	e	cruel	é	de	difícil	execução	prática	e	não	intimida,	o	que	torna	o	sistema
desacreditado.
O	aspecto	positivo	da	prevenção	geral,	por	sua	vez,	informa	que	a	execução
concreta	da	pena	cumpriria	a	função	de	estabilizar	as	expectativas	normativas
da	 comunidade	 bem	 como	 a	 de	 restabelecer	 a	 confiança	 no	 ordenamento
jurídico	violado,	numa	perspectiva	hegeliana.
Observa	 ainda	Maria	 Lúcia	 Karam	 (2004,	 p.	 80)	 que,	 de	 acordo	 com	 esse
ponto	de	vista,	a	pessoa	do	ofensor	se	converte	em	instrumento	para	uma	ação
simbólica,	cujos	fins	a	ultrapassam:
Aqui,	 com	 clareza	 insofismável,	 aparece	 a	 figura	 do	 bode	 expiatório	 naquele	 que,
recebendo	a	pena,	deve	cumpri-la,	seja	para	dissuadir	os	demais	da	prática	do	crime,	seja
para	exercitá-los	no	reconhecimento	da	norma	e	na	fidelidade	ao	direito.
Aplicada	dessa	forma,	a	pena	acaba	por	 tornar	o	direito	penal	simbólico,	ou
seja,	 o	 homem	 não	 seria	 o	 cerne	 de	 sua	 preocupação,	mas	mero	 objeto	 da
sanção	penal,	“portador	de	funções	jurídico-penais”.	Ou,	como	diria	Foucault
(2008,	 p.	 165),	 trata-se	 da	 mera	 sujeição	 “dos	 que	 são	 percebidos	 como
objetos	e	a	objetivação	dos	que	se	sujeitam”	à	pena.
Nessa	 concepção,	 o	 direito	 penal	 não	 existiria	 para	 ser	 efetivo,	 mas	 teria
função	 meramente	 política	 de	 criar	 símbolos	 na	 psicologia	 popular,
produzindo	 efeitos	 úteis,	 como	 o	 de	 legitimar	 o	 poder	 político	 e	 o	 próprio
direito	penal	(CIRINO	DOS	SANTOS,	2013c,	p.	3).
Na	 locução	 mais	 contundente	 de	 Louk	 Hulsman	 (2004,	 p.	 36),	 a	 justiça
criminal	não	é
um	sistema	destinado	a	dispensar	punições,	mas	sim	um	sistema	que	usa	a	linguagem	da
punição	de	modo	a	esconder	os	reais	processos	em	curso	e	produzir	consenso	através	de
sua	 errônea	 apresentação,	 assimilando-os	 aos	 processos	 conhecidos	 e	 aceitos	 pelo
público.
Critica-se	que	a	demonstração	da	validade	da	norma	jurídica	às	custas	de	um
responsável	 seria	 uma	 variante	 do	 direito	 penal	 do	 inimigo	 de	 Günther
Jackobs	30	,	que	distingue	cidadãos	e	inimigos,	de	acordo	com	a	determinação
dos	 agentes	 de	 controle	 social.	 O	 outro	 é	 visto	 como	 um	 inimigo,	 ou	 seja,
perigoso,	 anormal,	 subversivo,	 pertencente	 a	 grupos	 ou	 classes	 tidos	 como
intoleráveis	 (PASSETTI,	 2004,	 p.	 21)	 31	 .	 Essa	 distinção	 assenta-se	 no
maniqueísmo	 simplista	 que	 divide	 as	 pessoas	 entre	 boas	 e	 más.	 Conforme
anota	 Maria	 Lúcia	 Karam	 (2004,	 p.	 89),	 a	 intervenção	 do	 sistema	 penal
corresponde	 a	 um	 desejo	 irracional	 de	 castigo	 sobre	 esse	 ser	 “diferente”,
pertencente	 a	 uma	 espécie	 apartada	 do	 comum.	 Desejo	 que	 é	 prontamente
atendido.
A	 imposição	 da	 pena	 a	 um	 responsável	 pela	 prática	 de	 um	 crime	 também
exerce	outra	função:	a	de	“absolvição”	de	todos	os	demais	não	selecionados
pelo	 sistema	 penal,	 que,	 assim,	 podem	 comodamente	 se	 autointitularem
“cidadãos	 de	 bem”,	 diferentes	 e	 contrapostos	 ao	 “criminoso”,	 ao
“delinquente”,	ao	mau	(KARAM,	2004,	p.	89).
Aos	 bons	 cidadãos,	 aplica-se	 o	 respeito	 a	 todos	 os	 direitos.	 Aos	 inimigos,
esses	direitos	costumam	ser	negados,	o	que	vulnera	o	princípio	de	igualdade
perante	 a	 lei	 (CIRINO	 DOS	 SANTOS,	 2012a,	 p.	 12).	 Isso	 ocorre	 porque,
segundo	Louk	Hulsman	(2004,	p.	43),	somos	levados	a	considerar	os	“eventos
criminosos”	 como	 fatos	 excepcionais,	 ou	 seja,	 fatos	 que	 diferem
substancialmente	 de	 outros	 eventos	 não	 definidos	 como	 crimes.	Assim,	 sob
tal	ponto	de	vista,	os	ofensores	tornam-se	uma	categoria	especial	de	pessoas	e
a	natureza	excepcional	da	conduta	criminosa	 justifica	a	natureza	especial	da
reação	feita	contra	eles.
Alessandro	 Baratta	 (1987,	 p.	 11)	 lembra	 que,	 a	 despeito	 do	 “sacrifício
simbólico	 do	 condenado	 considerado	 como	 bode	 expiatório”,	 a	maior	 parte
dos	 infratores	 da	 lei	 penal,	 em	 especial	 dos	 crimes	mais	 graves,	 permanece
impune.	Os	reveses	desta	incongruência	são	ressaltados	por	Juarez	Cirino	dos
Santos	(2013a,	p.	4),	o	qual	lembra	que,	se	a	punição	do	“criminoso”	reforça	a
fidelidade	 jurídica	 do	 povo	 e	 reduz	 a	 criminalidade,	 a	 não	 punição	 do
“infrator”	 reduz	 a	 confiança	 da	 população	 na	 austeridade	 do	 Direito,
ampliando	a	criminalidade.
Ironiza	o	autor,	por	fim,	afirmando	que,	na	verdade,	a	pena	de	prisão	e	todo	o
arcabouço	 do	 sistema	 de	 justiça	 não	 falharam	 no	 cumprimento	 de	 suas
funções,	 apesar	 de	não	 as	 terem	cumprido	 com	“absoluto	 sucesso	histórico,
porque	a	gestão	diferencial	da	criminalidade	garante	as	desigualdades	sociais
em	 poder	 e	 riqueza	 das	 sociedades	 fundadas	 na	 relação	 capital/trabalho
assalariado”	(CIRINO	DOS	SANTOS,	2005b,	p.	5)	32	.
1.5	A	cifra	obscura	da	criminalidade
Ao	se	tratar	da	impunidade,	é	de	rigor	se	mencionar	a	chamada	“cifra	negra”
da	 criminalidade.	 A	 esse	 respeito,	 Lola	 Aniyar	 de	 Castro	 (1983,	 p.	 67)
menciona	a	existência	de	 três	 tipos	de	criminalidade:	a	 legal,	a	aparente	e	a
real.	A	legal	é	a	registrada	nas	estatísticas	oficiais,	restrita	aos	casos	em	que
houve	condenação.	A	aparente	ou	judicializada	refere-se	a	toda	criminalidade
levada	ao	conhecimento	dos	órgãos	de	controle	social	—	polícia,	ministério
público,	 juízes	 etc.	—,	 ainda	que	não	 apareça	 registrada	nas	 estatísticas	 e	 a
real	reporta-se	à	quantidade	de	delitos	cometidos	em	determinado	momento.
Pode-se	 observar	 que	 há	 diferença	 de	 volume	 entre	 as	 três	 categorias	 de
criminalidade,	 em	 especial	 a	 real,	 cuja	 extensão	 não	 é	 conhecida.	 Entre	 a
criminalidade	 real	 e	 a	 aparente	 (noticiada),	 há	 uma	 grande	 quantidade	 de
crimes	 que	 não	 são	 conhecidos.	 A	 criminalidade	 aparente	 é,	 segundo	 a
criminóloga	 venezuelana,	 tão-somente	 “uma	 mostra	 não	 representativa	 da
delinquência”	(ANIYAR	DE	CASTRO,	1983,	p.	34).	A	diferença	entre	elas	é
o	 que	 se	 denomina	 “cifra	 obscura”,	 “cifra	 negra”	 ou	 “delinquência	 oculta”
(ANIYAR	DE	CASTRO,	1983,	p.	68).
O	 filtro	 mais	 importante	 da	 cifra	 obscura	 está	 nos	 primeiros	 níveis:	 do
descobrimento	do	fato,	da	atitude	da	vítima	e	da	conduta	da	polícia.	Muitos
fatos	criminosos	não	são	descobertos	ou	não	são	comunicados	pela	vítima	por
alguns	motivos:	porque	não	é	percebido	por	ela	como	fato	criminoso	(pode,
por	 exemplo,	 pensar	 que	 o	 objeto	 foi	 extraviado	 ao	 invés	 de	 subtraído);
porque	ela	julga	o	incidente	sem	importância;	porque	ela	teme	represálias	ou
mesmo	 porque,	 ao	 comunicá-lo,	 teria	 que	 confessar	 um	 fato	 criminoso	 ou
desonroso	 de	 sua	 parte	 (por	 exemplo,	 sua	 própria	 torpeza	 num	 crime	 de
estelionato,	 o	 seu	 envolvimento	 com	 a	 prostituição,	 a	 frequência	 a	 um
ambiente	 mal-afamado,	 a	 lida	 com	 jogos	 ilícitos,	 em	 casos	 de	 extorsão);
porque	 ela	 foi	 ameaçada	 pelo	 ofensor	 para	 não	 denunciá-lo	 (com	 agressões
físicas,	ameaças	verbais	ou	atos	de	vandalismo);	porque	há	envolvimento	de
parentes	 ou	 amigos	 no	 crime	 (como	 no	 caso	 de	 delitos	 sexuais);	 por
desconfiança	 ou	 aversão	 à	 polícia	 (por	 acreditar	 que	 o	 crime	 não	 será
investigado	 ou	 solucionado	 devido	 à	 burocracia	 exigida	 nas	 delegacias);
porque	 sua	 comunidade	 é	 culturalmente	 contra	 denúncias;	 porque	 a
condenação	 do	 autor	 lhe	 resultaria	 mais	 despesas	 ou	 danos	 do	 que	 o
decorrente	 do	 próprio	 delito	 (por	 exemplo,	 vítimas	 de	 violência	 doméstica,
cujo	 agressor-provedor	 é	 preso);	 por	 simpatia	 ao	 acusado;	 para	 não	 ter	 que
testemunhar	ou	comparecer	aos	atos	processuais;	pela	possibilidade	de	obter
reparação	por	outra	via	etc.	(ANIYAR	DE	CASTRO,	1983,	p.	69-70)	33	.
Louk	 Hulsman	 (2004,	 p.	 49)	 observa	 que	 estes	 e	 muitos	 outros	 fatos
criminosos	são,	portanto,	intencionalmente	tratados	fora	do	sistema	de	justiça
criminal.
No	tocante	à	contribuição	da	polícia	para	a	cifra	negra,	esta	pode	ocorrer	em
decorrência	 de	 desinteresse	 na	 apuração	 (quando	 não	 há	 vítimas
determinadas,como	nos	crimes	 relacionados	às	drogas);	da	 incapacidade	de
mobilização	 do	 efetivo;	 de	 incapacidade	 técnica	 para	 se	 desvendar	 o	 delito
(autoria	 desconhecida);	 devido	 a	 algum	 impedimento	 processual;	 pelo
desinteresse	em	não	o	descobrir	ou	não	o	perseguir	em	virtude	de	pressões	do
poder	etc.	(ANIYAR	DE	CASTRO,	1983,	p.	70).
A	 esses	 fatores	 para	 a	 inércia	 policial,	 Sousa	 Santos	 acrescenta	 “o	 elevado
nível	 de	 estereotipização	 da	 criminalidade	 por	 parte	 das	 polícias	 de
investigação	 (a	 respeito	 dos	 crimes	 considerados	 mais	 importantes	 ou	 dos
criminosos	 considerados	 mais	 prováveis	 ou	 mais	 perigosos)”.	 Além	 disso,
poderia	haver	uma	possível	 falta	de	vontade	política	para	alargar	o	controle
social	a	outros	domínios	representa	riscos	para	a	instituição	que	os	investiga
(SOUSA	SANTOS,	1996,	p.	693).
Consoante	 Lola	 Aniyar	 de	 Castro	 (1983,	 p.	 68),	 a	 cifra	 negra	 diminui	 à
medida	que	aumentam	a	gravidade	e	a	visibilidade	do	delito,	isto	é,	ela	seria
maior	 em	 crimes	 menos	 ostensivos,	 como	 aborto,	 furtos	 no	 comércio,
estelionato,	roubo	de	veículos	segurados	etc.
Louk	 Hulsman	 (2004,	 p.	 45)	 discorda	 da	 ideia	 de	 que	 a	 punição	 é
proporcional	à	gravidade	do	delito	(o	correspondente	à	ideia	de	que	“isto	é	tão
grave	 que	 não	 se	 pode	 deixar	 impune”),	 pois,	 na	 prática,	 fatos	 com
consequências	 verdadeiramente	 desastrosas,	 como	 a	 limpeza	 étnica	 na
Iugoslávia	e	na	África,	quase	sempre	escapam	da	punição.
Na	 verdade,	 crimes	 cotidianos	 da	 realidade	 brasileira,	 como	 a	 corrupção,
produzem	 consequências	 mais	 graves	 do	 que	 a	 de	 vários	 roubos	 ou	 furtos
somados	 e	 permanecem	 fora	 da	 seara	 de	 apuração	 (a	 chamada	 “cifra
dourada”).	Neste	sentido,	completa	Versele	(1979,	p.	27):
Além	da	cifra	negra	dos	delinquentes	que	escapa	a	toda	detenção	oficial,	existe	uma	cifra
dourada	de	criminosos	que	detêm	o	poder	político	e	que	o	exercem	impunemente,	lesando
os	cidadãos	e	a	coletividade	em	proveito	de	suas	oligarquias,	ou	que	dispõem	de	um	poder
econômico	que	se	desenvolve	em	detrimento	da	sociedade	em	seu	conjunto.
Observa	 Seffair	 (2013,	 p.	 10)	 que,	 curiosamente,	 em	 nosso	 país,	 “desviar
milhões	 de	 reais	 de	 recursos	 públicos	 geralmente	 não	 implica	 em	 outras
consequências	jurídicas,	senão	ainda	mais	status	político	e	admiração	social”.
Por	outro	lado,	a	intervenção	é	diferente	quando	se	trata	de	crimes	praticados
pelas	classes	mais	baixas:
Indivíduos	 desprovidos	 de	 melhor	 condição	 econômica,	 observam	 silenciosamente	 este
mau	exemplo,	se	armam	e	se	transformam	em	“inimigos	da	sociedade”	ao	assaltar	outros
seres	humanos	ou	traficar	drogas	ilícitas	em	busca	de	patrimônio	a	qualquer	custo,	sendo
punidos	exemplarmente	e	jogados	ao	cárcere,	sujeitos	às	condições	impostas	pelas	facções
criminosas	que	comandam	nossos	presídios	(SEFFAIR,	2013,	p.	10).
No	 tocante	 à	 criminalidade	 legal	 (condenações)	 e	 à	 aparente	 (registrada),	 a
diferença	entre	elas	também	é	considerável,	visto	que	nem	todos	os	casos	que
chegam	ao	conhecimento	das	autoridades	recebem	sentença	condenatória	ao
final	 por	 diferentes	 razões	 (por	 falta	 de	 provas,	 desinteresse,	 falta	 de
diligência	dos	funcionários,	falta	de	queixa-crime	ou	desistência	desta,	tráfico
de	influência,	porque	não	se	encontrou	o	autor	etc.)	(ANIYAR	DE	CASTRO,
1983,	p.	69).	Além	da	deficiência	na	comunicação	de	crimes	(que	evidencia	a
discrepância	 entre	 a	 criminalidade	 real	 e	 a	 aparente),	 o	 hiato	 entre	 a
criminalidade	legal	(condenações	obtidas)	e	a	aparente	(crimes	comunicados)
também	 pode	 estar	 relacionado	 à	 falta	 de	 equipamentos	 e	 de	 peritos	 em
número	 suficiente	 para	 a	 produção	 de	 provas	 confiáveis	 para	 lastrear	 uma
condenação	(KAHN,	2012,	p.	88).	Neste	espírito,	aduz	o	sociólogo	que	“uma
investigação	precária	produz	uma	acusação	 frágil,	 que,	 por	 sua	vez	 acarreta
lentidão	judicial	e	incerteza	quanto	à	condenação	ou	absolvição	do	indivíduo,
feita	geralmente	por	falta	de	provas”.
Para	 se	 ter	 uma	 ideia,	 segundo	 dados	 do	 Conselho	 Nacional	 do	Ministério
Público	 (CNMP)	 34	 ,	 durante	 o	 ano	 de	 2012,	 foram	 recebidos	 3.294.394
inquéritos	 policiais	 e	 termos	 circunstanciados	 pelo	 Ministério	 Público	 de
todos	 os	 estados	 e	 do	 Distrito	 Federal	 (CNMP,	 2013,	 p.	 58-60).	 Destes,
258.519	 foram	 arquivados	 no	 mesmo	 ano	 (aproximadamente,	 9,3%	 do
número	total).	Também	deste	montante,	395.346	foram	denunciados	(cerca	de
18,04%	do	total).	A	maior	parte	dos	feitos	(72,66%),	por	conseguinte,	ainda
depende	de	alguma	apuração	policial	para	decidir	sobre	o	seu	desfecho.
A	 pesquisa	 criminológica	 para	 quantificação	 da	 cifra	 negra	 é	 bastante
complexa.	Relata	Louk	Hulsman	(2004,	p.	49)	que,	inicialmente,	para	terem
uma	 ideia	 da	 frequência	 e	 da	 natureza	 de	 um	 crime,	 os	 criminólogos
trabalhavam	com	os	“dados	estatísticos”	extraídos	das	atividades	dos	tribunais
penais.	 Entretanto,	 quando	 se	 descobriu	 que	 muitos	 fatos	 criminosos
comunicados	 à	 polícia	 nem	 sequer	 chegavam	 aos	 tribunais,	 estes	 cientistas
passaram	a	atentar	mais	para	as	estatísticas	da	polícia	do	que	para	as	judiciais.
De	 acordo	 com	 o	 criminólogo	 holandês	 (HULSMAN,	 2004,	 p.	 49),	 há
algumas	décadas,	começaram	a	ser	introduzidas	as	pesquisas	de	autoconfissão
e	de	vitimização	para	melhor	apuração	destes	dados.	Nas	primeiras,	pergunta-
se	 a	 pessoas	 selecionadas	 por	 amostragem	 qual	 a	 frequência	 em	 que
cometeram	 atos	 potencialmente	 criminosos,	 em	 um	 determinado	 período,	 e
quantas	 vezes,	 após	 o	 ato	 criminoso,	 se	 seguiu	 uma	 intervenção	 da	 justiça
criminal.	 Nas	 segundas,	 fazem-se	 perguntas	 sobre	 a	 ocorrência	 e	 as
consequências	de	um	evento	criminoso.	Lola	Aniyar	de	Castro	(1983,	p.	71)
ressalva	que,	ainda	assim,	essa	metodologia	apresenta	algumas	falhas,	como
falta	 de	 colaboração	 do	 público	 (desabituado	 a	 pesquisas,	 enquetes,	 etc.);	 o
não	preenchimento	correto	dos	dados	nos	formulários;	a	existência	de	delitos
que	não	são	confessáveis,	nem	sob	promessa	de	anonimato	e	devido	ao	fato
de	que	as	vítimas	geralmente	só	recordam	dos	delitos	mais	graves	e	dos	mais
recentes.	 Conclui	 Hulsman	 que,	 o	 que	 se	 sabe,	 até	 agora,	 é	 que	 a	 efetiva
criminalização	é	um	fato	raro	e	excepcional	(2004,	p.	49).
Observa	o	autor	(HULSMAN,	2004,	p.	50-52)	que	o	fato	de	estes	crimes	não
serem	 noticiados	 não	 significa	 que	 não	 sejam	 cotidianamente	 tratados	 de
modo	 alternativo,	 ou	 seja,	 de	 forma	 não	 judicial.	 Estas	 condutas	 são
enfrentadas	de	vários	modos,	 sobre	os	quais	não	 temos	muitas	 informações,
mas	 são	 relevantes	para	 a	determinação	da	 legitimidade	da	 justiça	 criminal.
Isso	 demonstra	 que	 a	 criminalização	 não	 é	 uma	 resposta	 específica	 aos
eventos,	mas	 sim	um	modo	 específico	de	olhar	 para	 estes.	Neste	 aspecto,	 a
abordagem	restaurativa	poderia	funcionar	como	uma	alternativa	ao	modo	de
tratar	tais	fatos,	em	substituição	à	pena	de	prisão	pura	e	simples.
Estima-se	 que	 a	 taxa	 nacional	 de	 registro	 de	 ocorrências	 (criminalidade
aparente)	 esteja	 em	 torno	de	 trinta	 por	 cento	 do	 total	 de	 fatos	 considerados
criminosos	 (criminalidade	 real)	 (KAHN,	2012,	p.	88).	Boaventura	de	Sousa
Santos	considera	esta	discrepância	de	70%	entre	o	 registro	da	criminalidade
aparente	 e	 a	 real	 (cifra	 negra)	 muito	 elevada	 se	 comparada	 aos	 padrões
europeus,	americanos	ou	australianos.	Ainda	segundo	o	sociólogo	lusitano,	o
fato	de	a	grande	maioria	das	notícias	de	crimes	permanecer	alheia	ao	sistema
não	 significa	 que	 tenhamos	 uma	 “cultura	 jurídica	 de	 pacificação”,	mas	 sim
uma	“cultura	jurídica	passiva”.	Haveria,	em	verdade,	uma	cultura	de	“fuga	à
judicialização”,	 devida,	 em	grande	parte,	 a	 um	 juízo	negativo	da	população
sobre	 a	 adequação	 das	 soluções	 judiciais	 aos	 conflitos,	 aos	 custos	 deste
sistema	e	à	sua	morosidade	35	(SOUSA	SANTOS,	1996,	p.	694).
Boventura	 Sousa	 Santos(1996,	 p.	 695)	 observa	 que	 esta	 cultura	 jurídica
cidadã	passiva	se	manifesta	não	só	na	omissão	em	relação	à	comunicação	dos
crimes,	mas	 também	por	meio	de	uma	deficiente	 interiorização	dos	direitos
conquistados	 (muitas	 vezes	 concebidos	 como	 expressões	 de	 benevolência
estatal);	 por	 uma	 aceitação	 de	 que	 é	 natural	 o	 Estado	 pactuar	 com	 a	 não
aplicação	 ou	 má	 aplicação	 das	 leis	 (prática	 tolerada	 pelo	 Estado	 porque	 é
promovida	por	ele	mesmo)	e	por	um	nível	baixo	de	participação	política,	em
geral.
1.6	Ineficácia	dissuasória	da	pena	de	prisão
Como	visto,	a	prevenção	geral	da	pena,	em	sua	dimensão	negativa,	pretende
dissuadir	a	prática	criminosa	mediante	a	intimidação	causada	pela	imposição
de	 penas	 mais	 severas.	 Muitas	 políticas	 criminais	 do	 nosso	 tempo	 (em
verdade,	 “políticas	 penais”	 ou	 “políticas	 eleitoreiras”)	 36	 identificam-se	 com
este	modelo	37	.
A	opinião	pública,	estimulada	pelos	meios	de	comunicação	que	potencializam
o	 medo	 do	 delito,	 assume,	 de	 forma	 simplória,	 a	 necessidade	 de	 um
desmedido	 rigor	 político-criminal	 para	 fazer	 frente	 ao	 crime	 (GARCÍA-
PABLOS	DE	MOLINA;	GOMES,	2012,	p.	360)	38	.
Há	uma	crença	no	full	enforcement,	ou	seja,	uma	convicção	de	que	o	aumento
da	 pena	 de	 um	 crime	 seja	 suficiente	 para	 evitá-lo	 (GARCÍA-PABLOS	DE
MOLINA;	 GOMES,	 2012,	 p.	 489).	 Esta	 foi	 a	 tônica	 das	 últimas	 reformas
penais	 no	 Brasil	 (como	 a	 Lei	 nº	 10.972,	 de	 2004,	 que	 instituiu	 o	 regime
disciplinar	diferenciado;	a	Lei	nº	12.850,	de	2013,	que	trata	das	organizações
criminosas;	 a	 Lei	 nº	 8.072,	 de	 1990,	 conhecida	 lei	 dos	 crimes	 hediondos,
encampada	pela	novelista	Glória	Perez	após	a	morte	de	sua	filha,	e	a	sempre
presente	proposta	de	redução	da	maioridade	penal	39	).	Este	endurecimento	se
inspira	 no	 movimento	 norte-americano	 law	 and	 order	 ,	 que	 predica	 o
agravamento	das	penas,	criação	de	novos	tipos	penais,	restrição	ou	supressão
de	direitos	e	garantias	fundamentais	e	uma	execução	penal	rígida	(GARCÍA-
PABLOS	DE	MOLINA;	GOMES,	2012,	p.	495)	40	.
Geralmente,	 quanto	maior	 o	 alarme	 social,	 maior	 a	 urgência	 e	 interesse	 na
produção	 de	 novas	 normas	 penais.	 A	 respeito	 disso,	 Alessandro	 Baratta
pondera	que	a	edição	de	 leis	de	afogadilho	contraria	o	princípio	da	resposta
não-contingente	 do	 direito	 penal.	 Quer	 dizer:	 a	 lei	 penal	 é	 um	 ato	 solene
reservado	aos	problemas	 sociais	 fundamentais,	gerais	 e	duradouros	em	uma
sociedade	 e	 não	 instrumento	 de	 contemplação	 de	 situações	 atípicas	 ou
excepcionais.	 A	 sua	 edição	 deve	 compreender	 um	 estudo	 aprofundado,	 um
debate	 parlamentar	 exaustivo,	 acompanhado	 de	 ampla	 discussão	 pública.	A
edição	 de	 leis	 penais	 de	 emergência,	 feita	 mediante	 o	 uso	 emocional	 ou
irracional	do	direito	penal,	derroga	o	caráter	de	“abstração	e	a	generalidade”
da	norma	introduz	o	inconveniente	de	corromper	a	lógica	dos	códigos	e	gera
desproporcionalidade	 entre	 sanções	penais	 vigentes	 e	 as	 novas	 (BARATTA,
1987,	p.	631).
Nos	Estados	Unidos,	o	exemplo	mais	eloquente	desta	tendência	populista	na
condução	da	“política	penal”	é	a	 lei	do	 three	strikes	and	you	are	out	 (numa
referência	 à	 regra	 do	 beisebol,	 segundo	 a	 qual	 um	 jogador	 é	 expulso	 após
cometer	a	terceira	falta).	As	razões	que	originaram	a	three	strikes	law	não	são
muito	distintas	das	que	ensejam	mudanças	similares	na	legislação	brasileira	41	.
A	 referida	 lei	 impõe	 a	 obrigatoriedade	 da	 pena	 de	 prisão	 ao	 ofensor
reincidente	42	após	o	cometimento	do	seu	 terceiro	crime	grave	ou	violento	 43	 ,
como	 forma	de	“retirá-lo	de	circulação”	da	vida	em	sociedade.	Atualmente,
vinte	e	oito	estados	americanos	adotam	uma	legislação	neste	sentido,	variando
em	rigor	conforme	as	especificidades	locais	44	(LAMANCE,	2013,	p.	1).
Após	 intensa	campanha	publicitária	a	 favor	da	 instituição	destas	normas	em
todo	 o	 país,	 constatou-se	 que	 elas	 não	 traziam	 os	 resultados	 esperados.	 A
prática	mostrou	 que	 as	 leis	 não	 necessariamente	 reduziram	 a	 criminalidade
violenta,	no	entanto,	ao	contrário,	trouxeram	um	efeito	oposto:	houve	algumas
evidências	de	que	os	ofensores,	quando	da	prática	do	terceiro	crime,	passaram
a	 agredir	 mais	 os	 policiais,	 no	 afã	 de	 não	 serem	 capturados	 (WORRALL,
2004,	p.	288).
Em	relação	à	lei	dos	three	strikes,	outras	críticas	foram	feitas,	especialmente
em	virtude	da	desproporção	das	penas	dos	crimes	pelos	quais	o	réu	é	preso.
Um	condenado	por	furto,	por	exemplo,	poderia	receber	uma	pena	de	25	anos
de	prisão	segundo	esta	 lei,	caso	fosse	o	terceiro	crime	praticado.	Entretanto,
se	ela	não	estivesse	em	vigor	naquele	local,	sua	pena	de	prisão	seria	de	apenas
alguns	meses	45	.	Além	disso,	ao	considerar	os	crimes	anteriores	cometidos	pelo
réu	para	a	imposição	do	regime	mais	gravoso,	a	lei	o	pune	novamente	por	tais
delitos,	ainda	que	ele	já	tenha	cumprido	a	pena	 46	 .	A	apreciação	 judicial	dos
fatos	também	restou	seriamente	comprometida	neste	sistema,	já	que	os	juízes
devem	aplicar	rigorosamente	a	lei	quando	do	cometimento	do	terceiro	crime,
não	 importando	 sua	 convicção	 sobre	 a	 justiça	 deste	 cumprimento	 no	 caso
concreto.
A	eficácia	das	leis	penais	mais	severas	é	contestável,	pois	o	efeito	dissuasório
da	pena	encontrar-se-ia	mais	condicionado	pela	percepção	do	ofensor	sobre	a
efetiva	imposição	do	castigo	do	que	pelo	quantum	da	pena	em	si.	O	ofensor
indeciso	 valora	 e	 analisa	 com	 mais	 acuidade	 as	 consequências	 próximas	 e
imediatas	de	sua	conduta	(por	exemplo,	o	risco	de	ser	preso)	do	que	as	finais
ou	definitivas	(gravidade	da	pena	cominada	pela	lei	para	o	delito)	(GARCÍA-
PABLOS	DE	MOLINA;	GOMES,	2012,	p.	361).
Mais	modernamente,	ponderou-se	que	o	efeito	dissuasório	preventivo	 talvez
estivesse	mais	associado	ao	funcionamento	do	sistema	legal	(mais	do	que	ao
rigor	nominal	da	pena	ou	à	possibilidade	de	ser	pego	e	processado),	ou	seja:
mais	 e	melhores	 policiais,	mais	 e	melhores	 juízes,	mais	 e	melhores	 prisões
poderiam	 conferir	 maior	 efetividade	 ao	 sistema	 legal	 e,	 por	 conseguinte,
prevenir	crimes.	Entretanto,	essa	suposta	efetividade	do	castigo	significa	mais
reclusos	 nas	 prisões,	 porém	 não	 necessariamente	menos	 delitos	 (GARCÍA-
PABLOS	DE	MOLINA;	GOMES,	2012,	p.	363).
Segundo	Lola	Aniyar	 de	Castro	 (1983,	 p.	 66-67),	 este	 tipo	de	 resultado	 -	 e
melhores	policiais,	mais	 e	melhores	 juízes,	mais	 e	melhores	prisões	 -	não	é
significativo,	 porque	 a	 criminalidade	 pode	 permanecer	 a	 mesma,	 havendo
apenas	uma	multiplicação	de	esforços	por	parte	da	polícia	e	maior	eficiência
dos	tribunais.	Ademais,	fórmulas	repressivas	ou	intimidatórias	são	meramente
sintomatológicas,	policialescas	e	não	cuidam	das	raízes	do	problema	criminal,
prescindindo	da	sua	análise	científica.
Sobre	o	efeito	destas	políticas,	observa	Rogério	Schietti	(CRUZ,	2011,	p.	63)
que	a	criação	de	novos	crimes	e	o	aumento	de	penas	não	resolvem	o	problema
da	criminalidade.	Quando	muito,	aliviam	a	sensação	de	impunidade	e	fazem
crer	que	o	Estado	está	intervindo	com	maior	rigor	47	.
Desta	 forma,	 para	 uma	 possível	 política	 dissuasória	 e	 preventiva	 do	 crime,
devem-se	considerar	outros	fatores,	além	da	duração	ou	do	rigor	do	castigo,
como	a	natureza	do	delito,	o	tipo	de	ofensor,	o	apoio	informal	que	ele	possa
receber	 pelo	 comportamento	 desviado,	 a	 rapidez	 e	 imediação	 da	 resposta
penal,	 o	 modo	 pelo	 qual	 a	 sociedade	 e	 o	 ofensor	 percebem	 o	 castigo
(efetividade)	etc.	(GARCÍA-PABLOS	DE	MOLINA;	GOMES,	2012,	p.	361).
A	 justiça	 restaurativa	 apresenta	 potencial	 para	 atender	 satisfatória	 e
simultaneamente	a	todos	esses	fins	concorrentes,	como	a	segurança	pública,	a
dissuasão,	 a	 reabilitação	 do	 ofensor	—	 ,	 respondendo	 às	 necessidades	 das
vítimas	 e	 de	 prevenção	 (BRANCHER,	 2007,	 p.	 6).	 Ela	 preserva	 todos	 os
recursos	 enumerados	 e,	 ao	 invés	 do	 fortalecimento	 do	 controle	 social	 do
delito,	 propicia	 uma	 melhor	 sincronização	 entre	 controlesocial	 formal	 e
informal,	 como	 o	 envolvimento	 ativo	 da	 comunidade,	 da	 família	 e	 dos	 que
estão	 em	 entorno	 do	 ofensor	 (GARCÍA-PABLOS	 DE	MOLINA;	 GOMES,
2012,	p.	363).
Claus	 Roxin	 (1997,	 p.	 109)	 vê	 fortes	 razões	 para	 a	 inclusão	 deste	 tipo	 de
resposta	ao	conflito	como	uma	“terceira	via”	do	direito	penal.	Ele	sugere	que,
para	fatos	puníveis	atualmente	com	multas,	ela	poderia	ser	dispensada	quando
o	ressarcimento	dos	danos	se	desse	por	completo	e,	em	caso	de	crimes	mais
graves,	a	reparação	deveria	resultar	em	uma	atenuação	obrigatória	de	punição
ou	em	até	sua	remissão.
De	acordo	com	o	jurista	alemão,	a	pesquisa	empírica	mostrou	que	ambos	os
feridos	 (autor	 e	 vítima)	 e	 a	 comunidade	 não	 costumam	 exigir	 um	 castigo
adicional	ao	autor	quando	ele	repara	os	danos,	em	casos	de	crime	de	pequeno
ou	 médio	 porte.	 Para	 ele,	 a	 justiça	 restaurativa	 é	 bem-vinda	 em	 favor	 dos
interesses	das	vítimas,	cuja	reparação	de	danos	é	geralmente	frustrada	com	a
prisão	do	autor.	Ressalva	o	autor	que	a	questão	da	reparação	dos	danos	não	é
uma	questão	meramente	 jurídico-civil.	Se	 feita	de	acordo	com	os	princípios
restaurativos,	 por	 exemplo,	 ela	 contribuiria	 significativamente	 para	 a
realização	das	finalidades	da	punição.	Consoante	preleciona,	isso	é	possível	à
medida	 que	 se	 requer	 que	 o	 autor	 enfrente	 as	 consequências	 de	 seu	 ato	 e
conheça	 os	 legítimos	 interesses	 da	 vítima.	 Este	 enfrentamento	 tem	 mais
chances	de	ser	reconhecido	pelo	autor	como	algo	necessário,	justo,	melhor	do
que	a	pena,	e	pode	fomentar	o	reconhecimento	das	normas	penais,	 tal	como
propõe	a	função	de	prevenção	geral	positiva	da	pena	(ROXIN,	1997,	p.	109).
1.7	Os	números	da	eficácia	invertida	da	prisão
Diante	do	exposto,	o	paradigma	punitivo	atual	falha	em	cumprir	sua	proposta
de	 reprimir	 a	 criminalidade,	 mas	 também	 veremos	 que	 ele	 opera
contrariamente	à	sua	função.	Como	observa	Juarez	Cirino	dos	Santos	(2005a,
p.	 5),	 o	 sistema	 carcerário	 é	marcado	 por	 uma	 eficácia	 invertida,	 pois	 “em
lugar	 de	 reduzir	 a	 criminalidade,	 introduz	 os	 condenados	 em	 carreiras
criminosas,	produzindo	reincidência	e	organizando	a	delinquência”.
Um	dos	fatores	para	a	inoperância	e	a	eficácia	invertida	da	pena	de	prisão	é	o
número	 de	 detentos	 e	 a	 forma	 como	 eles	 se	 encontram	 alojados.	Conforme
dados	do	Sistema	 Integrado	de	 Informações	Penitenciárias	do	Ministério	da
Justiça	 (InfoPen),	 a	 população	 carcerária	 brasileira	 está	 estimada	 em	 meio
milhão	de	pessoas	(mais	exatamente	548.003,	em	dezembro	de	2012)	 48	 .	Na
mesma	época,	o	país	possuía	apenas	309.074	vagas	para	seu	abrigamento,	o
que	gera	uma	taxa	de	ocupação	de	77,3%	superior	à	capacidade	e	um	déficit
de	 238.929	 vagas	 no	 sistema	 penitenciário.	 Portanto,	 seria	 necessária	 a
construção	de	aproximadamente	duzentas	e	quarenta	mil	acomodações	apenas
para	 manter	 os	 atuais	 presos	 na	 forma	 como	 determina	 a	 lei	 de	 execução
penal,	já	que	as	prisões	existentes	não	têm	condições	de	habitabilidade.
Na	 toada	 da	 demanda	 crescente	 por	 uma	 maior	 criminalização	 e
encarcerização	 (comum	não	 só	no	Brasil,	mas	 também	em	outros	países	do
mundo,	conforme	já	visto),	o	país	ostenta	a	quarta	maior	população	carcerária
mundial	 em	 números	 absolutos,	 estando	 atrás	 apenas	 dos	 Estados	 Unidos
(com	 2.228.424	 pessoas	 presas),	 da	 China	 (1.701.344	 presos)	 e	 da	 Rússia
(675.000	 reclusos),	 segundo	 dados	 do	 último	 relatório	 anual	 do	 Centro
Internacional	 de	 Estudos	 Prisionais	 do	 King’s	 College	 London	 (LONDON,
2014,	p.	1)	49	.
Em	termos	percentuais,	considerando	a	população	 total	destes	países	 (China
—	1.355.692.576;	Rússia	—	142.470.272;	Estados	Unidos	—	318.892.103	e
Brasil	—	202.656.788	50	),	o	Brasil	também	ocupa	o	quarto	lugar,	com	0,2%	da
sua	 população	 encarcerada	 (Estados	Unidos,	 0,69%;	 Rússia,	 0,47%;	 Brasil,
0,2%	e	China,	0,1%),	ou	seja,	uma	proporção	de	270	pessoas	presas	para	cada
cem	mil	habitantes.
Nos	 últimos	 dez	 anos,	 o	 quantitativo	 da	 população	 carcerária	 mais	 que
dobrou,	aumentando	de	233.859	(dados	de	dezembro	de	2001)	para	os	atuais
548.003	(dados	de	dezembro	de	2012)	51	,	o	que	gera	um	índice	de	crescimento
de	 134%	 (BRASIL,	 2009,	 p.	 364).	 Para	 se	 ter	 uma	 ideia,	 o	 aumento	 da
população	 brasileira	 entre	 os	 anos	 2000	 e	 2010	 (anos	 em	 que	 houve	 censo
demográfico	pelo	IBGE)	foi	de	12,48%	(de	169.590.693	habitantes	em	2000
para	190.755.799	em	2010).	Destarte,	comparando	os	índices	de	crescimento
destes	 períodos	 (120%	 X	 12,48%),	 pode-se	 concluir	 que	 o	 aumento
proporcional	da	população	carcerária	 foi	muito	maior	—	dez	vezes	superior
ao	da	população	em	geral	—	ascensão	que	não	veio	acompanhada,	na	mesma
intensidade,	de	políticas	públicas	ou	melhorias	para	os	detentos.
O	 incremento	 da	 população	 carcerária	 não	 é	 um	 evento	 exclusivamente
brasileiro.	Os	Estados	Unidos,	por	exemplo,	quintuplicaram	seus	presos	nos
últimos	 anos:	 de	 500	 mil,	 em	 1980,	 para	 2,2	 milhões	 de	 presos	 em	 2011,
especialmente	 após	 a	 edição	 da	 three	 strikes	 law	 .	 Com	 suas	 punições
demasiado	severas	e	longas	—	variando	de	no	mínimo	de	25	anos	até	a	prisão
perpétua,	sem	permitir,	muitas	vezes,	a	liberdade	condicional	—	a	população
carcerária	norte-americana	aumentou	drasticamente.
Não	 existem	 dados	 ou	 informações	 precisas	 sobre	 o	 custo	 de	 todo	 este
encarceramento,	em	especial	o	dispendido	com	a	manutenção	de	cada	preso.
A	 Comissão	 Parlamentar	 de	 Inquérito	 (CPI)	 do	 Sistema	 Carcerário,	 após
diligências	 a	 cada	 uma	 das	 penitenciárias	 do	 país,	 entre	 os	 anos	 de	 2007	 e
2009,	estimou	que	cada	nova	vaga	no	sistema	custa	aos	cofres	públicos	cerca
de	 R$	 22.000,00	 por	 ano	 (BRASIL,	 2009,	 p.	 363).	 Este	 valor	 é	 apenas
prognosticado,	já	que	há	grande	disparidade	nos	gastos	informados	por	cada
estado,	 com	 variações	 entre	 R$	 500,00	 (Amapá)	 e	 R$	 1.700,00	 (Minas
Gerais)	 por	mês.	A	 oscilação	 se	 deve,	 principalmente,	 à	 diferença	 do	 valor
pago	nas	contratações	de	serviços	como	alimentação,	remuneração	de	agentes
de	segurança	etc.	Segundo	o	Departamento	Penitenciário	Nacional	(DEPEN),
a	média	mensal	nacional	de	custo	de	cada	preso	em	presídios	comuns	é	de	R$
1.300,00	 e,	 nos	 de	 segurança	máxima,	 de	 R$	 4.500,00	 (BRASIL,	 2009,	 p.
364).
Cabe,	aqui,	ressalvar	que	os	gastos	efetuados	com	a	manutenção	do	preso	ou
da	prisão	não	correspondem	ao	custo	do	delito	para	a	sociedade.	Anota	Lola
Aniyar	 de	 Castro	 (1983,	 p.	 48)	 que	 as	 despesas	 com	 a	 execução	 da	 lei
(número	 de	 forças	 policiais),	 tratamento	 (cárcere,	 colônias	 penais,
manicômios	 judiciais,	 estabelecimentos	 para	 menores	 de	 idade)	 e
administração	 da	 justiça	 (juízes,	 promotores,	 servidores,	 etc.)	 são	 apenas	 as
mais	 aparentes.	 Há	 outros	 custos	 do	 crime,	 como	 o	 da	 repressão;	 o	 da
investigação	 (estudos	 científicos,	DNA,	 perícia);	 o	 da	 prevenção	 (pública	 e
privada,	 como	 investimento	 em	 sistemas	 de	 alarme,	 segurança,	 caixa	 forte,
despesas	para	as	companhias	de	seguro,	empresas	privadas	etc.);	o	dos	danos
causados	 (dos	 bens,	 da	 lesão	 ou	 do	 sofrimento	 da	 vítima,	 individual	 ou
coletiva,	pública	ou	privada);	o	do	lucro	cessante	(como	despesa	médica,	ônus
à	 economia	 pelo	 decréscimo	 na	 produtividade);	 o	 do	 custo	 social	 (a
manutenção	 das	 famílias	 dos	 detentos,	 ajuda	 às	 vítimas,	 etc.)	 e	 outros	 não
estimáveis	facilmente	do	ponto	de	vista	econômico).
A	 criminóloga	 venezuelana	 ressalta	 especialmente	 o	 custo	 dos	 chamados
“crimes	do	colarinho	branco”,	que	supera,	em	muitas	vezes,	o	 somatório	de
todos	 os	 furtos	 e	 roubos	 do	 país,	 pois	 “altera	 a	 qualidade	 de	 vida,	 obriga	 a
frequentes	gastos	com	reparações,	limita	as	entradas	de	impostos,	traz	em	si	a
ruína	de	pequenas	empresas,	aumenta	o	custo	de	vida	e	implica,	além	disso,
um	 alto	 custo	 moral,	 tomando-se	 em	 conta	 que	 os	 autores	 desses	 fatos,
geralmente	sãoos	lideres	da	comunidade”	(ANIYAR	DE	CASTRO,	1983,	p.
48).
Segundo	o	Banco	Mundial,	os	países	 latino-americanos	dispendem	cerca	de
oito	por	cento	do	seu	Produto	Interno	Bruto	(PIB)	no	combate	ao	crime	e	à
violência,	 incluindo	 a	 segurança	 dos	 cidadãos,	 os	 processos	 judiciais	 e	 os
gastos	com	saúde	 52	 .	Esta	despesa	enfraquece	o	crescimento	econômico	não
apenas	por	 salários	perdidos,	mas	porque	desvia	o	 investimento	de	 recursos
públicos	 já	 escassos	para	 o	 sistema	penal	 judiciário,	 em	vez	de	promover	 a
atividade	econômica.
O	custo	da	manutenção	do	arranjo	prisional	é	um	dos	principais	argumentos
que	 tem	 levado	 legisladores	 e	 formuladores	 de	 políticas	 públicas	 a
reconsiderarem	 o	mérito	 do	 atual	 sistema	 punitivo,	 especialmente	 porque	 o
gasto	implica	cortes	em	outras	áreas	de	investimento	que	poderiam	funcionar
como	 polos	 de	 inclusão	 (políticas	 sociais	 de	 educação,	 saúde,	 cultura,
trabalho,	assistência	social)	(UMBREIT,	2007,	p.	1).	Quer	dizer,	a	população
estaria	custeando	um	sistema	que,	ao	invés	de	“recuperar”	os	detentos,	torna-
os	piores,	além	de	deixar	de	atuar	preventivamente,	o	que	seria	menos	custoso
e	doloroso.
O	 eleitorado	 americano,	 por	 exemplo,	 costumeiro	 entusiasta	 quanto	 a
programas	de	 “guerra	 contra	 o	 crime”,	 não	 acolheu	 com	 simpatia	 os	 custos
carcerários	 desses	 programas.	 A	 aplicação	 da	 three	 strikes	 law	 teve	 um
impacto	 significativo,	 com	 o	 gasto	 médio	 de	 manutenção	 do	 preso
encarcerado	de	vinte	 e	 cinco	mil	 dólares	 por	 ano	 (HEYER,	2011,	 p.	 1229).
Isso	porque	a	longevidade	das	penas	de	prisão	acarreta	o	envelhecimento	da
população	carcerária,	provocando	um	aumento	nos	gastos	decorrentes	não	só
do	prolongamento	temporal,	mas	também	com	os	cuidados	médicos	próprios
da	 senilidade.	Além	 disso,	muitos	 detentos	 idosos	 não	 precisariam	mais	 de
contenção,	 mas	 o	 rigor	 legal	 impõe	 a	 sua	 permanência,	 fato	 que	 eleva	 os
custos	e	diminui	a	disponibilidade	de	vagas	para	os	que	realmente	precisam
de	 repressão.	 Esta	 despesa	 foi	 bastante	 criticada	 pela	 população	 norte-
americana,	 que	 reivindicou	 o	 uso	 do	 orçamento	 para	 outros	 fins,	 tais	 como
construção	 de	 escolas	 ou	 de	 programas	 de	 reabilitação	 para	 os	 próprios
detentos	53	.
Ainda	numa	perspectiva	utilitarista,	percebe-se	que	tamanho	investimento	no
encarceramento	 não	 corresponde	 necessariamente	 a	 uma	 diminuição	 do
número	de	crimes.	No	Brasil,	no	período	que	compreende	os	anos	de	1998	e
2008,	o	número	total	de	homicídios	registrados	pelo	Sistema	de	Informações
sobre	 Mortalidade	 do	 Ministério	 da	 Saúde	 (SIM)	 passou	 de	 41.950	 para
50.113,	 o	 que	 representou	 um	 incremento	 de	 17,8%,	 índice	 superior	 ao
crescimento	 populacional	 do	 período,	 estimado	 oficialmente	 em	 17,2%.
(BRASIL,	2011,	p.	21).	Segundo	o	estudo	“Mapa	da	Violência	2011”,	 feito
pelo	 Ministério	 da	 Justiça	 (BRASIL,	 2011,	 p.	 24),	 o	 número	 de	 mortes
violentas	no	país	no	período	excede,	com	folga,	o	de	vários	conflitos	armados
registrados	no	mundo	54	.
Outro	 dado	 que	 atesta	 o	 colapso	 do	 paradigma	 punitivo	 é	 o	 número	 de
mandados	de	prisão	que	aguardam	cumprimento.	Quando	da	implantação	do
“Banco	Nacional	de	Mandados	de	Prisão”,	o	CNJ	apurou	a	existência	de	500
mil	ordens	de	prisão	a	serem	cumpridas	em	dezessete	estados	brasileiros	e	no
Distrito	 Federal,	 de	 acordo	 com	 informações	 enviadas	 pelos	 Tribunais	 de
Justiça	destes	estados	55	.	Atualmente,	este	número	é	de	390.653	mandados	não
cumpridos	 56	 .	 Face	 à	 superlotação	 constatada,	 verifica-se	 que	 o	 sistema
penitenciário	 estaria	 completamente	 inviabilizado	 se	 as	 determinações	 do
paradigma	punitivo	fossem	realmente	observadas	e	o	Estado	cumprisse	suas
ordens	judiciais.
Com	 o	 déficit	 existente	 de	 cerca	 de	 200	 mil	 vagas	 e	 mais	 de	 390	 mil
mandados	 judiciais	 por	 cumprir,	 é	 forçoso	 admitir	 que	 o	 sistema	 entrou	 em
colapso	 e	 exige	 a	 revisão	 da	 política	 criminal	 e	 penitenciária	 atual.	 Nem
mesmo	as	soluções	mais	populares,	como	a	construção	de	mais	presídios,	por
exemplo,	 seriam	 capazes	 de	 resolver	 satisfatoriamente	 o	 nó	 górdio	 a	 que
chegou	a	questão	57	.	Acerca	da	ruína	desse	arranjo,	Maria	Lúcia	Karam	(2004,
p.	92)	observa	que,	“se,	em	algum	momento,	o	sistema	de	justiça	penal	tivesse
que	 ser	 julgado	 sob	 uma	 ótica	 de	 produtividade	 —	 como	 tendem	 a	 fazer
alguns	 tecnocratas	 retóricos	 que	 falam	de	 ‘justiça-empresa’	—	 a	 falência	 já
teria	sido,	há	tempos,	inexoravelmente	declarada”.
2	A	expressão	“ressocializar”	foi	utilizada	entre	aspas	a	fim	de	pontuar	nossa	discordância	com	o	termo
(em	que	pese	ser	o	utilizado	pela	legislação),	nos	moldes	do	pensamento	de	Foucault	(2008,	p.	183),	que
rechaça	expedientes	de	qualquer	natureza	que,	a	pretexto	de	educação	ou	tratamento,	visem	disciplinar
ou	 mecanizar	 o	 sujeito	 (tornando-o	 “corpo	 dócil”).	 No	 mesmo	 sentido,	 a	 criminologia	 crítica,	 que
propõe	a	substituição	semântica	de	“ressocialização”	por	“reintegração	social”,	deslocando	a	atenção	do
condenado	para	a	relação	sujeito/comunidade	(CIRINO	DOS	SANTOS,	2005b,	p.	6).
3	A	respeito	da	relação	entre	poder	e	seletividade	dos	crimes,	Boaventura	de	Sousa	Santos	(1996,	p.	38)
ressalta	que	“um	poder	político	concentrado,	tradicionalmente	assente	numa	pequena	classe	política	de
extracção	oligárquica,	soube	ao	longo	dos	anos	criar	imunidades	jurídicas	e	fácticas	que	redundaram	na
impunidade	geral	dos	crimes	cometidos	no	exercício	de	funções	políticas.	Esta	prática	transformou-se
na	pedra	 angular	de	uma	cultura	 jurídica	 autoritária	nos	 termos	da	qual	 só	 é	possível	 condenar	 ‘para
baixo’	(os	crimes	das	classes	populares)	e	nunca	‘para	cima’	(os	crimes	dos	poderosos).”
Ressalta	o	sociólogo	lusitano	que	o	desempenho	dos	tribunais	é	também	muito	seletivo	e	acentua	essas
assimetrias.	No	domínio	da	justiça	penal,	por	exemplo,	há	uma	disponibilidade	geral	das	Cortes	para	a
judicialização	de	um	número	relativamente	restrito	de	tipos	de	crimes	e	também	no	tipo	de	litigantes,
quais	sejam,	dos	mais	pobres	(1996,	p.	687).
4	No	mesmo	diapasão,	Zaffaroni	(2003,	p.	99),	para	quem	“a	legitimação	do	poder	punitivo	é,	portanto,
simultaneamente,	legitimação	de	componentes	do	Estado	de	polícia	e	atua	em	detrimento	do	Estado	de
direito”.
5	 Juíza	 aposentada,	 membro	 do	 IBCCrim	 —	 Instituto	 Brasileiro	 de	 Ciências	 Criminais	 —	 e	 da
“Associação	de	Juízes	para	a	Democracia”,	entre	outros	organismos.
6	Por	 “justiça	 criminal”	 entende-se	 aqui	 como	 “uma	 forma	 específica	 de	 interação	 de	 uma	 gama	 de
agentes:	a	 lei,	 a	polícia,	os	 tribunais,	a	prisão	 (produtos	da	criminalização	secundária)”	 (HULSMAN,
1993,	p.	121)
7	Neste	mesmo	sentido,	é	a	 teoria	do	“realismo	marginal	 jurídico-penal”,	de	Eugenio	Raúl	Zaffaroni.
Diz-se	realista,	porque	reconhece	o	atuar	real	e	irracional	das	agências	punitivas	e	a	deslegitimação	do
poder	de	punir,	já	que	as	penas	criminais	não	podem	ser	juridicamente	fundamentadas,	senão	segundo	o
seu	sentido	político	(teoria	agnóstica	da	pena)	(BATISTA,	s/d,	p.	6).
8	No	mesmo	 sentido,	 temos	 a	 constatação	 de	Louk	Hulsman	 (2004,	 p.	 43):	 “Dentro	 do	 conceito	 de
criminalidade,	encontramos	variadas	situações,	ligadas	entre	si.	Em	sua	maior	parte,	têm	propriedades
diversas	e	nenhum	denominador	comum:	violência	na	família,	violência	em	um	contexto	anônimo	das
ruas,	 arrombamentos,	 diversas	 formas	 de	 receber	 mercadorias	 ilegalmente,	 diferentes	 condutas	 no
trânsito,	 a	 poluição	do	 ambiente,	 algumas	modalidades	 de	 atividade	 política.	Não	 se	 pode	 identificar
qualquer	estrutura	comum,	quer	na	motivação	de	quem	está	implicado	em	tais	fatos,	quer	na	natureza	de
suas	 consequências,	 quer	 nas	 possibilidades	 de	 enfrentá-los	 (seja	 em	 um	 sentido	 preventivo,	 seja	 no
sentido	 de	 controle	 do	 conflito).	 Tudo	 o	 que	 estes	 fatos	 têm	 em	 comum	 é	 que	 o	 sistema	 de	 justiça
criminal	 está	 autorizado	 a	 intervir	 contraeles.	 Alguns	 destes	 eventos	 causam	 um	 sofrimento
significativo	a	quem	está	diretamente	envolvido,	geralmente	prejudicando	tanto	o	autor	quanto	a	vítima.
Consideremos,	por	exemplo,	os	acidentes	de	trânsito	e	a	violência	na	família”.
9	Promotora	de	justiça	e	pesquisadora,	autora	da	dissertação	de	Mestrado	em	Direito	(Universidade	de
Brasília),	 “Flagrante	 e	 prisão	 provisória	 na	 criminalização	 de	 furto:	 da	 presunção	 de	 inocência	 à
antecipação	de	pena”,	2006.	Disponível	em:	http://repositorio.bce.unb.br/handle/10482/5179	.	Acesso:
em	30	dez.	13.
10	 Para	 Boaventura	 de	 Sousa	 Santos	 (1996,	 p.	 687),	 o	 aumento	 da	 criminalidade	 contra	 bens
patrimoniais	nos	últimos	anos	estaria	relacionado	à	toxicodependência.
11	Conforme	 texto	 definitivo	 e	 oficial	 do	 anteprojeto	 (Projeto	 de	 Lei	 do	 Senado	 nº	 236,	 de	 2012)
acessado	 no	 sítio	 do	 Senado	 Federal.	 Disponível	 em:
http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=106404	.	Acesso:	em	6	fev.	2013.
12	Entrevista	do	relator	da	comissão,	o	procurador	da	República	Luiz	Carlos	Gonçalves	em	junho	de
2012.	Disponível	em:	http://noticias.bol.uol.com.br/brasil/2012/06/28/nao-teve-assunto-tabu-diz-relator-
sobre-reforma-do-codigo-penal.jhtm	.	Acesso:	em	5	fev.	13.
13	Professor	livre-docente	coordenador	do	núcleo	de	sociologia	da	PUC-SP.
14	 Consoante	 Túlio	 Kahn	 (2012,	 p.	 87),	 sociólogo	 e	 ex-chefe	 da	 Coordenadoria	 de	 Análise	 e
Planejamento	(CAP)	da	Secretaria	da	Segurança	Pública	de	São	Paulo,	em	países	em	desenvolvimento,
como	 é	 o	 caso	 do	Brasil,	 haveria	maior	 propensão	 para	 a	 prática	 de	 crimes,	 sejam	 eles	 associados	 à
pobreza	e	à	desigualdade	social,	como	os	crimes	contra	a	pessoa	(homicídio,	lesões	etc.)	ou	associados	à
riqueza,	 como	 os	 crimes	 patrimoniais	 (roubos	 e	 furtos).	 Os	 crimes	 contra	 a	 pessoa	 normalmente
ocorrem	na	periferia	das	grandes	cidades,	onde	há	elevado	consumo	de	droga	e	álcool,	poucas	opções	de
lazer,	disponibilidade	de	armas	e	uma	cultura	de	violência	para	a	resolução	de	conflitos.	Em	relação	aos
crimes	 patrimoniais,	 o	 aumento	 da	 renda	 e	 do	 emprego	 implica	 não	 só	 maiores	 opções	 de	 ganhos
“dentro	da	lei”,	mas	também	maior	disponibilidade	de	bens	subtraíveis	(celulares,	automóveis	etc.),	em
especial	quando	o	crescimento	econômico	é	acelerado	e	desigual,	como	no	caso	brasileiro.	A	realidade
econômica	e	social	brasileira	seria,	portanto,	terreno	fértil	para	a	prática	de	ambos	os	tipos	de	crimes,
patrimoniais	e	contra	a	pessoa,	justamente	por	congregar	fatores	desfavoráveis	tão	distintos,	como,	por
exemplo,	 crescimento	 rápido	 e	 desorganizado,	 grande	 oferta	 de	 bens,	 desigualdade	 social	 e	 baixa
expectativa	 de	 punição.	 Assim,	 tornam-se	 cada	 vez	 mais	 necessárias	 alternativas	 criativas	 e
multipontuais	para	se	reverter	tais	estatísticas	(KAHN,	2012,	p.	87).
15	A	despeito	de	sua	opinião	cética,	o	professor	da	universidade	de	Coimbra	reconhece	que,	em	anos
mais	recentes,	tem	se	multiplicado	os	sinais	de	um	ativismo	dos	tribunais	no	combate	à	criminalidade
organizada,	 à	 corrupção	 da	 classe	 política	 e	 até	 dentro	 do	 próprio	 sistema	 judicial,	 o	 que	 explica	 as
dificuldades	dos	tribunais	de	exercerem	o	controle	penal	nestes	domínios	(SOUSA	SANTOS,	1996,	p.
39).
16	 Conforme	 o	 jurista	 italiano,	 esta	 cifra	 engloba:	 “a)	 os	 inocentes	 reconhecidos	 por	 sentença
absolutória,	após	terem	se	sujeitado	ao	processo	e,	não	poucas	vezes,	ao	encarceramento	preventivo;	b)
os	 inocentes	 condenados	 com	 sentença	 definitiva	 e	 posteriormente	 absolvidos	 em	 grau	 de	 revisão
criminal;	 c)	 as	 vítimas	 dos	 erros	 judiciários	 não	 reparados,	 cujo	 número	 restará	 sempre	 ignorado
(verdadeira	cifra	negra	da	injustiça)”	(FERRAJOLI,	2010,	p.	196).
17	Assistente	 social	 clínico	 americano,	 Jerome	Miller	 é	 considerado	 uma	 autoridade	 em	 reforma	 de
sistemas	 penais	 juvenis	 e	 de	 adultos.	 Defensor	 de	 alternativas	 ao	 encarceramento,	 ele	 liderou	 o
fechamento	de	vários	reformatórios	juvenis	em	Massachusetts	no	início	de	1970.
18	Neste	 trabalho	utilizaremos	o	 termo	“ofensor”	para	nos	 referimos	à	“pessoa	objeto	da	 intervenção
penal”,	 pois	 como	 ressalta	Maíra	 Rocha	Machado	 (2005,	 p.	 80),	 expressões	 como	 “delinquente”	 ou
“criminoso”	dão	a	entender	uma	distinção	entre	pessoas	boas	e	más,	“entre	eles	e	nós”,	o	que	contraria	o
escopo	 deste	 trabalho.	Ademais,	 como	 assevera	 a	 autora,	 “o	 que	 parece	 ser	 uma	 simples	 questão	 de
linguagem	relaciona-se	muito	estreitamente	às	escolhas	do	aplicador	do	direito	e	do	pesquisador”.
19	Sobre	a	reparação	no	sistema	atual,	assinala	Louk	Hulsman	(1993,	p.	121):	“A	criminalização	é	um
serviço	cujos	“clientes	potenciais”	(as	vítimas)	não	querem	comprar.	O	que	elas	normalmente	querem	é
proteção	e	reparação.	Estes	são	produtos	que	a	justiça	criminal	não	vende	(…).”
20	A	 crítica	 neste	 trabalho	 se	 limita	 às	 duas	 funções	mais	 tradicionais	 da	 pena,	 não	 se	 ignorando	 a
existência	de	outras	finalidades,	como	a	de	expiação,	de	emenda	e	de	defesa	social.
21	A	respeito	do	caráter	retributivo	da	pena,	aduz	o	professor	paranaense:	“A	pena	como	compensação
ou	retribuição	atualiza	o	impulso	de	vingança,	tão	velho	quanto	o	mundo.	A	psicologia	popular	parece
explicar	 essa	 sobrevivência,	 aparentemente	 regida	 pelo	 talião:	 olho	 por	 olho,	 dente	 por	 dente.	Mas	 a
determinação	é	social,	não	biológica:	na	base	da	psicologia	do	povo	está	a	 tradição	religiosa	 judaico-
cristã	 ocidental,	 que	 sustenta	 uma	 imagem	 retributivo-vingativa	 da	 justiça	 divina”	 (CIRINO	 DOS
SANTOS,	2013a,	p.	2).
22	Salo	Carvalho	 faz	 a	 seguinte	 ressalva:	 “O	modelo	 penalógico	 de	Kant	 é	 estruturado	 na	 premissa
básica	de	que	a	pena	não	pode	ter	jamais	a	finalidade	de	melhorar	ou	corrigir	o	homem,	ou	seja,	o	fim
utilitário	 ilegítimo.	 Se	 o	 direito	 utilizasse	 a	 pena	 como	 instrumento	 de	 dissuasão,	 acabaria	 por
mediatizar	o	homem,	tornando-o	imoral.	Logo,	a	penalidade	teria	como	thelos	a	imposição	de	um	mal
decorrente	 da	 violação	 do	 dever	 jurídico,	 encontrando	 neste	 mal	 (violação	 do	 direito)	 sua	 devida
proporção.	Muito	embora	utilize	critérios	de	medida	e	proporção	da	pena,	Kant	 rememorará	modelos
primitivos	 de	 vingança	 privada.	 A	 teoria	 absoluta	 da	 pena	 sob	 o	 viés	 kantiano	 recupera	 o	 principio
taliônico,	encobrindo-o,	no	entanto,	pelos	pressupostos	de	civilidade	e	legalidade”	(CARVALHO,	2003,
p.	122).
23	 “Tudo	 na	 natureza	 age	 segundo	 leis.	 Só	 um	 ser	 racional	 tem	 a	 capacidade	 de	 agir	 segundo	 a
representação	das	 leis,	 isto	é,	 segundo	princípios,	ou:	 só	ele	 tem	uma	vontade.	Como	para	derivar	as
acções	das	leis	é	necessária	a	razão,	a	vontade	não	é	outra	coisa	senão	razão	prática”	(KANT,	1785,	p.
47).
24	No	original:	“El	mismo	nombre	de	‘pena’	indica	un	sufrimiento,	pero	sufrimiento	hay	en	casi	todas
las	sanciones	jurídicas:	sufrimos	cuando	nos	embargan	la	casa,	cuando	nos	cobran	un	interés	punitorio,
nos	anulan	un	proceso,	nos	ponen	en	cuarentena,	nos	llevan	por	la	fuerza	a	declarar	como	testigos	etc.
Ninguno	de	estos	sufrimientos	se	llama	‘pena’,	porque	tienen	un	sentido,	es	decir,	conforme	a	modelos
abstractos	todos	sirven	para	resolver	algún	conflicto.	La	pena,	en	lugar,	como	sufrimiento	huérfano	de
racionalidad,	 hace	 varios	 siglos	 que	 busca	 un	 sentido	 y	 no	 lo	 encuentra,	 sencillamente	 porque	 no	 lo
tiene,	más	que	como	manifestación	de	poder”	(ZAFFARONI,	1991a,	p.	210).
25	A	 teoria	 do	 just	 deserts	 (no	 sentido	 de	 “apenas	 o	 merecido”)	 defende	 que	 a	 punição	 deve	 ser
proporcional	à	gravidade	da	infração	cometida.
26	Louk	Hulsman	 (1993,	 p.	 124)	 ilustra	 a	 situação	da	vítima	no	 atual	 sistema	de	 justiça	 criminal	 da
seguinte	forma:	“O	código	criminal	e	outras	legislações	penais	contêm	muitas	“incriminações”;	eles	são
como	“caixas”	prontas	que	podem	receber	a	realidade	de	fora	recortada	e	simplificada	para	adequá-la	à
prefiguração	da	caixa	(…).	Nocaso	da	justiça	criminal,	a	vítima	não	pode	escolher	a	caixa.	Isto	é	feito
pelo	policial	e	pelo	promotor	público	principalmente	de	acordo	com	os	hábitos	e	as	práticas	em	uso	na
organização.	 Essas	 escolhas	 podem	 ter	 importantes	 consequências	 para	 a	 possibilidade	 de	 prisão	 do
suposto	criminoso	e	muitos	outros	efeitos	no	procedimento	judicial.	Se	o	acusado	é	condenado,	a	vítima
não	tem	influencia	na	escolha	e	na	execução	da	sentença”.
27	A	ideia	de	dissuasão	remete	à	teoria	da	coação	psicológica	ou	da	intimidação	proposta	por	Feuerbach
no	 século	 XVIII,	 para	 quem	 a	 ameaça	 de	 punição	 legal	 é	 um	 fator	 decisivo	 para	 o	 indivíduo	 com
tendências	 antissociais	 que,	 antes	 de	 praticar	 uma	 conduta	 criminosa	 sopesaria	 racionalmente	 as
vantagens	 esperadas,	 frente	 ao	 risco	 de	 ser	 punido.	 A	 teoria	 de	 Feuerbach	 foi	 contestada	 pelo	 seu
contemporâneo	Beccaria,	para	quem	a	prática	criminosa	não	é	desestimulada	pela	gravidade	da	pena,
mas	 pela	 certeza	 ou	 probabilidade	 da	 punição	 (CIRINO	 DOS	 SANTOS,	 2013c,	 p.	 6).	 Mais
contemporaneamente,	Gary	S.	Becker,	economista	e	ganhador	do	prêmio	Nobel	em	1992,	dedicou-se,
entre	outros	assuntos,	ao	cálculo	dos	benefícios	de	uma	ação	criminosa,	tendo	em	conta	a	probabilidade
de	 alguém	 ser	 identificado	 e	 punido	 (análise	 econômica	 do	 delito).	 Assim,	 segundo	 o	 professor
americano,	em	países	onde	a	punição	é	falha,	faria	mais	sentido	optar-se	pelo	crime.
28	Por	exemplo:	homicídio	(“art.	121	do	Código	Penal:	Matar	alguém:	Pena	-	reclusão,	de	seis	a	vinte
anos”;	corrupção	passiva	(art.	317),	“Pena	—	reclusão,	de	2	(dois)	a	12	(doze)	anos,	e	multa.”,	etc.
29	Na	sua	clássica	obra	Dos	delitos	e	das	penas	,	tão	jurídica	quanto	filosófica,	e	marcante	para	o	direito
penal,	o	autor	observa:	“Não	é	o	 rigor	do	suplício	que	previne	os	crimes	com	mais	segurança,	mas	a
certeza	do	castigo,	o	zelo	vigilante	do	magistrado	e	essa	severidade	inflexível	que	só	é	uma	virtude	no
juiz	quando	as	leis	são	brandas.	A	perspectiva	de	um	castigo	moderado,	mas	inevitável	causará	sempre
uma	 forte	 impressão	mais	 forte	 do	 que	 o	 vago	 temor	 de	 um	 suplício	 terrível,	 em	 relação	 ao	 qual	 se
apresenta	alguma	esperança	de	impunidade”	(BECCARIA,	1764,	p.	113).
Aduz	 ainda	 o	 fidalgo	 a	 necessidade	 de	 observância	 da	 proporcionalidade	 da	 pena,	 para	 que	 não
constitua	 uma	 agressão:	 “É	que,	 para	 não	 ser	 um	 ato	 de	 violência	 contra	 o	 cidadão,	 a	 pena	 deve	 ser
essencialmente	 pública,	 pronta,	 necessária,	 a	 menor	 das	 penas	 aplicáveis	 nas	 circunstâncias	 dadas,
proporcionada	ao	delito	e	determinada	pela	lei.”	(BECCARIA,	1764,	p.	201)
30	 O	 penalista	 alemão	 apresentou	 esta	 teoria	 em	 2004,	 no	 clássico	 artigo	 Bürgerstrafrecht	 und
Feindstrafrecht	(direito	penal	do	cidadão	e	direito	penal	do	 inimigo).	Disponível	 em:	http://www.hrr-
strafrecht.de/hrr/archiv/04-03/index.php3?seite=6	.	Acesso	em:	5	jan.	14.
31	Jackobs	não	pressupõe	que	os	cidadãos	não	cometam	crimes.	Entretanto,	explica	Juarez	Cirino	dos
Santos	 (2012a,	 p.	 5),	 o	 cidadão	 seria	 autor	 de	 crimes	 “normais”	 e	 preservariam	 uma	 atitude	 de
fidelidade	jurídica	intrínseca,	sendo	capazes	de	manter	as	expectativas	normativas	da	comunidade	sem
desafiar	o	sistema	social.	Já	o	inimigo	seria	autor	de	“crimes	de	alta	traição”,	que	assume	uma	atitude	de
insubordinação	jurídica	intrínseca,	capaz	de	produzir	um	estado	de	guerra	contra	a	sociedade	e	perderia
a	qualidade	de	pessoa	portadora	de	direitos,	porque	desafia	o	sistema	social.
32	A	 tese	 apontada	 pelo	 autor	 corresponde	 à	 da	 criminologia	 crítica,	 detalhada	 na	 seção	 4.4,	 a	 qual
denuncia	o	fracasso	histórico	do	sistema	penal	no	cumprimento	dos	seus	objetivos	ideológicos	(funções
aparentes	 ou	 declaradas)	 e	 identifica	 o	 êxito	 histórico	 do	 sistema	 punitivo	 no	 cumprimento	 dos	 seus
objetivos	 reais	 (funções	 ocultas),	 na	 medida	 em	 que	 funciona	 como	 aparelho	 de	 garantia	 e	 de
reprodução	do	poder	social	(CIRINO	DOS	SANTOS,	2005b,	p.	5).
33	Há	algumas	iniciativas	que	visam	estimular	a	comunicação	de	crimes	que	são	dignas	de	nota,	como
o	registro	de	boletins	de	ocorrência	via	internet,	para	crimes	cometidos	sem	violência,	como	é	feito	no
Distrito	Federal.	Túlio	Kahn	observa	que	“este	tipo	de	informação	é	fundamental	para	o	mapeamento	do
crime	e	a	melhoria	da	eficiência	do	trabalho	policial”	(KAHN,	2012,	p.	88).
34	Dados	 divulgados	 na	 publicação	 “Ministério	 Público	—	Um	Retrato”	 que	 apresenta	 informações
relativas	ao	ano	de	2012,	enviadas	por	todas	as	unidades	dos	Ministérios	Públicos	ao	CNMP	até	31	de
março	 de	 2013.	 Disponível	 em:
http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Noticias/2013/Arquivos/ANUARIO_UM_RETRATO_Completo_Final_17_06_2013.pdf
.	Acesso	em:	31	dez.	13.
35	No	tocante	à	morosidade,	Sousa	Santos	relata	que,	muitas	vezes,	é	difícil	definir	as	fronteiras	entre	o
que	é	negligência	e	o	que	é	a	duração	dos	processos	 resultantes	de	outras	causas,	como	o	volume	de
trabalho	e	a	acumulação	de	processos.	Neste	rumo,	o	professor	da	Universidade	de	Coimbra	identificou
dois	tipos	de	morosidades	sistêmicas:	a	endógena	ao	sistema	e	a	funcional	(que	serviria	os	interesses	de
ambas	ou	de	uma	das	partes	implicadas).	A	primeira	delas	seria	inerente	ao	próprio	sistema	processual	e
seria	devida	à	necessidade	de	existirem	prazos	para	que	as	partes	possam	exercer	ponderadamente	os
seus	 direitos	 processuais	 com	observância	 do	 contraditório,	 para	 que	 os	magistrados	 possam	proferir
suas	decisões	com	reflexão	e	para	que	os	 funcionários	possam	cumprir,	 sem	atropelos,	as	 tarefas	que
lhes	são	confiadas.	Já	a	segunda	(morosidade	funcional)	radica	no	funcionamento	obsoleto	dos	serviços
dos	 tribunais,	 como	 o	mau	 aproveitamento	 (ou	 carência)	 dos	 recursos	 humanos;	 a	 não	 utilização	 de
meios	materiais	que	permitiriam	uma	maior	rentabilização	daqueles	ou,	ainda,	a	rotina	há	muitos	anos
neles	instalada	(SOUSA	SANTOS,	1996,	p.	431).
36	O	termo	“política	penal”	é	empregado	no	sentido	dado	por	Alessandro	Baratta	 (2002,	p.	201),	ou
seja,	de	“resposta	à	questão	criminal	circunscrita	ao	âmbito	do	exercício	da	função	punitiva	do	Estado”.
Difere	de	“política	criminal”,	mais	genérico,	para	 se	 referir	 ao	“programa	do	Estado	para	controlar	 a
criminalidade”	(CIRINO	DOS	SANTOS,	2013b,	p.	1).
37	Observa	Seffair	(2013,	p.	2)	que	a	violência	sempre	foi	uma	preocupação	dos	indivíduos	e	gera	uma
demanda	da	sociedade	por	medidas	intensivas	de	segurança	pública.	Não	existe	plataforma	de	governo
que	não	contemple	ações	no	âmbito	da	segurança,	sendo	um	dos	mais	relevantes	elementos	de	prestação
de	serviços	públicos	 realizados	pelo	Estado,	confundindo-se	até	mesmo	com	a	 justificação	da	própria
existência	deste.
Historicamente,	no	Brasil,	as	políticas	públicas	de	segurança	estiveram	voltadas	para	a	repressão,	como
a	 compra	 de	 armas,	 viaturas,	 construção	 de	 presídios	 etc.	 As	 ações	 de	 segurança	 pública	 eram
associadas	à	atuação	da	polícia	e	 se	 restringiam	à	contenção	 social	 e	 ao	uso	da	 força.	Como	observa
Souza	(2011,	p.	1),	nas	 lacunas	deixadas	pela	ausência	de	políticas	de	segurança	mais	completas,	que
promovessem	a	cidadania,	o	protagonismo	coube	às	corporações	policiais	livres	para	decidir	sua	forma
de	atuação.	Em	segundo	plano,	houve	ações	como	investimento	no	treinamento	policial,	desarmamento
da	população	em	geral	e	controle	de	armas,	amadurecimento	de	programas	de	proteção	a	testemunhas,
melhorias	 no	 sistema	 prisional,	 reforma	 na	 legislação	 penal,	 controle	 de	 venda	 e	 uso	 de	 bebidas
alcoólicas,	etc.	(LIMA,	2010,	p.	1).
Ainda	segundo	o	autor	(SEFFAIR,	2013,	p.	5),	o	Brasil	tem	sido	prodigioso	em	converter	programas	de
segurança	 pública	 em	 meios	 de	 promoção	 publicitária	 de	 governos.	 Findos	 estes,	 as	 estratégias	 de
segurança	são	abandonadas,	pois	o	próximo	governante	não	quer	conviver	com	a	herança	política	do
antecessor,	 restando	 ao	 Ministério	 Público	 e	 ao	 Judiciário	 arrumar	 um	 meiode	 atuar	 diante	 de
“resíduos”,	como	o	número	elevado	de	processos	e	o	aprofundamento	da	complexidade	da	violência.
38	A	esse	respeito,	observa	Gary	LaFree	(2002,	p.	879)	que,	mesmo	nos	Estados	Unidos,	que	possuem
o	sistema	mais	austero	e	punitivo	do	mundo,	muitos	americanos	—	entre	eles	políticos	e	notoriedades
da	mídia	—	afirmam	que	a	maioria	dos	“criminosos”	recebem	apenas	um	“tapinha	na	mão”	(	a	slap	on
the	wrist	 ).	 No	 Canadá	 e	 nos	 Estados	 Unidos,	 para	 se	 ganhar	 a	 aprovação	 dos	 eleitores,	 a	 fórmula
eleitoreira	 encontrada	 pelos	 políticos	 foi	 propor	 reduções	 bruscas	 no	 orçamento	 do	 governo,	 mas
aumentos	significativos	nos	gastos	com	policiamento	e	prisões.
39	No	Brasil,	o	esforço	mais	conhecido	pela	aprovação	da	redução	da	maioridade	penal	de	dezoito	para
dezesseis	 anos	 foi	 o	 de	Ari	 Friedenbach,	 pai	 de	Liana	Friedenbach,	 estuprada,	 torturada	 e	morta	 aos
dezesseis	anos	de	idade,	juntamente	com	seu	namorado	Felipe	Caffé	(dezenove	anos)	por	um	imputável
e	um	menor	de	idade,	conhecido	como	“Champinha”.	Com	a	causa	da	redução	da	maioridade	penal,	Ari
foi	eleito	vereador	em	2012	em	São	Paulo.	Atualmente,	afirma	ser	contra	a	proposta.
40	Segundo	o	criminólogo	espanhol,	“o	maior	problema	da	justiça	criminal	brasileira	não	é	a	ausência
de	 leis	 duras	 (já	 as	 temos),	 mas	 o	 não	 cumprimento	 das	 leis	 vigentes”	 (GARCÍA-PABLOS	 DE
MOLINA;	GOMES,	2012,	p.	489).
41	Em	junho	de	1992,	a	jovem	Kimber	Reynolds,	de	dezoito	anos,	foi	abordada	por	dois	homens	ao	sair
de	um	restaurante	local.	Os	autores,	ao	lhe	tomarem	a	bolsa,	efetuaram,	com	uma	pistola	357	magnum,
um	 disparo	 na	 sua	 cabeça.	 A	 jovem	 morreu	 26	 horas	 depois	 do	 ataque.	 Seu	 pai,	 Mike	 Reynolds,
prometeu	“que	faria	qualquer	coisa	para	evitar	que	isso	acontecesse	a	outras	crianças”	(“I	promised	her
that	if	I	could	do	anything	to	prevent	this	from	happening	to	other	kids,	I	would	do	everything	I	could”).
Os	responsáveis	pela	morte	dela	eram	reincidentes,	o	que	motivou	Mike	Reynolds	a	encabeçar	a	jornada
pela	aprovação	da	three	strikes	law	.	A	campanha	ganhou	reforço	dezoito	meses	após	a	morte	de	Kimber
Reynolds,	 quando	 a	 adolescente	 Polly	 Klaas,	 de	 doze	 anos	 de	 idade,	 foi	 sequestrada,	 estuprada	 e
assassinada	por	Richard	Allen	Davis,	também	reincidente	(HEYER,	2011,	p.	1220-1221).
Consoante	David	Greenberg	(2004,	p.	243),	professor	de	sociologia	da	universidade	de	Nova	Iorque,	a
austera	lei	norte-americana	three	strikes	and	you	are	out	ganhou	o	apoio	de	muitos	grupos	de	interesses
e,	 em	 especial,	 de	 um	 governador	 impopular,	 Pete	 Wilson,	 que	 a	 usou	 buscando	 revitalizar	 sua
campanha.	Segundo	Gary	LaFree	(2002,	p.	877),	professor	do	departamento	de	criminologia	e	 justiça
criminal	 da	 universidade	 de	 Maryland,	 estas	 leis	 populistas	 podem	 causar	 punição	 excessiva	 e
dificuldades	de	controle	pelo	Estado.
42	Ofensor	reincidente	ou	“criminoso	habitual”	(	persistent	ofender	),	como	a	ele	se	refere	a	legislação
de	alguns	estados	(especialmente	Connecticut	e	Kansas).
43	Os	 crimes	 violentos	 e	 graves	 são	 arrolados	 nas	 leis	 estaduais	 americanas	 e	 geralmente	 incluem
homicídio	 doloso	 (murder	 ),	 roubo	 com	 emprego	 de	 arma,	 estupro	 e	 outros	 crimes	 sexuais,	 roubo	 a
residência	 (	burglary	 )	 e	 agressão	 com	 a	 intenção	 de	 cometer	 um	 roubo	 ou	 assassinato	 (	 assault	 )
(HEYER,	2011,	p.	1232).
44	A	primeira	three	strikes	law	foi	aprovada	em	1993,	em	Washington.	Na	Califórnia,	a	lei	decorreu	de
iniciativa	popular	e	foi	aprovada	por	uma	maioria	de	72%	de	votos	a	favor	e	28%	contra.	Massachusetts
foi	 o	 último	 estado	 a	 aprovar	 a	 three	 strikes	 law	 ,	 acompanhando	 Arizona,	 Arkansas,	 California,
Colorado,	 Connecticut,	 Florida,	 Georgia,	 Indiana,	 Kansas,	 Louisiana,	 Maryland,	 Massachusetts,
Montana,	 Nevada,	 New	 Hampshire,	 New	 Jersey,	 New	 Mexico,	 North	 Carolina,	 North	 Dakota,
Pennsylvania,	 South	 Carolina,	 Tennessee,	 Texas,	 Utah,	 Vermont,	 Virginia,	Washington	 e	Wisconsin.
Alguns	destes	aplicam	a	lei	já	para	o	segundo	crime	violento.	New	Hampshire	é	o	que	aplica	a	lei	de
forma	 mais	 branda,	 com	 pena	 máxima	 de	 prisão	 de	 30	 anos	 para	 a	 terceira	 condenação	 criminal
(LAMANCE,	2013,	p.	1).
45	O	propósito	 inicial	 era	 aplicar	 a	 lei	 apenas	 para	 crimes	 violentos.	 Entretanto,	 há	 estados	 como	 a
Califórnia	 em	 que	 não	 se	 exigia	 que	 o	 terceiro	 strike	 fosse	 grave	 ou	 violento,	 fazendo	 com	 que	 as
pessoas	fossem	encaminhadas	à	prisão	perpétua	por	sanções	menores,	inclusive	contravenções	penais	(
misdemeanor	 ).	 É	 o	 caso	 de	 subtração	 de	 valores	 inferiores	 a	 quatrocentos	 dólares	 em	 propriedades,
como	o	furto	de	três	tacos	de	golfe	de	uma	loja	(Ewing	x	Califórnia	538	U.S.	11,	2003)	ou	o	furto	de
uma	fatia	de	pizza	de	pepperoni	de	um	grupo	de	crianças	(People	v	Williams,	Cr	No.	YA	020612-01.).
Ambos	 os	 autores	 ostentavam	 condenações	 anteriores	 por	 roubo,	mesmo	 já	 tendo	 cumprido	 pena	 de
prisão	 por	 elas.	 Casos	 disponíveis	 em:	 http://supreme.justia.com/cases/federal/us/538/11/case.html	 e
http://www.threestrikes.org/calaw01.html	.	Acesso	em:	1º	out.	13.
46	A	Califórnia	 tem	mais	 crimes	 que	 se	 enquadram	na	 categoria	 de	 “graves”	 ou	 “violentos”	 do	 que
outros	estados.	Computam-se	no	número	de	três	faltas	os	delitos	cometidos	durante	a	menoridade	penal.
A	lei	californiana	também	não	leva	em	conta	o	tempo	decorrido	entre	os	crimes,	de	forma	que	os	crimes
anteriores	são	incluídos	na	contagem,	mesmo	se	praticados	muitos	anos	antes.	Por	fim,	o	estado	lidera	o
ranking	nacional	de	sentenças	sob	a	lei	three	strikes	,	com	mais	de	90%	de	todas	as	sentenças	impostas.
47	O	 aspecto	 sintomático	 desta	 situação	 foi	 a	 redução	 significativa	 do	 número	 de	 encarcerados	 em
virtude	da	 three	 strikes	 law	 nos	EUA.	A	depender	 do	 ponto	 de	 vista,	 a	 lei	 pode	 ser	 considerada	 um
sucesso	ou	um	fracasso.	Apenas	no	ano	de	1996,	1.700	sentenças	de	prisão	perpétua	foram	impostas	nos
58	condados	da	Califórnia,	com	base	na	lei	three	strikes	.	Entre	2008-2010,	esse	número	caiu	para	menos
de	200	por	ano.	No	condado	de	Sacramento,	foram	94	sentenças	no	ano	de	1996.	Este	número	caiu	para
16	em	2010.	Para	o	procurador	(	district	attorney)	de	Sacramento,	Jan	Scully,	a	razão	da	queda	nestes
números	não	é	o	reconhecimento	paulatino	do	fracasso	da	lei,	mas	o	contrário,	o	seu	sucesso	absoluto,
já	 que	 todos	 os	 ofensores	 reincidentes	 se	 encontrariam	 encarcerados	 (no	 original:	 “not	 just	 in
Sacramento	 but	 across	 the	 state,	we’ve	 put	 away	 people	 on	 three	 strikes	 and	 they	 aren’t	 now	 in	 our
communities”.	 Informação	 disponível	 em:
http://ballotpedia.org/wiki/index.php/California_Proposition_184,_the_Three_Strikes_Initiative_(1994)
.	Acesso	em:	2	out.	13.
48	Disponível	 em:	http://portal.mj.gov.br/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?
DocumentID={BFF5E35A-C0E2-4F02-BEF9-92DC225F5998}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-
420B-9F76-15A4137F1CCD}	.	Acesso	em:	4	fev.	13.
49	 Disponível	 em:	 http://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total?
field_region_taxonomy_tid=All&=Apply.	Acesso	em:	10	ago.	14.
50	 Fonte:	 CIA	 —	 Central	 Intelligence	 Agency.	 The	 world	 factbook	 .	 Disponível	 em:
https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/	.	Acesso	em:	10	ago.	14.
No	caso	brasileiro,	consideramos	a	população	carcerária	e	a	total	referentes	ao	ano	de	2010,	consoante
os	 dados	 fornecidos	 pelo	 INFOPen	 e	 IBGE	 para	 este	 ano.	 Disponíveis	 em:	 InfoPen:
http://portal.mj.gov.br/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID=
{9388597E-6809-4EF0-AAF6-D328D8E3B388}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-420B-9F76-
15A4137F1CCD}	e	IBGE:	http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm	.
Acesso	em:	15	fev.	13.
51	Idem,	ibidem.
52	Fonte:
http://siteresources.worldbank.org/INTLAC/Resources/FINAL_VOLUME_I_SPANISH_CrimeAndViolence.pdf
53	Constatações	como	estas	motivaram,no	ano	de	2012,	a	aprovação	da	“Proposição	36”	pelos	eleitores
californianos,	que	instituiu	uma	série	de	temperamentos	ao	rigor	da	lei	three	strikes	:	imposição	da	pena
de	prisão	perpétua	 somente	quando	 a	nova	 condenação	 criminal	 for	 “grave	ou	violenta”;	 revisão	das
sentenças	de	prisão	perpétua	anteriormente	aplicadas	fora	deste	critério	(que	beneficiou	cerca	de	3.000
condenados,	cuja	terceira	falta	era	um	crime	não-violento)	e	a	substituição	da	pena	de	vinte	e	cinco	anos
de	 prisão	 ou	 prisão	 perpétua	 por	 tratamento,	 para	 o	 caso	 de	 reiteração	 de	 posse	 de	 drogas	 para	 uso
próprio.	 (Informação	 disponível	 no	 guia	 de	 informação	 oficial	 ao	 eleitor	 do	 governo	 californiano:
http://voterguide.sos.ca.gov/propositions/36/.	Acesso	em:	2	out.	13).
54	São	eles,	 por	 exemplo:	guerrilha	 colombiana	 (1964-2000;	45.000	mortes);	 disputa	 territorial	 entre
Armênia	 e	 Azerbaijão	 (1988-1994,	 30.000	 mortes);	 guerra	 civil	 na	 Nicarágua	 (1972-1979,	 30.000
mortes);	guerra	do	Golfo	 (1990-1991,	10.000	mortes);	guerra	civil	 em	Sri	Lanka	 (1978-2000,	50.000
mortes);	 o	 movimento	 emancipatório/étnico	 da	 Chechênia	 (1994-1996,	 50.000	 mortes)	 entre	 outros.
Fonte:	 UNESCO.	 Mortes	 matadas	 por	 arma	 de	 fogo	 no	 Brasil	 1979-2003,	 p.	 19.	 Disponível	 em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001399/139949por.pdf	.	Acesso	em:	4	fev	13.
55	Obviamente,	muitas	destas	se	referem	a	um	mesmo	ofensor,	contra	o	qual	pode	haver	várias	ordens
de	captura.	Além	disso,	é	possível	que	muitas	delas	não	estejam	mais	válidas,	pela	prescrição	da	pena
ou	 pela	morte	 do	 acusado,	 por	 exemplo.	Dessa	 forma,	 não	 é	 possível	 saber	 com	 exatidão	 a	 quantos
ofensores	se	refere	esta	quantidade	de	mandados.
56	Disponível	em:	http://www.cnj.jus.br/bnmp/	.	Acesso:	em	10	ago.	2014.
57	Maria	 Lúcia	 Karam	 (2004,	 p.	 91)	 acrescenta	 que	 a	 ineficácia	 operacional	 do	 sistema	 penal
demonstrada	pelos	números	citados	é	intencional.	Segundo	ela,	a	excepcionalidade	de	sua	intervenção	é
condição	de	sua	própria	existência.	A	impunidade	não	ocorreria	apenas	por	questões	conjunturais	ou	por
deficiências	operacionais.	A	ideia	é	fazer	com	que	as	condenações	dos	identificados	como	“criminosos”,
diante	do	“grande	número	de	crimes	que	diuturnamente	ocorrem”,	sejam	cumpridas	com	maior	 rigor.
Destarte,	 o	 objetivo	 do	 sistema	 não	 seria	 alcançar	 todos	 os	 responsáveis	 pela	 prática	 das	 condutas
criminalizadas,	mas	atuar	excepcionalmente	e	com	rigor	sobre	os	selecionados.
CAPÍTULO	II
OS	DEPÓSITOS	DE	PRESOS	
COMO	FATOR	CRIMINÓGENO	
A	MORTE	DOS	IDEAIS	DE	“RESSOCIALIZAÇÃO”?
Observa	 Lola	 Aniyar	 de	 Castro	 (1983,	 p.	 187)	 que	 a	 pena	 privativa	 de
liberdade	 substituiu	 as	 penas	 corporais	 e	 capitais	 e,	 no	 lugar	 de	 suplícios,
surgiram	 as	 casas	 de	 correção	 e	 detenção.	 Supostamente,	 a	 humanidade
deveria	 substituir	 a	 crueldade	 das	 penas,	 mas	 não	 é	 o	 que	 ocorre	 dadas	 as
condições	 de	 acondicionamento	 dos	 presos	 58	 .	 Sobre	 estas	 condições,
emblemática	 exposição	 de	 motivos	 do	 relatório	 final	 da	 CPI	 do	 Sistema
Carcerário,	na	qual	relata	as	razões	para	a	sua	criação:
As	constantes	rebeliões,	a	violência	entre	encarcerados,	com	corpos	mutilados;	os	óbitos
não	 explicados	 no	 interior	 dos	 estabelecimentos;	 denúncias	 de	 torturas	 e	 maus-tratos;
presas	vítimas	de	abusos	sexuais;	crianças	encarceradas;	corrupção	de	agentes	públicos;
superlotação;	 reincidência	 elevada;	 organizações	 criminosas	 controlando	 a	 massa
carcerária;	 custos	 elevados	 de	 manutenção	 de	 presos;	 falta	 de	 assistência	 jurídica	 e
descumprimento	 da	 Lei	 de	 Execução	 Penal	 motivaram	 o	 Deputado	 Domingos	 Dutra	 a
requerer	a	criação	da	CPI	sobre	o	sistema	carcerário	brasileiro	(BRASIL,	2009,	p.	41).
A	realidade	prisional	do	Brasil	viola	frontalmente	a	normativa	internacional,
tornando	 quimérica	 a	 sua	 aplicação	 prática.	 As	 “Regras	Mínimas	 da	 ONU
para	 o	 Tratamento	 de	 Prisioneiros”	 (ONU,	 1955)	 prescrevem	 exigências
mínimas	 para	 um	 tratamento	 digno	 dos	 presos	 e	 para	 os	 locais	 a	 eles
destinados.	 Entre	 elas,	 está	 a	 exigência	 de	 que	 satisfaçam	 as	 condições	 de
higiene,	o	volume	de	ar,	o	espaço	mínimo,	a	 iluminação,	o	aquecimento	e	a
ventilação;	que	as	 janelas	sejam	suficientemente	grandes	para	que	os	presos
possam	 ler	 e	 trabalhar	 com	 luz	 natural	 e	 ar	 fresco;	 que	 a	 luz	 artificial	 seja
suficiente	para	os	presos	poderem	ler	ou	trabalhar	sem	prejudicar	a	visão;	que
todos	 os	 locais	 sejam	 mantidos	 e	 conservados	 escrupulosamente	 limpos
(ONU,	1955).
No	 Brasil,	 essas	 condições	 estão	 longe	 de	 serem	 cumpridas.	 A	 Comissão
Parlamentar	 de	 Inquérito	 do	 Sistema	 Carcerário	 identificou	 numa
penitenciária	no	Piauí	a	seguinte	situação:	“além	de	paredes	encardidas	pela
sujeira	e	pelo	tempo,	não	havia	luz	nos	corredores	e	nas	celas.	Quando	a	CPI
retornou	 no	meio	 da	 noite,	 para	 refazer	 a	 diligência,	 os	 Deputados	 usaram
lanternas	e	isqueiros	para	iluminar	o	local”	(BRASIL,	2009,	p.	269).	Em	São
Paulo,	 a	 CPI	 encontrou	 numa	 cela	 do	 “castigo”,	 no	 Centro	 de	 Detenção
Provisória	 de	Pinheiros,	 dez	 homens	 que	 esperavam	 transferência.	No	 local
não	havia	nem	entrada	de	ar	nem	de	luz,	e	eles	informaram	à	CPI	que	estavam
há	mais	de	sessenta	dias	sem	banho-de-sol	(BRASIL,	2009,	p.	269).
A	 normativa	 da	 ONU	 sobre	 o	 tratamento	 de	 prisioneiros	 (ONU,	 1955)
determina	 também	 que	 sejam	 postos	 à	 disposição	 dos	 presos	 meios	 para
cuidarem	 do	 cabelo	 e	 da	 barba,	 a	 fim	 de	 que	 conservem	 o	 respeito	 por	 si
mesmos;	 que	 cada	 preso	 disponha	 de	 uma	 cama	 individual	 e	 de	 roupa	 de
cama	 suficiente	 e	 própria,	 trocada	 com	 frequência.	 Contrastando	 com	 esta
prescrição,	na	cidade	de	Formosa,	Estado	de	Goiás,	a	CPI	identificou	na	cela
da	Cadeia	Pública	local	setenta	homens	e	apenas	um	banheiro,	nas	seguintes
condições:
Na	verdade,	um	buraco	no	chão,	chamado	de	“banheiro”.	Na	hora	do	“aperto”,	quando	a
privada	está	ocupada,	o	jeito	é	improvisar.	Num	cantinho	da	cela,	há	várias	garrafas	PET
de	dois	litros.	É	nelas	que	os	detentos	urinam,	porque	nem	sempre	dá	para	esperar	que	o
banheiro	seja	desocupado.	Há	ainda	o	banheiro	“vitrine”,	onde	os	presos	são	obrigados	a
fazer	 suas	 necessidades	 na	 frente	 de	 todos	 os	 companheiros	 e	 também	à	 vista	 de	 quem
estiver	passando	no	corredor,	pois,	através	das	grades,	podem	ser	observados	urinando	ou
defecando.	 É	 que	 a	 cela,	 de	 5x5,	 abriga	 quase	 setenta	 homens.	 Dentro	 dela	 havia	 um
banheiro	 e,	 para	 que	 coubessem	 mais	 homens	 (que	 dormem	 no	 chão),	 as	 paredes	 do
banheiro	 foram	derrubadas	 e	 a	 privada	 ficou	 no	meio	 da	 cela,	 à	mostra,	 obrigando	 os
apenados	 a	 passar	 pelo	 vexame	 de	 ficarem	 como	 numa	 vitrine,	 enquanto	 usam	 o
“banheiro”.	 […]	 depois	 de	 usar	 as	 privadas,	 os	 detentos	 não	 têm	 água	 para	 lavar	 as
mãos,	nem	sequer	para	jogar	água	na	privada,	porque	em	muitos	presídios	só	é	permitido
jogar	água	uma	vez	por	dia,	independentemente	de	quantas	pessoas	e	de	quantas	vezes	a
privada	foi	usada.	[…]	(BRASIL,	2009,	p.	191	e	196).
Já	na	Colônia	Agrícola	de	Campo	Grande	(MS),	unidade	prisional	de	regime
semi-aberto,	 a	CPI	 verificou	 que	 uma	 parte	 dos	 presos	 dormia	 em	barracas
improvisadas	 e	 outros	 presos	 compartilhavam	 com	 porcos	 a	 pocilga
(BRASIL,	2009,	p.	191	e	196).
As	 “Regras	Mínimas”	 (ONU,	 1955)	 prescrevem	 ainda	 que	 a	 administração
penitenciária	 forneça	 a	 cada	 preso	 uma	 alimentação	 de	 boa	 qualidade,	 bem
preparada,	 bem	 e	 servida	 e	 com	 valor	 nutritivo;	 que	 todo	 preso	 tenha	 ao
menos	 uma	 hora	 por	 dia	 para	 fazer	 exercícios	 apropriados	 ao	 ar	 livre	 —
apenas	 para	 citar	 algumas	 delas.	 Entretanto,	 em	 relação	 à	 alimentação	 e
ingestão	líquida,	a	CPI	do	sistema	carcerário	encontrou	essa	situação:
Em	muitos	estabelecimentos,	os	presos	bebem	em	canos	improvisados,	sujos,	por	onde	a
água	 escorre.	 Em	 outros,os	 presos	 armazenam	 água	 em	 garrafas	 de	 refrigerantes,	 em
face	 da	 falta	 constante	 do	 líquido	 precioso.	 Em	 vários	 presídios,	 presos	 em	 celas
superlotadas	 passam	 dias	 sem	 tomar	 banho	 por	 falta	 de	 água.	 […]	No	 Instituto	 Penal
Paulo	 Sarasate,	 no	 Ceará,	 a	 comida	 dos	 presos	 é	 fornecida	 em	 sacos	 plásticos	 e	 os
detentos	usam	as	mãos,	porque	a	direção	do	presídio	não	fornece	talheres.	[…]	Denúncias
de	cabelos,	baratas	e	objetos	estranhos	misturados	na	comida	foram	constantes.	Comida
azeda,	 estragada	 ou	 podre	 também	 foi	 denunciada.	 […]	 A	 pouca	 quantidade	 e	 a	 má
qualidade	da	comida	servida	não	condizem	com	os	preços	exorbitantes	que	o	contribuinte
paga	—	em	média	R$	10,00	—	por	preso.	Nas	diligências	realizadas,	a	CPI	verificou	que
a	 quantidade,	 a	 qualidade	 e	 a	 variedade	 da	 alimentação	 servida	 aos	 presos	 não	 valem
mais	do	que	R$	3,00	(três	reais)	por	preso	ao	dia	(BRASIL,	2009,	p.	195-200).
No	 tocante	 ao	 atendimento	 à	 saúde	 do	 preso,	 informa	 o	 relatório	 da	CPI	 o
seguinte	episódio,	ocorrido	entre	um	detento	e	um	parlamentar	da	Comissão:
—	‘Quanto	tempo	você	está	assim?’
—	‘Quatro	anos.’
O	 jovem,	no	presídio	Vicente	Piragibe,	 localizado	na	cidade	do	Rio	de	Janeiro,	carrega
uma	 bolsa	 de	 colostomia.	 Tem	 que	 fazer	 cirurgia,	 mas	 como	 para	 a	 administração	 é
apenas	mais	um	preso,	está	lá,	carregando	a	bolsa,	numa	visão	impressionante.	A	mesma
situação	 foi	 encontrada	 em	 outras	 cadeias,	 como	 em	Franco	 da	Rocha,	 em	 São	Paulo,
onde	o	preso	também	tinha	a	bolsa	pendurada	na	barriga	e	já	estava	assim	há	três	anos.
[…]	 Em	 Porto	 Velho,	 o	 preso	 esperou	 tanto	 tempo	 pelo	 atendimento,	 que	 a	 gangrena
avançou	 demais.	 Depois	 de	 meses	 lutando	 e	 chorando	 por	 atendimento,	 foi	 levado	 ao
hospital,	 onde	 recebeu	 a	 notícia	 de	 que	 teria	 que	 amputar	 o	 pé.	Mas	 não	 havia	 vagas,
então,	para	tratar	de	um	detento	e	fazer	a	cirurgia.	Ele	foi	mandado	de	volta	ao	presídio,
para	 aguardar	 até	 o	 dia	 em	 que	 surgisse	 uma	 possibilidade	 de	 cirurgia.	 O	 preso,	 um
homem	de	mais	de	60	anos,	com	o	pé	erguido	para	o	alto,	tinha	uma	visível	expressão	de
dor	e	sofrimento.	No	Centro	de	Detenção	Provisória,	em	Pinheiros,	a	CPI	encontrou	um
homem	com	um	enorme	 tumor	no	pescoço.	Ele	reclamava	de	dor	e	disse	que,	embora	o
caroço	já	tivesse	feito	dois	aniversários,	nenhum	médico	o	havia	atendido	ainda	(BRASIL,
2009,	p.	203).
As	 consequências	 práticas	 da	 realidade	 contrária	 à	 normativa	 internacional
sobre	a	pessoa	do	preso	são	abordadas	neste	capítulo.
2.1	A	prisão	como	fator	criminógeno
Há	muito	filósofos	como	Foucault,	Bentham	ou	Goffman	advertiam	que	este
fracasso	 da	 prisão	 não	 é	 ocasional,	 afinal,	 seus	 objetivos	 são	 distintos	 dos
declarados,	 e	 na	 realidade	 seriam	 o	 de	 controlar,	 disciplinar,	 selecionar	 e
degradar.
Foucault	 (2008,	p.	183-184)	aponta	a	origem	do	cárcere	como	a	mesma	das
outras	instituições	(exército,	escola,	hospital,	fábrica).	O	núcleo	de	todas	elas
é	 a	 disciplina.	 O	 professor	 do	 Collège	 de	 France	 demonstra	 como	 a
regulamentação	 dos	 exércitos,	 das	 instituições	 educacionais,	 dos	 cárceres,
hospitais	e	oficinas	perseguem	uma	ideia	construtiva,	arquitetônica,	do	corpo
(economia	 política	 do	 corpo),	 acostumando-o	 a	 determinados	 movimentos,
repetitivos	e	 regulares,	de	modo	que	possa	 funcionar	docilmente	como	uma
máquina.	Desta	forma,	a	prisão	é	vista	por	Foucault	como	um	mecanismo	de
transformar	 o	 “criminoso”	 violento,	 agitado,	 impulsivo	 (sujeito	 real)	 em
preso,	 em	 sujeito	 disciplinado,	 mecânico	 (sujeito	 ideal)	 (ANIYAR	 DE
CASTRO,	1983,	p.	191).
Também	 ressaltando	 o	 aspecto	 disciplinar	 da	 prisão,	 escreveu	 Jeremy
Bentham	em	1787	o	 seu	 projeto	 de	panopticum	 (pan	+	opticum	 ),	 em	 uma
série	de	cartas	remetidas	de	Crecheff,	na	Rússia,	a	um	amigo	na	Inglaterra:
O	 panóptico	 ou	 a	 casa	 de	 inspeção:	 contendo	 a	 ideia	 de	 um	 princípio	 de	 construção
aplicável	 a	 qualquer	 sorte	 de	 estabelecimento	 no	 qual	 pessoas	 de	 qualquer	 tipo
necessitem	ser	mantidas	 sob	 inspeção;	e	em	particular,	às	casas	penitenciárias,	prisões,
casas	 de	 indústrias,	 casas	 de	 trabalho;	 casas	 para	 pobres,	 manufaturas,	 hospícios,
lazaretos,	hospitais,	escolas,	com	um	plano	de	administração	(BENTHAM,	1789,	p.	15).
O	 “panopticum”	 seria,	 pois,	 a	 representação	 arquitetônica	 da	 disciplina,
simbolizando	a	possibilidade	de	“ver	sem	ser	visto”	59	.
Erving	Goffman	(1974,	p.	17)	enfatizou	a	rotina	prisional	a	fim	de	demonstrar
a	 incongruência	 entre	 a	 sua	dinâmica	como	 instituição	 totalizadora	 e	 a	vida
extramuros,	 o	 que	 impossibilitaria	 o	 intercâmbio	 social	 do	 preso	 e	 o	 seu
preparo	 para	 o	 retorno	 à	 convivência	 no	mundo	 externo.	De	 acordo	 com	 o
sociólogo	canadense,	enquanto	na	sociedade	atual	o	indivíduo	tende	a	dormir,
brincar	e	 trabalhar	em	diferentes	 lugares	-	com	diversos	coparticipantes,	sob
distintas	autoridades	e	 sem	um	plano	 racional	geral	 -	nas	 instituições	 totais,
todos	 os	 aspectos	 da	 vida	 são	 realizados	 no	mesmo	 local	 e	 sob	 uma	 única
autoridade,	na	companhia	de	um	grupo	de	pessoas	onde	todos	são	tratados	da
mesma	forma	e	obrigados	a	fazer	as	mesmas	coisas	em	conjunto,	em	horários
estabelecidos,	 de	 acordo	 com	 num	 plano	 racional	 único	 planejado	 para
atender	aos	objetivos	oficiais	da	instituição	60	.	Os	internados	vivem	nelas	com
limitado	 contato	 com	 o	mundo	 e	 são	 controlados	 por	 uma	 pequena	 equipe,
que	geralmente	presta	um	serviço	diário	de	oito	horas.
Mais	hodiernamente,	 Juarez	Cirino	dos	Santos	 (2005a,	p.	3)	define	a	prisão
como	“instrumento	de	gestão	diferencial	da	criminalidade”	e	não	de	supressão
desta.	 Haveria,	 portanto,	 uma	 distinção	 entre	 os	 objetivos	 ideológicos	 e	 os
objetivos	 reais	 do	 arranjo	 carcerário:	 os	 imaginados	 seriam	 a	 repressão	 e	 a
redução	 da	 criminalidade,	 enquanto	 os	 factuais	 são	 a	 repressão	 seletiva	 da
criminalidade	e	a	organização	da	“delinquência”.
Para	a	crítica	criminológica,	a	prisão	reproduz	intramuros	a	criminalidade	e	as
injustiças	das	relações	sociais	vigorantes	fora	deles	61	.	O	cárcere	seria	útil	para
a	 produção	 e	 reprodução	 dos	 “delinquentes”	 selecionados	 entre	 as	 camadas
mais	 débeis	 e	 marginais	 da	 sociedade.	 Ele	 representa	 como	 normais	 as
relações	 de	 desigualdade	 existentes	 na	 sociedade	 exterior.	 Como	 acentua
Antonio	Beristain	 (2000,	 p.	 173),	 são	 os	 “pobres	 diabos”,	 “delinquentes	 de
bagatela”,	vítimas	de	nossas	estruturas	sociais	injustas,	que	representam	mais
de	90%	dos	que	vivem	em	nossos	cárceres.	A	violência	estatal,	até	então	vista
como	 inútil,	 seria,	 na	 verdade,	 violência	 útil	 do	 ponto	 de	 vista	 da
autorreprodução	do	sistema	social,	da	manutenção	das	relações	de	produção,
da	defesa	dos	interesses	dos	detentores	do	poder	e	para	a	distribuição	desigual
dos	recursos	(BARATTA,	1987,	p.	628).
Roberto	 Lyra	 destacou	 o	 processo	 de	 degradação	 humana	 e	 assimilação	 de
novas	práticas	criminosas	patrocinados	pela	prisão.	Segundo	ele,	a	prisão
é	a	ruptura,	de	oficio,	do	chamado	contrato	social.	O	preso	passa,	compulsoriamente,	a
vegetar,	noutra	sociedade.	Prisão	é	a	morte	moral,	morte	cívica,	morte	civil,	morte	mesmo
pela	consumição	da	vida	(LYRA,	1971,	p.	108-109).
Este	 jurista	 brasileiro	 destacou	 o	 efeito	 criminógeno	 da	 prisão,	 definindo-a
como	 “escola	 anormal	 de	 periculosidade”,	 um	 “curso	 de	 aperfeiçoamento
celerado	mantido	pelo	Estado”.	Quanto	aos	fins	da	pena,	destacou:
Seja	 qual	 for	 o	 fim	 atribuído	 à	 pena,	 a	 prisão	 é	 contraproducente.	 Nem	 intimida,	 nem
regenera.	Embrutece	 e	perverte.	 Insensibiliza	ou	 revolta.	Descaracteriza	 e	desambienta.
Priva	de	funções.	Inverte	a	natureza.	Gera	cínicos	ou	hipócritas	(LYRA,	1971,	p.	120)
Portanto,	em	que	pesem	as	 funções	declaradas	da	pena	de	prisão	—	seja	do
ponto	de	vista	filosófico,	funcional	ou	utilitário	—,	desde	há	muito,	elas	têmsido	subvertidas	(se	é	que	algum	dia	existiram,	como	denunciam	os	filósofos).
Seja	 com	 propósito	 disciplinar,	 como	 instrumento	 de	 seleção	 ou	 de
gerenciamento	 da	 criminalidade,	 o	 fato	 é	 que	 a	 prisão	 gera	 uma	 paulatina
degradação	 do	 encarcerado,	 com	 efeitos	 criminógenos	 exatamente	 inversos
aos	pretendidos,	dignos	de	serem	esmiuçados.
2.2	A	realidade	carcerária
A	perversidade	no	cumprimento	da	pena	faz	com	que	o	ofensor	se	torne,	em
certo	ponto,	uma	nova	vítima,	pois	se	responde	à	violência	perpetrada	por	ele
com	 outro	 tipo	 de	 violência,	 a	 estatal.	 Isso	 porque,	 a	 pretexto	 de	 combater
violência,	o	direito	penal	acaba	gerando	mais	violência,	nem	sempre	legítima,
mas	 como	 pretexto	 para	 a	 violação	 sistemática	 de	 direitos	 humanos
(QUEIROZ,	2007,	p.	1).	Nas	palavras	de	Louk	Hulsman:
Gostaríamos	 que	 quem	 causou	 um	 dano	 ou	 um	 prejuízo	 sentisse	 remorsos,	 pesar,
compaixão	por	 aquele	 a	 quem	 fez	mal.	Mas	 como	 esperar	 que	 tais	 sentimentos	 possam
nascer	 no	 coração	 de	 um	 homem	 esmagado	 por	 um	 castigo	 desmedido,	 que	 não
compreende,	 que	 não	 aceita	 e	 não	 pode	 assimilar?	Como	 este	 homem	 incompreendido,
desprezado,	 massacrado,	 poderá	 refletir	 sobre	 as	 consequências	 de	 seu	 ato	 na	 vida	 da
pessoa	que	atingiu?	[…]	Para	o	encarcerado,	o	sofrimento	da	prisão	é	o	preço	a	ser	pago
por	 um	 ato	 que	 uma	 justiça	 fria	 colocou	 numa	 balança	 desumana.	 E,	 quando	 sair	 da
prisão,	terá	pago	um	preço	tão	alto	que,	mais	do	que	se	sentir	quite,	muitas	vezes	acabará
por	abrigar	novos	sentimentos	de	ódio	e	agressividade.	[…]	O	sistema	penal	endurece	o
condenado,	 jogando-o	 contra	 a	 ‘ordem	 social’	 na	 qual	 pretende	 reintroduzi-lo,	 fazendo
dele	uma	outra	vítima	(1993,	p.	71-72).
Edmundo	 Oliveira	 (ZAFFARONI;	 OLIVEIRA,	 2010,	 p.	 460)	 cita	 alguns
problemas	 humanos	 do	 recluso:	 insegurança,	 embrutecimento,	 solidão,
ociosidade,	 abandono	 da	 família,	 desajuste	 sexual	 62	 e	 incertezas	 quanto	 ao
futuro	 livre.	 Tais	 sentimentos	 são	 passíveis	 de	 causar-lhe	 a	 chamada
“síndrome	 de	 vitimização	 do	 cárcere”	 a	 qual	 o	 faz	 sentir-se	 “credor”	 da
sociedade	e	livre	para	exercer	a	violência,	devido	às	violações	rotineiras	que
padece	no	cárcere	63	,	violências	que	vão	além	da	privação	da	sua	liberdade:
Uma	vez	conscientizada	a	vitimização,	o	preso	comporta-se	como	possuidor	de	um	imenso
crédito	 em	 relação	 à	 sociedade,	 sentindo-se	 às	 vezes	 com	 poderes	 para	 fazer	 exercitar
seus	direitos	até	com	o	uso	de	violência	 física	por	não	estabelecer	um	 fluxo	de	causa	e
efeito	 entre	 seu	 crime	 e	 a	 perda	 da	 liberdade.	 A	 sensação	 de	 vitimizado	 desmotiva	 a
reabilitação	pessoal.	 […]	No	ambiente	 carcerário	 existe	 todo	um	processo	de	 crescente
redução	do	valor	antiético	do	crime,	sempre	que	se	procura	estabelecer	uma	comparação
com	os	efeitos	da	pena	reclusiva	imposta	ao	condenado.	Para	aquele	que	furtou,	o	direito
de	propriedade	de	sua	vítima	não	se	equipara	com	a	perda	maior	do	valor	da	liberdade.	O
homicida,	 mesmo	 admitindo	 a	 proporcionalidade	 de	 valores,	 diante	 da	 inoperância	 da
execução	 penal,	 adquire	 também	 a	 posição	 de	 vitimizado,	 que	 se	 estereotipa	 em	 suas
atitudes	e	comportamentos.
Aponta	 Edmundo	 Oliveira	 (ZAFFARONI;	 OLIVEIRA,	 2010,	 p.	 464)	 que
vítimas	 e	 ofensores	 possuem,	 de	 fato,	 características	 comuns,	 como	 a
propensão	a	atos	violentos,	a	correr	riscos,	à	desvalorização	da	autoestima,	à
satisfação	 de	 impulsos	 proibidos	 e	 à	 realização	 de	 acidentes.	O	 autor	 relata
que,	 aos	 problemas	 preexistentes	 à	 experiência	 carcerária,	 outros	 tantos	 se
agregam,	 fazendo	 com	 que	 o	 condenado	 se	 embruteça,	 se	 perverta,	 se
insensibilize.	O	seu	sentimento	é	o	de	que	as	autoridades	não	se	preocupam
com	 ele,	 julgando-se	 um	 marginalizado	 social.	 A	 síndrome	 carcerária,	 a
desanimação,	a	revolta,	os	motins	e	as	tentativas	de	fugas	são	decorrentes	da
impossibilidade	de	se	executar	as	condenações	sob	a	égide	da	legalidade	e	da
humanidade.
Lola	 Aniyar	 de	 Castro	 (1983,	 p.	 193)	 explica	 este	 fenômeno	 pelo	 fato	 da
prisão	 não	 ensinar	 ao	 preso	 viver	 fora	 da	 sociedade,	 mas	 criar	 nele	 uma
consciência	 de	 injustiça	 da	 pena	 aplicada	 e	 provocar	 a	 rebelião	 contra	 os
abusos	de	poder	a	que	é	submetido	dentro	do	cárcere.	O	preso	adquire,	então,
a	 consciência	 de	 que,	 se	 sua	 condição	 social	 fosse	 outra,	 certamente	 não
estaria	 na	 prisão,	 como	 normalmente	 não	 estão	 os	 mais	 afortunados
(ZAFFARONI;	OLIVEIRA,	2010,	p.	460).
Em	virtude	do	tipo	de	vida	que	são	obrigados	a	levar	—	isolamento,	trabalho
escasso,	violência	por	parte	de	guardas	e	de	outros	detentos,	rompimento	de
vínculos	 (familiar,	 profissional	 e	 social),	 perda	 do	 direito	 de	 serem
considerados	membros	confiáveis	da	sociedade	—	os	reclusos	ficam	cada	vez
mais	distanciados	dos	modelos	de	comportamento	social.
A	 vida	 no	 cárcere	 consolida	 o	 status	 de	 “criminoso”	 à	 pessoa,	 gera
estereótipos	 e	 afeta	 as	 possibilidades	 laborativas	 futuras.	 Promove,	 ainda,	 a
interiorização	do	papel	do	“criminoso”	no	 recluso,	a	construção	psíquica	da
sua	 autoimagem	 como	 tal,	 causando-lhe	 deformações	 emocionais.	 As
definições	 legais	 e	 a	 rejeição	 social	 determinam	 a	 percepção	 do	 “eu”	 como
efetivamente	 desviante,	 conduzindo-o	 a	 viver	 marginalmente,	 conforme	 a
imagem	interiorizada	(KARAM,	2004,	p.	98).
O	 preso	 é,	 desta	 forma,	 introduzido	 em	 um	 processo	 de	 desculturação,
caracterizado	 pelo	 desaprendizado	 progressivo	 dos	 valores	 e	 das	 normas	 de
convivência	 social.	No	 cárcere,	 a	 punição	não	 lhe	 acrescenta	 as	 habilidades
necessárias	 para	 a	 convivência	 futura	 no	 mundo	 exterior.	 Ao	 isolar	 e
estigmatizar	 os	 escolhidos,	 o	 sistema	os	 faz	mais	 desadaptados	 ao	 convívio
social	e,	consequentemente,	mais	aptos	a	realizar	novas	condutas	socialmente
negativas	(KARAM,	2004,	p.	97).	“Um	mínimo	de	raciocínio	lógico	repudia	a
ideia	 de	 se	 pretender	 reintegrar	 alguém	 à	 sociedade,	 afastando-o	 dela”
(KARAM,	 2004,	 p.	 81).	 Isso	 porque	 as	 ideias	 de	 “ressocialização”,
“reeducação”	e	“reintegração”	à	 sociedade	 são	absolutamente	 incompatíveis
com	 a	 segregação,	 consoante	 lembram	 Maria	 Lúcia	 Karam	 e	 Zaffaroni
(1991b,	 p.	 223):	 o	 encarceramento	 é	 algo	 tão	 absurdo	quanto	 tentar	 ensinar
alguém	a	jogar	futebol	em	um	elevador	64	.
Por	estas	razões	é	que,	ao	invés	de	controlar	a	delinquência	e	de	reintegrar	o
apenado	 na	 comunidade,	 a	 pena	 privativa	 de	 liberdade	 tem	 fomentado	 a
exclusão	e	o	crime,	 estigmatizando	o	condenado	e	 servindo	como	 incentivo
para	 a	 aprendizagem	 da	 prática	 criminosa.	 Para	 sobreviver	 neste	 ambiente
inóspito,	 o	 ofensor	 assimila	 novas	 práticas	 criminosas	 num	 processo	 de
aculturação	 conforme	 os	 valores	 e	 as	 normas	 deste	 (como	 a	 violência,	 a
corrupção	 e	 a	 “malandragem”,	 nas	 palavras	 de	 Juarez	 Cirino	 dos	 Santos
(2013c,	p.	5)).	Cria	associações	e	relações	paralelas	de	poder,	que	reforçam	a
cultura	da	violência	e	a	geração	de	futuras	organizações	criminosas	(CRUZ,
2011,	p.	62-63)	65	.
Toda	 esta	 dinâmica	 o	 torna	 confiante	 e	motivado	 para	 persistir	 na	 “carreira
criminosa”.	 “Trata-se	 de	 uma	delinquência	 formada	no	 subsolo	 do	 aparelho
judicial,	da	qual	a	justiça	desvia	os	olhos	pela	vergonha	que	experimenta	ao
castigar	aqueles	a	quem	condena,	forte	o	bastante	para	deixar	o	juiz	sem	voz”
(FOULCAULT,	2008,	p.	216).
Dessa	 forma,	 o	 sistema	 penal	 produz	 o	 “criminoso”	 em	 pelo	 menos	 dois
momentos	 distintos:	 no	 processo	 de	 criminalização,	 ao	 qualificar
determinadas	 situações	 conflituosas	 ou	 fatos	 socialmente	 negativos	 como
crimes	e	com	a	interiorização	do	etiquetamento	legal	e	social	pelo	condenado,
desde	o	primeiro	contato	com	o	sistema	penal,	especialmente	por	intermédio
da	prisão	provisória	(KARAM,	2004,	p.	98).
Do	 ponto	 de	 vista	 das	 consequências	 paraos	 que	 circundam	 o	 recluso,
acrescenta	 Rogério	 Schietti	 (CRUZ,	 2011,	 p.	 64)	 que,	 quanto	mais	 pessoas
são	presas,	um	número	maior	de	famílias	é	desestruturado	e	seus	dependentes
têm	 maior	 probabilidade	 de	 se	 envolver	 em	 ilícitos,	 caso	 não	 recebam
assistência	 social	 adequada.	 Assim,	 além	 das	 consequências	 diretas	 da
punição	 sobre	 a	 figura	 do	 ofensor,	 deve-se,	 portanto,	 considerar	 também	 o
sofrimento	(de	toda	espécie),	infligido	aos	seus	amigos	e	parentes	66	.
Em	 suma,	 Edmundo	 Oliveira	 identifica	 três	 ordens	 de	 desvantagens	 do
cárcere:	utilitária	(relativa	ao	custo	de	construção,	com	a	manutenção	de	sua
estrutura	 administrativa,	 sem	qualquer	 retomo);	de	ordem	moral	 (ao	 final,	 a
prisão,	seria	puro	castigo)	e	de	ordem	social	(não	desempenhando	o	seu	papel
“ressocializador”	 à	 altura	 dos	 esforços	 e	 dos	 investimentos	 implementados)
(ZAFFARONI;	OLIVEIRA,	2010,	p.	460).
Diante	destes	fatos,	conclui	Ferrajoli	(2010,	p.	379)	que,	da	forma	como	tem
sido	praticada,	a	prisão	é	muito	mais	do	que	a	“privação	de	um	tempo	abstrato
de	 liberdade”.	Ela	 tem	elementos	de	aflição	 física	 (manifestados	nas	 formas
de	vida	e	de	tratamento,	“e	que	diferem	das	antigas	penas	corporais	somente
porque	não	estão	concentradas	no	 tempo,	 senão	que	 se	dilatam	ao	 longo	da
duração	 da	 pena”)	 e	 de	 aflição	 psicológica	 (solidão,	 isolamento,	 sujeição
disciplinar,	perda	da	sociabilidade,	da	afetividade	e	até	da	identidade).
Todas	 essas	 adversidades	 do	 cárcere	 geram	 a	 reincidência,	 que	 desmente	 a
promessa	de	“ressocialização”	do	condenado.	De	acordo	com	o	ex-presidente
do	CNJ,	Cezar	Peluso,	o	Brasil	possuía,	em	março	de	2012,	uma	das	maiores
taxas	 de	 reincidência	 do	 mundo,	 estimada	 pelo	 órgão	 em	 70%	 (BRASIL,
2011,	 p.	 1).	 Expressada	 nas	 palavras	 de	 Foucault	 (2008,	 p.	 216),	 a
reincidência	 é	 “a	 vingança	 da	 prisão	 contra	 a	 justiça”.	 Percebe-se	 que	 a
própria	 prisão	 tem	 se	 tornado	 um	 obstáculo	 intransponível	 para	 a
“ressocialização”,	 de	 forma	 que	 “o	 problema	 da	 prisão	 torna-se	 a	 própria
prisão”	(PRUDENTE,	2011,	p.	1).
Conclui-se,	 por	 conseguinte,	 que	 o	 encarceramento	 é	 dispendioso	 para	 o
Estado,	não	 reintegra	ou	 ressocializa	e	ainda	versa	o	apenado	nas	“carreiras
criminais”	(PASSETTI,	2004,	p.	26).	Assim,	embora	o	Estado	despenda	cada
vez	mais	com	repressão,	com	a	polícia,	com	a	construção	de	novas	prisões,
com	a	edição	e	aplicação	de	mais	leis	incriminadoras,	com	mais	condenações,
a	 resposta	 de	 uma	 sociedade	mais	 justa	 e	 segura	 ainda	 não	 se	 faz	 presente.
Neste	contexto,	o	que	se	 sobressai	é	a	 inflação	 legislativa,	a	 sobrecarga	dos
tribunais,	 a	 ineficiência	 da	 justiça	 e	 a	 ineficácia	 das	 penas	 clássicas
(PALADINO,	2010,	p.	406).
2.3	O	pessimismo	do	nothing	works
Até	 a	 primeira	metade	 do	 século	XX,	 a	 política	 criminal	 confiava	 na	 força
ressocializadora	 da	 execução	 da	 pena,	 entretanto,	 a	 realidade	 indigna	 do
cárcere	 ora	 relatada	 desacreditou	 o	 “ideal	 de	 reabilitação”	 (ZAFFARONI;
OLIVEIRA,	 2010,	 p.	 472-473).	 O	 senso	 de	 pessimismo	 e	 de	 incapacidade
instalado	 pela	 falha	 no	 cumprimento	 deste	 mister	 pode	 ser	 traduzido	 pela
expressão	“nada	funciona”	(nothing	works)	67	.
“Nothing	works”	foi	a	locução	utilizada	por	Robert	Martinson	ao	divulgar,	na
revista	“The	public	interest”,	uma	pesquisa	feita	por	ele	—	em	conjunto	com
Douglas	 Lipton	 e	 Judith	 Wilks	 —	 com	 231	 pessoas	 que	 frequentaram
programas	 de	 reabilitação	 entre	 os	 anos	 de	 1945	 e	 1967.	 A	 pesquisa	 foi
intitulada	“The	effectiveness	of	correctional	treatment:	a	survey	of	treatment
evaluation	 studies”.	Após	 o	 estudo,	 os	 pesquisadores	 chegaram	à	 conclusão
de	que,	com	poucas	e	isoladas	exceções,	os	esforços	de	reabilitação	feitos	até
aquele	momento	não	tiveram	efeito	significativo	sobre	a	reincidência.	A	partir
daí,	 a	 expressão	 nothing	 works	 tornou-se	 um	 “mantra”	 para	 designar	 o
fracasso	 dos	 programas	 liberais	 de	 reabilitação	 e	 para	 a	 retribuição	 ou
dissuasão	como	justificativas	para	a	punição.
Algumas	pesquisas	relataram	que	as	diferenças	das	taxas	de	reincidência	entre
jovens	 que	 receberam	 os	 serviços	 especiais	 (aconselhamento,	 programas
educacionais,	 orientação,	 assistência	 à	 saúde,	 acampamentos)	 e	 os	 que	 não
dispuseram	de	 semelhante	 trato	 foram	 insignificantes	 e	 concluíram	que	 este
tipo	de	intervenção	é	de	pouca	eficácia	68	.
A	 partir	 do	 reconhecimento	 da	 falha	 do	 sistema	 de	 justiça	 criminal	 em
alcançar	 a	 reabilitação	 dos	 agressores	 69	 ,	 algumas	 posturas	 extremas
reclamaram	 o	 regresso	 à	 pura	 retribuição.	 As	 conclusões	 de	 Martinson
repercutiram	 para	 que	 o	 propósito	 da	 reabilitação	 fosse	 abandonado,	 por
exemplo,	dos	programas	de	correção	nos	Estados	Unidos.	Em	18	de	 janeiro
de	 1989,	 a	 Suprema	 Corte	 americana,	 no	 julgamento	 Mistretta	 v.	 United
States	 70	 ,	 considerou	 razoável	 e	 racional	 a	 remoção	 da	 reabilitação	 das
“diretrizes	condenatórias”	federais	ao	sentenciar	os	réus.	Estes	passaram	a	ser
condenados	 estritamente	 em	 retribuição	 ao	 crime	 cometido,	 sem
reconhecimento	de	 fatores	 em	 seu	 favor,	 como	 receptividade	 ao	 tratamento,
histórico	pessoal	e	familiar,	esforços	anteriores	para	reabilitar-se	ou	possíveis
alternativas	 à	 prisão.	 Neste	 processo,	 o	 Estado	 pôde	 eximir-se	 da	 sua
responsabilidade	com	a	reabilitação	e	a	reintegração	dos	ofensores.
Robert	Martinson	—	que	se	suicidou	em	1980	—	talvez	imaginasse	que	seu
ceticismo	 acerca	 da	 reabilitação,	 se	 bem	 divulgado,	 esvaziasse	 as	 prisões.
Segundo	 ele	 próprio	 asseverou,	 se	 as	 prisões	 não	 podem	 ser	 reformadas,
devem	 ser	 gradualmente	 demolidas	 71	 .	 Entretanto,	 o	 efeito	 foi	 contrário.
Contemporaneamente,	 a	 reabilitação	 ainda	 se	 encontra	 ausente	 de	 boa	parte
do	 sistema	 de	 correção	 americano.	 Penas	 mais	 pesadas,	 prisões-celeiros
(warehouses	 )	 tornaram-se	 a	 regra.	 O	 raciocínio	 é	 que,	 se	 “nada	 funciona”
para	reabilitar	os	“infratores”,	deve-se	neutralizá-los	por	meio	de	duras	penas
de	prisão	e	do	uso	ocasional	da	pena	de	morte	(MILLER,	1989,	p.	1).
Além	 dos	 efeitos	 surtidos	 nas	 decisões	 judiciais	 e	 na	 execução	 da	 pena,
Francis	T.	Cullen	e	Paul	Gendreau	(2001,	p.	316)	relatam	que	o	nothing	works
teve	 reflexos	 indesejados	 no	 pensamento	 criminológico.	 Conforme	 os
professores	 canadenses,	 ao	 apontar	 que	 nada	 funciona,	 essa	 ideologia
legitimou	a	“destruição	do	conhecimento	criminológico”,	fazendo	com	que,	a
partir	daí,	os	criminólogos	se	concentrassem	na	crítica	de	que	nada	funciona,
ao	 invés	 de	 empregarem	 seus	 esforços	 na	 “construção	 do	 conhecimento”,
apontando	o	que	é	que	funcionaria.
2.4	O	endurecimento	via	pena	de	morte
Manifestações	 contundentes	 em	 favor	 de	 políticas	 penais	 rigorosas	 como	 a
pena	de	morte	não	são	um	fenômeno	recente.	Conforme	os	diálogos	narrados
por	 Platão,	 a	 pena	 de	 morte	 era	 defendida	 por	 Sócrates	 como	 fruto	 da
necessidade	de	obediência	irrestrita	às	leis.	O	próprio	Sócrates	não	se	furtou	a
esta	 obediência,	 enfrentando	 sua	 pena	 de	 morte,	 decidida	 pelo	 Tribunal
Popular	mediante	a	ingestão	do	cálice	de	cicuta,	narrada	nas	palavras	de	José
Rossini	Campos	do	Couto	Corrêa	(2011,	p.	164-165):
Sócrates	 não	 titubeou	 frente	 ao	Tribunal	Popular,	 composto	 de	 501	 juízes,	muitos	 deles
marinheiros	 e	 comerciantes,	 dos	 quais	 280	 votaram	 pela	 condenação	 e	 221	 pela
absolvição,	com	59	sufrágios	decidindo	o	destino	do	mestre	dos	mestres,	que	não	abjurou
da	Filosofia,	declarando	que	jamais	faria	outra	coisa	em	sua	existência,	mesmo	que	mil
vezes	 tivesse	 que	 morrer.	 […]	 Nada	 de	 fuga,	 nada	 de	 multa,	 nada	 de	 exílio,	 nada	 de
suborno,	nada	de	abjuração	e,	muito	menos,	nada	de	comutação	da	pena.
Platão	(2013,	p.	358-359),	em	As	leis	,	Livro	IX,	demonstra	acolher	a	pena	de
morte,	 afirmando	que	 ela	 seria	 apenas	o	menor	dosmales,	 se	benéfica	para
outros	cidadãos:
Entendemos	 que	 toda	 punição	 legalmente	 aplicada	 não	 visa	 ao	 mal,	 mas	 via	 de	 regra
produz	um	destes	dois	efeitos:	ou	torna	a	pessoa	que	sofreu	a	punição,	melhor	ou	a	torna
menos	má.	Mas	se	qualquer	cidadão	é	reiteradamente	condenado	por	esse	ato,	ou	seja,	a
perpetração	de	alguma	falta	gravíssima	e	infame	contra	os	deuses,	os	pais	ou	o	Estado,	o
juiz	o	considerará	como	já	 incurável	reconhecendo	que,	apesar	de	 todo	o	 treinamento	e
educação	que	 recebeu	desde	a	 infância,	 não	 se	 conteve,	 a	 ponto	de	 cometer	 a	pior	 das
iniquidades.	 Para	 ele	 apenas	 será	 a	 morte,	 o	 menor	 dos	 males,	 o	 que	 para	 os	 outros
[cidadãos]	será	um	exemplo	benéfico,	pois	o	verão	caído	em	desgraça	e	eliminado	para
além	das	fronteiras	do	país.
Walter	Nunes	da	Silva	 Júnior	 (2009,	p.	8)	 aduz	que,	para	Platão,	 a	pena	de
morte	era	uma	“pena	natural”	para	delitos	graves,	como	os	praticados	contra
as	divindades,	os	cultos,	os	genitores	e	contra	o	próprio	homicídio.
O	mesmo	 autor	 informa	 que,	 após	 o	Renascimento,	 a	 pena	 (incluindo	 a	 de
morte)	 não	 tinha	 mais	 a	 finalidade	 de	 aplacar	 a	 ira	 dos	 deuses,	 mas	 de
proteger	a	ordem	e	a	paz	públicas,	como	forma	de	imposição	da	autoridade	do
soberano	 e	 do	 Estado.	 Nesta	 época,	 desenvolveu-se,	 também,	 o	 “anti-
humanismo”,	caracterizado	por	uma	Igreja	e	um	poder	estatal	autoritários	em
que	 se	 perseguiram	 bruxos	 e	 bruxas,	 mediante	 execuções	 em	 fogueiras,
guerras	religiosas	sangrentas	etc	(SILVA	JÚNIOR,	2009,	p.	10).
Para	manter	a	autoridade	do	soberano,	além	da	pena	de	morte,	inseriu-se,	no
ordenamento	 jurídico,	mecanismos	bárbaros,	utilizados	 tanto	para	a	punição
dos	culpados	quanto	como	meio	processual	para	se	“descobrir	a	verdade”.	O
corpo	do	homem	tornou-se	“objeto	da	pena”	e	“objeto	do	processo”	e	padecia
provações	 (suplícios)	 com	 o	 fito	 de	 “esclarecer”	 o	 crime	 72	 .	 A	 tortura,	 por
exemplo,	foi	a	técnica	empregada	para	se	“encontrar	a	verdade”	do	crime	em
processos	 “secretos”	 73	 ,	 e	 a	 pena	 corporal	 foi	 infligida	 publicamente	 como
exemplo	aos	demais	e	como	forma	estratégica	de	prevenção	geral.	A	prisão,
nesta	época,	era	apenas	uma	forma	de	detenção	do	homem	para	a	aplicação	da
futura	pena	corporal	(SILVA	JÚNIOR,	2009,	p.	11).
Anos	 mais	 tarde,	 a	 pena	 de	 morte	 ainda	 era	 defendida	 pelos	 filósofos
modernos.	Para	Kant,	ela	também	atenderia	ao	seu	imperativo	categórico,	no
sentido	 de	 que	 “se	 ele	 matou,	 deve	 morrer”.	 A	 finalidade	 da	 pena	 capital,
assim	como	das	demais,	seria	aplicar	a	justiça	como	igualdade,	de	realizar	a
perfeita	correspondência	entre	o	crime	e	o	castigo,	não	podendo	ser	mitigada
ou	afastada	por	razões	de	utilidade	ou	felicidade	sob	pena	de	injustiça.	Assim,
se	a	comunidade	não	punisse	o	assassino	com	a	morte,	tornar-se-ia	cúmplice
de	seu	crime	e,	indiretamente,	responsável	pelo	sangue	derramado,	consoante
anota	André	Coelho	(2012,	p.	1).
Um	dos	primeiro	arautos	contra	a	pena	de	morte	foi	Beccaria,	que	se	valendo
de	 argumentos	 contratualistas	 de	 Rousseau	 e	 da	 doutrina	 da	 divisão	 dos
poderes	de	Montesquieu,	criticou	as	atrocidades	do	sistema	penal,	em	especial
a	pena	capital,	a	 tortura	e	os	suplícios.	Segundo	Bobbio,	a	obra	de	Beccaria
influenciou	o	debate	sobre	a	pena	de	morte	e	inspirou	a	primeira	lei	penal	que
a	aboliu,	a	lei	toscana	de	1786	74	.
Silva	 Júnior	 (2009,	 p.	 11)	 explica	 que,	 sob	 a	 influência	 de	 Montesquieu,
Beccaria	 desenvolveu	 a	 ideia	 de	 que	 o	 direito	 de	 punir	 estatal	 deve	 ser
limitado	pela	lei	e	só	poderia	ser	exercido	dentro	dos	parâmetros	concebidos
pela	sociedade	e	estabelecidos	em	lei.	A	influência	contratualista	em	Beccaria
é	explicada	por	Bobbio:
Se	 sociedade	 política	 deriva	 de	 um	 acordo	 dos	 indivíduos	 que	 renunciam	 a	 viver	 em
estado	 de	 natureza	 e	 criam	 leis	 para	 se	 proteger	 reciprocamente	 (o	 contrato	 social),	 é
inconcebível	que	esses	indivíduos	tenham	posto	à	disposição	de	seus	semelhantes	também
o	direito	à	vida	(BOBBIO,	2004,	p.	69).
Assim,	 posto	 que	 o	 indivíduo	 tivesse	 se	 comprometido	 perante	 a	 sociedade
com	 o	 pacto	 social,	 conferindo	 ao	 Estado	 o	 poder-dever	 de	 puni-lo,	 caso
viesse	a	transgredir	as	normas	de	conduta,	ele	conservaria	o	seu	direito	à	vida,
pois	não	o	teria	renunciado.
A	 despeito	 da	 tese	 contrária	 à	 pena	 de	 morte	 de	 Beccaria	 ter	 encontrado
entusiastas	 de	 renome	 como	 Voltaire,	 que	 lhe	 deu	 visibilidade,	 ela	 não	 foi
acolhida	 pelos	 criminologistas	 que	 se	 seguiram.	 Tanto	 Enrico	 Ferri	 quanto
Cesare	 Lombroso	 foram	 partidários	 da	 pena	 capital,	 seja	 pela	 sua	 função
exemplar,	seja	pela	“seleção”	que	ela	institui	ao	eliminar	a	“raça	criminosa”.
Ferri,	 porém	 lamentava	 seu	 escasso	 impacto	 dissuasório	 ou	 intimidatório
devido	 à	 sua	 pouca	 utilização.	 Raffaele	 Garófalo	 a	 considerava	 um
mecanismo	de	seleção	artificial	que	segue	o	sábio	modelo	da	natureza	(uma
espécie	 de	 “darwinismo	 social”)	 (GARCÍA-PABLOS	 DE	 MOLINA;
GOMES,	2000,	p.	175	e	182).
Outras	 escolas	 que	 se	 seguiram	 à	 clássica	 (escola	 positiva,	 terceira	 escola
italiana,	 moderna,	 técnico-jurídica,	 da	 defesa	 social)	 também	 encontraram
partidários	à	pena	de	morte.	Junto	a	elas,	há	outros	autores	que	contribuíram
de	forma	relevante	e	aprofundada	para	o	exame	da	questão	da	pena	de	morte.
Entretanto,	 a	 menção	 ou	 a	 abordagem	 de	 todos	 eles	 ultrapassaria	 o	 nosso
escopo	de	uma	singela	contextualização	histórica	desta	problemática.
Atualmente,	 no	Brasil,	 a	 pena	 de	morte	 ainda	 é	 admitida,	 para	 os	 casos	 de
guerra	 declarada	 (art.	 5º,	XLVII,	CF).	Nos	Estados	Unidos,	 ela	 é	 aceita	 em
cerca	 de	 trinta	 e	 cinco	 estados	 americanos.	 Seu	 fundamento	 é	 a	 dissuasão
geral,	vista	na	seção	1.4.2,	uma	vez	que	pressupõe	que	a	pena	capital	previna
homicídios	futuros,	o	que	faria	com	que	os	ofensores	se	refreariam	em	matar
por	temer	o	castigo	final.
A	 respeito	 do	 suposto	 efeito	 dissuasivo	 da	 pena	 capital,	 ponderam	 Fuller	 e
Wozniak	(2006,	p.	266)	que	a	sua	medição	é	uma	tarefa	difícil.	Questionam	os
autores	 se	 os	 homicidas,	 de	 fato,	 cogitariam	 da	 possibilidade	 de	 serem
executados	 posteriormente	 por	 esta	 razão.	 Estimam	 os	 americanos	 que	 a
maioria	 dos	 ofensores	 provavelmente	 não	 calcula	 racionalmente	 as
consequências	de	suas	ações	antes	de	praticá-las	ou,	 se	o	 fazem,	é	provável
que	a	sanção	capital	não	os	impediria	de	qualquer	maneira.
Por	outro	lado,	lembram	que,	quando	o	Estado	mata,	ele	apresenta	um	modelo
de	comportamento	que	pode	ter	consequências	remotas	como,	por	exemplo,	a
“síndrome	 do	 suicida-assassino”	 (quando	 pessoas	 incapazes	 de	 cometer
suicídio	matam	 outra	 pessoa	 na	 expectativa	 de	 que	 o	Estado	 as	 execute),	 a
“síndrome	 do	 carrasco”	 (quando	 ofensores	 em	 série	 acreditam	 que	 estão
fazendo	um	serviço	à	 sociedade,	 eliminando	os	 indivíduos	 indesejáveis)	 e	 a
notoriedade,	na	hipótese	em	que	indivíduos,	animados	pela	atenção	conferida
pela	 mídia	 a	 casos	 sensacionalistas,	 matam	 com	 o	 fim	 de	 se	 tornarem
conhecidos	75	.
Entre	 argumentos	 utilitaristas	 e	 razões	 éticas	 contrárias	 à	 pena	 de	 morte,
Bobbio	(2004,	p.	74)	cita	a	sua	irreversibilidade,	em	caso	de	erro	judiciário,
que,	 neste	 caso,	 seria	 irreparável.	 O	 cientista	 político	 refuta	 ainda	 a
possiblidade	 de	 alegação	 de	 uma	 suposta	 “legítima	 defesa”	 pelo	Estado,	 ao
aplicar	 a	 pena	 de	morte,	 e	 assevera:	 “A	 condenação	 à	morte	 depois	 de	 um
processo	 não	 é	mais	 um	 homicídio	 em	 legítima	 defesa,	mas	 um	 homicídio
legal,	 legalizado,	 perpetrado	 a	 sangue	 frio,	 premeditado.	Um	homicídio	que
requer	executores,	ou	seja,	pessoas	autorizadas	a	matar”	76	.
2.5	Just	deserts
A	teoria	do	 just	deserts	 (no	 sentido	de	 “apenas	o	merecido”)	 defende	que	 a
punição	 deve	 ser	 proporcional	 à	 gravidade	 da	 infração	 cometida.	 Os
defensores	 desta	 filosofia	 (cujo	 arauto	 maior	 é	 Andrewvon	 Hirsch	 77	 )
enfatizam	a	importância	do	devido	processo	legal,	das	sentenças	com	prazos
determinados	 e	 a	 remoção	 da	 discricionariedade	 judicial	 no	 momento	 de
sentenciar	 (BARTON,	A.,	 2004,	 p.	 1).	 Este	 pensamento	 tornou-se	 influente
nos	 Estados	 Unidos	 durante	 a	 década	 de	 1970,	 após	 a	 publicação	 da	 obra
“Doing	Justice”,	de	Hirsch,	que	explorava	as	conclusões	do	“Committee	for
the	 Study	 of	 Incarceration”.	 Assim	 como	 o	 nothing	 works	 de	 Robert
Martinson,	os	princípios	 retributivos	do	 just	deserts	 influenciaram	a	retirada
da	ideia	de	reabilitação	do	modelo	americano	(VON	HIRSCHI,	1985,	p.	19-
26).
Com	base	 na	 classificação	 outrora	 citada,	 just	deserts	 pode	 ser	 considerada
uma	filosofia	retributiva	da	pena.	Ao	contrário	das	correntes	preocupadas	em
prevenir	 futuras	 infrações	 (como	 a	 dissuasão,	 a	 reabilitação	 ou	 a
incapacitação),	a	vertente	retributiva	se	importa	com	a	punição	dos	crimes	já
cometidos	(quia	peccatum)	,	ao	modo	kantiano	(ver	seção	1.3.1).	Trata-se	de
punição	sob	o	eufemismo	de	just	deserts.
Segundo	o	just	deserts	,	embora	outros	benefícios	positivos	possam	advir	da
punição	(como,	por	exemplo,	a	prevenção	de	novos	crimes),	existem	os	que
são	simplesmente	efeitos	incidentais	da	sanção	e	não	o	seu	fim	precípuo	78	.
O	modelo	just	deserts	foi	bastante	prestigiado	nos	Estados	Unidos	em	meados
da	 década	 de	 1970,	 em	 virtude	 da	 crescente	 preocupação	 com	 as	 práticas
discricionárias	e	discriminatórias	do	modelo	de	reabilitação	ou	de	tratamento,
então	dominantes	(BARTON,	A.,	2004,	p.	2)	79	.	Nestes	métodos,	um	ofensor
poderia	 receber	 uma	medida	 de	 segurança	 por	 tempo	 indeterminado	 e	 seria
liberado	 apenas	 quando	 estivesse	 “curado”.	O	 ideal	 incapacitante	 era,	 dessa
forma,	utilizado	para	endossar	penas	de	prisão	excessivamente	longas,	a	fim
de	 evitar	 futuras	 agressões	 pelo	 indivíduo.	 O	 just	 deserts	 e	 a	 sua	 ideia	 de
proporcionalidade	pretendiam	estabelecer	limites	para	a	extensão	e	para	o	tipo
de	punição	aplicada	(BARTON,	A.,	2004,	p.	2)	80	.
Alana	Barton	(2004,	p.	2)	relata	que,	ao	longo	da	década	de	1990,	a	ideologia
punitiva	—	juntamente	com	uma	crescente	ênfase	na	proteção	“do	público”
—	continuou	 a	 florescer	 nos	Estados	Unidos	 e	 também	no	Reino	Unido.	A
autora	acusa	a	direita	política	destes	países	de	apropriar-se	da	filosofia	do	just
deserts	e	alterar	o	foco	da	proporcionalidade	para	a	aplicação	de	castigos	mais
severos	e	sentenças	mais	longas	(nos	moldes	da	tree	strikes	law	),	tornando	as
sentenças	desproporcionalmente	graves.
Em	 que	 pese	 o	 modelo	 just	 deserts	 possa,	 teoricamente,	 oferecer	 decisões
mais	 justas	 e	 imparciais	 (restringindo	 sentenças	 desproporcionais	 ou
“exemplares”,	 que	 contenham	 punições	 inconsistentes	 e	 discriminatórias),
Barbara	Hudson	 81	aponta	que	o	 just	deserts	 ,	 com	 sua	 ênfase	 no	 tratamento
igualitário	 para	 crimes	 semelhantes,	 não	 leva	 em	 conta	 fatores	 estruturais	 e
econômicos,	tais	como	a	pobreza.	A	criminologista	britânica	afirma	que	neste
modelo	 não	 há	 espaço	 para	 o	 reconhecimento	 das	 desigualdades	 sociais	 e,
portanto,	 não	 permite	 mitigações	 para	 pessoas	 que	 tenham	 menos
oportunidades	de	permanecerem	obedientes	à	lei.
O	bloqueio	de	oportunidades	pode,	de	fato,	levar	a	processos	criminógenos	ou
a	atividades	desviantes,	consoante	já	identificara	Robert	Merton	desde	1938,
em	sua	teoria	criminológica	da	anomia	(v.	seção	4.2.1).	Assim,	uma	sentença
preocupada	apenas	com	o	crime,	que	não	reconhece	outras	questões	de	fundo
ou	 circunstancias	 do	 ofensor,	 poderia	 perpetuar	 a	 discriminação	 contra	 os
pobres,	as	minorias,	as	mulheres	e	os	jovens	(BARTON,	A.,	2004,	p.	2).
Portanto,	concluímos	com	Barton	e	Hudson	que,	 teorias	como	o	 just	deserts
—	que	em	tese	poderiam	garantir	um	sistema	justo	e	imparcial	de	justiça	por
meio	 da	 aplicação	 dos	 princípios	 de	 coerência	 e	 de	 proporcionalidade	 —
necessitam	ser	cuidadosamente	equilibradas	com	outras	mais	flexíveis,	como
a	 justiça	 restaurativa,	 que	 permitam	 a	 consideração	 de	 circunstâncias
individuais	 e	 do	 impacto	 das	 desigualdades	 estruturais,	 tanto	 no
comportamento	 ofensivo	 quanto	 no	 processo	 de	 criminalização	 (BARTON,
A.,	2004,	p.	2).
2.6	Poderia	a	pena	de	prisão	ser	abolida?
Há	mais	de	trinta	anos,	Lola	Aniyar	de	Castro	lançou	a	seguinte	provocação,
até	hoje	bastante	atual:	“Apesar	do	seu	fracasso,	a	prisão	não	desaparece.	Por
quê?”.	Segundo	ela,	a	prisão	se	mantém	porque	introduz	um	elemento	no	seu
autor:	o	estigma,	representado	pelos	antecedentes	penais	do	ofensor.	A	prisão
não	pretenderia,	assim,	acabar	com	o	cometimento	de	 infrações	penais,	mas
distinguir	umas	das	outras,	definindo	a	“verdadeira	delinquência”.	Consoante
a	 criminóloga	 venezuelana,	 é	 conveniente	 considerar	 a	 plebe	 “imoral	 ou
sediciosa,	bárbara	ou	fora	da	lei”.	O	ofensor	aparece	como	pertencendo	a	um
mundo	diferente,	o	do	“basfond”,	o	do	vilão,	fazendo	crescer	a	desconfiança
para	com	as	classes	baixas	e,	por	oposição,	a	confiança	nas	altas	 (ANIYAR
DE	CASTRO,	1983,	p.	194).
Louk	 Hulsman	 acrescenta	 a	 esta	 perquirição	 o	 fato	 de	 que	 a	 prisão	 —	 e
mesmo	 a	 pena	 de	 morte	 —	 não	 só	 permanecem,	 como	 são	 defendidas
inclusive	por	aqueles	que	mais	sofrem	o	peso	do	sistema	penal	82	 .	À	mesma
conclusão	 chegou	 o	 realista	 Roger	Matthews.	 Para	 este,	 apesar	 de	 todas	 as
queixas	 sobre	 a	 ineficiência,	 os	 custos	 da	 prisão	 e	 suas	 consequências
nefastas,	 a	 população	 em	 geral	 a	 prefere,	 se	 comparada	 a	 outras	 políticas.
“Ninguém	defende	a	prisão,	mas	ninguém	é	contra	ela,	apesar	de	seus	custos”
(MATTHEWS,	2009,	p.	349).
Este	 reclamo	 pela	 prisão	 também	 é	 identificado	 por	 Luiz	 Flávio	 Gomes
(2001,	 p.	 37),	 “A	 população	 desesperada,	 totalmente	 incrédula	 […]	 pede	 o
irracional	 (pena	 de	 morte),	 o	 inconstitucional	 (prisão	 perpétua),	 o	 absurdo
(agravamento	de	penas,	mais	rigor	na	execução)	e	o	aberrante	(diminuição	da
maioridade	penal)”.
De	acordo	com	Louk	Hulsman,	isso	ocorre	porque:
Na	vida	real,	muito	poucas	pessoas	 ficam	satisfeitas	com	o	que	está	acontecendo	com	a
justiça	criminal	quando	elas	(ou	pessoas	próximas	a	elas)	são	diretamente	envolvidas	em
um	 evento	 que	 é	 criminalizado.	 […]	 Quando	 se	 dá	 a	 estas	 pessoas	 a	 possibilidade	 de
escolher	outras	 soluções,	 elas	 têm	muitas	dificuldades	para	achar	uma	 solução	 fora	do
modelo	punitivo.	E	quando	se	pede	uma	manifestação	àqueles	que	não	estão	diretamente
envolvidos	nas	situações	problemáticas,	eles	manifestam	solidariedade	com	o	sistema	da
justiça	 criminal	 e	 pedem,	 inclusive,	 uma	 solução	mais	 grave.	Esse	 estado	 de	 coisas	 faz
com	que	os	políticos,	na	maioria	das	vezes,	combatam	as	medidas	de	minimalização	ou
abolição	da	justiça	criminal	(1993,	p.	127).
Luisa	 de	 Marillac	 Passos	 e	 Maria	 Aparecida	 Penso	 (2009,	 p.	 80	 e	 89)
acrescentam	 que,	 em	 geral,	 a	 sociedade	 não	 consegue	 perceber	 uma
alternativa	 de	 punição	 que	 não	 seja	 a	 prisão.	 Caso	 adote	 outros	 meios	 de
resolução	de	conflitos,	o	sistema	de	justiça	criminal	é	visto	como	ineficiente	e
promotor	da	impunidade:
A	comunidade	tem	a	Justiça	como	ineficiente	no	sentido	do	controle	social,	pois	entende
que	 a	 Justiça	 tem	que	 ser	 unicamente	 punitiva,	 ou	 seja,	 deve	 basear-se	 na	 privação	 de
liberdade,	caso	contrário	não	estará	cumprindo	o	seu	papel,	e	que	as	medidas	alternativas
seriam	então	uma	forma	‘de	passar	a	mão	na	cabeça’	de	quem	comete	algum	delito.
Rogério	 Schietti	 alerta	 para	 os	 riscos	 e	 enganos	 trazidos	 por	 este	 tipo	 de
pensamento	 que	 poderia	 espargir	 a	 repressão	 contra	 todos,
indiscriminadamente,	 às	 custas	 de	 valorosos	 direitos	 e	 garantias	 individuais
duramente	conquistados:
Sobre	 isso	 e	 ante	 o	 ingresso,	 no	 sistema	 de	 justiça	 criminal	 brasileiro,	 de	 pessoas
detentoras	de	cargos	e	prestígio	político	que	até	há	alguns	anos	as	afastavam	do	risco	de
punição	 penal,	 tivemosoportunidade	 de	 observar	 (Cruz,	 2011:	 27)	 que	 ultimamente	 se
passou	a	ver,	com	maior	frequência,	cenas	de	conhecidos	políticos	e	grandes	empresários
algemados	e	conduzidos	ao	cárcere	preventivo,	a	engendrar	a	percepção,	pela	população
em	geral,	de	uma	espécie	de	«democratização»	na	aplicação	da	prisão	cautelar.	[…]	soa
irracional,	a	pretexto	de	combater	a	generalizada	impunidade	em	relação	a	certos	setores
da	sociedade,	institucionalizar-se	uma	repressão	abusiva	contra	todos,	jogando	no	ralo	a
custosa	construção	dos	valores	e	princípios	do	direito	penal	moderno	(Gomes,	1995:	166)
(CRUZ,	2013,	p.	50).
Maíra	 Rocha	 Machado	 atribui	 parte	 da	 responsabilidade	 por	 essa
desinformação	 pública	 aos	 próprios	 operadores	 do	 direito,	 que	 poderiam
valer-se	 de	 oportunidades	 em	 que	 estão	 em	 evidência	 para	 esclarecer	 à
população	sobre	meios	alternativos	e	mais	eficazes	que	a	prisão:
Além	 disso,	 é	 preciso	 tocar	 na	 responsabilidade	 do	 próprio	 Poder	 Judiciário,	 que
sistematicamente	 perde	 a	 oportunidade	 de	 comunicar	 à	 opinião	 pública	 que	 há	 várias
outras	formas	de	punir	além	do	envio	à	prisão.	Isso	aconteceu	no	julgamento	da	AP	470,
em	que	o	debate	sobre	penas	restritivas	de	direitos,	multa	e	reparação	do	dano	ficou	para
segundo	 plano	 até	 o	 presente	 momento.	 Enquanto	 essas	 questões	 não	 se	 tornarem
protagonistas	de	nossa	política	de	penas,	não	há	política	de	criação	de	vagas	que	resolva
o	problema	do	nosso	sistema	prisional	(MACHADO,	M.,	2012,	p.	1).
Maria	Lúcia	Karam	(2004,	p.	84)	aduz,	como	razões	para	a	indispensabilidade
da	prisão,	o	 seu	 simbolismo	 (bastante	 expressivo)	 e	 sua	visibilidade	 (com	a
exposição	 da	 condenação	 penal).	 Fato	 é	 que,	 conforme	 observado	 na	 seção
1.5,	 nas	 tendências	 criminalizadoras	 hoje	 dominantes,	 a	 pena	 privativa	 de
liberdade	 subsiste	 com	 incidência	 e	 rigor	 cada	 vez	maiores,	 a	 despeito	 das
suas	conhecidas	mazelas.
Diante	de	todas	estas	constatações,	Thomas	Mathiesen	arrisca	uma	conclusão:
Devemos,	 então,	 concluir	 que	 a	 abolição	 das	 prisões	 é	 “um	 sonho	 impossível”?	 À
primeira	 vista,	 parece	 que	 sim.	 No	 mínimo,	 o	 presente	 e	 o	 futuro	 imediato	 parecem
sombrios.	O	 clima	 político	 favorece	 enormemente	 a	 prisão;	 realmente,	 o	 clima	 político
aprova	o	ressurgimento	de	algo	 tão	medieval	quanto	a	sentença	de	morte.	Hoje	em	dia,
nos	 Estados	 Unidos,	 não	 existe	 mais	 o	 político	 manifestando-se	 contra	 a	 sentença	 de
morte.	A	ordem	do	dia	é:	“três	vaciladas	e	você	está	fora	(MATHIESEN,	2003,	p.	81-82).
O	autor	vislumbra,	portanto,	a	impossibilidade	de	abolição	das	prisões	a	curto
e	médio	prazos,	principalmente	em	face	das	“políticas	penais”	 (que	não	são
verdadeiramente	 “políticas	 criminais”)	 já	 referidas	 nas	 seções	1.6,	 2.3	 e	 2.5
(como	tree	strikes	and	you	are	out,	nothing	works,	just	deserts	),	estimuladas
pelos	próprios	parlamentares	e	seus	eleitores,	como	lembrou	Hulsman	83	.
No	mesmo	sentido,	entende	Salo	de	Carvalho	(2013,	p.	1	e	9)	que,	na	atual
conjuntura	 (em	especial	na	 realidade	brasileira),	o	abolicionismo	do	sistema
penal	 se	 revela	 impraticável,	 porque	 o	 modelo	 abolicionista,	 em	 última
instância,	 levaria	 a	uma	possível	 “anarquia	punitiva”,	 isento	de	 legalidade	e
de	limites	às	liberdades.
No	mesmo	 diapasão,	Antonio	Beristain	 (2000,	 p.	 55)	 relata	 que	 “a	 história
sociológica	 e	 a	 filosofia	 jurídica	 ensinam	 que,	 sem	 sanções	 penais,	 resulta
impossível	a	convivência,	ao	menos	nos	tempos	historicamente	conhecidos	e
na	 atualidade”.	 Aduz,	 entretanto,	 que	 esta	 necessidade	 de	 aplicação	 de
sanções	 penais	 não	 significa	 “que	 os	 delinquentes	 tenham	 que	 ser
encarcerados	 entre	 quatro	 paredes	 para	 castigá-los	 com	 intuito	 unicamente
vingativo,	 sem	 gastar	 um	 minuto	 para	 sua	 integração	 na	 sociedade”
(BERISTAIN,	2000,	p.	55).
Afora	todas	as	deformidades	apontadas	na	pena	de	prisão	—	tanto	em	relação
ao	seu	déficit	de	legitimidade	quanto	à	sua	prática	desvirtuada	das	finalidades
propostas	 (ver	 seções	 1.1	 e	 1.2)	 —,	 alguns	 abolicionistas	 a	 consideram
necessária.	Mathiesen	(2003,	p.	97)	reconhece	que	“temos	que	admitir	talvez
a	possibilidade	de	que	encarcerar	alguns	indivíduos	permaneça.	A	forma	de	se
tratar	 deles	 deveria	 ser	 completamente	 diferente	 do	 que	 acontece	 hoje	 em
nossas	 prisões”.	 Nils	 Christie	 (1977,	 p.	 4)	 não	 descarta	 a	 necessidade	 de
prisão	para	casos	de	maior	periculosidade,	mas	alerta	que	o	sistema	de	justiça
não	é	eficiente	em	determinar	“os	incorrigíveis”	e	os	que	não	necessitam	de
segregação.
Ferrajoli	 (2010,	 p.	 231)	 encara	 a	 prisão	 como	 uma	 técnica	 institucional	 de
minimização	 da	 reação	 violenta	 à	 desviação	 socialmente	 não	 tolerada,
funcionando	como	garantia	do	acusado	contra	os	arbítrios,	os	excessos	e	os
erros	 conexos	 a	 sistemas	 não	 jurídicos	 de	 controle	 social	 (por	 exemplo,	 a
vingança	privada)	84	.	A	pena,	segundo	o	jurista	italiano,	é	justificada	como	mal
menor,	ou	seja,	porque	seria	menos	aflitiva	e	menos	arbitrária	do	que	outras
reações	 não-jurídicas,	 que	 se	 produziriam	 na	 sua	 ausência	 (FERRAJOLI,
2010,	p.	312).	Juarez	Cirino	dos	Santos	(2005b,	p.	7)	assente	que	o	objetivo
imediato	 é	 “menos	 melhor	 cárcere”	 e	 “mais	 menos	 cárcere”,	 com	 a
maximização	 dos	 substitutivos	 penais,	 das	 hipóteses	 de	 regime	 aberto,	 dos
mecanismos	diversórios	 85	 (diversion)	e	de	 todas	as	 indispensáveis	mudanças
humanistas	do	cárcere.
Ferrajoli	(2010,	p.	378-379)	ressalva,	entretanto,	que	a	imprescindibilidade	da
pena	de	prisão	não	 impede	a	sua	 justificada	superação	a	 longo	prazo	ou,	ao
menos,	 uma	 drástica	 redução	 da	 sua	 duração,	 a	 curto	 e	 médio	 prazos.
Existem,	ainda	conforme	o	professor	italiano,	dois	fatores	que	fazem	com	que
não	resulte	utópica	uma	batalha	pela	abolição	da	pena	privativa	de	liberdade,
mesmo	 que	 seja	 a	 longo	 prazo.	O	 primeiro	 deles	 é	 a	 insatisfação	 cada	 vez
mais	 difundida	 no	 interior	 da	 cultura	 jurídica	 (inclusive	 dos	 operadores
carcerários)	 e	 o	 segundo	 refere-se	 ao	 seu	 caráter	 cada	 vez	 mais	 obsoleto.
Mathiesen	comparte	da	necessidade	desta	expectativa	de	superação:
Porém,	creio	que	a	conclusão	do	“sonho	 impossível”	é	muito	apressada.	Em	um	 trecho
provocativo	 sobre	 as	 vitórias	 abolicionistas	 do	 passado,	 o	 criminologista	 alemão
Sebastian	Scheerer	lembra-nos	que	“nunca	houve	uma	transformação	social	significante
na	 história	 que	 não	 tenha	 sido	 considerada	 irreal,	 estúpida	 ou	 utópica	 pela	 grande
maioria	dos	especialistas,	mesmo	antes	do	impensável	se	tornar	realidade	(MATHIESEN,
2003,	p.	82).
Assim	 como	 um	 dia	 imaginamos	 impossível	 a	 abolição	 da	 escravatura,	 por
exemplo	—	hoje	uma	realidade	incontestável	—,	o	mesmo	pode	ser	pensado
em	relação	à	medieva	pena	de	prisão,	especula	Mathiesen.
Em	conclusão,	 pode-se	 afirmar	que,	 se	no	 atual	 estágio	 ainda	não	podemos
prescindir	das	prisões,	 a	pena	privativa	de	 liberdade	deve	 ser	deixada	como
um	último	e	extremo	recurso,	visto	que	ela	evidencia,	de	forma	cada	vez	mais
inequívoca,	 o	 seu	 esgotamento	 histórico	 sem	 cumprir	 as	 promessas	 de
retribuição	 e	 de	 “ressocialização”	 com	 um	 mínimo	 de	 humanidade	 ou
plausibilidade.
Imperiosa	é,	por	fim,	a	mudança	de	orientação	na	política	criminal	brasileira
para	 uma	 responsabilização	 proveitosa	 do	 ofensor,	 reparando	 vítima	 e
comunidade	atingidas,	envolvendo	todos	no	processo	de	sua	reinserção	social,
tal	como	aventa	a	justiça	restaurativa	86	.	Afinal,	no	sistema	de	justiça	criminal,
o	ofensor	não	é	efetivamente	responsabilizado,	mas	punido	pelo	ato	praticado.
Renato	 Campos	 de	 Vitto	 (2005,	 p.	 41)	 provoca	 sobre	 essa	 necessidade	 de
mudança:	“Antes	de	mais	nada,	precisamos	definir	o	que,	de	fato,	se	pretende
construir	por	meio	do	nosso	sistema	de	Justiça:	uma	nação	de	jaulas	ou	uma
nação	de	cidadãos.”
Em	 resposta,	 Mathiesen	 (2003,	 p.	 96)	 indica	 um	 caminho	 de	 objetivos
semelhantesao	 restaurativo:	 “A	 direção	 desse	 novo	 clima,	 é	 com	 certeza,
difícil	 de	 predizer,	mas	 provavelmente	 implicaria	 numa	 ênfase	 renovada	 no
apoio	 real	 às	 vitimas,	 assim	 como	 nos	 recursos	 e	 serviços	 sociais	 ao
transgressor,	 uma	 vez	 que	 a	 solução	 altamente	 repressiva	 falhou
completamente”.
García-Pablos	de	Molina	(2012,	p.	437)	comenta	o	potencial	rejuvenescedor
da	justiça	restaurativa	como	alternativa	à	crise	ora	identificada:	“Representam
ou	 parecem	 representar	 a	 nova	 seiva	 rejuvenescedora	 do	 sistema,	 capaz	 de
apresentar,	 com	 seu	 discurso	 positivo	 e	 otimista,	 alternativas	 válidas	 ao
niilismo	do	nothing	works	que	caracteriza	o	referido	sistema.”
Esta	 aspiração	 perdura	 há	 anos	 como	 já	 vaticinou	o	 penalista	 e	ministro	 da
justiça	 alemão,	 Gustav	 Radbruch	 (1961,	 p.	 97):	 “Não	 precisamos	 de	 um
Direito	Penal	melhor,	mas	de	algo	melhor	do	que	o	Direito	Penal”.
Beristain	 (2000,	 p.	 55)	 encoraja	 esta	 expectativa:	 “Oxalá,	 as	 próximas
gerações	 possam	 prescindir	 da	 sanção	 penal”.	 De	 acordo	 com	 o	 autor
espanhol,	historicamente	já	demonstramos	que	a	superação	é	possível,	afinal,
“afortunadamente,	 superamos	 o	 antigo	 homo	 faber	 ,	 trabalhador,	 e	 o	 homo
sapiens	 ,	 que	 constata	 a	 realidade	 exterior	 a	 ele.	Chegamos	 ao	homo	 pius	 ,
compassivo	e	solidário,	ao	homo	creator	 ,	que	do	seu	 interior	vai	 fazendo	e
refazendo	 as	 coisas”	 (BERINSTAIN,	 2000,	 p.	 57).	 Somos,	 portanto,
fundamental	 e	 essencialmente	 criadores.	 Ademais,	 tão	 indesejável	 quanto	 a
prisão	 em	 grades	 seria	 a	 nossa	 prisão	 em	 ideias	 limitadas.	 A	 justiça
restaurativa	apresenta-se,	nesta	senda,	como	uma	nova	seiva	criadora.
58	Não	 é	 por	 outra	 razão	 que	 autores	 como	 João	Carlos	Galvão	 Júnior	 (2003,	 p.	 2-3)	 proclamam	 a
inconstitucionalidade	da	pena	de	prisão:	“Reconhecemos	que	a	prisão	é	uma	 realidade	absolutamente
inconstitucional,	visto	que,	pelo	Texto	Maior,	‘ninguém	será	[ou	deveria	ser]	submetido	a	tortura	nem	a
tratamento	 desumano	 ou	 degradante’	 (CF,	 art.	 5.º	 ,	 inc.	 III).	 Aliás,	 o	mesmo	 diploma	 constitucional
proíbe	 as	 penas	 cruéis	 (inc.	 XLVII,	 e),	 assinala	 que	 ‘a	 pena	 será	 cumprida	 em	 estabelecimentos
distintos,	de	acordo	com	a	natureza	do	delito,	a	 idade	e	o	 sexo	do	apenado’	e	assegura	aos	presos	 ‘o
respeito	à	integridade	física	e	moral.”
No	mesmo	sentido,	declara	García-Pablos	de	Molina	 (2012,	p.	494):	“penas	proibidas	“formalmente”
pela	nossa	Constituição	(art.	5.°,	XLVII),	penas	cruéis,	trabalhos	forçados,	pena	de	morte	via	aids	etc.)
acham-se	presentes	no	dia-a-dia	de	qualquer	estabelecimento	prisional.”
59	Bentham	(1789,	p.	29-31)	afirma:	“Não	apenas	isso,	mas	quanto	maior	for	a	probabilidade	de	que
uma	determinada	pessoa,	em	um	determinado	momento,	esteja	realmente	sob	inspeção,	mais	forte	será	a
persuasão	 —	 mais	 intenso,	 se	 assim	 posso	 dizer	 —,	 o	 sentimento	 que	 ele	 tem	 de	 estar	 sendo
inspecionado.	 […]	Regozijo-me	com	o	fato	de	que	há,	agora,	pouca	dúvida	de	que	o	plano	possui	as
vantagens	fundamentais	que	venho	atribuindo	a	ele:	quero	dizer,	a	aparente	onipresença	do	inspetor	(se
os	teólogos	me	permitirem	a	expressão),	combinada	com	a	extrema	facilidade	de	sua	real	presença.”
60	Segundo	Goffman	(1974,	p.	17),	“Nas	instituições	totais,	existe	uma	divisão	básica	entre	um	grande
grupo	 controlado,	 que	 podemos	 denominar	 o	 grupo	 dos	 internados,	 e	 uma	 pequena	 equipe	 de
supervisão.	 Geralmente,	 os	 internados	 vivem	 na	 instituição	 e	 têm	 o	 contato	 restrito	 com	 o	 mundo
existente	fora	de	suas	paredes;	a	equipe	dirigente	muitas	vezes	trabalha	num	sistema	de	oito	horas	por
dia	 e	 está	 integrada	 no	 mundo	 exterior.	 Cada	 agrupamento	 tende	 a	 conceber	 o	 outro	 através	 de
estereótipos	 limitados	 e	 hostis;	 a	 equipe	 dirigente	 muitas	 vezes	 vê	 os	 internados	 como	 amargos,
reservados	 e	 não	 merecedores	 de	 confiança;	 os	 internados	 muitas	 vezes	 veem	 os	 dirigentes	 como
condescendentes,	 arbitrários	 e	 mesquinhos.	 Os	 participantes	 da	 equipe	 dirigente	 tendem	 a	 sentir-se
superiores	 e	 corretos;	 os	 internados	 tendem,	 pelo	 menos	 sob	 alguns	 aspectos,	 a	 sentir-se	 inferiores,
fracos,	censuráveis	e	culpados”	.
61	Boaventura	de	Sousa	Santos	 (1996,	p.	692)	observa	que,	no	domínio	da	 justiça	penal,	os	grandes
“consumidores”	 (réus)	 são	 indivíduos	 jovens	 do	 sexo	 masculino.	 Porém,	 do	 seu	 ponto	 de	 vista,	 a
juventude	da	população	prisional	recomenda,	ao	contrário,	um	uso	muito	maior	das	medidas	alternativas
à	pena	de	prisão	do	que	aquele	que	tem	sido	feito.
62	A	 homossexualidade,	 a	 prostituição	 e	 a	 castração	 química	 são	 realidades	 do	 sistema	 carcerário,
segundo	apurou	a	CPI.	A	primeira	é	facilitada	pelas	condições	de	alojamento	e	pela	desconsideração	das
necessidades	 de	 índole	 sexual	 dos	 presos:	 “Os	 colchões	 são	 sempre	 em	menor	 quantidade	 do	 que	 o
número	de	presos.	Os	presos	 têm	que	colar	vários	colchões	e	grudar	o	corpo	com	o	de	outro	para	se
agasalharem”	(BRASIL,	2009,	p.	197-	198).
Sobre	 a	 prostituição,	 relata	 Luiz	 Fernando	Correa	 da	 Rocha,	 Presidente	 da	 Federação	 Brasileira	 dos
Servidores	 do	 Sistema	 Penitenciário:	 “Prostituição	 há,	 com	 certeza,	 nos	 presídios.	 Muitas	 vezes,	 a
namorada	começa	a	passar	para	outro	preso	e	assim	ela	vai	visitando	um,	dois,	 três.	[…]	O	problema
nosso	 são	 essas	 crianças	 que	 estão	 sendo	 encaminhadas	 para	 a	 prostituição	 dentro	 do	 presídio.	 […]
Porque	o	preso	também	é	pressionado	lá:	‘Ó,	tua	filha	é	bonitinha.	Passa	para	cá,	senão	acontece	alguma
coisa	contigo	ou	com	a	tua	família	na	rua’.	Quando	vê,	ele	é	obrigado	a	entregar	a	filha	ou	o	filho	para
um	outro	preso.	Isso	é	normal.	Seria	inocência	nossa	achar	que	isso	não	acontece.	[…].”.	Em	relação	às
crianças	 nascidas	 no	 presídio	 e	 que	 permanecem	 com	 suas	 mães,	 cita:	 “Como	 também	 há	 crianças
presas,	 no	 Rio	 Grande	 do	 Sul,	 dentro	 do	 presídio	 feminino.	 Nós	 temos	 lá,	 se	 não	 me	 engano,	 30
crianças,	piazinhas	lá,	de	3	a	4	anos	de	idade,	que	estão	presas	desde	que	nasceram.	E	tem	muitos	deles
que	nem	conhecem	o	que	é	rua,	que	ficam	na	grade	ali,	pendurados	na	grade”	(BRASIL,	2009,	p.	261).
Por	 fim,	 quanto	 à	 castração	 química,	 “à	 CPI	 também	 foi	 denunciado	 por	 presos,	 e	 confirmado	 pelo
Diretor	da	Penitenciária	de	Urso	Branco,	o	uso	de	uma	substância	na	comida	chamada	salitre,	com	o
objetivo	de	diminuir	o	consumo	de	alimentos	e	reduzir	o	apetite	sexual	dos	internos”	(BRASIL,	2009,	p.
201).
63	Ilustrando	a	violência	que	ocorre	literalmente	no	cárcere,	o	relatório	da	CPI	carcerária	afirma:	“Em
uma	cadeia	na	Bahia,	o	preso	disse	à	CPI	que,	quando	eles	têm	dores	e	pedem	remédio,	o	Diretor	manda
um	agente	com	um	porrete,	onde	está	escrito	“dipirona”,	para	agredi-los.	“Porradas”	é	o	remédio	que
tomam”	(BRASIL,	2009,	p.	204).
64	No	original:	“Sabemos	que	la	ejecución	penal	no	resocializa	ni	cumple	ninguna	de	las	funciones	“re”
que	se	la	han	inventado	(“re”-socialización,	personalización,	individuación,	educación,	inserción,	etc.),
que	todo	eso	es	mentira	y	que	pretender	enseñarle	a	un	hombre	a	vivir	en	sociedad	mediante	el	encierro
es,	como	dice	Carlos	Elbert,	algo	tan	absurdo	como	pretender	entrenar	a	alguien	para	jugar	futbol	dentro
de	un	ascensor”	(ZAFFARONI,	1991a,	p.	223).
65	Acerca	da	arregimentação	de	presos	por	organizações	criminosas,	relata	a	CPI	Carcerária	que	esta
prática	 influencia	 e	 até	 determina	 a	 rotina	 e	 as	 normas	 do	 presídio:	 “As	 Regras	 Mínimas	 para
Tratamento	 dos	 Presos	 no	 Brasil	 asseveram,	 em	 seu	 art.	 7º,	 que	 os	 presos	 pertencentes	 a	 categorias
diversas	devem	ser	alojados	em	diferentes	estabelecimentos	prisionais	ou	em	suas	seções,	observadas
características	pessoais	 tais	como:	sexo,	 idade,	situação	 judicial	e	 legal,	quantidade	de	pena	a	que	foi
condenado,	 regime	 de	 execução,	 natureza	 da	 prisão	 e	 o	 tratamento	 específico	 que	 lhe	 corresponda,
atendendoao	 princípio	 da	 individualização	 da	 pena.	 (…)	 No	 Rio	 de	 Janeiro	 o	 critério	 principal	 de
separação	 dos	 presos	 é	 a	 organização	 criminosa	 a	 que	 pertencem.	 A	 Lei	 de	 Execução	 Penal	 e	 seus
critérios	de	separação	dos	presos	foi	substituída	pelo	Comando	Vermelho,	pelo	Terceiro	Comando,	pelo
Amigo	dos	Amigos,	Inimigos	dos	Inimigos	ou	pelos	Amigos	de	Israel.	O	mais	grave	é	que	esse	critério
é	aceito	e	respeitado	pelo	Secretário	de	Administração	Penitenciária,	pelo	promotor	de	execução	e	pelo
defensor	público”	(BRASIL,	2009,	p.	277).
66	Neste	ponto,	merecem	destaque	as	conclusões	da	CPI	Carcerária	acerca	da	indiferença	com	a	mulher
reclusa	 e	 sobre	 os	 impactos	 na	 sua	 família:	 “(…)	 na	 prática,	 que	 as	 políticas	 de	 execução	 penal
simplesmente	ignoram	a	questão	de	gênero.	(…)	Há	crianças	recém-nascidas	na	maioria	dos	presídios
do	País,	muitas	 delas	 vivendo	 em	 condições	 subumanas,	 como	 a	CPI	 constatou	 em	Recife,	 onde,	 na
Colônia	 Bom	 Pastor,	 vimos	 um	 bebê	 de	 somente	 seis	 dias	 dormindo	 no	 chão,	 em	 cela	 mofada	 e
superlotada,	 apenas	 sobre	 panos	 estendidos	 diretamente	 na	 laje.	 (…)	 Nas	 cadeias	 femininas,	 nem
mesmo	absorvente	higiênico	ou	remédios	para	cólicas	estão	disponíveis.(…).	Quanto	aos	absorventes,
quando	 são	 distribuídos,	 são	 em	 quantidade	 muito	 pequena,	 dois	 ou	 três	 por	 mulher,	 o	 que	 não	 é
suficiente	para	o	ciclo	menstrual.	A	solução?	As	mulheres	pegam	o	miolo	do	pão	servido	na	cadeia	e	os
usam	como	absorvente.	(…)	Acompanhamos	casos	de	presas	com	câncer	de	mama	e	outros	problemas
graves	simplesmente	deixadas	à	morte,	sem	atendimento	(BRASIL,	2009,	p.	204,	205	e	283).
Sobre	o	descaso	com	a	mulher	presa,	vale	lembrar	o	fato,	ocorrido	no	Pará,	da	adolescente	de	quinze
anos	que	“ficou	presa	por	mais	de	trinta	dias	em	uma	cela	da	Cadeia	Pública	de	Abaetetuba	com	cerca
de	vinte	presos	do	sexo	masculino,	sendo	torturada	e	estuprada	repetidamente,	às	vistas	das	autoridades
que	administravam	a	unidade.	A	menina	foi	“resgatada”	pelo	Conselho	Tutelar	local,	após	sofrer	as	mais
variadas	 e	 constantes	 violências	 sexuais	 e	 psicológicas.	O	Caso	Lidiany,	 porém,	 não	 é	 único.	A	CPI
acompanhou	 em,	 outros	 Estados,	 situações	 semelhantes,	 e,	 pior,	 muitas	 vezes,	 as	 autoridades
responsáveis	 tratam	 a	 questão	 como	 de	 somenos	 importância.	 Ouvimos	 de	 diversos	 delegados,
promotores,	 agentes	 penitenciários	 e	 até	 juízes	 que	 “quando	 não	 tem	 onde	 prender	 mulher,	 a	 gente
coloca	com	os	homens,	mesmo…	Fazer	o	quê?”.	(…)	Detectamos	outros	casos	semelhantes	ao	daquela
jovem.	 Encontramos	 mais	 duas	 detentas,	 uma	 já	 havia	 tirado	 cinco	 meses	 de	 cadeia	 com	 mais	 38
homens,	no	Estado	do	Pará	—	esta	inclusive	engravidou	de	um	dos	presos	e	teve	um	filho	—,	e	uma
outra	detenta	que	ficou	presa	por	seis	meses,	já	tirou	cadeia	acho	que	duas	vezes	e	tem	dois	filhos	de
presidiários.	Ela	não	sabe	nem	quem	é	o	pai,	porque	 teve	de	 fazer	 sexo	com	outras	pessoas	 também,
dentro	do	sistema	prisional”	(BRASIL,	2009,	p.	285).
67	A	locução	 foi	enfaticamente	 repetida	pela	 imprensa	americana	em	manchetes	 (como	em	“Nothing
works!”),	 o	 que	 contribuiu	 para	 a	 sua	 difusão.	O	 original	 da	 entrevista	 de	Martinson	 à	 revista	 “The
public	 interest”	 está	 disponível	 em:	 http://pt.scribd.com/doc/58100576/MARTINSON-What-Works-
Questions-and-Answers-About-Prison-Reform	.	Acesso	em:	25	out.	13.
68	 Um	 estudo	 feito	 nas	 dependências	 das	 instituições	 penais	 do	 estado	 de	 Ohio	 relatou	 que	 a
“velocidade	 de	 reincidência”	 entre	 os	 jovens	 ofensores,	 na	 verdade,	 se	 eleva	 com	 cada
institucionalização	 (VITO,	Gennaro	F;	ALLEN,	Hary	E.	Shock	 probation	 in	Ohio	 :	 a	 comparison	 of
outcomes.	International	journal	of	offender	therapy	and	comparative	criminology,	vol.	25,	no.	1,	1981,
pp.	70-76.	Disponível	em:	http://ijo.sagepub.com/content/25/1/70.extract.	Acesso	em:	15	out.	10).	Esta
experiência	 foi	 confirmada	numa	pesquisa	 sobre	 os	 presos	 adultos	 de	 prisões	 estaduais	 da	Califórnia
(GREENWOOD,	 Peter	 W;	 TURNER,	 Susan.	 Selective	 incapacitation	 revisited,	 RAND	 publication,
Santa	Monica,	California,	1987.	Disponível	em:	http://www.rand.org/pubs/reports/R3397.html.	Acesso
em:	 25	 out.	 13.).	A	 conclusão	 de	 ambas	 é	 que	 as	 prisões	 são	 criminógenas	—	produzindo	 a	mesma
mazela	que	pretendem	tratar.
69	Neste	sentido,	o	criminologista	nova-iorquino	afirmou:	“the	present	array	of	correctional	treatments
has	 no	 appreciable	 effect	 -	 positive	 or	 negative	 -	 on	 rates	 of	 recidivism	 of	 convicted	 offenders”
(MARTINSON,	 1972,	 p.	 317);	 “…rehabilitative	 efforts	 that	 have	 been	 reported	 so	 far	 have	 no
appreciable	effect	on	recidivism”	(MARTINSON,	1974,	p.	25).
70	Relatório	do	caso	disponível	em:	http://laws.findlaw.com/us/488/361.html	.	Acesso	em:	25	out.	13.
71	Nas	palavras	de	Martinson	(1972,	p.	327),	“on	the	whole,	the	prisons	have	played	out	their	allotted
role.	They	cannot	be	reformed	and	must	be	gradually	torn	down”.
72	Consoante	Foucault	(2008,	p.	31-32),	“uma	pena,	para	ser	considerada	um	suplício,	deve	obedecer	a
três	critérios	principais:	em	primeiro	lugar,	produzir	uma	certa	quantidade	de	sofrimento	que	se	possa,
se	não	medir	exatamente,	ao	menos,	apreciar,	comparar	e	hierarquizar;	[…]	o	suplício	faz	parte	de	um
ritual.	É	um	elemento	na	 liturgia	punitiva,	e	que	obedece	a	duas	exigências,	 em	relação	à	vítima,	ele
deve	ser	marcante:	destina-se	a	[…]	tornar	infame	aquele	que	é	a	vítima.	[…]	e	pelo	lado	da	justiça	que
o	impõe,	o	suplício	deve	ser	ostentoso,	deve	ser	constatado	por	todos,	um	pouco	como	seu	triunfo.”
73	Silva	 Júnior	 (2009,	 p.	 11)	 explica	 que,	 nos	 processos	 secretos,	 o	 acusado	 não	 sabia	 qual	 era	 a
imputação	 feita	 contra	 si,	 tampouco	 os	 depoimentos	 tomados	 ou	 as	 provas	 apuradas.	 “Imperava	 o
entendimento	de	que,	sendo	inocente,	de	defesa	o	acusado	não	precisava,	enquanto	se	fosse	culpado,	a
ela	não	teria	direito.	Era	a	influência,	ainda,	de	alguns	dogmas	da	concepção	religiosa”.
74	Segundo	o	cientista	político,	o	§51	da	referida	lei	determina:	“abolir	para	sempre	a	pena	de	morte
contra	 qualquer	 réu,	 seja	 primário	 ou	 contumaz,	 e	 ainda	 que	 confesso	 e	 convicto	 de	 qualquer	 delito
declarado	capital	pelas	 leis	até	aqui	promulgadas,	 todas	as	quais	ficam	revogadas	e	abolidas	no	que	a
isso	se	refere”	(BOBBIO,	2004,	p.	69).
75	Um	estudo	feito	entre	estados	americanos	que	aplicam	a	pena	de	morte	como	sanção	e	os	que	não	a
aplicam	demonstrou	que	a	 taxa	de	homicídios,	entre	os	anos	de	1991	e	2011,	é	menor	nos	que	não	a
adotam,	o	que	denota	a	ineficácia	do	alardeado	efeito	dissuasório	da	pena	de	morte	em	relação	a	outras
menos	 severas.	 Pesquisa	 disponível	 em:	 http://www.deathpenaltyinfo.org/deterrence-states-without-
death-penalty-have-had-consistently-lower-murder-rates.	Acesso	em:	18	fev.	13.
Vale	ainda	mencionar	outra	interessante	pesquisa	feita	pelos	americanos	Radelet	e	Lacock	que	concluiu
haver	consenso	entre	os	maiores	criminologistas	do	mundo	de	que	a	pena	de	morte,	por	exemplo,	não
adiciona	 qualquer	 efeito	 dissuasor	 significativo	 além	 do	 que	 já	 faz	 uma	 prisão	 por	 longo	 prazo.
Disponível	em:	http://www.deathpenaltyinfo.org/files/DeterrenceStudy2009.pdf.	Acesso	em:	18	fev.	13.
76	Para	 exemplificar	 seu	argumento,	Bobbio	 (2004,	p.	71)	 cita	 a	 frase	de	Dostoiévski	 em	O	 Idiota	 ,
atribuída	ao	príncipe	Myshkin:	“E,	então,	se	alguém	matou,	por	que	se	tem	de	matá-lo	também?	Matar
quem	matou	 é	 um	 castigo	 incomparavelmente	 maior	 do	 que	 o	 próprio	 crime.	 O	 assassinato	 legal	 é
incomparavelmente	mais	horrendo	do	que	o	assassinato	criminoso”.
77	Em	1976,	Andrew	von	Hirschi	era	o	diretor	do	referido	comitê,	que	concluiu	que	as	sentenças	de
reabilitação	eram,	muitas	vezes,	excessivamente	longas	e	desproporcionais	à	ofensa	cometida	e	que,	por
esta	razão,	o	modelo	just	deserts	deveria	substituir	o	vigente	(BARTON,	A.,	2004,	p.	1).
78	Neste	 aspecto,	 um	 argumentoa	 favor	 do	 modelo	 just	 deserts	 é	 que	 ele	 ofereceria	 um	 nível	 de
proteção	aos	inocentes,	inexistente	em	outras	filosofias	(ao	menos	em	tese).	Por	exemplo,	a	punição	de
um	 inocente	 poderia	 ser	 justificada,	 teoricamente,	 dentro	 de	 uma	 teoria	 de	 dissuasão	 geral	 rigorosa,
segundo	a	qual	justifica-se	a	imposição	do	castigo	a	um	inocente,	desde	que	dissuada	outros	potenciais
ofensores,	 o	 que	 seria	 benéfico	 para	 a	 sociedade	 em	 geral.	 Como	 uma	 teoria	 retribucionista,	 o	 just
deserts	defende	sanções	apenas	aos	culpados	e	considera	a	punição	do	inocente	—	independentemente
de	 qualquer	 consequência	 positiva	 que	 possa	 ser	 alcançada	 com	 ela	—	 como	 inerentemente	 injusta
(BARTON,	A.,	2004,	p.	1).
79	Alana	Barton	é	coordenadora	do	programa	de	criminologia	e	justiça	criminal	da	Universidade	Edge
Hill,	na	Inglaterra.
80	A	autora	revela	que,	na	prática,	há	alguma	dificuldade	em	estabelecer	valores	de	referência	para	a
proporcionalidade	 das	 sentenças.	 Nos	 Estados	 Unidos,	 estados	 tradicionalmente	mais	 liberais	 (como
Minnesota)	 introduziram	“escalas”	de	castigo	mais	moderadas,	ao	passo	que	estados	 tradicionalmente
mais	punitivos	(como	o	Novo	México)	se	valem	de	parâmetros	muito	mais	duros.	Consequentemente,
naquele	país,	continua	a	haver	grandes	diferenças	nas	sentenças	que	os	indivíduos	recebem	por	delitos
semelhantes	(BARTON,	A.,	2004,	p.	2).
81	Barbara	 Hudson,	 socióloga,	 foi	 professora	 na	 University	 of	 Central	 Lancashire,	 Reino	 Unido	 e
crítica	da	abordagem	just	deserts	,	dedicando-se	à	construção	de	uma	“teoria	social	de	culpabilidade”.
Para	 a	 autora	 “culpability	 should	 be	 able	 to	 be	 reduced	 or	 nullified	 by	 economic	 duress	 or	 similar
circumstantial	 constraint,	 and	 that	 in	 every	 case,	 assessment	of	 culpability	 should	be	 informed	by	 an
understanding	of	freedom	of	choice	as	a	matter	of	degree,	rather	than	seeing	offenders	as	either	totally
freely-choosing,	or	totally	determined”	(Hudson,	1995,	p.	76).
82	Oportuno	aqui	ressaltar	a	opinião	de	Noberto	Bobbio	para	quem,	em	matéria	de	bem	e	de	mal,	prisão
ou	 desencarcerização,	 pena	 de	 morte	 ou	 não,	 o	 princípio	 da	 maioria	 não	 é	 válido.	 Isso	 porque	 “as
pesquisas	 de	 opinião	 provam	 pouco,	 já	 que	 estão	 sujeitas	 às	 mudanças	 de	 humor	 das	 pessoas,	 que
reagem	emotivamente	diante	dos	fatos	de	que	são	espectadoras.	É	sabido	que	a	atitude	do	público	diante
da	 pena	 de	 morte	 varia	 de	 acordo	 com	 a	 situação	 de	 menor	 ou	 maior	 tranquilidade	 social.	 Se	 não
tivessem	 ocorrido	 o	 terrorismo	 e	 o	 aumento	 da	 criminalidade	 nestes	 últimos	 anos,	 é	 provável	 que	 o
problema	da	pena	de	morte	sequer	tivesse	sido	levantado”	(BOBBIO,	2004,	p.	68).
83	Seffair	(2013,	p.	9)	explica	que	a	população	tem	a	percepção	de	que	polícia	eficiente	é	aquela	que
realiza	muitas	prisões	e	desenrola	inquéritos,	que	Ministério	Público	eficiente	seria	aquele	que	oferece
mais	denúncias	e	que	justiça	eficiente	é	a	que	apresenta	maiores	índices	de	condenação,	não	importando
a	forma	de	fazê-lo.	Por	estas	razões,	as	políticas	públicas	na	área	da	segurança,	no	Brasil,	privilegiam	o
encarceramento	como	estratégia	de	dissuasão	da	prática	de	outros	crimes,	mesmo	diante	de	evidências
científicas	de	que	tal	estratégia	não	obteve	êxito	em	outros	lugares.
84	Note-se	que	a	justiça	restaurativa	não	se	confunde	com	a	vingança	privada	e	que	uma	reação	violenta
ou	 desproporcional	 da	 vítima	 ao	 delito	 não	 contribui	 para	 diminuir	 seu	 sofrimento.	 Exemplo	 disso
ocorreu	numa	escola	de	São	Caetano	do	Sul,	 em	um	caso	de	bullying:	 uma	menina	 foi	 apelidada	 de
“testuda”	e	assim	chamada	por	meses.	Em	determinado	dia,	ela	agrediu	violentamente	quem	a	tratava
por	 esse	 apelido.	 Levado	 o	 caso	 ao	 círculo	 restaurativo,	 ela	 pode	 apontar	 o	 quanto	 o	 apelido	 a
incomodava	e	a	fazia	sofrer.	O	autor	da	alcunha	(e	vítima	da	agressão)	disse	não	imaginar	o	impacto	que
aquele	apelido	lhe	causava.	As	partes	chegaram	a	um	acordo	e	o	caso	revelou	o	quanto	a	menina	ainda
se	 sentia	 vítima	 de	 uma	 conduta	 opressora	 e	 indesejada,	 por	mais	 que	 tenha	 reagido	 em	 excesso.	O
círculo	restaurativo	pode,	assim,	equacionar	o	problema	com	maior	profundidade	e	satisfação	a	 todos
(MELO,	EDNIR	e	YAZBEK,	2008,	p.	63).
85	Este	mecanismo	surgiu	no	final	dos	anos	60,	nos	países	de	tradição	anglo-saxã	(sistema	americano,
britânico,	australiano	e	canadense,	entre	outros	países),	em	busca	de	vias	alternativas	ao	sistema	legal,
ou	 seja,	 de	 instâncias	 não	 oficiais	 e	mecanismos	 informais	 que	 pudessem	 resolver	 os	 conflitos	 com
eficácia	e	menor	custo	(GARCÍA-PABLOS	DE	MOLINA;	GOMES,	2012,	p.	454).
86	 Sobre	 o	 significado	 desta	 mudança	 de	 orientação,	 Beristain	 (2000,	 p.	 63)	 afirma:	 “A	 nova
espistemologia	tem	de	prestar	atenção	ao	direito	penal	solidário,	fraternal,	generoso	e	criador,	que	saiba
converter	o	esterco	do	delito	em	flores	do	companheirismo,	o	direito	talional	no	direito	premial”.
PARTE	II
A	EMERGÊNCIA	DO	PARADIGMA
DA	TRANSMODERNIDADE
DA	INSURGÊNCIA	À	ASSIMILAÇÃO	DA	JUSTIÇA
RESTAURATIVA?
CAPÍTULO	III
DIÁLOGOS	ENTRE	A	FILOSOFIA	
DO	DIREITO,	A	SOCIOLOGIA	
JURÍDICA	E	A	TEORIA	POLÍTICA	
FUNDAMENTOS	PLURAIS	DO	NOVO	PARADIGMA
“Paradigma”	 é	 a	 expressão	 utilizada	 por	 Thomas	 Kuhn	 para	 se	 referir	 ao
conjunto	de	avanços	científicos	universalmente	reconhecidos	que,	por	algum
tempo,	 fornecem	 problemas	 e	 soluções-modelo	 para	 uma	 comunidade	 de
pesquisadores	 (KUHN,	 1992,	 p.	 13).	 Um	 paradigma	 define	 os	 problemas
legítimos	e	métodos	de	pesquisa	em	uma	determinada	disciplina	e	conquista
novos	 adeptos	 para	 além	 das	 abordagens	 triviais,	 ofertando	 a	 esses
profissionais	desafios	inéditos	por	resolver.
Um	 paradigma	 domina	 uma	 disciplina	 científica,	 impondo	 sua	 matriz
conceitual	e	suas	estratégias	cognitivas	para	a	solução	de	várias	questões.	À
proporção	 que	 se	 desenvolve	 e	 amadurece,	 ele	 revela	 incapacidades
ocasionais	 para	 enfrentar	 novas	 vicissitudes.	 As	 respostas	 produzidas	 ao
longo	das	pesquisas	não	correspondem	mais	 às	 expectativas	da	comunidade
científica.	 O	 paradigma	 é,	 então,	 deflacionado	 ou	 abandonado	 quando
estudiosos	instigados	começam	a	procurar	novas	fórmulas	e	soluções.	Não	se
trata	simplesmente	da	passagem	de	uma	opção	teórica	para	outra,	mas	de	uma
mudança	epistemológica	radical.	Esta	ruptura	oportuniza	uma	forma	diferente
de	 pensar	 e	 proporciona	 novos	 modelos	 e	 teorias	 que	 desafiam	 o	 modo
tradicional	de	interpretar	e	explicar	eventos.	Obviamente,	esta	mudança	gera
conflitos	e	 resistências	cognitivas	que	são	ainda	mais	evidentes	pelo	fato	de
que	 não	 só	 o	modo	 de	 configurar	 e	 lidar	 com	 problemas	 são	 questionados,
mas	 também	a	habilidade	de	 cientistas	 e	profissionais	 tradicionais	 até	 então
considerados	como	depositários	do	“conhecimento	oficial”	(SALVINI,	2006,
p.1).
Neste	 estudo,	 utilizamos	 a	 noção	de	 paradigma	 e	 de	 crise	 paradigmática	 de
Kuhn	para	demonstrar	a	 inadequação	das	 respostas	dadas	para	o	crime	pelo
nosso	 sistema	 de	 justiça	 criminal	 e	 a	 necessidade	 da	 sua	 superação.	 A
aplicação	 do	 conceito	 kuhniano	 de	 paradigma	 das	 ciências	 sociais	 (soft
sciences)	 -	 na	 qual	 se	 costuma	 incluir	 o	 Direito	 87	 -	 seria,	 a	 princípio,
questionável,	visto	que	o	próprio	físico	e	filósofo	atribui	a	estas	ciências	um
carácter	 pré-paradigmático	 distinguindo-as	 das	 ciências	 naturais	 (hard
sciences)	—	essas,	sim,	paradigmáticas.
Isso	 se	 deve	 ao	 fato	 de	 que,	 enquanto	 nas	 ciências	 naturais	 é	 possível	 a
formulação	 de	 um	 conjunto	 de	 princípios	 e	 de	 teorias	 sobre	 a	 estrutura	 da
matéria	que	são	aceitos	sem	discussão	por	toda	a	comunidade	científica,	nas
ciências	sociais	não	haveria	consenso	paradigmático,	pelos	seguintes	motivos:
os	 fenômenos	 sociais	 são	 de	 natureza	 subjetiva	 e,	 como	 tal,	 não	 se	 deixam
captar	pela	objetividade	do	comportamento;	as	ciências	sociais	não	dispõem
de	teoriasexplicativas	que	lhes	permitam	abstrair	do	real	para	depois	buscar
nele,	de	modo	metodologicamente	controlado,	a	prova	adequada;	as	ciências
sociais	 não	 podem	 estabelecer	 leis	 universais	 porque	 os	 fenômenos	 sociais
são	historicamente	condicionados	e	culturalmente	determinados	e	as	ciências
sociais	 não	 podem	 produzir	 previsões	 fiáveis,	 porque	 os	 seres	 humanos
modificam	o	seu	comportamento	em	função	do	conhecimento	que	sobre	ele	se
adquire	(SOUSA	SANTOS,	2010,	p.	20).
Trata-se,	 entretanto,	 de	 uma	 concepção	 de	 ciência	 social	 típica	 do
modernismo.	Este	modelo	parte	de	uma	visão	mecanicista	que	distingue	entre
natureza	 e	 ser	 humano,	 entre	 a	matéria	 e	 a	 natureza	 que	 a	 compõe.	 Porém,
observa	 Sousa	 Santos,	 essa	 distinção	 dicotômica	 entre	 ciências	 naturais	 e
ciências	 sociais	deixou	de	 ter	 sentido	e	utilidade,	pois	 todo	o	 conhecimento
científico-natural	 é	 também	 científico-social.	Há	 uma	 progressiva	 fusão	 das
ciências	naturais	e	sociais	que	coloca	a	pessoa,	autor	e	sujeito	do	mundo,	no
centro	do	conhecimento.	Ela	revaloriza	conceitos	como	ser	humano,	cultura,
sociedade,	 historicidade,	 processo,	 liberdade,	 autodeterminação	 e	 até
consciência	(SOUSA	SANTOS,	2010,	p.	44).
Esta	ciência	atual,	unívoca,	reconhece	que	não	se	possui	a	verdade	objetiva	de
forma	constante	e	permanente,	e	que	não	é	possível	uma	pretensa	e	utópica
validez	 universal	 de	 seus	 princípios.	 Envida	 uma	 busca	 constante	 e
permanente	pela	verdade,	pela	explicação	evolutiva	dos	diversos	 fenômenos
naturais	 e	 sociais	 num	 continuum	 (FRIEDE,	 2009,	 p.	 237).	 Por	 isso,	 o
conceito	de	paradigma	científico	de	Kuhn	se	aplica	a	esta	ciência	enriquecida,
na	qual	se	inclui	o	Direito.
A	reforçar	este	argumento	está	a	observação	de	Freitas	Filho	(2003,	p.	30),	de
que	 vigora	 entre	 os	 operadores	 do	 direito	 um	 conjunto	 de	 crenças,	 o	 qual
possui	certa	unidade	e	uma	aceitação	por	estes	profissionais,	ainda	que	não	se
faça	 uma	 opção	 declarada	 por	 ele.	 É	 a	 chamada	 “cultura	 jurídica”,	 uma
postura	 ideológica	 e	 teórica	 que	guia	 a	 prática	 jurídica	 (a	 chamada	 “cultura
jurídica”	88	)	à	qual	o	conceito	de	paradigma	é	também	adequado.
Rogério	 Schietti	 observa	 que	 a	 cultura	 jurídica	 no	 Direito	 costuma	 ser
resistente	ao	pensamento	crítico,	o	que	acarreta	 lentidão	ao	 seu	processo	de
atualização	e	modernização:
[…]	 a	 Ciência	 do	 Direito	 é,	 quiçá,	 a	 que	 ostenta	 maior	 lentidão	 no	 seu	 processo	 de
atualização	 e	 modernização.	 Enquanto	 a	 Medicina,	 a	 Engenharia,	 a	 Física	 e	 outras
ciências	 avançam	 a	 passos	 largos,	 renovando	 seus	 postulados	 e	 aperfeiçoando	 suas
técnicas,	 em	 um	 ritmo	 compatível	 com	 a	 flexibilidade	 da	 sociedade	 pós-industrial,	 o
Direito	 do	 século	 XXI	 ainda	 é,	 na	 sua	 essência,	 muito	 similar	 ao	 que	 se	 ensinava	 e
praticava	nas	primeiras	décadas	do	século	XX.	Nossa	formação	acadêmica	e	profissional
dificulta-nos	 pensar	 criticamente	 o	 Direito	 e	 acompanhar	 o	 seu	 processo	 de	 evolução,
bastando	olhar	o	abismo	ideológico	e	semântico	que	separa	o	Código	de	Processo	Penal
da	Constituição	 Federal,	 o	 que	 já	 bastam	 para	 impelir	 os	 intérpretes	 e	 aplicadores	 do
direito	 a	 uma	 releitura	 atualizadora	 de	 certos	 dogmas	 e	 institutos	 jurídicos	 mantidos
intactos	no	percurso	de	nossa	história	colonial,	 imperial	e	republicana	(CRUZ,	2013,	p.
52).
Segundo	o	autor,	não	há	como	dissociar	 a	modernização	das	 instituições	da
mudança	na	cultura	jurídica:
De	fato,	mesmo	se	tivéssemos	o	melhor	código	de	processo	penal	do	mundo	e	as	melhores
e	mais	aparelhadas	instituições,	nenhum	resultado	concreto	e	efetivo	se	alcançaria	sem	a
necessária	mudança	de	mentalidade	por	parte	dos	operadores	do	Direito.	Afinal,	não	se
pode	 reformar	 a	 instituição	 sem	 uma	 prévia	 reforma	 das	 mentes,	 mas	 não	 se	 podem
reformar	as	mentes	 sem	uma	prévia	 reforma	das	 instituições	 (Morin,	2000:	99)	 (CRUZ,
2013,	p.	52).
Um	 exemplo	 de	 mudança	 paradigmática	 significativa	 na	 criminologia	 (em
que	pese	alguns	autores,	como	Salo	de	Carvalho	(2009,	p.	299-300)	assim	não
a	 considere,	 foi	 a	 virada	 criminológica	 (criminological	 turn	 )	 ocorrida	 nas
décadas	 de	 1940	 e	 1950,	 com	 a	 publicação	 dos	 estudos	 sociológicos	 de
Sutherland	 (The	 White	 Collar	 Crime)	 e	 Becker	 (Outsiders:	 Studies	 in	 the
Sociology	 of	 Deviance),	 que	 desestabilizaram	 a	 estrutura	 de	 pensamento
positivista	à	época,	ao	ponto	de	serem	tachados	de	“anti-criminologia”	89	.
O	 trabalho	 dos	 autores	 inovou	 ao	 superar	 o	 conceito	 de	 criminalidade	 (que
buscava	no	homem	as	causas	do	crime,	tendo-o	como	objeto	de	investigação),
em	favor	da	noção	de	criminalização	(como	processo	social	dinâmico,	no	qual
o	homem	é	sujeito).	A	partir	de	então,	a	criminologia	assumiu	a	feição	crítica
e	 suas	 investigações	 foram	 “direcionadas	 à	 crítica	 dos	 processos	 de
criminalização	 (política	 criminal),	 dos	 fundamentos	dogmáticos	do	direito	 e
do	 processo	 penal	 (crítica	 à	 dogmática	 penal)	 e	 da	 aplicação	 judicial	 do
direito	 penal	 e	 do	 processo	 penal	 (dogmática	 penal	 crítica)”	 (CARVALHO,
2009,	p.	305).
Em	que	pese,	vez	por	outra,	um	estudo	criminológico	remontar	à	etiologia	do
crime,	como	visto	na	seção	4.1,	este	tipo	de	abordagem	não	encontra	guarida
significativa	 no	 pensamento	 criminológico	 atual	 90	 .	 A	 virada	 criminológica
desafiou,	portanto	o	paradigma	então	vigente,	em	que	pese	não	ter	significado
uma	 ruptura	 completa	 com	 este.	 Afinal,	 lembra	 Khun,	 a	 transição
paradigmática	não	é	instantânea,	senão	um	processo	sem	limite	de	tempo	pré-
definido.
Atualmente,	no	âmbito	penal,	a	cultura	jurídica	vigorante	é	a	punitiva.	Nela,	o
ofensor	deve	pagar	o	mal	causado	por	meio	da	pena,	a	qual	serve	para	castigá-
lo,	desestimulá-lo	(assim	como	os	demais	cidadãos),	neutralizá-lo	(retirando-o
do	convívio	social)	e	tratá-lo	para	que	volte	à	vida	em	sociedade.	Entretanto,
o	 paradigma	 punitivo	 contemporâneo	 não	 tem	 logrado	 oferecer	 soluções
adequadas	para	o	problema	da	criminalidade	crescente	 seja	porque	a	 reação
ao	crime	não	 tem	sido	rápida,	eficaz	e	capaz	de	prevenir	novos	delitos,	seja
porque	 a	 alegada	 finalidade	de	 “ressocialização”	do	ofensor,	 se	 considerada
como	 forma	 de	 intervenção	 benéfica	 e	 positiva	 nele,	 também	 não	 tem	 sido
alcançada.	 Tal	 situação	 se	 amolda	 ao	 que	 Kuhn	 descreve	 como	 crise
paradigmática,	na	qual	um	número	significativo	de	anomalias	se	acumula	e	as
instituições	deixam	de	responder	apropriadamente	a	elas.	A	identificação	dos
limites	e	das	insuficiências	estruturais	de	um	paradigma	é	resultado	do	grande
avanço	 no	 conhecimento	 que	 ele	 mesmo	 propiciou.	 Por	 outro	 lado,	 esse
aprofundamento	 do	 conhecimento	 permite	 ver	 a	 fragilidade	 dos	 pilares	 em
que	se	 funda.	Neste	cenário,	a	disciplina	é	 lançada	em	um	estado	de	crise	e
novas	ideias	passam	a	ser	consideradas.
A	 nova	 proposta	 paradigmática	 é	 pelo	 reconhecimento	 do	 crime	 como	 um
conflito	 humano,	 que	 gera	 expectativas	 outras,	 além	do	mero	 castigo	 ou	 da
satisfação	da	pretensão	punitiva	estatal.	A	mudança	reclamada	é	por	um	novo
modelo	de	 justiça	penal,	mais	humano	e	 integrador,	 que	 contemple	o	delito
como	 um	 problema	 social	 e	 comunitário,	 capaz	 de	 responder	 às	 demandas
legítimas	de	todos	os	implicados	no	fenômeno	criminal:	a	reparação	em	favor
da	 vítima,	 cujo	 protagonismo	 foi	 redescoberto;	 a	 reintegração	 do	 ofensor	 e
uma	 eficaz	 política	 criminal	 prevencionista	 (racional	 e	 com	 o	 menor	 custo
social	 possível).	 A	 demanda	 é	 pelo	 desenvolvimento	 de	 uma	 nova	 cultura,
resistente	 às	 práticas	 simplificadoras	 de	 combate	 à	 criminalidade	 (seja	 a	 da
violência	estatal	em	resposta	à	violência	do	ofensor	ou,	no	outro	extremo,	do
permissivo	que	impede	a	sua	responsabilização)	(BRANCHER,	2007,	p.	7).
Trata-se	de	um	paradigma	bastante	ambicioso	e	que	requer	a	flexibilização	de
procedimentos	 formais,de	 modo	 a	 abranger	 soluções	 espontâneas	 e
comunitárias.	Representa	uma	superação	do	paradigma	anterior,	demandando
novas	 lentes	 para	 antigos	problemas.	Entretanto,	 é	 provável	 que,	 por	 algum
tempo,	ainda	terá	que	se	conviver	inusitadamente	com	ambos	os	paradigmas,
até	 que	 os	 operadores	 do	 sistema	 de	 justiça	 criminal	 se	 apercebam	 do	mau
funcionamento	do	sistema	de	justiça	criminal	e	da	necessidade	de	se	encontrar
caminhos	 alternativos	 e	 até	 que	 vítimas,	 ofensores	 e	 comunidades	 se	 deem
conta	de	que	o	sistema	de	justiça	criminal	não	os	atende,	que	ignora	as	suas
necessidades,	 e	 que	 desejariam	 ser	 escutados	 e	 participarem	 ativamente	 da
solução	de	seus	conflitos.
3.1	Contextualizando	a	revolução:	a	pós-modernidade	91
O	paradigma	vigente	concebe	o	crime	como	sendo	uma	violação	das	leis	do
Estado.	 O	 delito	 é	 um	 fato	 “típico,	 antijurídico	 e	 culpável”,	 merecedor	 de
sanção.	Há	 um	 enfrentamento	 simbólico	 entre	 a	 lei	 e	 o	 violador,	 e	 a	 este	 é
atribuído	o	papel	de	sujeito	ativo	da	infração,	enquanto	a	vítima	é	meramente
o	 sujeito	 passivo	 da	 relação.	 Essa	 concepção	 ideal	 de	 um	 sujeito	 formal,
encapsulado	em	si	mesmo	e	apartado	de	suas	 relações	humanas,	é	 típica	do
paradigma	moderno	92	.
Conforme	Warat	 (2001,	 p	 160),	 esta	 consideração	 de	 pessoas	 como	 meros
“sujeitos	 jurídicos”,	 o	 ser	 pensado	 como	 um	 ente	 é	 uma	 distorção	 violenta,
viciosa	e	uma	denegação	de	humanidade.	Esta	visão	impessoal	e	mecanicista
do	 indivíduo	 não	 se	 coaduna	 com	 a	 peculiaridade	 do	 ser	 humano,	 único	 e
irrepetível.	Impõe-se,	portanto,	uma	mudança	de	paradigma	que	reconheça	a
singularidade	do	ser,	a	humanidade	presente	nas	suas	relações	(a	“outridade”)
e	a	humanização	93	dos	seus	conflitos.
No	 vigor	 deste	 novo	 paradigma	 jurídico-cultural,	 a	 justiça	 passa	 a	 se
preocupar	 com	 a	 qualidade	 de	 vida	 e	 não	 em	 castigar	 supostos	 desvios
valorativos,	morais	ou	de	ações,	“considerados	como	tais	por	uma	civilização
que	faz	da	ordem	sua	neurose”.	A	pós-modernidade	prenuncia	a	emergência
de	 um	 paradigma	 de	 sentidos	 e	 de	 sensibilidades,	 baseada	 na	 relação
interpessoal	 como	 condutora	 da	 produção	 de	 um	 direito	 transmoderno
(WARAT,	2001,	p	160).
Consoante	 o	 professor	Warat	 (2001,	 p.	 179),	 o	 discurso	 científico	moderno
emprega	 termos	 como	 determinismo,	 racionalidade,	 universalidade	 e
progresso.	 O	 direito	 não	 escapou	 a	 esses	 pressupostos	 míticos	 e	 crê	 na
existência	de	fórmulas	mágicas	que	podem	realizá-los	na	sociedade,	na	forma
de	uma	geometria	racional	e	unívoca,	como	simbolizam	os	tipos	penais	e	suas
penas.	Atestando	o	repúdio	às	grandes	narrativas	modernas	e	às	suas	verdades
universais	 também	 no	 direito,	 o	 comentário	 de	 Salo	 de	 Carvalho	 (2009,	 p.
316):
A	área	da	penalogia	parece	ser	a	de	maior	sensibilidade	em	termos	de	recepção	da	crítica
pós-moderna,	 […]	 sobretudo,	 pelo	 esgotamento	 dos	 discursos	 de	 legitimação	 (teorias
absolutas,	 relativas	 e	 ecléticas)	 a	 partir	 da	 não-correspondência	 das	 crenças	 em	 suas
finalidades	com	o	real	impacto	da	punição	sobre	o	criminalizado	e	sobre	a	sociedade.
O	autor	acusa	a	modernidade,	no	âmbito	das	ciências	criminais,	de	simplificar
o	 controle	 social	 punitivo,	 com	a	 fixação	de	uma	 resposta	penal	unívoca	 (o
cárcere),	independente	da	diversidade	do	ato	praticado:
A	fórmula	é	relativamente	simples:	reduzir	os	problemas	em	casos-padrão,	vinculando-os
a	respostas-receituário.	O	sintoma	do	esgotamento	da	fórmula	dogmática	é	percebido	nas
indagações,	 nada	 atuais,	 sobre	 quais	 os	 critérios	 que	 permitem	 conceber	 condutas	 tão
significativamente	 díspares	 sob	 o	 mesmo	 rótulo	 (crime)	 e	 como	 se	 justificativa	 à
proposição	de	mesma	resolução	(pena)	(CARVALHO,	2009,	p.	319).
Para	 Salo,	 a	 associação	 delito-pena	 constitui	 uma	 inaceitável	 simplificação,
porque	ela	abarca	sob	a	mesma	categoria	(crime),	problemas	muito	distintos,
propondo-lhes	a	mesma	solução	(pena).	O	mesmo	se	sucederia	em	relação	à
criminologia.	 Segundo	 o	 autor,	 ela	 poderia,	 no	 máximo,	 fazer	 eleições
parciais	 e	 sugerir	 respostas	 limitadas	 ao	 problema	 criminal,	 já	 que	 em
sociedades	 complexas	 como	 a	 nossa,	 não	 seria	 cabível	 propor	 um	 projeto
metodológico	universal:
A	 vontade	 de	 sistema	 (pretensão	 de	 totalidade)	 além	 de	 revelar	 o	 caráter	 narcísico
patológico	 das	 ciências	 (criminais)	 expõe	 sintoma	 de	 absoluta	 ausência	 de	maturidade
face	à	 falta	de	percepção	dos	 limites	do	possível,	 sendo	que,	 todas	as	metodologias,	até
mesmo	 as	mais	 óbvias,	 têm	 seus	 limites.	 Assim,	 invariavelmente,	 apresentam	 profundos
déficits,	teóricos	ou	práticos	(CARVALHO,	2009,	p.	330).
Em	 suma,	 o	 sistema	 de	 justiça	 criminal,	 positivista,	 dogmático,	 baseado	 na
figura	 do	 ofensor	 e	 na	 atribuição	 de	 culpa,	 parte	 de	 um	 ponto	 de	 vista	 de
“universal”	para	as	situações	problemáticas,	sem	considerar	o	seu	contexto	ou
fornecer	alternativas	emancipatórias	para	enfrentá-las	(HULSMAN,	2004,	p.
68).
Segundo	Boaventura	de	Sousa	Santos,	a	ordem	científica	emergente	questiona
o	dogmatismo	e	a	autoridade	refutando	todas	as	formas	de	positivismo,	seja
ele	 lógico	 ou	 empírico,	 bem	 como	 quaisquer	 mecanicismos	 94	 ,	 seja
materialistas	ou	idealistas.
Na	 seara	 criminal,	 acrescenta	 Salo	 (2009,	 p.	 320),	 a	 era	 pós-moderna
incorpora	o	fator	“complexidade”	de	modo	a	possibilitar	o	reconhecimento	da
diferença	entre	os	atos	desviantes	e	os	criminalizados	e	permitir	a	construção
de	 respostas	 distintas	 para	 eles	 (sejam	 formais	 ou	 informais)	 e	 diminuir	 a
violência	 do	 controle	 estatal.	 Revaloriza-se,	 portanto,	 o	 que
convencionalmente	 se	 chama	de	 “humanidades”	ou	 “estudos	humanísticos”,
especialmente	em	matéria	de	crime	e	punição	(SOUSA	SANTOS,	2010,	p.	9-
10).	Nas	palavras	de	Warat	(2001,	p.	191):
como	 se	 fosse	 possível,	 fazem	de	 conta	 que	 não	 existem	 conflitos	 existenciais	 concretos
que	 transbordam	 permanentemente	 a	 magia	 sonhada.	 Uma	 magia	 que,	 no	 lugar	 de
ensinar	que	a	riqueza	estava	na	imprevisibilidade,	na	diversidade,	nos	fez	crer,	de	modo
extremadamente	confiante,	na	uniformidade,	no	já	dito	desde	sempre.
Entretanto,	adverte	o	autor,	há	um	momento	em	que	a	utopia	moderna	decai
em	 favor	 da	 condição	 pós-moderna,	 cujos	 pilares	 são	 a	 desconstrução,	 a
alternativa	e	a	descentralização.	Desconstruir,	segundo	a	proposta	derridiana,
é	“desnudar	um	edifício	para	que	apareçam	suas	 fissuras,	denunciando	 suas
aporias,	 ou	 mais	 contundentemente:	 escancarar	 as	 escandalosas	 fendas
irracionais	e	insensatas	dos	discursos	considerados	sérios”	(WARAT,	2001,	p.
159	 e	 188).	 Ao	 descontruir,	 o	 pós-modernismo,	 abdica-se	 das	 ilusões
racionais	 da	 modernidade	 e	 “deixa	 de	 lado	 as	 ilusões	 semiológicas	 dos
grandes	 relatos	 que	 fundamentaram	 o	 sentido	 comum	 manipulador	 dos
juristas	da	modernidade”	(WARAT,	2001,	p.	159).
Salo	 de	 Carvalho	 (2009,	 p.	 312)	 informa	 que	 as	 tendências	 pós-modernas
causaram	 uma	 mudança	 na	 agenda	 da	 investigação	 criminológica:	 eles
substituíram	seus	tradicionais	objetos	de	análise	—	crime,	criminoso,	reação
social,	instituições	de	controle,	poder	político	e	econômico	—	pela	formação
da	linguagem	da	criminalização	e	do	controle.	Analisa-se,	assim,	a	“gramática
do	 crime”,	 um	 estilo	 punitivo	 vigente	 nos	 círculos	 informais	 de	 controle
social.
3.1.1	A	superação	paradigmática	rumo	à	transmodernidade
A	transciência,	diferentemente	da	pós-modernidade,	não	se	destina	a	criticar	a
razão,	 mas	 a	 ampliá-la,	 estendendo-a	 ao	 sensível,	 ao	 que	 se	 vive	 na
experiência.	Se	a	racionalidade	moderna	não	aceitava	o	caótico,	encerrando-o
em	 objetividades	 e	 conceitualidades,	 buscando	 fundamentos	 absolutos	 e
universais;	 a	 transciência	 aceita	 a	 contradição,	 o	 caos,	 a	 fragmentação,	 o
imprevisível	 na	 conduta	 de	 um	 indivíduo	 (WARAT,	 2001,	 p.	 190).	 Salienta
SousaSantos	 (2010,	 p.	 28)	 que	 o	 novo	 paradigma	 em	 vez	 da	 eternidade,
busca	 a	 história;	 em	 vez	 do	 determinismo,	 a	 imprevisibilidade;	 em	 vez	 do
mecanicismo,	 a	 interpenetração,	 a	 espontaneidade	 e	 a	 auto-organização;	 em
vez	da	 reversibilidade,	a	 irreversibilidade	e	a	evolução;	em	vez	da	ordem,	a
desordem;	em	vez	da	necessidade,	a	criatividade	e	o	acidente	95	.
A	expressão	“transmoderna”	 tem	a	ver	com	uma	 tentativa	de	 retorno	para	a
autonomia,	 uma	 transição	 impulsionada	 por	 uma	 nova	 sensibilidade	 como
forma	de	a	pessoa	encontrar-se	consigo	mesma	e	com	os	outros.	O	dever	da
ética	 é	 substituído	 por	 solidariedade,	 compaixão	 e	 alteridade	 e	 o
normativismo	do	Direito	é	substituído	por	mediação,	participação	direta	e	de
encontro	 face	 a	 face	 (WARAT,	 2001,	 p.	 186).	 Esse	 trânsito	 é	 chamado	 por
Warat	de	“transmodernidade”.
A	transmodenidade	não	diz	respeito	necessariamente	à	alteridade,	mas	sim	ao
que	 Warat	 (2001,	 p.	 209)	 chama	 de	 outridade:	 um	 espaço	 ético	 de
reconhecimento,	existente	entre	duas	pessoas,	que	lhes	permite	se	enxergarem
mutuamente,	descontruírem-se	e,	mirando-se	um	no	outro,	descobrirem	o	que
falta	em	suas	supostas	existências	completas.
A	ciência	moderna	preconizava	o	conhecimento	objetivo,	 factual	e	 rigoroso,
sem	a	interferência	dos	valores	humanos	ou	religiosos.	Esta	foi	a	base	para	a
distinção	 dicotômica,	 estanque	 e	 incomunicável	 entre	 sujeito/objeto	 que
metodologicamente	 se	 articularam	 pelo	 distanciamento.	 O	 paradigma
transmoderno,	 por	 seu	 turno,	 introduz	 a	 consciência	 do	 sujeito	 no	 próprio
objeto	 do	 conhecimento,	 ocasionando	 uma	 transformação	 radical	 nesta
distinção	 sujeito/objeto.	 A	 transmodernidade	 prega	 outra	 forma	 de
conhecimento,	 um	 conhecimento	 compreensivo	 e	 íntimo	 que	 não	 separa,
antes	que	se	une	ao	pesquisador	que	é	estudado.	Para	ela,	todo	conhecimento
científico	é	também	autoconhecimento	(SOUSA	SANTOS,	2010,	p.	33	e	50).
Na	transmodernidade,	o	conhecimento	científico	traduz-se	num	saber	prático,
ou	seja,	o	conhecimento	científico	visa,	em	última	instância,	constituir-se	em
ensinar	a	viver,	em	senso	comum.	Os	sistemas	de	crenças,	os	juízos	de	valor
não	são	colocados	antes	nem	depois	da	explicação	científica	da	natureza	ou
da	sociedade,	mas	são	partes	 integrantes	dessa	 justificação	 96	 .	Na	origem	de
uma	 nova	 racionalidade	 estão	 o	 senso	 comum	 e	 a	 humanidade,
interpenetrados	 pelo	 conhecimento	 científico	 (SOUSA	 SANTOS,	 2010,	 p.
52).
Neste	 paradigma	 jurídico-cultural	 que	 está	 aflorando,	 a	 ciência	 abandona
tendências	totalizantes	e	universalizadoras	em	direção	à	fragmentação.	Acerca
da	fragmentação	no	campo	do	saber	criminológico,	um	dos	sintomas	da	crise
paradigmática,	o	comentário	de	Salo	de	Carvalho	(2009,	p.	311):
O	fenômeno	da	fragmentação	e,	sobretudo,	a	forma	pela	qual	é	tratado	pelos
teóricos	 da	 criminologia,	 configura	 espécie	 de	 sintoma,	 ou	 seja,	 como
situação	 que	 indicaria,	 em	 linguagem	 khuneana,	 crise	 paradigmática.
Representaria	o	ponto	de	esgotamento	de	determinado	pensamento	—	no	caso
o	 da	 racionalidade	 criminológica	 moderna	 (instrumental)	 no	 qual	 decisões
estratégicas	necessitam	ser	tomadas	para	salvação,	redefinição,	reconstrução,
abandono	ou	esfacelamento	do	modelo	científico	convalescente.
A	fragmentação	pós-moderna,	observa	Sousa	Santos,	não	é	disciplinar,	e	sim
temática.	 “Os	 temas	 são	 galerias	 por	 onde	 os	 conhecimentos	 progridem	 ao
encontro	uns	dos	outros.	Ao	contrário	do	que	 sucede	no	paradigma	atual,	 o
conhecimento	 avança	 à	medida	 que	 o	 seu	 objeto	 se	 amplia,	 ampliação	 que,
como	a	da	árvore,	procede	pela	diferenciação	e	pelo	alastramento	das	raízes
em	busca	de	novas	e	mais	variadas	 interfaces”	 (SOUSA	SANTOS,	2010,	p.
48).
3.1.2	Justiça	restaurativa	e	transmodernidade
Nesta	senda,	a	justiça	restaurativa	e	a	proposta	transmoderna	possuem	muita
coisa	 em	 comum.	 No	 âmbito	 restaurativo,	 o	 próprio	 ideal	 de	 justiça	 é
redefinido	em	prol	de	um	arquétipo	reparador	e	integrador,	afinando-se	com	o
plano	transmoderno	de	criação	de	um	espaço	de	convergências,	solidariedade
e	compaixão.
A	 justiça	 restaurativa	 contempla	 o	 conflito	 criminal	 de	 modo	 diferenciado,
optando	 por	 tratá-lo	 (crime	 handling	 )	 e	 não	 o	 afastar	 ou	 suplantar.	 Ela
reconhece	 a	 sua	 especificidade,	 complexidade	 e	 diversidade,	 muito
diferentemente	da	visão	impessoal	e	mecanicista	da	modernidade	mencionada
(GARCÍA-PABLOS	 DE	 MOLINA;	 GOMES,	 2012,	 p.	 454).	 Ela	 o
personaliza,	 de	 forma	 a	 resgatar	 sua	 dimensão	 humana,	 real,	 concreta	 e
histórica,	 abrindo	 espaço	 para	 a	 humanização,	 para	 o	 reconhecimento	 da
“outridade”	 e	 para	 a	 manifestação	 de	 sentimentos	 e	 de	 sensibilidades,	 tal
como	 na	 proposta	 transmoderna.	 Nela,	 as	 partes	 têm	 a	 oportunidade	 de
exteriorizar	suas	vivências	com	relação	ao	fato	conflitivo,	satisfazendo	a	sua
dimensão	 emocional	 e	 relacional,	 sem	 as	 limitações	 e	 os	 condicionamentos
próprios	do	processo	penal,	que	instrumentaliza	e	revitimiza	seus	personagens
(GARCÍA-PABLOS	DE	MOLINA;	GOMES,	2012,	p.	451	e	460)	97	.
Já	 a	 justiça	 moderna	 “despersonaliza	 o	 conflito	 delituoso,	 distancia
artificialmente	 autor	 e	 vítima	 e	 propicia	 a	 indiferença	 e	 a	 falta	 de
solidariedade	 do	 ofensor	 em	 relação	 à	 vitima	 e	 à	 comunidade”.	 Nela,	 a
intervenção	no	conflito	é	feita	de	modo	técnico	e	formalista.	Sua	orientação
repressiva	 a	obriga	 a	 conformar-se	 com	a	 imposição	do	castigo	ao	culpado,
sem	reclamar	deste	mudança	de	atitudes”	(GARCÍA-PABLOS	DE	MOLINA;
GOMES,	2012,	p.	448).	Sob	o	prisma	da	modernidade,	a	justiça	criminal	não
apresenta	respostas	aos	conflitos	sociais.	Pelo	contrário,	torna-se	uma	fonte	de
conflitos,	na	opinião	de	Louk	Hulsman	(1993,	p.	128).
O	 criminólogo	 holandês	 (2004,	 p.45)	 acrescenta	 que	 o	 sistema	 de	 justiça
criminal	reconstrói	(ou	constrói)	o	crime	e	a	ordem	dos	acontecimentos	de	um
modo	 bastante	 específico,	 produz	 uma	 construção	 artificial	 da	 realidade	 a
partir	 de	 um	 episódio	 definido	 no	 espaço	 e	 no	 tempo,	 e	 imobiliza	 a	 ação
daquele	 momento,	 voltando-se	 contra	 uma	 pessoa,	 um	 indivíduo,	 a	 quem
pode	atribuir	o	comportamento	(a	causalidade)	e	a	culpa.	Como	resultado,	o
indivíduo	é	isolado	de	seu	ambiente,	dos	amigos,	da	família,	do	seu	mundo	e
da	vítima	 e	 são	 ignorados	 aspectos	 importantes	 do	 conflito.	As	 pessoas	 são
afastadas	artificialmente	de	seus	contextos	e	separadas.	A	organização	cultural
da	 justiça	 criminal	 criaria,	 assim,	 “indivíduos	 fictícios”	 e	 uma	 interação
“fictícia”	entre	eles,	desconsiderando	a	 sua	humanidade,	 tão	valorizada	pela
perspectiva	transmoderna.
Hulsman	 questiona	 a	 validade	 e	 a	 legitimidade	 desta	 reconstrução	 que
desconsidera	e	expropria	seus	principais	interessados.	Nas	suas	palavras,	essa
reconstrução	 da	 realidade	 não	 é	 válida,	 já	 que	 “o	menu	 não	 é	 a	 refeição,	 o
mapa	 não	 é	 o	 território.	Um	 evento,	 objeto	 de	 um	discurso	 ou	 de	 qualquer
forma	de	processo	decisório,	é	sempre	reconstruído.	A	reconstrução	jamais	é
idêntica	ao	evento.”	Para	o	professor,	ela	somente	seria	válida	se	baseada	nas
intenções	dos	atores	principais	no	mundo	real	(HULSMAN,	2004,	p.	42).
A	crítica	que	o	autor	faz	ao	sistema	de	justiça	criminal	consiste	no	fato	de	que
ele	 oferece	 uma	 construção	 inválida	 (não	 realista)	 dos	 fatos	 e,
consequentemente,	 também	confere	uma	 resposta	não	 realista	 e	não	efetiva.
Ele	 tende	 a	 “influenciar	 organizações	 como	 a	 polícia	 e	 os	 tribunais	 de	 um
modo	 tal	 que	 elas	 se	 tornam	 autopoiéticas	 e	 não	 podem	 lidar	 de	 um	modo
criativo	 com	 as	 situações	 problemáticas	 e	 tampouco	 aprender	 com	 elas”
(HULSMAN,	1993,	p.	123).	O	que	o	sistema	faz,	em	síntese,	é	“segmentar,	de
modo	artificial,	o	que	vai	em	nossos	corações”	(HULSMAN,	2004,	p.	62),	na
contramão	da	sensibilidade	transmoderna.
Por	outro	 lado,	os	desafios	multifacetadosda	 justiça	contemporânea	exigem
dos	 julgadores	 e	 aplicadores	 do	 Direito	 criatividade	 e	 empenho	 para	 a	 sua
solução.	É	necessário	que,	a	despeito	do	arcabouço	jurídico	moderno,	muitas
vezes	rígido	e	defasado,	que	se	prepare	para	lidar	com	os	conflitos	emergentes
em	uma	sociedade	heterogênea	e	complexa.
No	arcabouço	moderno,	o	Estado	continua	atuando	com	base	em	instrumentos
normativos	 obsoletos,	 rigorosos	 e	 sem	 vínculos	 com	 a	 realidade	 plural
emergente.	 As	 demandas	 atuais	 geralmente	 possuem	 uma	 dimensão
comunitária	 e	 grupal	 que	 desafiam	 as	 regras	 processuais	 vigentes	 (FARIA,
2004,	p.	106)	98	.
Por	 compreender	 a	 especificidade	 dos	 conflitos,	 a	 justiça	 restaurativa
reconhece	 a	 diversidade	 das	 soluções	 que	 eles	 reclamam	 e	 oferece
possibilidades	de	 respostas	mais	criativas,	mais	adequadas	a	cada	um	deles,
renegando	 a	 já	 referida	 tendência	 totalizante	 da	 modernidade.	 A	 justiça
restaurativa	 propugna	 fórmulas	 de	 intervenção	 no	 conflito	 igualmente
diferenciadas	(como	a	mediação,	o	círculo	de	paz,	o	círculo	de	sentença	etc.),
todas	 de	 índole	 pacificadora,	 comunicativa,	 participativa,	 integradora	 e
comunitária	(GARCÍA-PABLOS	DE	MOLINA;	GOMES,	2012,	p.	451).	Ela
permite	o	“trânsito”	referido	por	Warat,	no	sentido	desta	nova	sensibilidade,
como	forma	do	ser	encontrar-se	consigo	mesmo	e	com	os	outros.
O	 elevado	 conteúdo	 pedagógico	 dos	 procedimentos	 restaurativos	 possibilita
que	 uma	 solução	 para	 o	 conflito	 emerja	 como	 consequência	 natural	 do
processo	de	comunicação	autor-vítima,	da	percepção	direta	do	dano	causado,
com	potencial	de	mudança	de	atitudes	dos	envolvidos,	 rechaçando	qualquer
imposição	 coativa	 ou	 heterônoma	 de	 desfechos.	 Aqui	 ela	 coincide	 com	 o
culto	à	riqueza,	à	diversidade	e	à	imprevisibilidade	transmodernas.
Em	 comum	 entre	 o	 paradigma	 restaurativo	 e	 a	 transmodernidade	 está	 a
valorização	 da	 “micro-justiça	 do	 cotidiano”,	 comprometida	 com	 as
possibilidades	 reais	 e	 usuais,	 mediante	 a	 afirmação	 e	 o	 reconhecimento	 da
outridade	 e	 não	 da	 sua	 eliminação.	 Assim,	 a	 justiça	 restaurativa	 não	 vê	 no
outro	 ou	 no	 conflito,	 algo	 nocivo,	 mas	 uma	 confrontação	 construtiva,
revitalizadora.	 O	 conflito	 seria	 “uma	 diferença	 energética,	 um	 potencial
construtivo”	(MENDONÇA,	2008,	p.	122).
A	 justiça	 restaurativa,	portanto,	se	une	à	 transmodernidade	para	conferir	um
salto	qualitativo	no	sistema	de	justiça,	superando	a	condição	jurídica	moderna
alicerçada	 no	 litígio,	 na	 rigidez	 e	 numa	 visão	 negativa	 do	 conflito
(MENDONÇA,	2008,	p.	123).
Ilustra	Warat	(2001,	p.	82):
os	 juristas	 pensam	 que	 o	 conflito	 é	 algo	 que	 tem	 de	 ser	 evitado.	 Eles	 o	 redefinem,
pensando-o	como	litígio,	como	controvérsia.	[…]	Jamais	os	juristas	pensam	o	conflito	em
termos	de	satisfação,	o	conflito	como	forma	de	inclusão	do	outro	na	produção	do	novo.
Ressalta	 Rafael	 Mendonça	 (2008,	 p.	 97)	 que,	 na	 maioria	 das	 vezes,	 os
próprios	 sujeitos	 não	 conseguem	 conhecer	 ou	 elaborar	 seus	 desejos
insatisfeitos	 e	 são	 transformados	 em	partes,	 em	 litigantes	no	 “processo”	 em
que,	o	que	hoje	“ganha”,	amanhã	“perde”.	Essa	realidade	gera	cada	vez	mais
indivíduos	 insatisfeitos	 e	 alienados	 de	 si,	 que	 em	 nome	 de	 uma	 vitória
processual,	valem-se	das	estratégias	mais	censuráveis	do	ponto	de	vista	ético
(MENDONÇA,	2008,	p.	98).
Warat	 (1998,	 p.	 40)	 completa	 afirmando	 que	 foi	 assim	 que	 aprendemos
retórica,	ou	seja,	para	ganhar,	para	perder,	para	argumentar	não	para	mostrar
nossos	desejos,	mas	para	derrotar,	destruir	e	aniquilar	o	outro.
Vezzulla	(2001,	p.	59)	aduz	que	todas	essas	circunstâncias
contribuíram	 para	 que	 a	 sociedade,	 durante	 tanto	 tempo,	 precisasse	 depositar	 num
terceiro	a	responsabilidade	de	decidir	sobre	seus	próprios	problemas,	pois,	deixar	que	um
terceiro	decida	por	nós,	nos	libera	da	responsabilidade	e	da	angústia	da	decisão.
Neste	 paradigma	 de	 “solução	 de	 conflitos”,	 os	 “acordos	 de	 paz”	 a	 que	 se
chegam	são	impostos	externamente	em	situação	de	supra-ordenação,	tudo	isso
após	violentos	e	extenuantes	enfretamentos	processuais	(MENDONÇA,	2008,
p.	98).	Revelam	Passos	e	Penso	(2009,	p.	89	e	92)	que,	neste	paradigma,	“a
justiça	representa	mais	um	pai	protetor	a	quem	invocar	do	que	uma	instituição
solidária	que	está	do	lado	das	lutas	comunitárias.	Essa	relação	paternalista	é
vertical	 e,	 por	 isso,	 dificulta	 o	 diálogo.	 […]	 O	 sistema	 de	 justiça,	 nesta
concepção,	é	o	único	detentor	dos	saberes	que	importam	na	relação,	é	o	dono
do	discurso,	é	o	que	fala,	o	inatingível	que	se	põe	à	disposição”.
A	 justiça	 restaurativa	 é	 um	 caminho	 democrático	 para	 superar	 essas
perplexidades	 da	 jurisdição	 ordinária.	 Ela	 resgata	 as	 potencialidades
emancipatórias	do	conflito,	“como	um	sendero	no	qual	os	verdadeiros	atores
da	vida	são	protagonistas”	(MORAIS	DA	ROSA,	2005,	p.	19).	Assim	é	que,
enquanto	no	sistema	ordinário	se	fala	em	“jurisdição”,	em	alusão	à	função	e
ao	 poder	 estatal	 de	 “dizer	 o	 direito”,	 numa	 perspectiva	 restaurativa,	 a
expressão	 mais	 adequada	 é	 “jurisconstrução”,	 para	 descrever	 a	 forma	 de
elaborar	 a	 resposta	 para	 o	 conflito	 que	 envolve	 as	 partes	 (MENDONÇA,
2008,	p.	124).	Este	termo	é	mais	consentâneo	com	a	natureza	humana	de	ser
inter-relacional,	sendo	que	um	dos	grandes	desafios,	atualmente	é	fomentar	as
relações	 baseadas	 na	 parceria	 e	 não	 na	 dominação,	 tanto	 na	 esfera	 pública,
quanto	na	privada	(MENDONÇA,	2008,	p.	42).
O	 paradigma	 emergente	 nas	 “ciências	 abertas”	 testemunha	 a	 existência	 de
conexão	 e	 comunicação	 constantes	 entre	 as	 pessoas.	 O	 humano	 é	 parte
integrante	na	evolução	da	teia	de	conexões	e	comunicações	que	envolve	o	seu
sistema.	Essa	mentalidade	difere	drasticamente	da	cosmovisão	do	paradigma
individualista	 e	 subjetivista	 moderno,	 baseado	 inicialmente	 nas	 teorias
econômicas	 liberais	 e	 neoliberais,	 nas	 quais	 a	 competitividade	 é	 o	 foco
principal	(MENDONÇA,	2008,	p.	43).
3.2	O	fundamento	político	da	jurisconstrução:	
a	democracia	deliberativa
Outrora	 afirmou	 Noberto	 Bobbio	 (2004,	 p.	 1)	 que	 “direitos	 do	 homem,
democracia	 e	 paz	 são	 três	 momentos	 necessários	 do	 mesmo	 movimento
histórico:	 sem	 direitos	 do	 homem	 reconhecidos	 e	 protegidos	 não	 há
democracia;	 sem	 democracia	 não	 existem	 as	 condições	 mínimas	 para	 a
solução	 pacífica	 dos	 conflitos”.	 Igualmente,	 Kant	 concebia	 a	 democracia
como	instrumento	de	busca	da	paz	perpétua.
Neste	 capítulo	 busca-se	 refletir	mais	 detalhadamente	 acerca	 dos	 predicados
democráticos	da	 justiça	 restaurativa,	essenciais	na	busca	da	paz	e	superação
do	 conflito	 (os	 quais	 supostamente	 a	 diferenciariam	 do	 sistema	 ordinário	 e
poderiam	contribuir	para	suprir	o	seu	déficit	de	legitimidade,	identificado	na
primeira	parte	deste	estudo).
Participação	 e	 deliberação,	 por	 exemplo,	 são	 duas	 características
essencialmente	 democráticas	 cuja	 relevância	 nos	 é	 apontada,	 entre	 outros
autores,	 por	 Nancy	 Fraser	 (seção	 3.2.1).	 Essas	 características	 podem	 ser
relativamente	 mensuradas,	 com	 auxílio	 das	 teorias	 de	 Sherry	 Arnstein	 e
Archon	Fung	(seção	3.2.2)	e	permitem	a	classificação	dos	sistemas	de	justiça
em	“estágios	democráticos”	(mais	avançados	ou	menos	avançados),	segundo
a	 teoria	 política	 contemporânea,	 com	 base	 nos	 modelos	 desenvolvidos	 por
Shumpeter,	Robert	Dahl,	Joshua	Cohen	e	Charles	Sabel.
A	justiça	restaurativa	privilegia	valores	democráticos	por	meio	da	ampliação
do	 rol	 de	 participantes	 na	 deliberação,	 pela	 confiança	 depositada	 na	 sua
capacidade	decisória,	pelo	empoderamento	produzido	e	pela	educação	para	a
paz.	 Oportuna,	 portanto,	 a	 análise	 do	 seu	 potencial	 democrático	 conforme
estas	teorias.
3.2.1	A	ampliação	de	atores	para	o	debate	na	jurisconstrução
Como	é	sabido,	as	respostas	disponibilizadas	pelo	sistema	de	justiça	criminal
para	 resolução	 de	 conflitos(absolvição,	 sentença	 condenatória,	 transação
penal,	 suspensão	 condicional	 do	 processo	 ou	 da	 pena	 etc.)	 são	 restritas	 e
entabuladas	exclusivamente	entre	Estado	e	ofensor,	de	modo	que	a	vítima	e	a
comunidade	 são	 excluídas.	 Ao	 agir	 dessa	 forma,	 o	 sistema	 desperdiça
possibilidades	 proveitosas	 de	 exploração	 de	 novas	 respostas,	 e	 as	 partes	—
para	quem	haveria	a	possibilidade	de	ganhos	mútuos	—	não	têm	a	chance	de
captá-los	(FARIA,	2004,	p.	114).
Também,	no	 entender	 de	Nancy	Fraser	 (2002,	 p.	 19),	 já	 não	 convém	que	o
Estado	funcione	como	a	única	instância	de	justiça.	Apesar	da	sua	importância,
o	ente	estatal	constitui	apenas	um	de	vários	enquadramentos	possíveis	numa
nova	estrutura	emergente	de	múltiplos	níveis.
É	importante,	destarte,	que	se	abra	espaço	para	a	emergência	de	mecanismos
menos	institucionalizados	de	resolução	de	conflitos	e	que	se	desloque	alguma
demanda	 dos	 tribunais	 para	 outras	 instâncias	 decisórias	 —	 as	 justiças
emergentes	nos	espaços	infraestatais	(as	locais,	com	influência	comunitária)	e
nos	espaços	supraestatais	(as	justiças	de	caráter	internacional	e	transnacional)
(FARIA,	2004,	p.	114).
Ao	 mesmo	 tempo,	 este	 fenômeno	 desafia	 a	 exclusividade	 do	 exercício	 da
função	de	dirimir	conflitos	de	 interesses,	modificando	o	conceito	 tradicional
de	jurisdição,	segundo	o	qual,	o	juiz	deve	substituir	a	vontade	das	partes	99	.
Em	várias	matérias	 e	 setores	 (cível,	 empresarial,	 familiar	 etc.),	 o	Estado	—
com	 sua	 estrutura	 organizacional	 formal,	 hierarquizada	 e	 submetida
rigidamente	à	lei	—	vem	delegando	o	monopólio	adjudicatório.	Ele	se	depara
com	um	cenário	novo	e	 incerto	no	qual	se	movimenta	para	modernizar	suas
estruturas	 administrativas	 e	 para	 rever	 seus	 padrões	 funcionais,	 de	 modo	 a
continuar	assegurando	a	sua	imprescindível	independência	(FARIA,	2004,	p.
114)	100	.
A	 demanda	 cada	 vez	 maior	 dos	 serviços	 judiciários	 não	 traduz,
necessariamente,	a	democratização	dos	meios	e	instrumentos	de	acesso	a	ele.
Conforme	 informações	do	Ministério	da	 Justiça,	 as	 demandas	da	população
economicamente	 necessitada	 não	 chegam,	 por	 muitas	 vezes,	 às	 instâncias
formais	da	Justiça	(BRASIL,	2005,	p.	7).
Na	opinião	de	Nancy	Fraser	 e	Axel	Honneth,	o	 sistema	de	 justiça	 criminal,
especificamente,	 não	 privilegia	 a	 interação	 tampouco	 as	 diferenças	 de
contexto	 das	 partes,	 tendendo	 a	 encorajar	 a	 vindita,	 a	 intolerância,	 o
autoritarismo,	 etc.	Apregoam,	 portanto,	 uma	nova	 concepção	de	 justiça	 não
identitária	 que	 desencoraje	 a	 apartação	 e	 promova	 a	 interação	 entre	 as
diferenças,	o	que	significa	rejeitar	as	definições	habituais	de	reconhecimento
(FRASER,	2002,	p.	14).
Consoante	Fraser,	o	sistema	de	justiça	deve	incorporar	uma	reflexão	explícita
sobre	o	problema	do	 enquadramento,	 ou	 seja,	 devemos	perguntar	 quem	 são
precisamente	os	sujeitos	relevantes	para	a	justiça	e	quem	são	os	atores	sociais
que	devem	dela	participar.	Isso	porque	os	padrões	institucionalizados	de	valor
cultural	sempre	tratam	alguns	atores	como	inferiores,	excluídos	ou	invisíveis,
fazendo	 com	 que	 haja	 um	 falso	 reconhecimento	 ou	 uma	 subordinação	 de
estatuto	(FRASER,	2002,	p.	15).
Igualmente,	Beristain	 (2000,	p.	75	e	76)	 reivindica	uma	democratização	dos
poderes	 mais	 realista	 e	 que	 permita,	 ou	 exija,	 a	 intervenção	 mais	 direta	 e
decisiva	possível	do	povo	na	 tarefa	 legislativa	e	nos	organismos	 judiciais	 (a
exemplo	do	 júri).	O	 criminólogo	 espanhol	 assume	que	 a	 participação	direta
dos	 interessados	conferiria	ao	processo	maior	 legitimidade	e	o	 tornaria	mais
democrático	 por	 retirar	 a	 jurisdição	 penal	 das	 mãos	 exclusivas	 de
profissionais	 governamentais,	 a	 fim	 de	 dividi-la	 com	 os	 implicados	 no
conflito.
Como	 visto	 na	 seção	 1.1,	 a	 exclusão	 de	 outros	 implicados	 na	 discussão	 de
assuntos	 de	 seu	 interesse	 desafia	 a	 legitimidade	 do	 processo,	 condição	 de
validade	 do	 direito,	 segundo	 Habermas.	 Este	 desvio	 de	 deliberação	 dos
envolvidos	 comprometeria	 o	 seu	 conteúdo	 democrático,	 conforme	 adverte
Habermas	 (1997b,	 p.	 10)	 para	 quem,	 “um	 conceito	 procedimental	 de
democracia	é	incompatível	com	o	conceito	da	sociedade	centrada	no	Estado”.
Consoante	Habermas	(1997a,	p.	53),	a	participação	deliberativa	é	o	núcleo	de
uma	sociedade	democrática	e	um	elemento	essencial	para	o	desenvolvimento
do	 indivíduo.	 Para	 o	 filósofo	 tedesco,	 os	 cidadãos	 devem	 ser	 os	 próprios
agentes	 da	 construção	 democrática,	 já	 que	 deles	 emana	 a	 vontade	 legítima
(HAMEL,	2009,	p.	1).	São,	portanto,	considerados	“parceiros”	do	direito	e	da
própria	democracia,	mediante	o	exercício	do	direito	de	comunicação	e	direito
de	participação,	de	modo	a	corroborar,	inclusive,	com	a	própria	legitimidade
do	processo	101	.	Conforme	Habermas	(1997b,	p.	11):
Nem	a	pretensão	de	legitimidade	do	direito,	que	se	comunica	ao	poder	político	através	da
forma	do	direito,	nem	a	necessidade	de	legitimação,	a	ser	preenchida	através	do	recurso	a
determinadas	 medidas	 de	 validade,	 são	 descritas	 na	 perspectiva	 dos	 participantes,	 ou
seja,	nesta	perspectiva	as	condições	da	aceitabilidade	do	direito	e	da	dominação	política
transformam-se	em	condições	de	aceitação,	e	as	condições	de	legitimidade,	em	condições
para	a	estabilidade	de	uma	fé	da	maioria	na	legitimidade	da	dominação.
Aduz	 Alessandro	 Baratta	 (1987,	 p.	 20)	 que	 “a	 ideia	 da	 democracia	 e	 da
soberania	popular	são	os	princípios-guia	para	a	transformação	do	Estado,	não
somente	para	um	modelo	 formal	de	Estado	de	Direito,	 senão,	 também,	para
um	modelo	 substancial	 do	Estado	dos	direitos	humanos.”	De	 acordo	 com	o
autor,	o	respeito	aos	sujeitos	e	aos	seus	direitos	humanos	inclui	não	dispensar
a	eles	apenas	um	tratamento	institucional	e	burocrático,	sem	torná-los	“ativos
na	definição	dos	conflitos	de	que	formam	parte	e	na	construção	das	formas	e
dos	 instrumentos	 de	 intervenção	 institucional	 idôneos	 para	 resolvê-los,
segundo	suas	próprias	necessidades	reais”.
Habermas	 (1997b,	 p.	 17-18)	 assevera	 a	 importância	 da	 deliberação	 para	 o
convencimento	racional	dos	interessados,	a	fim	de	reforçar	sua	confiança	no
jogo	democrático:
O	 abismo	 que	 se	 abre	 entre	 aquilo	 que	 é	 afirmado	 na	 perspectiva	 do
observador	e	aquilo	que	pode	ser	aceito	na	perspectiva	de	participantes,	não
pode	ser	coberto	apenas	através	de	considerações	racionais	 teleológicas	[…]
os	cidadãos	racionais	não	teriam	razões	suficientes	para	manter	as	regras	do
jogo	 democrático,	 caso	 se	 limitassem	 a	 isso.	 […]	 O	 processo	 da	 política
deliberativa	 constitui	 o	 âmago	 do	 processo	 democrático.	 E	 esse	 modo	 de
interpretar	a	democracia	tem	consequências	para	o	conceito	de	uma	sociedade
centrada	no	Estado.
No	mesmo	 sentido,	 observa	Gabriel	 Ignacio	Anitua	 (2013,	 p.	 115),	 asseverando	 que	 as
decisões	 judiciais	 devem	 ser	 tomadas	 pelos	 cidadãos	 e	 não	 só	 para	 eles,	 o	 que
possibilitaria	também	gerar	a	reflexão	democrática	102	:
O	 julgamento	criminal	diz	 respeito	a	 toda	a	 sociedade	 (que	é	o	que	 se	pretende	em	um
Estado	 democrático)	 e	 esta	 deve	 participar	 do	momento	 comunicacional	 em	 que	 ele	 se
desenvolve.	 A	 função	 simbólica,	 como	 projeção	 de	 imagem	 que	 se	 quer	 dar	 para	 a
sociedade,	só	terá	sucesso	se	for	feita	por	parte	dos	cidadãos,	não	apenas	para	eles.	Isso
permitirá,	 também,	 gerar	 a	 reflexão	 democrática	 sobre	 certas	 funções	 sociais	 que	 se
realizam	privilegiadamente	no	marco	estatal.
A	 justiça	 restaurativa	 atende	 a	 esta	 necessidade	 plurifocal	 de	 justiça,	 já
anunciada	 por	 Fraser	 e	 Honneth,	 por	 tratar	 também	 de	 cidadania	 103	 ,	 do
reconhecimento	 da	 vítima	 e	 do	 ofensor	 como	 atores	 decisórios,	 além	 das
preocupações	 tradicionais	 de	 justiça	 destacadas	 pela	 teoria	 crítica,	 como	 a
reintegração	 social	 do	 ofensor,	 a	 seletividade	 do	 sistema	 de	 justiça,	 a
igualdade	de	direitos,	de	 liberdade	e	de	oportunidades.Esta	plasticidade	 lhe
possibilita	aumentar	o	grau	democrático	nas	decisões	finais,	à	medida	que	a
justiça	 restaurativa	congrega	 todos	os	afetados	 interagindo	na	construção	de
um	 desfecho	 para	 o	 crime	 em	 condições	 paritárias	 de	 expressão	 e
comunicação.
Portanto,	a	participação	dos	interessados	para	deliberação	acerca	das	decisões
que	 lhes	 dizem	 respeito	 está	 diretamente	 relacionada	 à	 sua	 eficácia,
sentimento	de	 justiça	e	 legitimidade.	Eles	podem	contribuir	para	o	processo
decisório	participativo	agregando	 informações	relevantes	sobre	os	contornos
específicos	do	problema	e	trazendo	à	tona	o	conhecimento	e	os	valores	locais
relevantes	 para	 subsidiarem	um	desfecho	 adequado.	A	participação	 também
fortalece	 o	 senso	 de	 pertencimento	 e	 de	 responsabilidade	 coletiva,
incentivando	a	compreensão	e	o	cumprimento	das	decisões	(SECHI,	2010,	p.
112).
3.2.2	Avaliando	o	grau	de	inclusão	participativa	e	de	deliberação
democrática	do	novo	paradigma
Cientistas	políticos	americanos	como	Sherry	Arnstein,	Archon	Fung	e	Joshua
Cohel	 entendem	 que	 uma	 decisão	 é	 democrática	 quanto	 mais	 inclusiva,
representativa	 e	 comunicativa	 ela	 puder	 ser.	 Cada	 qual,	 por	 meio	 de
elaborações	 gráficas	 reproduzidas	 a	 seguir,	 pretende	 demonstrar	 a
contribuição	destes	três	atributos	para	o	incremento	da	condição	democrática.
Sherry	Arnstein	(1969,	p.	1)	104	,	em	“A	escada	de	participação	da	cidadania”
(ladder	 of	 participation	 ),	 argumenta	 que	 a	 participação	 do	 interessado	 em
qualquer	processo	decisório	que	lhe	diz	respeito	é	valiosa	na	medida	em	que
“é	a	redistribuição	de	poder	que	permite	que	os	cidadãos	sejam	incluídos	no
futuro”.	 Ilustrando	 o	 seu	 argumento,	 ela	 postula	 uma	 “escada”	 de
participação,	 com	 oito	 degraus,	 de	 acordo	 com	 o	 grau	 de	 empoderamento:
manipulação,	 terapia,	 informação,	 consulta,	 apaziguamento,	 parceria,
delegação	de	poder	e,	finalmente,	o	controle	cidadão.
Figura	1	-	A	escada	de	participação	da	cidadania	105	.
	
	controle	cidadão
	
	grau	de	empoderamento
	
	delegação	de	poder
	
	parceria
	
	conciliação
	
	grau	de	simbolismo
	
	consulta
	
	informação
	
	terapia
	
	não-participação
	
	manipulação
Na	 escada	 de	 participação	 da	 cidadania	 de	 Sherry	 Arnstein,	 a	 justiça
restaurativa	 se	 encontra	 no	 último	 e	 mais	 elevado	 degrau	 de
representatividade	—	que	varia	da	manipulação	ao	controle	cidadão,	uma	vez
que	seus	acordos	são	mediados	e	não	obtidos	por	meio	de	pura	conciliação	106
ou	impostos	por	terceiros.
Visando	compreender	o	 funcionamento	dos	mecanismos	de	participação	em
tomadas	de	decisões,	Archon	Fung	(2006,	p.	66)	107	lançou	a	ideia	de	um	“cubo
da	 democracia”	 (democracy	 cube	 )	 que	 permitiria	 avaliar	 o	 “grau
democrático”	 de	 um	 processo	 decisório,	 mediante	 a	 sua	 análise	 em	 três
dimensões:	 quem	 participa	 (acessibilidade),	 como	 os	 participantes	 se
comunicam	 (grau	 de	 interação)	 e	 o	 grau	 de	 influência	 das	 discussões	 nas
decisões	tomadas	(autoridade).
A	 primeira	 dimensão	 do	 cubo	 diz	 respeito	 a	 quem	 participa	 do	 processo
decisório,	ou	seja,	da	acessibilidade	à	tomada	de	decisão.	Este	eixo	varia	do
grau	 mais	 excludente	 (restrito	 aos	 expertos,	 como	 juízes,	 promotores	 e
advogados)	 e	 passa	 pelos	 representantes	 eleitos	 (sistema	 americano),
representantes	 profissionais	 (árbitros,	 mediadores),	 pelos	 representantes
leigos	 (conciliadores,	 líderes	 comunitários)	 e	 pela	 participação	 pessoal	 e
direta	 dos	 interessados	 (ofensor,	 vítima,	 comunidade),	 o	 que	 seria	 o	 mais
inclusivo	possível.
Figura	2	-	Primeiro	eixo	do	cubo:	acessibilidade	ao	processo	decisório	108	.
Expertos Representantes
Eleitos
Representantes
Profissionais
Representantes
Leigos
Participação
Direta
Mais	
excludentes
Mais
inclusivos
No	 sistema	 de	 justiça	 criminal	 comum,	 o	 número	 de	 participantes	 ativos	 é
mínimo.	 Geralmente,	 só	 se	 confere	 voz	 às	 partes	 (ofensor	 e	 vítima)	 e
testemunhas.	Outros	afetados	pelo	crime	não	são	considerados.	O	ofensor	não
atua	por	 si,	mas	 apenas	 representado	por	 seu	 advogado	 (salvo	 se	 habilitado
para	atuar	em	causa	própria).	A	vítima	é	escutada	apenas	se	interessar	para	o
deslinde	 do	 processo.	 Vítimas	 e	 testemunhas	 se	 expressam	 por	 meio	 de
depoimento	formal,	em	momento	próprio,	limitando-se	a	responder	ao	que	for
perguntado.	 O	 ofensor	 é	 ouvido	 no	 interrogatório,	 na	 fase	 final	 do
procedimento.
Na	 justiça	 restaurativa,	 o	 grau	 de	 participação	 é	máximo	 (com	participação
direta	e	ativa	de	todos	os	envolvidos),	variando	apenas	em	número	de	atores.
Nos	círculos	de	sentença,	este	quantitativo	é	maior,	pois	reúne	um	grupo	mais
amplo	 de	 participantes	 do	 que	 a	 mediação	 vítima-ofensor,	 acrescentando
outras	pessoas	ligadas	aos	envolvidos,	tais	como	familiares,	amigos	e	colegas
de	trabalho.	Logo,	podemos	concluir	que	neste	eixo	do	cubo	democrático	de
Fung	 (relativo	 à	 participação),	 a	 justiça	 restaurativa	 revelaria	 o	 maior
potencial	democrático	possível,	com	a	participação	direta	dos	interessados.
O	segundo	eixo	do	cubo	classifica	a	interação	dos	participantes	na	tomada	de
decisão.	 O	 processo	 participativo	 pode	 variar	 de	 uma	 participação	 pouco
intensa	(por	exemplo,	escuta	passiva)	à	mais	intensa	(por	exemplo,	interação
comunicativa	e	decisória).
Figura	3	—	Segundo	eixo	do	cubo:	grau	de	comunicação	109	.
Ausente/
dispensada
Mero
expectador
Depoimento
formal
Expressa	opiniões,	sentimentos	e
necessidades
Menos	
comunicativo
Mais	
comunicativo
Na	 justiça	 restaurativa,	 não	 há	 julgamento,	 mas	 diálogo,	 que	 é	 a	 sua	 base.
Portanto,	 o	 seu	 grau	 de	 comunicação	 é	 intenso.	 Por	 meio	 dele,	 os
interlocutores	 podem	 levantar	 pretensões	 de	 validade,	 de	 sinceridade,	 de
verdade	 e	 de	 retidão,	 consoante	 assevera	 HABERMAS	 (2012b,	 p.	 124).	 O
processo	dialógico,	além	de	saída	para	se	alcançar	o	consenso,	é	um	meio	de
expressão	 de	 pensamentos,	 sentimentos	 e	 experiências,	 uma	 maneira	 de
compreender	melhor	 os	 fatos,	 suas	 causas	 bem	 como	 as	 consequências	 das
ações.	 Por	 facilitar	 todas	 estas	 possibilidades	 é	 que	 a	 justiça	 restaurativa
revela	o	maior	potencial	democrático	possível,	também	nesse	eixo.
A	 terceira	 dimensão	 diz	 respeito	 ao	 grau	 de	 influência	 dos	 envolvidos	 no
processo	de	 tomada	de	decisão.	Em	muitas	esferas	públicas	como	o	sistema
de	justiça	criminal,	a	decisão	é	exclusiva	do	julgador	ou	dos	julgadores	(em
caso	 de	 órgão	 colegiado).	 Os	 participantes	 apenas	 escutam	 o	 veredicto	 dos
atores	 centrais	 e,	 caso	 discordem,	 têm,	 como	 forma	 de	 manifestação,	 o
recurso	processual.	Já	na	justiça	restaurativa,	há	um	conjunto	muito	maior	de
atos	 deliberativos,	 por	meio	 dos	 quais	 os	 cidadãos	 tomam	posições,	 trocam
ideias	e,	às	vezes,	mudam	de	opinião	no	curso	das	discussões.	A	decisão	final
é	 tomada	 de	 forma	 coordenada	 e	 pessoal	 pelos	 próprios	 implicados,	 com
auxílio	do	mediador,	cuja	atuação	se	limita	a	conduzir	o	debate,	orientando	os
participantes	na	descoberta	das	suas	necessidades.
Figura	4	—	Terceiro	eixo	do	cubo:	influência	na	tomada	de	decisão	110	.
Recebe	o	veredicto Opinião	considerada Delibera Barganha Decide
Menos	autoridade Mais
autoridade
Por	conferir	maior	autoridade	às	partes,	permitindo	que	decidam	os	termos	do
acordo,	a	justiça	restaurativa	também	apresenta	o	grau	máximo	de	democracia
neste	eixo.
Com	 base	 em	 três	 perguntas	 —	 quem	 participa,	 como	 os	 participantes	 se
comunicam	e	quem	 toma	as	decisões	—	Archon	Fung	ordenou	 três	 vetores
(âmbito	 da	 participação,	 grau	 de	 comunicação	 e	 influência	 na	 tomada	 de
decisão)	 em	 um	 espaço	 tridimensional	 composto	 pelos	 três	 eixos,	 ao	 qual
chamou	 de	 “cubo	 de	 democracia”,	 por	meio	 do	 qual	 se	 pode	 aferir	 o	 grau
democrático	de	um	processo	decisório	(FUNG;	2006,	p.	66).
Figura	5	—	Cubo	da	democracia	111
Da	 análise	 do	 cubo	 democrático	 de	Archon	 Fung,percebe-se	 que	 a	 justiça
restaurativa,	em	qualquer	de	suas	três	dimensões,	é	o	mecanismo	de	tomada
de	decisão	mais	democrático	possível.	Do	ponto	de	vista	da	acessibilidade	(ou
de	quem	dela	participa),	a	justiça	restaurativa	é	a	mais	democrata	por	permitir
a	 atuação	 pessoal	 e	 direta	 dos	 interessados	 (ofensor,	 vítima,	 comunidade),
além	 de	 ampliar	 o	 círculo	 de	 pessoas	 “legitimadas”	 a	 intervir	 no	 conflito.
Quanto	 ao	 grau	 de	 interação,	 a	 comunicação	 é	 intensa,	 possibilitando	 a
expressão	de	sentimentos,	opiniões	e	necessidades	e,	no	tocante	à	autoridade
ou	 ao	 grau	 de	 influência	 das	 discussões	 nas	 decisões	 tomadas,	 a	 justiça
restaurativa	 pressupõe	 que	 o	 acordo	 final	 seja	 estabelecido	 de	 forma
coordenada	e	pessoal	pelos	próprios	implicados.
Neste	 sentido,	 a	 justiça	 restaurativa	 permite	 uma	 gestão	 emancipatória	 e
participativa	do	conflito	por	devolver	aos	protagonistas	a	sua	administração.
Essa	característica	também	faz	com	que	a	justiça	restaurativa	detenha	elevado
conteúdo	 pedagógico,	 pois	 empodera	 os	 envolvidos	 para	 encontrarem
fórmulas	de	solução	para	seu	problema.
Neste	sentido,	a	opinião	de	Gabriel	Ignacio	Anitua	(2013,	p.	114)	112	:
Os	rituais	comunicativos	da	justiça	criminal	são	cerimônias	que	despertam	compromissos
de	 valor	 específicos	 nos	 participantes	 e	 no	 público,	 e	 atuam	 assim	 com	 um	 importante
conteúdo	legitimante	e	pedagógico,	reproduzindo	os	valores	republicanos	e	democráticos
e	 gerando	 e	 regenerando	 uma	mentalidade	 e	 sensibilidade	maiores	 para	 o	 conflito	 e	 a
violência.
3.2.3	O	enquadramento	do	modelo	jurisdicional	penal	na	teoria	política
democrática	contemporânea
A	doutrina	democrática	clássica,	sintetizada	na	célebre	expressão	de	Abraham
Lincoln	—	“A	democracia	é	o	governo	do	povo,	pelo	povo	e	para	o	povo”	—
remonta	o	ideal	rousseauniano	de	protagonismo	de	um	povo	soberano,	capaz
de	 produzir	 a	 vontade	 coletiva.	 Seus	 fundamentos	 político-filosóficos
remetem	a	polis	grega	cuja	ideia	central	é	a	plena	igualdade	política	entre	os
cidadãos	dotados	de	indelegável	soberania	113	(AVRITZER,	2000,	p.	27).
A	democracia	direta	oferece	vantagens	 incontestáveis	por	ser	um	sistema	de
contas	 para	 o	 exercício	 do	 poder	 coletivo,	 no	 qual	 os	 cidadãos	 são	 tratados
como	iguais.	Sem	dúvida,	ela	 limita	o	exercício	do	poder,	protege	a	maioria
do	governo	das	minorias,	evita	flagrantes	violações	dos	direitos	das	minorias
e	 promove	 uma	 maior	 capacidade	 de	 resposta	 do	 governo	 aos	 governados
(BOBBIO,	2004,	p.	90).
Este	 ideal	 democrático	 de	 participação	 direta	 e	 de	 tomada	 de	 decisões	 pelo
povo	muitas	 vezes	 se	 revela	 empiricamente	 impossível.	 Em	 primeiro	 lugar,
porque	 a	 depender	 da	 escala	 política,	 a	 participação	 direta	 seria
organizacionalmente	 ou	 administrativamente	 inviável.	 Em	 segundo,	 a
heterogeneidade	cultural	dos	cidadãos	impediria	a	troca	racional	mútua	e,	em
terceiro,	ao	priorizar	características	e	deliberações	locais,	minorias	poderiam
ficar	à	mercê	de	ideais	radicais	majoritários	(BOBBIO,	2004,	p.	64).
Contudo,	mesmo	diante	das	dificuldades	empíricas	de	uma	teoria	democrática
radical,	 cientistas	 políticos	 contemporâneos	 não	 desistiram	 do	 ideal	 de
aperfeiçoamento	 democrático,	 cônscios	 das	 deficiências	 de	 um	 poder
centralizado	e	das	virtudes	da	descentralização,	da	participação	e	da	discussão
cidadã	(AVRITZER,	2000,	p.	27).
A	 forma	 atual	 de	 exercício	 da	 jurisdição	 penal	 pode	 ser	 interpretada	 pelo
modelo	democrático	elitista	de	Schumpeter.	Para	este	cientista	político,	o	que
caracteriza	 a	 democracia,	 em	 verdade,	 é	 a	 existência	 de	 várias	 elites	 que
competem	entre	si	pelo	apoio	e	pela	condução	das	massas.	Nas	suas	palavras,
“o	método	democrático	é	um	sistema	institucional	para	a	tomada	de	decisões,
no	qual	o	indivíduo	adquire	o	poder	de	decidir	mediante	uma	luta	competitiva
pelos	votos	do	eleitor”	(SCHUMPETER,	1961a,	p.	321).
Com	uma	teoria	elitista	da	democracia,	Schumpeter	inferiu	que	as	elites	é	que
seriam	portadoras	de	racionalidade	política	e,	portanto,	os	únicos	atores	com
competência	 para	 tomarem	 decisões.	 Aos	 demais	 indivíduos,	 caberia	 uma
participação	limitada,	já	que	seriam	incapazes	de	ter	ideias	próprias,	restando-
lhes	seguir	ou	não	a	liderança	oferecida	(COSTA,	2007,	p.	218).
A	 teoria	 elitista	 de	 Schumpeter	 parece	 bastante	 descritiva	 do	 exercício	 da
jurisdição	 nos	 dias	 atuais.	 De	 fato,	 os	 operadores	 do	 sistema	 de	 justiça
criminal	 (juízes,	 promotores,	 delegados,	 defensores	 etc.)	 são	 selecionados
dentre	 um	 grupo	 seleto	 de	 expertos	 (bacharéis	 em	 Direito),	 tidos	 como	 os
únicos	dotados	do	conhecimento	apropriado	para	o	trato	deste	tipo	de	questão.
Aos	 jurisdicionados,	 atualmente	 cabe	 cumprir	 as	 decisões	 judiciais	 —
exemplificado	pelo	adágio	popular	“ordem	judicial	não	se	discute,	se	cumpre”
—	perpetuando	a	lógica	democrática	schumpeteriana	de	condução	das	massas
pelas	elites.
Todavia,	 a	 democracia	 baseada	 puramente	 na	 representação,	 como	 é	 a
proposta	 de	Schumpeter,	 é	 criticada	por	 denotar	 um	“elitismo	democrático”
pautado	por	dois	princípios:	a	redução	do	conceito	de	democracia	ao	aspecto
formal,	decorrente	da	observação	do	processo	e	das	garantias	próprios	de	um
Estado	 democrático	 de	 direito	 estabelecido	 constitucionalmente,	 e	 da
justificação	 da	 sua	 racionalidade	 enquanto	 decorrente	 da	 presença	 de	 elites
intelectuais,	 democraticamente	 investidas	 no	 cargo	 com	 poder	 decisório
(SOUZA,	2010,	p.	124).
Entretanto,	observa	Leonardo	Sechi	(2010,	p.	113),	a	questão	da	participação
cidadã	 na	 tomada	 de	 decisões	 é	 bastante	 controvertida	 na	 teoria	 política
contemporânea.	 Enquanto	 para	 Schumpeter	 (1961b,	 p.	 52)	 a	 cooperação	 é
prejudicial,	 pois	 poucos	 teriam	 senso	 de	 responsabilidade,	 capacidade	 de
discernir	 os	 fatos	 e	 preparo	 para	 agir	 sobre	 eles,	 Habermas	 (2002a,	 p.	 36),
Joshua	 Cohen	 e	 Charles	 Sabel	 (2006,	 p.	 154)	 114	 ,	 por	 meio	 de	 modelos
procedimentalistas,	 defendem	 que	 a	 participação	 tem	 valor	 em	 si	 mesma	 e
não	 nos	 potenciais	 resultados	 que	 um	 processo	 participativo	 possa	 trazer
(maior	 eficácia,	 maior	 igualdade	 etc.),	 como	 seria	 o	 caso	 da	 justiça
restaurativa.
Segundo	estes	autores,	o	conceito	de	democracia	se	confunde	com	a	própria
participação	 e	 deliberação	 cidadã.	 Stuart	 Mill	 (1981,	 p.	 18),	 por	 exemplo,
entende	a	democracia	como	“o	governo	por	meio	do	debate”	e	a	 trata	como
sendo	 uma	 argumentação	 racional	 pública,	 na	 qual	 o	 debate	 é	 enriquecido
mediante	 relações	 interativas	 e	 disponíveis	 de	 informações.	 Igualmente,
Habermas	(1997b,	p.	24)	propõe	um	conceito	de	democracia	apoiado	na	teoria
do	discurso	 o	 qual	 parte	 da	 imagem	de	uma	 sociedade	descentralizada,	 que
contém	 na	 esfera	 pública-política	 “uma	 arena	 para	 a	 percepção,	 a
identificação	 e	 o	 tratamento	 de	 problemas”.	 Ele	 sustenta	 a	 importância	 do
discurso	 para	 o	 reconhecimento	 do	 conteúdo	democrático	 e	 da	 legitimidade
do	direito:
O	 princípio	 do	 discurso	 tem	 inicialmente	 o	 sentido	 cognitivo	 de	 filtrar	 contribuições	 e
temas,	argumentos	e	informações,	de	tal	modo	que	os	resultados	obtidos	por	este	caminho
têm	a	seu	favor	a	suposição	da	aceitabilidade	racional:	o	procedimento	democrático	deve
fundamentar	a	 legitimidade	do	direito.	Entretanto,	 o	 caráter	discursivo	da	 formação	da
opinião	e	da	vontade	na	esfera	pública	política	e	nas	corporações	parlamentares	implica,
outrossim,	o	sentido	prático	de	produzir	relações	de	entendimento,	as	quais	são	‘isentas	de
violência’,	 no	 sentido	 de	 H.	 Arendt,	 desencadeando	 a	 força	 produtiva	 da	 liberdade
comunicativa.	O	poder	comunicativo	de	convicções	comuns	só	pode	surgir	de	estruturas
da	intersubjetividade	intacta.	E	esse	cruzamento	entre	normatização	discursiva	do	direito
e	 formação	 comunicativa	 do	 poder	 é	 possível,	 em	 última	 instância,	 porqueno	 agir
comunicativo	os	argumentos	também	formam	motivos	(HABERMAS,	1997a,	p.	191).
Se	 considerarmos,	 com	 estes	 filósofos,	 que,	 num	 sistema	 democrático,	 a
participação	 e	 a	 deliberação	 popular	 são	 fundamentais	 e	 se	 partirmos	 do
princípio	de	que	quanto	maior	a	sua	capacidade	deliberativa	e	decisória	mais
democrático	será	o	procedimento,	podemos	concluir	que	o	modelo	de	justiça
restaurativo	 é	 altamente	 democrático,	 dada	 a	 sua	 característica	 inclusiva	 e
agregadora,	que	implica	a	presença	das	partes	no	trato	do	conflito	na	condição
de	protagonistas	do	processo.
3.2.4	A	democracia	deliberativa
A	crítica	à	legitimidade	da	democracia	representativa	vem	contribuindo	para	a
institucionalização	 e	 expansão	 de	 novas	 práticas	 —	 como	 a	 justiça
restaurativa	 —	 inspiradas	 nas	 teorias	 democráticas	 participativas	 e
deliberativas	 (SOUZA,	 2010,	 p.	 128).	 Nos	 últimos	 anos,	 tem	 havido	 uma
reavaliação	do	peso	do	elemento	decisório	em	prol	do	argumentativo,	o	que	é
corroborado	na	teoria	de	autores	como	Habermas	e	Cohen	(SOUZA,	2010,	p.
123).
Lorenzo	 Cini	 (2011,	 p.	 1-2)	 e	 André	 Coelho	 (2013e,	 p.	 1)	 advertem	 que
democracia	 participativa	 não	 se	 confunde	 necessariamente	 com	 democracia
deliberativa.	 A	 democracia	 participativa	 tem	 como	 pressuposto	 básico	 a
defesa	da	participação	direta	dos	cidadãos	na	tomada	de	decisão,	como	ocorre
em	 audiências	 públicas,	 conselhos	 gestores,	 orçamento	 participativo	 etc.
Segundo	 esta	 proposta,	 os	 agentes	 decisórios,	 em	 número	 cada	 vez	 maior,
devem	 ser	 os	 próprios	 interessados.	 A	 democracia	 participativa	 (e	 não	 a
deliberativa)	 se	 opõe	 à	 democracia	 meramente	 representativa	 na	 qual	 os
representantes	eleitos	tomam	decisões	em	nome	de	seus	eleitores.	Enquanto	a
democracia	participativa	concentra-se	em	debater	quem	devem	ser	os	atores
decisórios,	a	democracia	deliberativa	se	preocupa	com	o	procedimento,	com	o
modo	como	é	feita	a	tomada	a	decisão.
Esclarecem	Tim	O´Riordan	 (2002,	 p.	 87-88)	 e	André	Coelho	 (2013e,	 p.	 1)
que	 a	 democracia	 deliberativa	 critica	 concepções	 de	 democracia	 em	 que	 os
cidadãos	decidem	com	base	em	opiniões	ou	preferências	pré-concebidas	sobre
um	assunto,	pois,	neste	caso,	o	processo	de	tomada	de	decisão	não	as	afetou
ou	 transformou.	 Isso	porque	a	democracia	deliberativa	valoriza	a	 tomada	de
decisão	 como	 um	 processo	 de	 transformação	 por	 meio	 de	 argumentos.	 Os
conceitos	 e	 as	 opções	 prévias	 seriam	 o	 ponto	 de	 partida	 e	 não	 o	 ponto	 de
chegada	do	processo	decisório	(COELHO,	2013e,	p.	1).	No	mesmo	sentido,	a
crítica	 de	 Habermas	 (1997b,	 p.	 46):	 “a	 integração	 social,	 realizada
politicamente,	tem	que	passar	através	de	um	filtro	discursivo”.
André	Coelho	 (2013e,	 p.	 1)	 explica	 também	 que	 a	 democracia	 deliberativa
pressupõe	que	os	envolvidos	no	processo	argumentativo	estejam	dispostos	a
dar	e	receber	razões,	sejam	capazes	de	crítica	e	passíveis	de	convencimento	e
que	todos	estejam	mais	comprometidos	com	encontrar	a	melhor	decisão	e	não
em	fazer	prevalecer	a	sua	convicção	inicial	a	qualquer	preço,	tal	como	ocorre
na	racionalidade	comunicativa	de	Habermas,	examinada	na	seção	3.4.1.
Para	os	autores	 (O´RIORDAN,	2002,	p.	91;	CINI,	2011,	p.5-6	e	COELHO,
2013e,	p.	1),	 a	democracia	deliberativa	não	especifica	qual	 seria	o	processo
para	 se	 chegar	 a	 uma	 decisão	 final.	 Ela	 não	 é	 uma	 teoria	 normativa	 e	 não
pretende	 se	 tornar	 uma	 teoria	 sobre	 como	 as	 decisões	 devem	 ser	 tomadas,
nem	 mesmo	 substituir	 os	 processos	 decisórios	 democráticos	 já	 existentes,
como	é	o	caso	da	justiça	restaurativa	em	relação	ao	sistema	de	justiça	criminal
atual.	 A	 democracia	 deliberativa	 pretende	 ampliá-los,	 agregá-los,
demonstrando	 como	 incrementar	 o	 seu	 teor	 cognitivo,	 mediante	 uma
participação	 emancipatória	 e	 empoderadora	 dos	 atores	 diretamente
interessados.	Ela	demonstra	a	necessidade	do	debate	prévio,	de	concessão	de
maior	informação	aos	interessados,	de	equidade	e	transparência	nos	processos
decisórios,	para	que	a	tomada	de	decisão	seja	uma	deliberação	mais	racional
possível.
Assim	como	ocorre	na	justiça	restaurativa,	na	qual	o	consenso	nem	sempre	é
possível,	 o	 seu	 alcance	 é	 também	 um	 ideal	 regulador	 da	 democracia
deliberativa,	 mas	 não	 uma	 exigência	 concreta.	 O	 que	 ela	 requer	 é	 que	 a
tomada	de	decisão	 tenha	sido	antecedida	de	um	amplo	debate	de	 ideias,	em
que	cada	lado	tenha	se	esforçado	para	convencer	o	outro	com	base	em	razões.
Ainda	que	as	divergências	persistam,	elas	serão	produto	de	convicções	firmes
e	 esclarecidas.	 Mesmo	 sem	 o	 alcance	 do	 consenso,	 terá	 havido	 um
significativo	ganho	de	teor	cognitivo,	de	qualidade	da	reflexão	e	crítica,	o	que
representa	um	aprendizado	para	a	solução	de	conflitos	vindouros	(COELHO,
2013e,	p.1).
Portanto,	 o	 modelo	 de	 democracia	 deliberativa	 pela	 via	 restaurativa	 ora
proposto	 não	 é	 incompatível	 com	 a	 democracia	 representativa	 típica	 do
modelo	 jurisdicional,	 podendo	 ambos	 coexistir.	 O	 que	 se	 advoga	 não	 é	 a
democracia	 participativa	 (decisão	 tomada	 diretamente	 pelas	 partes
interessadas),	 mas	 que	 lhes	 seja	 conferida	 a	 oportunidade	 de	 deliberação
racional,	 que	 atribui	maior	 legitimidade	 ao	 processo	 decisório,	 possibilita	 o
reconhecimento	 intersubjetivo	 entre	 as	 partes	 e	 o	 aprendizado	 via
racionalidade	comunicativa.	A	alteração	pretendida	é,	portanto,	procedimental
(“jurisconstrução”)	 e	 que	 não	 afasta	 a	 possibilidade	 de	 controle	 judicial	 do
que	foi	“construído”	(princípio	da	inafastabilidade	da	apreciação	judicial).
3.2.5	A	poliarquia
Uma	das	formas	de	democracia	deliberativa	é	poliarquia	(governo	de	muitos),
fruto	da	teoria	democrática	pluralista	de	Robert	Dahl.	Ela	é	caracterizada	pela
dispersão	do	poder	e	pelo	reconhecimento	da	diversidade	de	interesses	entre
os	 cidadãos	 (COSTA,	 2007,	 p.	 220).	Neste	 sistema,	 todos	 teriam	 direito	 ao
sufrágio,	 à	 expressão	 política,	 à	 associação	 e	 acesso	 a	 diversas	 fontes	 de
informação.	 Entretanto,	 ela	 pressupõe	 o	 que	 se	 chama	 de	 “deliberação
autêntica”,	 ou	 seja,	 que	 a	 deliberação	 entre	 os	 decisores	 esteja	 livre	 de
distorções,	como	um	poder	decisório	obtido	por	meio	da	riqueza	econômica
ou	do	apoio	de	grupos	de	interesse	115	(LÜCHMANN,	2002,	p.	15).
Segundo	Habermas	(1997b,	p.	42),	o	modelo	proposto	por	Dahl	fornece	um
processo	 que	 proporciona	 o	 interesse	 simétrico	 de	 todos	 e	 apresenta	 as
seguintes	vantagens:
a)	 a	 inclusão	 de	 todas	 as	 pessoas	 envolvidas;	 b)	 chances	 reais	 de	 participação	 no
processo	 político,	 repartidas	 equitativamente;	 c)	 igual	 direito	 a	 voto	 nas	 decisões;	 d)	 o
mesmo	direito	para	a	escolha	dos	temas	e	para	o	controle	da	agenda;	e)	uma	situação	na
qual	 todos	 os	 participantes,	 tendo	 à	 mão	 informações	 suficientes	 e	 bons	 argumentos,
possam	formar	uma	compreensão	articulada	acerca	das	matérias	a	serem	regulamentadas
e	dos	interesses	controversos.
A	 poliarquia,	 para	 Dahl,	 corresponderia	 a	 um	 estágio	 mais	 avançado	 de
democracia	e	atenderia	ao	ideal	democrático	na	medida	em	que	propicia	baixo
índice	de	coerção,	elevado	índice	de	persuasão	e	uma	relativa	autonomia	dos
indivíduos	(COSTA,	2007,	p.	221).
Habermas	 ressalta	 a	 importância	 da	 proposta	 poliárquica	 de	 Dahl	 para	 a
solução	de	problemas	em	sociedades	complexas,	nas	quais	a	discursão	precisa
ser	 fomentada,	 não	 se	 contentando	 mais	 com	 a	 divisão	 de	 trabalho	 pura	 e
simples	ou	com	a	delegação	de	tarefas:
[…]	pois	o	âmago	da	política	deliberativa	consiste	precisamente	numa	rede	de	discursos	e
de	 negociações,	 a	 qual	 deve	 possibilitar	 a	 solução	 racional	 de	 questões	 pragmáticas,
morais	 e	 éticas	—	 que	 são	 precisamente	 os	 problemas	 acumulados	 de	 uma	 fracassada
integração	 funcional,	 moral	 e	 ética	 da	 sociedade.	 A	 necessidade	 de	 coordenação
funcional,	que	surge	nas	atuais	sociedades	complexas,	não	pode	mais	ser	supridaatravés
do	 modelo	 simples	 da	 divisão	 de	 trabalho	 ou	 da	 cooperação	 entre	 indivíduos	 e
coletividades:	 são	 necessários	 mecanismos	 de	 regulação	 indireta	 do	 sistema
administrativo	(HABERMAS,	1997b,	p.	47).
Na	 poliarquia,	 o	 exercício	 do	 poder	 e	 o	 controle	 de	 decisões	 e	 de	 políticas
públicas	 seriam	 indiretos,	 realizados	 por	 funcionários	 públicos,	 eleitos	 pelo
povo	 por	meio	 de	 eleições	 livres	 e	 justas.	 Portanto,	 na	 forma	 proposta	 por
Dahl,	 a	 poliarquia	 equivaleria	 à	 democracia	 representativa.	 De	 acordo	 com
ele,	 “quanto	mais	 cidadãos	 uma	 unidade	 democrática	 contém,	menos	 esses
cidadãos	 podem	 participar	 diretamente	 das	 decisões	 e	 mais	 eles	 têm	 de
delegar	a	outros	essa	autoridade”	(DAHL,	2001,	p.	125).	Destarte,	segundo	o
cientista	 político,	 em	 benefício	 de	 “uma	 maior	 eficácia	 do	 sistema
democrático”,	 seria	 necessário	 prescindir	 de	 uma	 participação	 popular	mais
efetiva,	o	que	evidencia	a	sua	defesa	de	um	sistema	representativo.
Habermas	(1997b,	p.	42)	atenta	para	os	riscos	da	representatividade	proposta
por	 Dahl,	 como	 a	 monopolização	 do	 saber	 especializado	 e	 a	 restrição	 do
acesso	às	fontes,	privando	os	demais	cidadãos	do	conhecimento:
[…]	 a	maior	 dificuldade	 a	 ser	 enfrentada	 daqui	 para	 frente	 pela	 democracia	 reside	 no
encapsulamento	do	saber	político	especializado,	o	que	impede	os	cidadãos	de	aproveitá-lo
para	 a	 formação	 das	 próprias	 opiniões.	 O	 perigo	 principal	 reside,	 segundo	 ele,	 na
variante	 tecnocrática	 de	 um	 paternalismo	 que	 se	 nutre	 nos	 monopólios	 do	 saber.	 E	 o
acesso	 privilegiado	 às	 fontes	 do	 saber	 político	 relevante	 abre	 as	 portas	 para	 uma
dominação	imperceptível	que	se	estende	sobre	o	público	dos	cidadãos,	os	quais	não	têm
acesso	a	essas	fontes,	alimentando-se	de	uma	política	simbólica	(HABERMAS,	1997b,	p.
42).
3.2.6	A	justiça	restaurativa	como	forma	de	poliarquia	diretamente
deliberativa
A	 teoria	 de	 Dahl	 foi	 aperfeiçoada,	 no	 final	 dos	 anos	 noventas,	 pelos
professores	norte-americanos	Joshua	Cohen,	Michael	Dorf	e	Charles	Sabel,	os
quais,	partindo	da	conclusão	de	uma	crescente	volatividade	e	diversidade	nas
sociedades	contemporâneas,	concluíram	que	a	democracia	representativa	e	a
democracia	 constitucional	 não	 seriam	 mais	 modelos	 tão	 funcionais	 e
desejáveis	(COHEN;	SABEL,	1997,	p.	319).
Os	 autores	 desenvolveram,	 então,	 a	 teoria	 da	 poliarquia	 diretamente
deliberativa	 segundo	 a	 qual	 decisões	 que	 reúnam	 interesse	 público	 e
interesses	 privados	 devem	 ser	 tomadas	 diretamente	 pelos	 interessados	 e
apenas	monitoradas	pelos	poderes	estatais	(Parlamento,	Poder	Judiciário	etc.)
(LÜCHMANN,	2002,	p.	16).
Diferentemente	da	poliarquia	representativa	de	Dahl,	a	poliarquia	diretamente
deliberativa	 é	 um	 tipo	 de	 democracia	 direta,	 na	 qual	 a	 deliberação	 e	 a
participação	são	fundamentais	para	a	tomada	de	decisão.	Nela,	os	cidadãos	-
mesmo	leigos	-	participam	do	processo	de	tomada	de	decisão.
O	 sistema	 é	 chamado	 de	 poliarquia	 (governo	 de	 muitos)	 porque	 tanto	 a
tomada	decisória	quanto	a	 sua	 implementação	são	devolvidas	para	unidades
de	“níveis	 inferiores”	(indivíduos	ou	grupos).	Ele	é	diretamente	deliberativo
porque	uma	gama	de	atores	participa	da	decisão	local	que	seria	alcançada	por
deliberação,	 que	 é,	 em	última	 instância,	 a	 troca	 de	 argumentos	mutuamente
reconhecidos	 (COHEN;	SABEL,	1997,	 p.	 320).	Difere	da	 forma	 tradicional
de	democracia	por	defender	que,	para	uma	decisão	democrática	legítima,	ela
deve	 ser	 precedida	 de	 deliberação	 autêntica	 e	 não	 apenas	 resultar	 da
agregação	de	preferências,	conforme	visto	na	seção	3.2.4.
Na	 poliarquia	 diretamente	 deliberativa,	 os	 arranjos	 são	 atraentes	 e
democráticos	 porque	 promovem	 dois	 valores	 democráticos	 fundamentais:	 a
deliberação	e	a	participação	direta	dos	interessados.
A	ideia	de	Cohen	e	Sabel	de	poliarquia	diretamente	deliberativa	é	aplicável	à
justiça	restaurativa	porque	ambas	têm	em	comum	a	capacidade	de	promover	a
democracia	 na	 sua	 forma	 mais	 atraente	 -	 direta	 e	 deliberativa	 -	 e	 assim
aumentar	 a	 capacidade	 coletiva	 de	 resolver	 conflitos	 etiologicamente
(LÜCHMANN,	2002,	p.	31).	Assim,	como	a	justiça	restaurativa,	a	poliarquia
diretamente	 deliberativa	 é	 animada	 pelo	 reconhecimento	 dos	 limites	 da
capacidade	 dos	 julgadores	 para	 resolver	 todos	 os	 conflitos	 criminais,	 como
demonstra	a	elevada	cifra	negra	discutida	na	seção	1.5.	Por	outro	lado,	ambas
assumem	que	os	atores	—	apesar	do	conflito	que	os	envolve	—	concordam
em	 sentido	 amplo	 sobre	 suas	 necessidades	 e	metas,	mas,	muitas	 vezes,	 não
podem	 realizar	 esta	 concordância,	 dadas	 as	 restrições	 e	 uniformidades
próprias	das	decisões	judiciais	116	.
Num	acordo	restaurativo,	as	soluções	são	lastreadas	na	diversidade,	com	alta
sensibilidade	 para	 as	 condições	 locais	 e	 pessoais	 da	 ofensa	 e	 de	 suas
circunstâncias.	 Como	 cada	 conflito	 é	 diferente,	 sentenças	 padronizadas	 ou
cópias	 de	 soluções	 adotadas	 em	 outros	 casos	 não	 são	 adequadas,	 embora
possam	 servir	 como	 linha	 de	 base	 a	 partir	 da	 qual	 uma	 solução	 possa	 ser
construída.
Estudos	 realizados	 por	 James	 Fishkin	 117	 constataram	 que	 a	 democracia
deliberativa	 tende	 a	 produzir	 resultados	 superiores	 aos	 de	 outras	 formas	 de
democracia,	 tais	 como	 menos	 partidarismo,	 mais	 simpatia	 com	 visões
opostas,	 um	maior	 compromisso	 dos	 envolvidos	 com	 as	 decisões	 tomadas,
uma	maior	 chance	 de	 alcance	 do	 consenso,	 coesão	 social	 entre	 pessoas	 de
diferentes	origens	e	aumento	no	espírito	público	(LÜCHMANN,	2002,	p.	33).
Consoante	 o	 ex-diplomata	 americano	 Carne	 Ross	 (2011,	 p.	 1),	 os	 debates
decorrentes	 da	 democracia	 deliberativa	 são	 muito	 mais	 civilizados	 e
colaborativos	do	que	os	realizados	em	reuniões	tradicionais	ou	em	fóruns	da
internet.
O	 modelo	 democrático	 deliberativo	 apresenta	 outras	 vantagens.	 Segundo
Carlos	 Santiago	 Nino	 (1996,	 p.	 65),	 ele	 tende,	 mais	 que	 qualquer	 outro
modelo,	 a	 gerar	 condições	 ideais	 de	 imparcialidade,	 racionalidade	 e
conhecimento	 dos	 fatos	 relevantes.	 Quanto	 mais	 estas	 condições	 forem
cumpridas,	 maior	 a	 probabilidade	 de	 que	 as	 decisões	 tomadas	 sejam
moralmente	corretas.
Uma	 jurisdição	 democrático-participativa	 apresenta,	 ainda,	 aspectos
educativos	 que	 devem	 ser	 considerados.	 Ao	 estabelecer	 a	 posição	 de
igualdade	entre	os	cidadãos,	com	direito	a	participarem	das	determinações,	os
arranjos	 democráticos	 não	 só	 respeitam,	 mas	 também	 possibilitam	 a
disseminação	 de	 informações	 relevantes	 para	 a	 resolução	 de	 problemas	 e
constituem	uma	oportunidade	 para	 a	 aprendizagem	coletiva	 (LÜCHMANN,
2002,	p.	32).	No	mesmo	sentido,	assevera	Rawls:
Para	que	os	cidadãos	de	uma	sociedade	bem	ordenada	reconheçam	uns	aos	outros	como
livres	e	iguais,	as	instituições	básicas	devem	educá-los	para	essa	concepção	de	si	mesmos,
assim	 como	 expor	 e	 estimular	 publicamente	 esse	 ideal	 de	 justiça	 política.	 […]
familiarizar-se	 com	 a	 cultura	 pública	 e	 participar	 dela	 é	 uma	 das	 maneiras	 que	 os
cidadãos	 têm	 de	 aprender	 a	 se	 conceberem	 como	 livres	 e	 iguais,	 concepção	 esta	 que
provavelmente	jamais	formariam	se	dependessem	apenas	de	suas	próprias	reflexões,	e	que
tampouco	aceitariam	ou	desejariam	realizar	(1993,	p.	79).
Como	testifica	Rawls,	participar	da	cultura	pública	é	a	maneira	democrática
de	 aprendermos	 que	 somos	 livres	 e	 iguais,	 o	 que	 dificilmente
compreenderíamos	sozinhos,	encapsulados	em	nossas	próprias	reflexões.
3.2.7	Críticas	à	democracia	deliberativa
André	 Coelho	 (2013e,	 p.	 1)	 informa	 que	 a	 crítica	 tende	 a	 considerar	 a
democracia	 deliberativa	 um	 processo	 utópico	 e	 irrealizável,	 especialmente
para	o	tratamento	de	conflitos	de	natureza	criminal	e	de	suas	consequências.
O	debate	neste	âmbito	costuma	ser	polarizado,	explosivo,	movido	por	paixões(tais	como	ideias	sobre	prisões	longevas,	rigor	no	cumprimento	da	pena,	pena
de	 morte,	 descriminalização	 do	 uso	 de	 drogas,	 do	 aborto).	 Especialmente
quando	 se	 trata	 de	 uma	 resposta	 específica	 a	 um	 crime	 cometido,	 afluem
sentimentos,	 convicções	 irracionais	 e	 intransigentes	 que	 não	 são	 tão
“civilizados”	 quanto	 supõe	 a	 democracia	 deliberativa.	 Argumenta	 a	 crítica
ainda	 que,	 em	 se	 tratando	 de	 partes	 processuais,	 leigas	 e	 com	 interesses
presumidamente	opostos,	elas	não	teriam	argumentos	jurídicos	para	sustentar
suas	 posições,	 não	 abandonariam	 suas	 convicções	 porque	 estão
emocionalmente	ligadas	ao	fato	e,	no	caso	das	vítimas,	estariam	interessadas
apenas	na	punição	do	ofensor	e	este	apenas	em	livrar-se	da	pena.
Explica	 o	 autor	 que	 esta	 posição	 realista	 do	 debate	 é	 denominada	 de
“ceticismo	 da	 deliberação”.	 Em	 resposta	 a	 elas,	 os	 deliberacionistas
argumentam	que,	em	realidade,	os	processos	de	tomada	de	decisão	nunca	são
inteiramente	 racionais	 nem	 inteiramente	 irracionais.	 Afinal,	 os	 temas	 de
deliberação	 em	 matéria	 criminal	 são	 bastante	 diversos,	 variando	 desde	 os
mais	pragmáticos	até	os	de	conteúdo	moral.	Com	isto,	diversifica	o	nível	de
paixão	do	envolvimento	dos	agentes	com	suas	posições	prévias.
Por	outro	lado,	na	maior	parte	das	vezes,	existe	algum	consenso	sobre	fins	a
serem	 alcançados	 (necessidade	 de	 reparação,	 formas	 de	 “expiação”	 úteis,
reconciliação,	 convivência	 pacífica),	 em	 que	 pesem	 as	 divergências	 sobre
meios	de	atingi-los.	Entretanto,	esta	dissensão	pode	ser	sanada	com	a	escuta,
com	 a	 consideração	 de	 pontos	 de	 vista	 diferentes	 e	 com	 o	 acesso	 a	 mais
informações	 sobre	 novas	 possibilidades	 de	 seguir	 em	 frente	 após	 o	 conflito
(COELHO,	2013e,	p.	1).
Argumentam	ainda	os	deliberacionistas	que	as	discussões	sobre	o	crime	e	sua
punição	 assumem	 o	 perfil	 polarizado,	 explosivo,	 intransigente,	 tal	 como	 os
céticos	 a	 acusam,	 justamente	 pela	 falta	 da	 deliberação	 a	 respeito	 do	 tema	 e
não	 em	 decorrência	 do	 debate.	 Cidadãos	 habituados	 a	 uma	 cultura
democrática,	aberta,	de	solução	pacífica,	apresentados	à	 tomada	de	decisões
transparentes,	 inteligíveis	 e	 justificadas	 tendem	 a	 socializarem-se	 de	 forma
mais	comunicativa	e	racional.	Tornam-se	capazes	de	submeter	suas	opiniões	e
preferências	prévias	ao	 teste	de	aceitabilidade,	de	examinar	criticamente,	de
olhar	 sob	 o	 ponto	 de	 vista	 do	 outro,	 tal	 como	 propõe	 Habermas.	 Portanto,
cada	 deliberação	 em	 particular	 torna-se	 um	 processo	 de	 aprendizado	 dos
implicados	 não	 só	 quanto	 à	 questão	 debatida,	 mas	 também	 quanto	 a	 se
tornarem	mais	aptos	e	receptivos	à	deliberação	(COELHO,	2013e,	p.	1).
Em	síntese,	podemos	concluir	que	a	introdução	de	mecanismos	de	deliberação
direta	 no	 sistema	 de	 justiça	 criminal	 brasileiro,	 como	 é	 o	 caso	 da	 justiça
restaurativa,	 pode	 ampliá-lo	 e	 incrementar	 o	 seu	 teor	 cognitivo,	 permitindo
sua	evolução	para	um	estágio	mais	avançado	de	democracia.	O	sistema	seria
composto	 de	 mecanismos	 decisórios-democráticos,	 que	 congregaria	 as
perspectivas	 da	 participação,	 deliberação	 e	 representação,	 as	 quais,	 como
visto,	não	são	 incompatíveis	entre	si	e,	por	 isso,	podem	coexistir.	Assim,	as
decisões	 seriam	 tomadas	 diretamente	 pelos	 interessados	 e	monitoradas	 pelo
Poder	Judiciário.
A	justiça	restaurativa	como	forma	de	poliarquia	diretamente	deliberativa	não
deve	ser	 tomada	como	substituta	do	atual	sistema	 judicial,	mas	como	forma
de	 reconstrução	 racional	 da	 sua	 lógica	 democrática.	Neste	 sistema,	 a	maior
parte	 das	 decisões	 é	 tomada	 de	modo	 racional	 e	 fundamentado,	 porém	 não
deliberativo.	 A	 deliberação	 apresenta	 ganhos	 cognitivos	 e	 emancipatórios,
como	 adverte	 André	 Coelho	 (2013e,	 p.	 1),	 e	 corresponderia	 a	 um
aperfeiçoamento	 da	 experiência	 democrática	 acumulada	 ao	 do	 tempo.	 As
decisões	 judiciais	 se	 tornariam	 também	 mais	 democráticas,	 à	 medida	 que
incorporam	 visões	mais	 abrangentes,	 pluralistas,	 sensíveis	 e	 sofisticadas	 no
sentido	 transmoderno	 visto	 na	 seção	 3.1.1,	 ultrapassando	 a	 tomada	 de
decisões	 uniformes	 e	 polarizadas,	 de	 ganhadores	 e	 perdedores,	 tipicamente
modernas.	 Afinal,	 já	 anunciava	 Warat	 (2001,	 p.	 121),	 não	 há	 nada	 mais
democrático	do	que	a	possibilidade	de	decidir	por	si	e	por	meio	da	reflexão
com	o	outro.
3.3	Compreendendo	a	dinâmica	do	encontro	restaurativo	e	as	suas	bases
filosóficas
Boaventura	 de	 Sousa	 Santos	 (2010,	 p.	 45)	 observa	 que,	 depois	 da	 euforia
cientista	 do	 século	XIX	 e	 da	 aversão	 à	 reflexão	 filosófica	 simbolizada	 pelo
positivismo,	há	um	desejo	de	se	complementar	o	conhecimento	“das	coisas”,
da	sua	dinâmica	por	meio	de	uma	compreensão	mais	profunda,	interativa,	de
ordem	 filosófica	 e	 sociológica	 (um	 conhecimento	 inclusive	 sobre	 “nós
próprios”,	diz	ou	autor).	O	direito,	por	exemplo,	que	reduziu	a	complexidade
da	vida	jurídica	à	dogmática	jurídica,	redescobre	a	filosofia	e	a	sociologia	em
busca	desta	nova	consciência	(SOUSA	SANTOS,	2010,	p.	46).
Tal	 como	 o	 salto	 paradigmático	 descrito	 na	 seção	 3.1,	 abandona-se	 o
paradigma	da	consciência,	alicerçado	na	relação	cognitiva	sujeito-objeto	(em
que	 o	 sujeito	 pensante,	 solitário,	 procura	 desvendar	 as	 leis	 gerais	 que
governam	o	mundo	 repleto	de	diversidade),	 em	prol	de	um	paradigma	mais
comunicativo,	 dinâmico,	 de	 natureza	 intersubjetiva,	 que	 visa	 alcançar	 o
entendimento	com	o	outro	(PINTO,	1995,	p.	1).
No	campo	da	 justiça	penal,	 a	 justiça	 restaurativa	 se	propõe	a	 atender	 a	 este
novo	modelo,	 em	 busca	 de	 um	 acertamento	 entre	 ofensor	 e	 vítima,	 eis	 que
aberta	 à	 consideração	 das	 responsabilidades	 e	 necessidades	 de	 cada
envolvido.	 Com	 auxílio	 das	 teorias	 filosóficas	 de	 Jürgen	 Habermas,
Emmanuel	Lévinas	e	Axel	Honneth,	podemos	compreender	os	 fundamentos
éticos	e	filosóficos	dessa	nova	abordagem	e	aclarar	o	significado	e	a	dinâmica
do	encontro	restaurativo.
Habermas,	com	base	no	interacionismo	simbólico	de	Mead	118	,	no	conceito	de
jogos	de	linguagem	de	Wittgenstein	119	,	na	teoria	dos	atos	de	fala	de	Austin	120	e
na	 hermenêutica	 de	 Gadamer,	 propôs	 uma	 teoria	 da	 comunicação	 em	 que,
assim	 como	 ocorre	 na	 justiça	 restaurativa,	 sujeitos	 interagem	 em	 ação
comunicativa	121	,	em	uma	esfera	pública	de	deliberação,	estabelecendo	relações
interpessoais,	 com	 o	 objetivo	 de	 alcançar	 uma	 compreensão	 sobre	 fatos	 e
planos	 de	 ação,	 coordenando	 suas	 ações	 pela	 via	 do	 entendimento.	 Neste
locus	 apropriado	 e	 por	 intermédio	 do	 agir	 comunicativo,	 os	 interlocutores
remetem	 a	 pretensões	 de	 validade	 criticáveis	 quanto	 à	 sua	 veracidade,
correção	 normativa	 e	 autenticidade,	 que	 se	 referem	 ao	mundo	 objetivo	 dos
fatos,	 ao	mundo	 social	das	normas	e	 ao	mundo	das	 experiências	 subjetivas,
respectivamente	(PINTO,	1995,	p.	1).
Em	 seguida,	Honneth	 elaborou	 a	 sua	 teoria	 crítica,	 segundo	 a	 qual	 se	 deve
interpretar	a	sociedade	a	partir	de	uma	única	categoria,	a	do	reconhecimento,
com	base	no	conceito	de	 luta	por	reconhecimento	de	Hegel.	Na	ausência	de
reconhecimento	de	valores	e	de	reivindicações	estaria	a	origem	dos	conflitos.
Sob	 esta	 perspectiva,	 a	 função	 da	 justiça	 restaurativa	 pode	 igualmente	 ser
compreendida,	constituindo-se	em	um	fórum	para	o	reconhecimento	recíproco
de	diferenças	e	de	minimização	de	conflitos.
Por	fim,	Lévinas	nos	fornece	uma	filosofia	existencial	a	partir	da	experiência
ética	 do	 encontro	 com	 o	 outro,	 a	 qual	 pode	 auxiliar	 na	 compreensão	 do
impacto	 e	 do	 efeito	 transformativo	 de	 atitudes	 sobre	 os	 participantes	 do
procedimento	de	justiça	restaurativa.
Em	 síntese,	 com	 o	 apoio	 da	 filosofia	 destes	 autores,	 seria	 possível
compreender	 a	 dinâmica	 restaurativa	 e	 o	 seu	 potencial	 para	 comunicar	 o
impacto	 do	 comportamento	 ofensivo	 sobre	 formas	 de	 sua	 administração(Habermas),	 para	 promover	 o	 reconhecimento	 intersubjetivo	 recíproco	 das
partes	 em	 conflito,	 a	 aceitação	 da	 outridade	 (Honneth)	 e	 reconhecer	 a
humanidade	presente	no	outro,	assumindo	responsabilidades	por	ele	(Lévinas)
122	.
As	 teorias	 destes	 filósofos	 são	 complexas,	 profundas	 e	 expansivas,	 a	 cujo
desenvolvimento	 dedicaram	 a	 vida	 profissional.	 A	 discussão	 que	 aqui	 se
apresenta	 não	 tem	 o	 propósito	 de	 abordar	 todas	 as	 dimensões	 da	 teoria
completa	de	cada	um	deles,	mas	de	explorar	apenas	uma	pequena	parte	delas,
com	 o	 objetivo	 de	 refletir	 e	 traduzir	 aspectos	 do	 processo	 restaurativo.	 A
utilização	de	tais	 teorias	se	 limita	a	abordar	algumas	perspectivas	que	sejam
relevantes	 para	 o	 propósito	 desta	 pesquisa,	 sempre	 com	 o	 cuidado	 de	 não
deturpar	essas	ideias	ao	retirá-las	do	seu	contexto	original.
3.3.1	A	justiça	restaurativa	como	esfera	pública	de	deliberação
Habermas	refere-se	à	ideia	de	“esfera	pública”	para	designar	espaços	sociais
onde	 as	 pessoas	 se	 reúnem	 para	 discutir	 assuntos	 comuns	 e,	 dessa	 forma,
podem	se	organizar	contra	as	formas	arbitrárias	e	opressivas	de	exercício	do
poder	estatal.	Habermas	(1997b,	p.	92)	a	define	da	seguinte	maneira:
A	 esfera	 pública	 não	 pode	 ser	 entendida	 como	 uma	 instituição,	 nem	 como	 uma
organização,	 pois	 ela	 não	 constitui	 uma	 estrutura	 normativa	 capaz	 de	 diferenciar	 entre
competências	 e	 papéis,	 nem	 regula	 o	 modo	 de	 pertencer	 a	 uma	 organização,	 etc.
Tampouco	ela	 constitui	 um	 sistema,	pois,	mesmo	que	 seja	possível	 delinear	 seus	 limites
internos,	 exteriormente	 ela	 se	 caracteriza	 através	 de	 horizontes	 abertos,	 permeáveis	 e
deslocáveis.	 A	 esfera	 pública	 pode	 ser	 descrita	 como	 uma	 rede	 adequada	 para	 a
comunicação	 de	 conteúdos,	 tomadas	 de	 posição	 e	 opiniões,	 nela	 os	 fluxos
comunicacionais	 são	 filtrados	 e	 sintetizados,	 a	 ponto	 de	 se	 condensarem	 em	 opiniões
públicas	 enfeixadas	 em	 temas	 específicos	 […].	 A	 esfera	 pública	 se	 reproduz	 através	 do
agir	comunicativo,	implicando	apenas	o	domínio	de	uma	linguagem	natural;	ela	está	em
sintonia	com	a	compreensibilidade	geral	da	prática	comunicativa	cotidiana.
A	esfera	pública	de	Habermas	é	concebida,	portanto,	como	um	 locus	para	 a
troca	de	informações,	discussão,	contestação,	luta	política	e	organização.	Um
dos	 seus	 princípios	 é	 a	 discussão	 aberta	 de	 todas	 as	 questões	 de	 interesse
comum.	 Ela	 pressupõe	 liberdade	 de	 expressão,	 de	 reunião	 e	 o	 direito	 de
participar	livremente	do	debate	e	da	tomada	de	decisão.
A	esfera	pública	habermasiana	é	constituída	e	mantida	por	meio	do	diálogo,
dos	atos	de	fala,	do	debate	e	da	discussão	que	possibilitam	a	comunicação	e
participação	 política.	 Segundo	 Habermas	 (1997b,	 p.	 191),	 ela	 apresenta	 o
mérito	 de	 ser	 sensível	 e,	 ao	 mesmo	 tempo,	 não	 especializada:	 “A	 esfera
pública	 é	 um	 sistema	 de	 alarme	 dotado	 de	 sensores	 não	 especializados,
porém,	sensíveis	no	âmbito	de	toda	a	sociedade.”
Outra	vantagem	da	esfera	pública,	de	acordo	com	o	autor,	é	“ser	um	meio	de
comunicação	 isento	 de	 limitações,	 no	 qual	 é	 possível	 captar	 melhor	 novos
problemas,	conduzir	discursos	expressivos	de	autoentendimento	e	articular,	de
modo	 mais	 livre,	 identidades	 coletivas	 e	 interpretações	 de	 necessidades”
(HABERMAS,	 1997b,	 p.	 33).	 O	 filósofo	 a	 vislumbra	 como	 única	 forma
possível	de	solução	comunicativa	de	conflitos	capaz	de	gerar	“solidariedade
entre	estranhos”	(HABERMAS,	1997b,	p.	33).
É,	 neste	 caso,	 adequado	 compreender	 o	 encontro	 restaurativo	 como	 uma
esfera	 pública	 habermasiana	 de	 comunicação	 tendo	 em	 vista	 a	 interlocução
propiciada	por	ele,	que	o	torna	uma	arena	voltada	para	a	discussão	racional,
para	 o	 debate	 e	 o	 consenso.	 Este	 locus	 neutro	 e	 apropriado	 à	 comunicação
favorece	 também	 a	 formação	 da	 empatia,	 o	 reconhecimento	 recíproco	 e	 a
assunção	 de	 responsabilidades	 intersubjetivas	 dos	 interlocutores,	 em	 um
processo	detalhado	a	seguir.	123
3.3.2	Justiça	restaurativa:	um	locus	para	o	reconhecimento	
recíproco
Para	Honneth	(2004,	p.	105),	com	o	advento	da	modernidade,	o	indivíduo	se
desvencilhou	 dos	 seus	 laços	 tradicionais	 e	 pôde	 determinar	 os	 objetivos
relevantes	de	sua	própria	vida.	Entretanto,	um	elemento	extra	de	significação
se	estabeleceu	na	compreensão	moderna	da	 liberdade:	a	de	que	o	 indivíduo,
na	 realização	 de	 sua	 liberdade,	 poderia	 fazê-lo	 independente	 dos	 demais
participantes	na	interação.
De	 acordo	 com	 o	 autor,	 este	 conceito	 individualista	 de	 autonomia	 pessoal,
apesar	de	equívoco,	também	se	infiltrou	nas	modernas	teorias	da	justiça	124	.	O
filósofo	 defende	 uma	 revisão	 conceitual	 dessas	 teorias	 consoante	 a
perspectiva	 de	 que	 a	 justiça	 alcança	 não	 apenas	 a	 liberdade	 de	 ação
individual,	 mas	 também	 as	 esferas	 de	 comunicação	 social.	 Como	 acentua
Honneth	 (2004,	 p.	 111),	 na	 medida	 em	 que	 as	 partes	 são	 concebidas
isoladamente	 umas	 das	 outras,	 elas	 têm	 necessidade	 de	 se	 visualizar	 além
desta	cortina	de	fumaça,	que	passa	a	ser	a	ignorância	sobre	o	próprio	destino.
Honneth	 (2004,	p.	105)	 lembra	que	Hegel	 foi	o	primeiro	a	se	opor	contra	o
delineamento	 individualista	 da	 concepção	 de	 liberdade	 moderna.	 Enquanto
seus	antecessores	consideravam	o	Estado	como	o	assegurador	da	autonomia
individual	dos	participantes	da	sociedade,	Hegel	se	concentrou,	com	o	mesmo
propósito,	no	caráter	garantidor	de	 liberdade	das	esferas	de	 interação	social.
Para	Hegel	(1991,	p.	42),	apenas	por	meio	da	experiência	do	reconhecimento
de	suas	capacidades	e	necessidades	é	que	os	seres	humanos	estão	em	posição
de	ganhar	força	para	a	configuração	autônoma	de	seus	objetivos	de	vida.
Destarte,	para	estes	dois	filósofos,	as	liberdades	individuais	são	o	produto	de
uma	 forma	 de	 comunicação	 intersubjetiva	 (Zwischenmenschlicher	 )	 que
contém	 o	 caráter	 de	 um	 reconhecimento	 recíproco	 (HONNETH,	 2004,	 p.
112).	Longe	de	construir	uma	limitação,	as	liberdades	intersubjetivas	são	uma
condição	da	liberdade	do	sujeito	partindo	do	princípio	de	que	o	indivíduo	só
estaria	 capacitado	 para	 o	 desenvolvimento	 da	 autonomia	 porque	 mantém
relações	 com	 outros	 sujeitos,	 relações	 que	 possibilitam	 o	 reconhecimento
recíproco	de	suas	personalidades	individuadas.	Dessa	forma,	podemos	inferir
que	 os	 homens	 dependem	 das	 experiências	 básicas	 de	 reconhecimento
recíproco	 para	 assegurar	 suas	 autonomias	 individuais.	 Este	 reconhecimento
sucederia	 em	 três	 esferas	 de	 interação	 intersubjetivas:	 a	 do	 amor	 (entre
pessoas	 íntimas,	 o	 que	 gera	 autoconfiança),	 a	 do	 direito	 (que	 produz	 o
autorrespeito)	 e	 a	 da	 solidariedade	 (que	 germina	 a	 autoestima).	A	 injustiça,
nesse	caso,	estaria	relacionada	aos	sentimentos	morais	de	não	reconhecimento
social	das	faculdades	e	necessidades	individuais.
Assim,	 diversamente	 dos	 clássicos,	 para	 quem	 a	 justiça	 social	 é	 obtenível
mediante	 a	 garantia	 uniforme	 das	 liberdades	 individuais	 fundamentais,
Honneth	 defende	 que	 tal	 justiça	 só	 é	 possível	 por	 meio	 da	 participação
igualitária	em	relações	de	reconhecimento	que	só	são	viáveis	se	encontrarem
as	esferas	de	comunicação	apropriadas.
Segundo	o	representante	da	“terceira	geração”	da	Escola	de	Frankfurt	125	,	mais
do	que	a	demanda	por	uma	distribuição	equitativa	de	bens	materiais,	a	justiça
diz	 respeito	 ao	 reconhecimento	 proporcionado	 nas	 relações	 sociais	 e	 pela
harmonia	 das	 várias	 esferas	 de	 comunicação.	 A	 sua	 teoria	 da	 justiça
pressupõe,	então,	um	conceito	intersubjetivo	e	não	individualista	de	liberdade.
A	justiça	restaurativa	atende	a	este	ideal	de	Honneth,	ao	ideal	de	uma	justiça
igualitária	 e	 ao	 mesmo	 tempo	 promotora	 da	 autonomia	 individual.	 Nessa
proposta	 terapêutica,	 vítima	 e	 ofensor	 são	 reconhecidos	 reciprocamente,
mediante	 o	 seu	 envolvimento	 ativo	 no	 processo	 por	 meio	 dodiálogo.	 São
adjudicados	como	principais	intervenientes	no	sistema	e	detêm	o	controle	do
resultado,	 graças	 ao	 processo	 decisório	 compartilhado.	 Diferentemente	 do
método	 tradicional,	 em	 que	 as	 partes	 se	 manifestam	 por	 meio	 dos	 seus
advogados,	 sua	 participação	 é	 direta	 e	 todos	 têm	 a	 oportunidade	 de	 contar
suas	histórias	e	expressar	suas	dores	emocionais	e	psicológicas.	Tais	aspectos
são	geralmente	ignorados	quando	se	trata	do	arranjo	ordinário	de	justiça,	no
qual	 os	 depoentes	 devem	 se	 cingir	 às	 perguntas	 objetivamente	 formuladas,
abstendo-se	de	declarações	subjetivas,	que	“não	interessam	para	o	julgamento
do	fato”,	pois	as	partes	muitas	vezes	são	consideradas	como	“um	entrave”	ao
procedimento	 por	 levarem	 uma	 emoção	 indesejada	 para	 uma	 deliberação
objetiva	e	jurídica	dos	fatos.
Dessa	 forma,	 de	 acordo	 com	 a	 ideia	 de	 “luta	 por	 reconhecimento”	 de	Axel
Honneth,	os	conflitos	são	pautados	pelo	não	reconhecimento	de	diferenças	no
mosaico	 plural	 da	 vida	 em	 sociedade,	 palco	 de	 embates	 pela	 afirmação	 de
valores	 e	 interesses	 diversos.	 Em	 conclusão,	 o	 círculo	 restaurativo	 pode
constituir	 um	 locus	 apropriado	 para	 o	 reconhecimento	 intersubjetivo
recíproco	das	partes	em	conflito.	A	harmonia	do	encontro	gerado	nesta	esfera
comunicativa	tem	o	potencial	de	promover	a	afirmação	e	o	reconhecimento	da
outridade,	ao	invés	de	sua	eliminação.
3.3.3	O	impacto	do	encontro	face	a	face	segundo	Lévinas
Lévinas,	 filósofo	 francês	 nascido	 numa	 família	 judaica	 na	 Lituânia,	 é
considerado	 um	 visionário	 de	 sensibilidade	 ímpar	 que	 explora	 o	 status
negligenciado	 da	 ética	 da	 alteridade	 de	 quem	 a	 ideia	 é	 fundamental	 para	 a
justiça	restaurativa	(LECHTE,	2006,	p.	15).	A	ideia	de	alteridade	é	explicada
por	José	Rossini	Campos	do	Couto	Corrêa	(2011,	p.	287):
Alteridade,	 no	 sentido	 de	 relação	 entre	 Ego	 (Eu)	 e	 Alter	 (Outro),	 pois	 abertura	 para
outrem	é	a	essência	verdadeira	da	Justiça,	que	não	se	esgota	em	“A”,	mas	se	projeta	para
“B”,	o	alcança	e	o	envolve,	conformando	uma	bilateralidade	A	e	B.
O	pensamento	e	a	crítica	de	Lévinas	acerca	da	alteridade	estão	relacionados
com	 os	 princípios	 de	 justiça	 restaurativa	 e	 assumem	 total	 pertinência	 e
aplicação	 à	 realidade	 atual	 quando	 se	 trata	 especificamente	 do	 encontro
restaurativo.
A	 realização	 da	 justiça,	 para	 Lévinas,	 tem	 sua	 origem	 na	 proximidade	 dos
relacionamentos	face	a	face,	nos	quais	tanto	ofensor	quanto	ofendido	estariam
envolvidos.	 Qualquer	 imposição	 de	 pena	 sem	 dar	 atenção	 aos
relacionamentos	face	a	face	acaba	sendo	um	“tirar	de”	alguém	em	vez	de	um
“dar	 ao”	 outro	 (LECHTE,	 2006,	 p.	 149).	 A	 justiça	 constitui,	 assim,	 uma
exigência	 de	 responsabilidades	 infinitas	 por	 todos	 os	 desejos,
independentemente	 de	 quem	os	 possua.	Ela	 conecta	 esses	 “eus”	 individuais
em	sua	própria	diferença	sem	despojá-los	de	individualidade.
A	 filosofia	 de	 Lévinas	 se	 destaca	 por	 conferir	 primazia	 à	 alteridade	 em
relação	ao	sujeito	pensante.	Como	fenomenólogo,	Lévinas	explorou	aspectos
(como	 o	 conceito	 de	 responsabilidade	 e	 a	 relação	 com	 o	 “Outro”)
negligenciados	pela	ética,	para	quem,	antecede	à	própria	ontologia.	Nas	suas
palavras,	 a	 responsabilidade	 pelo	 outro	 é	 “pré-originária”,	 uma
responsabilidade	 “sempre	 mais	 antiga	 que	 o	 conatus	 da	 substância,	 mais
antiga	 que	 o	 começo	 e	 o	 princípio”	 (LÉVINAS,	 2012,	 p.	 106).	 Essa
responsabilidade	 do	 “Eu”	 pelo	 “Outro”	 seria	 anterior	 até	 mesmo	 à	 própria
liberdade	ou	vontade	do	indivíduo,	o	que	torna	a	ética	da	responsabilidade	-	e
não	a	liberdade	—	a	sua	“primeira	filosofia”	(HUTCHENS,	2009,	p.	19).
O	 ideal	 da	 justiça	 restaurativa	 se	 realiza	 apenas	 por	meio	 da	 outridade,	 do
colocar-se	no	lugar	do	outro,	com	foco	nas	possibilidades	do	futuro	ao	invés
de	nas	perdas	do	passado.	Essa	premissa	é	válida	tanto	para	ofensores	quanto
para	 vítimas,	 a	 fim	 de	 que	 não	 fiquem	 reféns	 da	 culpa	 e	 do	 ressentimento
gerados	 pelo	 crime.	 Para	 alcançar	 esse	 objetivo,	 as	 partes	 são	 ouvidas	 e
consideradas	em	sua	inteireza,	sem	desprezo	ou	desrespeito	aos	seus	traumas
e	 conflitos.	 Trata-se	 de	 “uma	 justiça	 que	 olha,	 escuta,	 compreende,	 bem
diferente	 da	 deusa	 tradicional,	 surda,	 muda,	 cega,	 empunhando	 a	 espada”
(CHRISTIE,	1993,	p.	149).
Ainda	 em	 relação	 à	 outridade,	Lévinas	 diz	 que	 nada	 que	 esteja	 relacionado
com	 o	 alheio	 pode	 nos	 deixar	 indiferente	 126	 ,	 já	 que	 o	 homem	 é	 “tecido	 de
responsabilidades”.	 Declara	 Lévinas	 (2012,	 p	 105):	 “A	 humanidade	 do
homem,	 a	 subjetividade,	 é	 uma	 responsabilidade	 pelos	 outros,	 uma
vulnerabilidade	extrema”.	Sua	ética	da	responsabilidade	indica,	portanto,	que
nascemos	em	um	mundo	de	relacionamentos	sociais,	os	quais	não	escolhemos
e	 não	 podemos	 ignorar	 (HUTCHENS,	 2009,	 p.	 35).	 O	 “Eu”	 não	 pode
conceber-se	 isolado	 dos	 demais,	 retirado	 em	 si,	 visto	 que,	 “bem	 antes	 da
consciência	 e	 da	 escolha,	 antes	mesmo	 do	 homem	 se	 reunir	 em	 presente	 e
representação	 para	 se	 fazer	 essência,	 ele	 se	 aproxima	 de	 outro	 homem”
(LÉVINAS,	2012,	p	105)	 127	 .	Até	mesmo	o	homem	que	se	considera	 livre	é
voltado	ao	próximo,	já	que	ninguém	pode	salvar-se	sem	os	outros	(LÉVINAS,
2012,	p.	104).
Até	inconscientemente,	diz	Lévinas	(2012,	p.	98),	somos	dependentes	uns	dos
outros:
No	 aconchegar	 do	 outro	 em	que	 este	 se	 encontra	 imediatamente	 sob	minha
responsabilidade,	 ‘alguma	 coisa’	 extrapolou	 minhas	 decisões	 livremente
tomadas,	 infiltrou-se	 em	 mim	 sem	 eu	 saber,	 alienando	 assim	 minha
identidade.
Essa	 responsabilidade	 é	 “indeclinável”,	 de	 modo	 que	 não	 podemos	 dizer
“não”	 a	 ela.	 “Ser	 eu”,	 proclama,	 significa	 não	 ser	 capaz	 de	 evitar	 a
responsabilidade,	pois	estamos	ligados,	de	uma	maneira	peculiar,	ao	“Outro”.
Assim,	 a	 aproximação	 da	 face	 daquela	 pessoa	 evoca	 uma	 inevitável
responsabilidade	para	com	ela	128	.	De	certa	forma,	a	face	por	si	só	já	fala	antes
que	qualquer	palavra	seja	emitida,	como	descreve	(LÉVINAS,	2012,	p.	51):
“o	rosto	fala.	A	manifestação	do	rosto	é	o	primeiro	discurso.	Falar	é,	antes	de
tudo,	 este	 modo	 de	 chegar	 por	 detrás	 de	 sua	 aparência,	 uma	 abertura	 na
abertura”.
De	mais	a	mais,	a	face	do	“Outro”	é	uma	epifania	que	nos	solicita:	no	face	a
face	humano	se	 irrompe	 todo	sentido	da	nossa	existência	 129	 .	Ainda	que	nos
recusemos	 a	 falar,	 há	meramente	 uma	 recusa	 a	 responder	 por	meio	 da	 fala,
simplesmente	 já	 respondemos	 ao	 rejeitar	 o	 impulso	 de	 falar	 (HUTCHENS,
2009,	 p.	 75-76).	 “Lá	onde	 eu	 teria	 podido	permanecer	 como	 espectador,	 eu
sou	responsável”	(LÉVINAS,	2012,	p.	85).
Lévinas	(2012,	p.	52-53)	descreve	a	repercussão	do	encontro	face	a	face	com
o	outro	nos	seguintes	termos:
Despojado	de	sua	própria	forma,	o	rosto	é	transido	em	sua	nudez.	Ele	é	uma	miséria.	A
nudez	do	rosto	é	a	indigência	e	a	suplica	na	retidão	que	me	visa.	Mas	esta	súplica	é	uma
exigência.	O	rosto	 impõe-se	a	mim	sem	que	eu	possa	permanecer	surdo	a	seu	apelo,	ou
esquecê-lo,	sem	que	eu	possa	cessar	de	ser	responsável	pela	sua	miséria.	A	presença	do
rosto	 significa,	 assim,	 uma	 ordem	 irrecusável,	 um	mandamento.	 O	 rosto	 desconcerta	 a
intencionalidade	que	 o	 visa.	A	 sua	presença	 é	 uma	 intimidação	para	 responder.	 Ser	Eu
(Moi)	 significa,	 a	 partir	 daí,	 não	 se	 poder	 furtar	 à	 responsabilidade,	 como	 se	 todo	 o
edifício	 da	 criação	 repousasse	 sobre	 meus	 ombros.	 O	 Eu	 (Moi)	 diante	 do	 Outro	 é
infinitamente	responsável	e	ninguém	pode	responder	em	meu	lugar.	O	Outro	provoca	esse
movimento	ético	na	consciência,	que	desordena	a	consciência	da	coincidência	do	Mesmo
consigo	 próprio.	 Isto	 é	 o	 Desejo:	 queimar	 de	 um	 fogo	 diverso	 que	 o	 da	 necessidade,
pensar	 além	 daquilo	 que	 se	 pensa,	 entrar	 em	 relação	 com	 o	 inapreensível,	 um	 excesso
inassimilável	que	une	o	Eu	(Moi)	a	outro,	numa	ideia	de	infinito.No	 caso	 da	 justiça	 restaurativa,	 no	 momento	 do	 diálogo	 restaurativo,	 há	 o
“desnudamento	da	pele	exposta	à	ferida	e	à	ofensa,	para	além	de	tudo	aquilo
que	 se	 pode	 mostrar,	 para	 além	 de	 tudo	 aquilo	 que	 pode	 expor-se	 à
compreensão”	 (LÉVINAS,	 2012,	 p.	 99).	 Neste	 momento,	 o	 indivíduo
“coloca-se	 a	 descoberto,	 expõe-se	 um	 nu	mais	 nu	 que	 a	 pele	 que,	 forma	 e
beleza,	inspira	as	artes	plásticas,	nu	de	uma	pele	exposta	ao	contato,	à	carícia
que	sempre	é	sofrimento	pelo	sofrimento	do	outro”	(LÉVINAS,	2012,	p.	99).
Diante	 do	 rosto	 do	 “Outro”,	 o	 sujeito	 se	 descobre	 responsável	 e	 lhe	 vem	 à
ideia	o	“Infinito”	130	.
3.3.4	O	agir	comunicativo	habermasiano
Segundo	Habermas	 (2012b,	p.	120),	os	 seres	humanos	 são	 seres	 racionais	 e
autônomos	 que	 se	 relacionam	 e	 interagem	 com	 o	 mundo	 por	 meio	 da
linguagem.	 Para	 ele,	 a	 linguagem	 é	 muito	 mais	 do	 que	 apenas	 palavras	 e
frases.	Não	 só	 transmite	 significado	por	meio	de	 símbolos,	mas	 é	 por	meio
dela	 que	 somos	 capazes,	 entre	 outras	 coisas,	 de	 estabelecer	 relações
interpessoais,	 influenciar	 pessoas,	 de	 chegar	 a	 uma	 compreensão	 sobre	 o
mundo,	 sobre	os	outros	 e	 sobre	nós	mesmos	e	 coordenar	nossas	 ações.	Nas
palavras	dele:
Na	própria	prática	cotidiana,	o	entendimento	entre	sujeitos	que	agem	comunicativamente
se	mede	por	pretensões	de	validade,	as	quais	levam	a	uma	tomada	de	posição	em	termos
de	 sim/não	 perante	 o	 maciço	 pano	 de	 fundo	 de	 um	 mundo	 da	 vida	 compartilhado
intersubjetivamente.	 Elas	 estão	 abertas	 à	 crítica	 e	 mantêm	 atualizado,	 não	 somente	 o
risco	do	dissenso,	mas	também	a	possibilidade	de	um	resgate	discursivo.	Neste	sentido,	o
agir	 comunicativo	 aponta	 para	 uma	 argumentação,	 na	 qual	 os	 participantes	 justificam
suas	 pretensões	 de	 validade	 perante	 um	 auditório	 ideal	 sem	 fronteiras	 (HABERMAS,
1997b,	p.	50).
Em	 sua	 teoria,	 Habermas	 (2012b,	 p.	 124)	 preocupa-se	 não	 só	 com	 o
significado	da	linguagem,	mas	também	com	o	que	ela	é	capaz	de	empreender.
O	 autor	 explica	 que,	 implicitamente	 num	 discurso,	 nós	 levantamos	 várias
pretensões	de	validade,	de	sinceridade,	de	verdade	e	de	retidão	131	.
É	por	meio	de	um	acordo	ou	de	discordância	em	 relação	a	 estas	pretensões
implícitas	 que	 os	 indivíduos	 são	 capazes	 de	 chegar	 a	 um	 entendimento	 e
concordância	 para	 se	 coordenar	 a	 ação.	 Quando	 concordamos	 com	 as
pretensões	levantadas	no	discurso,	pode-se	dizer	que	há	um	consenso;	quando
não,	 solicitamos	 justificativas	 ou	 razões	 pelas	 quais	 devemos	 aceitar	 estas
reivindicações	 como	 verdadeiras,	 sinceras	 e	 corretas.	 Se	 a	 justificativa	 é
suficiente,	 então	há	 uma	 aprendizagem	e	 é	 atingido	um	consenso	 com	base
nestas	 informações.	 Se	 a	 justificativa	 não	 é	 suficiente,	 as	 partes	 entabulam
diálogo	e	raciocínio	adicionais	até	que	se	chegue	a	um	consenso	ou	até	que	a
comunicação	seja	interrompida	(BARRET,	2011,	p.	41).
Habermas	reconhece	que	a	linguagem	também	é	usada	para	o	conflito,	para	a
competição	 e	 para	 a	 ação	 estratégica,	 no	 entanto,	 segundo	 ele,	 estes	 são
simplesmente	 resultados	 derivados	 do	 objetivo	 original	 da	 linguagem,	 qual
seja,	o	de	alcançar	a	compreensão	e	a	ação	coordenada	(HABERMAS,	2012b,
p.	 124).	 Assim,	 quando	 nos	 expressamos	 por	meio	 da	 fala,	 fazemo-lo	 com
objetivo	de	sermos	compreendidos.	O	alcance	deste	consenso	compartilhado,
do	 entendimento	 e	 da	 ação	 coordenada	 é	 denominado	 por	 Habermas	 de
“mútua	intersubjetividade”	ou	“reconhecimento	intersubjetivo	da	validade	do
que	alega	o	interlocutor”	(HABERMAS,	2012b,	p.	131).
Na	justiça	penal,	parte-se	de	uma	situação	de	conflito,	na	qual	há	uma	falta	de
consenso,	de	compreensão	e	de	ação	coordenada.	Demanda-se,	portanto,	um
processo	 de	 ação	 comunicativa	 para	 trazer	 entendimento,	 consenso	 e	 ação
coordenada	(que	é	a	proposta	restaurativa).	Nesta	forma	de	justiça,	o	processo
de	diálogo	é	um	meio	de	expressar	pensamentos,	sentimentos	e	experiências	132
,	de	entender	o	ocorrido,	bem	como	as	consequências	das	ações	e	de	chegar	a
um	consenso	e	a	um	acordo	formal	sobre	a	melhor	forma	de	lidar	com	o	mal
causado	133	.
Mais	detalhadamente	em	sua	obra	“A	teoria	do	agir	comunicativo”,	Habermas
(2012b,	p.	125)	se	reporta	ao	trabalho	de	Piaget	para	explicar	os	três	âmbitos
diferentes	da	realidade	em	que	a	pessoa	se	percebe	e	se	envolve:	o	domínio	do
objetivo,	do	subjetivo	e	do	campo	social	(compartilhado).
Inicialmente,	 o	 indivíduo	 apenas	 alcança	 a	 perspectiva	 do	 seu	 próprio
universo	 interno,	 ou	 seja,	 ele	 reconhece	 o	 mundo	 apenas	 através	 de	 seus
olhos.	 À	 medida	 que	 interage	 com	 o	 mundo	 físico	 e	 observa	 os	 demais
fazendo	o	mesmo,	ele	passa	a	perceber	que	o	“mundo”	pode	ser	visto	a	partir
de	outras	perspectivas	subjetivas.	Ou	seja,	ele	pode	ver	a	si	mesmo	por	meio
de	outros	olhos	(alter	),	ele	pode	ver	o	outro	através	de	outras	lentes,	ele	pode
ver	a	 interação	entre	o	eu	e	o	outro	por	 intermédio	de	outra	perspectiva	(3	 ª
pessoa)	 e	 ele	pode	ver	 o	mundo	com	outro	olhar.	Assim	como	no	processo
desenvolvido	 e	 explicado	 por	 Piaget	 em	 relação	 às	 crianças,	 os	 adultos
também	 se	 desenvolvem	a	 ponto	 de	 se	 tornarem	mais	 reflexivos,	 levando	 a
sua	 perspectiva	 ao	 outro	 e	 percebendo	 o	 seu	 próprio	 pensamento	 e
comportamento	(BARRET,	2011,	p.	44).
3.3.5	A	dinâmica	do	círculo	restaurativo
Do	ponto	de	vista	restaurativo,	a	capacidade	de	tomar	várias	perspectivas	ou
“tomar	 a	 atitude	 do	 outro”	 é	 crucial,	 pois	 é	 ela	 que	 possibilita	 às	 partes	 a
empatia	 com	os	 demais	 e	 a	 estarem,	metaforicamente,	 “no	 lugar	 do	 outro”.
Nos	círculos	restaurativos,	a	metodologia	de	“contar	histórias”,	por	exemplo,
pode	desencadear	este	processo.	Nesta	fase,	os	participantes	são	estimulados	a
contar	histórias	de	suas	vidas	a	fim	de	construir	compreensão	um	do	outro	e
para	aumentar	a	empatia	134	.
A	 Comunicação	 não-violenta	 (CNV)	 é	 outra	 técnica	 bastante	 útil	 e
pedagógica	 para	 se	 alcançar	 este	 objetivo.	 Desenvolvida	 por	 Marshall
Rosemberg	 135	 ,	 a	 técnica	 propõe	 a	 divisão	 do	 diálogo	 em	 quatro	 etapas
sucessivas,	quais	sejam:	observação,	sentimento,	necessidades	e	pedido.	Essas
etapas	 expressam	 as	 pretensões	 de	 validade	 habermasianas	 e	 repercutem	 os
três	domínios	mencionados	por	Piaget	(CNVC,	2012).
3.3.5.1	A	metodologia	da	CNV
A	 metodologia	 da	 CNV	 pode	 ser	 sintetizada	 nos	 seguintes	 passos:	 em
primeiro	lugar,	cada	um	dos	participantes	discute	o	que	aconteceu	no	mundo
dos	 fatos	 (mundo	 objetivo),	 identificando	 as	 ações	 concretas	 do	 outro	 que
afetaram	o	seu	bem-estar.	Rosemberg	(2003,	p.	126)	ilustra	com	exemplos	o
que	se	entende	por	observação:	“São	2:00h	e	ele	ouve	música	estéreo”	(fato
observado),	 ao	 invés	 de	 “É	muito	 tarde	 para	 ele	 estar	 fazendo	 esse	 barulho
horrível”	(introduz	uma	avaliação);	ou	“Eu	olhei	na	geladeira	e	vi	que	não	há
comida,	 então	percebi	que	você	não	 foi	 às	 compras	de	 supermercado”	 (fato
observado),	em	vez	de	“Você	desperdiçou	o	dia	inteiro”	(faz	uma	avaliação).
Em	seguida,	o	interlocutor	relata	o	seu	sentimento	quanto	às	ações	observadas
(mundo	 subjetivo):	decepção,	 susto,	 alegria,	 irritação	etc.	Por	 exemplo:	 “Eu
vejo	 o	 seu	 cão	 correndo	 sem	 coleira	 e	 latindo”	 (observação	 —	 1ª	 etapa).
“Estou	 com	 medo”	 (sentimento	—	 2ª	 etapa).	 Para	 a	 justiça	 restaurativa,	 a
expressão	de	sentimentos	e	intenções	é	fundamental,	a	fim	de	que	os	demais
saibam	o	que	cada	um	sente	e	o	efeito	da	sua	conduta	em	relação	ao	outro.
Em	terceiro	lugar,	as	pessoas	relatam	os	seus	valores,	desejos	e	necessidades
relacionados	a	 estes	 sentimentos,	por	 exemplo,	o	que	eles	desejam	que	 seja
feito	a	 respeito	do	 fato	e	o	que	eles	próprios	podem	fazer	para	melhorá-los.
Seria	o	caso	de:	“Eu	te	vejo	olhando	para	longe,	enquanto	eu	estou	falando”
(1ª	 fase	 -	 observação).	 “Estou	 me	 sentindo	 desconfortável”	 (2ª	 fase	 -
sentimento),“porque	 eu	 estou	 precisando	 de	 atenção	 agora”	 (3ª	 fase	 -
necessidade).
Outro	 exemplo	 de	 aplicação	 destas	 três	 etapas	 pode	 ocorrer	 numa	 situação
cotidiana	 de	 uma	 mãe	 com	 seu	 filho	 adolescente,	 dizendo:	 “Filho,	 quando
vejo	duas	bolas	de	meias	sujas	debaixo	da	mesa	de	café	e	outras	três	ao	lado
da	televisão	(observação),	eu	me	sinto	irritada	(sentimento)	porque	preciso	de
mais	 ordem	na	 área	 comum	 (necessidade)”.	De	 imediato,	 segue-se	o	quarto
componente,	 que	 constitui	 um	 pedido	 específico	 de	 ações	 concretas	 que	 se
espera	 da	 outra	 pessoa:	 “Você	 estaria	 disposto	 a	 colocar	 suas	meias	 no	 seu
quarto	ou	na	máquina	de	lavar?”	(pedido	—	4ª	etapa).
Após	esta	etapa,	em	resposta	ao	orador	e	a	fim	de	construir	empatia	com	ele,
o	ouvinte	 lhe	responde	com	versões	reformuladas	de	declarações	do	próprio
locutor	 (“eu	 ouvi	 você	 dizendo	 que	….”),	 confirmando,	 assim,	 que	 ele	 foi
ouvido	e	compreendido.	Isto	porque	a	CNV	exige	escuta	atenta	e	paciente	do
outro,	especialmente	quando	o	falante	e	o	ouvinte	estão	em	conflito.
Qualquer	que	seja	a	técnica	empregada,	está	no	cerne	do	processo	de	justiça
restaurativa	 a	 necessidade	 de	 expressão	 dos	 três	 tipos	 de	 pretensões	 de
validade	 identificados	 por	 Habermas	 (de	 sinceridade,	 de	 verdade	 e	 de
retidão),	 as	quais	 refletem,	 respectivamente,	os	 três	 âmbitos	da	 realidade	de
uma	pessoa,	distinguidos	por	Piaget	(o	objetivo,	o	subjetivo	e	o	social).
Uma	 das	 características	 essenciais	 das	 técnicas	 restaurativas	 é	 o
desenvolvimento	da	habilidade	dos	interlocutores	de	articularem	observações
sem	a	introdução	de	julgamentos	ou	avaliações.	Por	meio	destas	técnicas,	as
partes	 se	 expressam	 em	 termos	 objetivos	 e	 neutros	 (preferindo	 observações
factuais	 sobre	 sentimentos	 e	 necessidades)	 em	 vez	 de	 em	 termos	 de
julgamento	(como	bem	e	mal,	certo	ou	errado,	justo	ou	abusivo),	propiciando
uma	 compreensão	 mais	 profunda	 do	 outro.	 Por	 meio	 destes	 métodos,	 é
possível	que	o	processo	restaurativo	atinja	seu	escopo	de	chegar	a	um	acordo
sobre	quais	ações	devem	ser	tomadas	para	reparar	os	danos	e	reestabelecer	as
relações	entre	os	envolvidos	(CNVC,	2012).	Assim,	a	dinâmica	do	encontro
possibilita	 reconhecer	 os	 erros	 cometidos,	 estabelecer	 expectativas
comportamentais	adequadas	e	desenvolver	relações	interpessoais.
Após	o	 ritual	 introdutório,	de	 apresentação	e	 ambientação,	o	momento	é	de
recontar	 a	 versão	 de	 cada	 participante	 para	 o	 conflito	 em	 questão.	 Nesta
ocasião,	eles	colocam	as	três	pretensões	de	validade	habermasianas	nos	seus
atos	de	fala	(sinceridade,	verdade	e	correção),	alegando	que	o	que	eles	estão
dizendo	sobre	o	evento	é	verdade,	que	eles	estão	sendo	sinceros,	e	o	que	estão
dizendo	sobre	o	evento	é	normativamente	adequado	no	contexto	(BARRET,
2011,	p.	51)
No	 encontro,	 todos	 os	 participantes	 têm	 a	 oportunidade	 de	 apresentar
reivindicações	e	explicar	o	porquê	delas.	Também	têm	a	chance	de	questionar,
argumentar,	 aceitar	 ou	 desafiar	 o	 ponto	 de	 vista	 dos	 demais,	 tudo	 em	 um
espaço	de	diálogo	aberto	e	honesto.
Superada	 a	 fase	 “objetiva”	 de	 exposição	 dos	 acontecimentos	 segundo	 a
perspectiva	do	falante	(o	mundo	objetivo	de	Piaget),	vem	a	parte	“subjetiva”,
onde	os	participantes	são	indagados	sobre	como	se	sentiram	com	o	fato,	suas
consequências	 e	 o	 impacto	 sobre	 suas	 vidas.	 A	 cada	 pronunciamento,
levantam	novamente	pretensões	de	validade,	agora	tematizando	o	seu	mundo
subjetivo.	 Neste	 ponto,	 podem	 expressar	 suas	 necessidades,	 desejos	 e
sentimentos.	 As	 vítimas	 são	 capazes	 de	 tornar	 conhecidas	 a	 natureza	 e	 a
extensão	 de	 suas	 lesões	 e,	 ao	 ouvi-las,	 o	 ofensor	 pode	 expressar
arrependimento	e	remorso,	pois	se	torna	capaz	de	assumir	a	atitude	do	outro	e
ver	a	sua	experiência	no	mundo	subjetivo	sob	outra	perspectiva.	Assim,	por
meio	 da	 aceitação,	 de	 críticas	 e	 do	 engajamento	 em	 argumentos,	 as	 partes
chegam	à	compreensão	do	mundo	subjetivo	do	outro	(BARRET,	2011,	p.	62).
Após	conhecer	o	ponto	de	vista	do	outro,	pode-se	adquirir	autoconhecimento,
superar	as	dificuldades	de	compreensão,	identificar	falhas	e	melhorá-las	com
base	 nas	 razões	 válidas	 oferecidas.	 Isso	 resulta	 em	 uma	 mudança	 de
pensamento	 e	 de	 “saber”	 e	 pode	 ajudar	 as	 pessoas	 a	 adquirirem	 uma	 nova
visão	dos	fatos,	superar	o	autoengano	e	as	dificuldades	para	compreensão.	A
esse	respeito,	comenta	García-Pablos	de	Molina	(2012,	p.	449):
O	 confronto	 direto	 e	 pessoal	 humaniza	 uma	 vivência	 traumática	 e	 a	 torna	 mais
compreensível,	mais	aceitável,	 liberando	a	vítima	de	estereótipos	e	imagens	interessadas
que	 radicalizariam	 e	 potencializariam	 a	 confrontação.	 […]	 “Seu”	 infrator-não	 é	 o
inimigo	sem	rosto,	“o”	outro,	senão	mais	um	“como”	os	outros.
Dessa	forma,	os	participantes	podem,	por	exemplo,	abandonar	falsas	crenças
sobre	o	que	aconteceu	na	cena	do	crime	ou	por	que	este	ocorreu	e	superar	os
estereótipos	e	preconceitos	em	relação	a	outras	pessoas	e	como	elas	se	sentem
sobre	o	fato.	Barnett	(2011,	p.	71)	cita	o	exemplo	de	um	ofensor	em	um	crime
patrimonial	 que,	 ao	 se	 deparar	 com	 sua	 vítima,	 percebeu	 que	 ela	 não	 tinha
seguro,	que	ela	não	era	rica	e	que	cresceu	no	mesmo	bairro	que	ele	cresceu,
sob	as	mesmas	condições	socioeconômicas	e	desafios	que	ele.
Num	 último	 momento,	 as	 partes	 entabulam	 o	 acordo	 restaurativo,	 no	 qual
novamente	colocam	em	debate	as	suas	pretensões	de	validade,	agora	dirigidas
ao	campo	social	(compartilhado)	de	Piaget.	Desafiar	e	criticar	reivindicações
alheias	 dá	 origem	 ao	 processo	 de	 aprendizagem	 potencial	 referido	 por
Habermas	 136	 .	 Durante	 este	 procedimento,	 as	 reivindicações	 recíprocas	 são
novamente	contestadas,	alteradas	e	até	melhoradas	137	.	A	argumentação	confere
aos	 participantes	 a	 oportunidade	 de	 aprender,	 modificar	 as	 suas
reivindicações,	 o	 seu	 comportamento	 e	 alcançar	 a	 compreensão	 mútua	 e	 a
ação	 coordenada,	 tudo	 por	 meio	 do	 reconhecimento	 intersubjetivo	 de
pretensões	de	validade	recíprocas	(BARRET,	2011,	p.	55).
Outra	 vantagem	 da	 dinâmica	 habermasiana	 neste	 campo	 social	 identificado
por	 Piaget	 é	 o	 potencial	 de	 ligação	 (uma	 relação	 de	 obrigatoriedade	 entre
falante	 e	 ouvinte)	 que	 pode	 auxiliar	 no	 fortalecimento	 das	 relações	 sociais.
Habermas	 (2012b,	 p.	 155)	 refere-se	 a	 esta	 ligação	 como	 “força	 vinculativa
ilocucionária	ou	racionalmente	motivada	da	ação	comunicativa”.
Com	o	envolvimento	das	partes	na	ação	comunicativa	e	com	o	potencial	de
chegarem	a	um	acordo,	 eles	 formam	uma	compreensão	e	um	conhecimento
recíprocos.	 Eles	 sabem	 o	 que	 o	 outro	 está	 pensando,	 sentindo	 e
experimentando	 por	 meio	 das	 reivindicações	 de	 pensamento,	 sentimento	 e
experiência	 levantadas.	 Esse	 “saber”	 reforça	 as	 relações	 sociais.	Quando	 as
pessoas	 experimentam	 situações	 de	 igualdade	 e	 respeito	 mútuo,	 elas	 se
tornam	 mais	 propensas	 a	 abandonar	 suas	 defesas	 que	 são,	 muitas	 vezes,	 a
causa	 do	 comportamento	 destrutivo	 ou	 não-cooperativo.	 Elas	 se	 tornam
abertas	 para	 reconhecerem	 um	 terreno	 comum	 e	 para	 agirem	 no	 interesse
comum,	o	que	 é	 elementar	 no	 conceito	de	 comunidade	 (BARRET,	2011,	 p.
57).
3.3.5.2	O	caso	do	encontro	entre	um	adolescente	autor	
de	“sequestro	relâmpago”	e	sua	vítima,	um	policial
Relatos	de	mudanças	de	atitude	das	partes,	de	que	foi	possível	 reconhecer	a
humanidade	 no	 outro,	 de	 que	 o	 processo	 restaurativo	 foi	 capaz	 de	 tocar
corações	 e	 mentes	 podem	 ser	 explicados,	 em	 parte,	 pela	 modificação	 ou
abandono	de	pretensões	de	validade	não	sustentadas	referidas.	Um	exemplo	é
o	 encontro	 restaurativo	 relatado	 por	 Dominic	 Barter,	 ocorrido	 em	 abril	 de
2007,	 durante	 um	 círculo	 de	 conferência	 realizado	 na	 Vara	 da	 Infância	 e
Juventude	 no	 Rio	 de	 Janeiro.	 Mediados	 por	 um	 servidor	 do	 Tribunal	 de
Justiça	 local,	participaram,	de	um	lado,	um	adolescentede	16	anos	autor	de
ato	 infracional,	 sua	 avó,	 seu	 pai	 e	 a	 namorada	 do	 pai.	 De	 outro	 lado,	 um
policial	militar	(vítima),	sua	esposa	e	seu	filho	de	um	relacionamento	anterior.
O	 fato	 ensejador	 do	 encontro	 foi	 um	 “sequestro	 relâmpago”	 praticado	 pelo
adolescente	e	um	amigo	não	identificado	contra	o	policial.	Na	noite	do	crime,
os	jovens	viram	um	homem	sair	sozinho	de	seu	carro	em	um	estacionamento
ermo	 e	 decidiram	 assaltá-lo.	Armados,	 eles	 o	 surpreenderam,	 colocaram-no
no	banco	de	trás	do	carro	e	se	dirigiram	ao	caixa	eletrônico	mais	próximo,	a
fim	 de	 sacar	 dinheiro.	 Os	 jovens	 não	 perceberam	 que	 o	 homem	 era	 um
policial	à	paisana	e	que	portava	uma	arma	pequena	junto	ao	corpo.	O	policial
reagiu	e	baleou	o	adolescente	por	três	vezes	na	perna.	O	outro	jovem	fugiu.
Cada	 parte	 envolvida	 no	 ato	 e,	 em	 seguida,	 o	 seu	 núcleo	 de	 apoio,	 teve	 a
oportunidade	de	narrar	seu	ponto	de	vista	sobre	o	delito	e	como	este	impactou
a	 vida	 de	 cada	 um	 deles.	 Num	 primeiro	 momento,	 o	 policial	 fez	 uma
descrição	 do	 fato	 em	 detalhes	 gráficos,	 como	 quando	 foi	 levado	 para	 o
assento	detrás	do	carro,	onde	pensou	como	seria	sua	reação:	na	cabeça	de	qual
jovem	 atiraria	 primeiro?	 Cogitou	 esta	 possibilidade	 como	 uma	 forma	 de
proteger	a	si	mesmo,	a	sua	propriedade	e	como	sendo	a	reação	natural	de	um
policial.	Descreveu	que,	quando	o	adolescente	virou	a	cabeça,	percebeu	que
algo	no	rosto	dele	lembrava	o	de	seu	filho.	Pensou,	em	seguida,	nos	pais	dos
jovens,	nas	famílias	perdendo	entes	queridos	e	decidiu	que	em	vez	de	mata-
los,	iria	rendê-los	e	prendê-los.	O	policial	pôde	expor	suas	lembranças	desde
o	 dia	 em	 que	 foi	 sequestrado,	 como	 sua	 rotina	 mudou,	 como	 trabalhou
durante	anos	para	adquirir	seu	carro	sem	recorrer	a	atos	deste	tipo,	como	um
sentimento	de	medo	afetou	sua	família	e	que	foi	condenado	ao	ostracismo	por
seus	pares	por	não	“fazer	a	coisa	esperada”	de	um	agente	da	segurança.
O	 jovem,	 por	 seu	 turno,	 falou	 de	 sua	 vida	 no	momento	 do	 crime,	 sobre	 o
momento	de	 tomar	a	decisão	de	cometer	o	 sequestro,	 sobre	o	que	ele	e	 seu
colega	esperavam	fazer	com	o	dinheiro,	sobre	seus	pensamentos	a	respeito	da
polícia,	sobre	seu	pânico	ao	descobrir	que	sua	vítima	estava	armada	e	que	se
tratava	 de	 um	 policial	 militar.	 Relatou	 a	 sua	 semana	 de	 recuperação	 no
hospital,	o	seu	desejo	de	estar	morto	quando	se	sentou	no	piso	da	cela,	falou
da	perda	de	sua	mãe	recentemente	falecida,	falou	sobre	ser	preso,	estudar	na
prisão	e	estar	separado	de	sua	família.
Na	 última	 etapa	 do	 círculo,	 todos	 colaboraram	 na	 elaboração	 de	 ações
específicas	 para	 cada	 um,	 a	 fim	 de	 contribuir	 para	 o	 bem-estar	 do	 outro	 e
atender	às	necessidades	não	satisfeitas.	Muitos	planos	foram	feitos	no	acordo
como,	por	exemplo,	o	policial	levaria	seu	filho	à	praia,	a	avó	visitaria	o	neto
adolescente	 internado	 a	 fim	 de	 compartilhar	 histórias	 de	 sua	 filha	 (recém-
falecida)	com	o	neto,	o	policial	faria	uma	palestra	para	os	detentos	na	unidade
de	internação	de	jovens	e	o	adolescente	internado	daria	uma	palestra	aos	seus
colegas.	 A	 finalidade	 foi	 compartilhar	 este	 plano	 de	 ação	 com	 o	 juiz	 de
condenação	 do	 jovem	 (ele	 foi	 sentenciado	 a	 18	 meses	 de	 internação,	 no
mínimo),	 para	 que	 o	 magistrado	 o	 considere	 quando	 da	 sua	 liberação
condicional	 e	 para	 que	 houvesse	 comprometimento	 do	 adolescente	 com	 os
estudos	durante	a	internação.	Ao	fim	do	diálogo,	quando	se	indagou	a	todos
se	ouviram	uns	aos	outros	com	atenção,	o	adolescente	disse	ao	policial:	“Você
é	como	um	espelho	para	mim”.
3.3.5.3	O	caso	do	encontro	entre	uma	vítima	idosa	e	o	ladrão	de	sua
residência
Um	caso	emblemático	de	como	as	partes	podem	estabelecer	um	entendimento
comum	 sobre	 o	 mundo	 objetivo	 (fatos),	 o	 mundo	 subjetivo	 (sentimentos	 e
intenções)	 e	 o	 mundo	 social	 (normativo,	 erros,	 e	 o	 que	 é	 necessário	 para
corrigi-lo)	em	relação	a	um	conflito	particular	foi	o	furto	à	residência	de	uma
idosa	(LAUGHLAND,	2011,	p.	1),	de	72	anos	por	parte	de	Reggie	Aitchison,
um	jovem	de	34	anos,	dependente	químico	e	conhecido	pela	prática	contumaz
de	furtos	a	residências.	Ele	ingressou	na	casa	de	Kethleen	enquanto	estava	sob
o	efeito	de	um	coquetel	de	drogas	(álcool,	crack	e	diazepam).	Depois	da	sua
condenação,	eles	aceitaram	se	encontrar	no	âmbito	da	justiça	restaurativa	para
tratarem	as	consequências	do	delito.
Segundo	o	autor,	ele	estava	a	caminho	da	cidade	para	praticar	alguns	furtos	a
fim	 de	 financiar	 o	 seu	 vício	 em	 drogas.	 Naquele	 dia,	 ele	 e	 seus	 amigos	 já
tinham	feito	cinco	tentativas	frustradas	de	subtração	em	lojas.	Os	seguranças
locais	 perceberam	 a	 intenção	 deles	 e	 eles	 foram	 impedidos	 de	 entrar	 nos
estabelecimentos.	Reggie	 já	 retornava	para	casa,	quando	passou	em	frente	à
casa	 da	 idosa	 e	 avistou	 a	 janela	 aberta.	 Por	 meio	 dela,	 ele	 ingressou	 na
residência	 à	 procura	 de	 algo	 rápido	 para	 vender	 (como	 ouro	 ou	 mesmo
dinheiro).	A	vítima	apareceu	assim	que	ele	abriu	a	porta	da	frente	para	sair	e,
então,	 ele	 correu	 com	medo	 de	 ser	 pego.	 O	 autor	 informou	 que	 temia	 ser
preso	e	passar	novamente	pelo	processo	de	desintoxicação.
Na	 versão	 da	 vítima,	 ao	 chegar	 a	 casa,	 ela	 tentou	 ingressar	 pela	 porta	 da
frente,	mas	viu	o	autor	sair	correndo	de	dentro	de	sua	casa.	Ela	ainda	tentou
segurá-lo,	mas	ele	fugiu.	No	andar	de	cima,	ela	encontrou	 tudo	em	absoluta
desordem.	Ligou	para	a	polícia,	que	foi	até	o	local.	Após	o	fato,	a	vítima	não
se	 sentiu	mais	 segura	 em	 casa.	 Sempre	 andava	 pela	 residência	 imaginando
que	alguém	estivesse	ali	e,	quando	ia	para	a	cama,	escutava	ruídos.	A	sua	neta
morava	 do	 outro	 lado	 da	 rua	 e,	 então,	 Kathleen	 foi	 residir	 com	 ela	 por
algumas	 semanas.	Mesmo	 após	 o	 episódio,	 a	 idosa	 não	 se	 sentia	 segura	 ao
voltar	para	casa.	Por	isso	ela	deixou	a	casa	e	foi	para	um	alojamento.	Ela	teve
que	 passar	 a	 tomar	 medicamentos	 para	 ajudar	 a	 superar	 o	 medo	 e	 o	 seu
sentimento	era	de	raiva	do	autor.
Após	 exporem	 suas	 visões	 e	 sentimentos	 sobre	 o	 mesmo	 fato,	 as	 partes
puderam	manifestar-se	sobre	o	ponto	de	vista	um	do	outro.	Reggie	informou
que,	um	dia,	após	ser	preso,	mesmo	ainda	estando	sob	a	influência	das	drogas,
sabia	 o	 que	 tinha	 feito:	 assaltado	 a	 casa	 de	 uma	 senhora	 de	 idade.	 Nesse
momento,	 ele	 ainda	 não	 tinha	 se	 arrependido	 do	 feito,	 mas,	 após	 a	 sua
desintoxicação,	ele	começou	a	se	sentir	mal.
Além	 da	 necessidade	 de	 expressar	 seu	 sofrimento	 e	 da	 raiva	 que	 sentia,	 a
vítima	disse	que	gostaria	de	 tirar	algumas	dúvidas.	Ela	quis	saber	por	que	o
ofensor	 escolhera	 furtar	 residências.	 Ele	 respondeu	 a	 ela	 que	 era	 por
desespero,	porque	já	haviam	esgotado	todas	as	outras	possibilidades	(bens	da
família,	suas	próprias	posses	etc.),	pois	as	drogas	levam	seu	dependente	a	um
ponto	em	que	ele	não	se	importa	consigo	mesmo,	não	tem	sentimentos	para	os
outros	e	tudo	o	que	faz	é	motivado	por	ela	e	pelo	desejo	de	usá-la.
A	vítima	quis	saber	se	esse	tipo	de	pensamento	seria	uma	obsessão,	ao	que	ele
respondeu	que	sim,	que	a	mente	de	um	viciado	diz:	“Tudo	bem,	pode	fazer,
porque	 você	 precisa	 da	 droga.”	 A	 partir	 desse	 momento,	 ele	 só	 pensa
satisfazer	a	sua	necessidade	e	nada	mais.
Após	 o	 encontro,	 as	 partes	 concederam	 entrevista	 ao	 jornalista	 Oliver
Laughland,	do	“The	Guardian”,	no	dia	21	de	maio	de	2011,	a	fim	de	relatarem
como	a	experiência	de	diálogo	os	ajudou.	Perguntados	se	 se	 recordavam	do
dia	 em	 que	 se	 conheceram	 por	 meio	 do	 processo	 de	 justiça	 restaurativa,
Reggie	respondeu	que	estava	com	muito	medo,	pensando	como	é	que	a	vítima
iria	 reagir.	 Entretanto,	 ele	 sentiu	 que	 ela	merecia	 uma	 explicação	 e	 que	 ela
merecia	dizer	a	ele	como	se	sentiu	a	 respeito	dos	 fatos.	Ele	 imaginou	que	a
vítima	esperava	que	ele	 fosse	 “uma	espécie	de	monstro”	antes	do	encontro.
Kethleen	 respondeu	 que,	 quando	 foi	 ao	 encontro	 com	 Reggie,ainda	 tinha
muita	 raiva	acumulada.	Disse	 também	que,	quando	se	 falaram,	explodiu	em
lágrimas.	Todos	os	maus	sentimentos	que	o	ódio	tinha	construído	dentro	dela
foram	liberados	e,	depois	disso,	ela	pôde	retomar	a	vida.
Reggie	 afirma	 que	 imagina	 quão	 assustador	 foi	 o	 fato	 e	 que	 certamente
compreende	o	sofrimento	da	vítima	e	que	se	sente	mal	por	isso.	Disse	refletir
sobre	o	que	fez	a	uma	senhora	que	 trabalhou	 toda	a	vida,	 tem	todas	as	suas
coisas,	para	que	alguém	simplesmente	chegue	e	invada	sua	propriedade	desse
jeito.	Por	tudo	isso,	ele	se	sentiu	mal	e	quis	enfrentar	a	sua	vítima	para	saber	o
que	 tinha	 feito.	 Informou	 a	 Kethleen	 que	 tudo	 o	 que	 ela	 disse	 está	 “bem
guardado	 na	 sua	 cabeça”,	 porque	 é	 um	 constante	 lembrete	 do	 que	 ele	 era
capaz	 de	 fazer	 em	 virtude	 do	 vício	 em	 drogas.	 Afinal,	 ele	 “roubou”	 a
independência	dela.
Kethleen	afirma	que	não	sabia	que	o	autor	era	viciado	em	drogas	até	que	ele
contou	 no	 encontro.	 Para	 ela,	 ele	 era	 um	 rapaz	 completamente	 diferente,
muito	distinto	do	Reggie	que	ela	tinha	visto	sair	correndo	de	sua	casa.
Ele	afirma	que	Kathleen	ter	dado	a	ele	a	oportunidade	de	se	explicar	foi	muito
terapêutico	 para	 ele	 também.	 Naquele	 dia,	 isso	 o	 motivou	 a	 ficar
desintoxicado	porque	ele	ainda	estava	sob	o	efeito	da	metadona.	Segundo	ele,
a	desintoxicação	durou	cinco	semanas	e	 foi	um	pesadelo,	a	pior	abstinência
que	já	teve.	Ele	passou	pelo	processo	e	agora	tem	o	seu	próprio	apartamento.
Ele	não	 se	 aproxima	mais	de	pessoas	que	usam	drogas	 e	diz	 estar	 tentando
reorganizar	a	vida	(LAUGHLAND,	2011,	p.	1).
Com	 base	 na	 filosofia	 do	 face	 a	 face	 levinasiano,	 do	 agir	 comunicativo	 de
Habermas	 e	 do	 reconhecimento	 recíproco	 de	 Axel	 Honneth,	 podemos
compreender	 como	 o	 processo	 de	 argumentação,	 a	 capacidade	 de	 tomar	 a
perspectiva	 do	 outro	 e	 o	 simples	 fato	 de	 sentarem-se	 frente	 a	 frente	 e	 se
olharem,	antes	mesmo	do	diálogo,	dão	origem	à	empatia	e	às	mudanças	“no
coração	e	nas	mentes”	dos	participantes.	Eles	podem	 transformar	a	 imagem
subjetiva	inicial	que	tinham	do	outro.	Como	visto	no	caso	citado,	esse	aspecto
é	 especialmente	 relevante	 em	 relação	 às	 vítimas,	 que	 podem	 “livrar-se”	 da
imagem	 “poderosa”	 do	 ofensor,	 criada	 devido	 à	 violência	 sofrida,	mas	 que
não	 corresponde	 à	 realidade.	 As	 vítimas	 podem,	 assim,	 ressignificar	 o
potencial	da	ofensa	(COSTA;	MOURA,	2010,	p.	616).
Em	 conclusão,	 denota-se	 que	 a	 justiça	 restaurativa	 se	 vale	 de	 um	 processo
dialógico	 que	 congrega	 os	 afetados	 pelo	 delito	 com	 o	 objetivo	 de
proporcionar	 o	 entendimento	 de	 um	 com	 o	 outro	 e	 a	 um	 acordo	 sobre	 que
ações	 podem	 ser	 tomadas	 para	 reparar	 o	 dano	 causado	 e,	 a	 partir	 disso,
coordenar	 suas	 ações.	 Nesta	 senda,	 a	 teoria	 do	 agir	 comunicativo	 de
Habermas,	a	explanação	sobre	a	necessidade	de	reconhecimento	de	Honneth	e
o	despertar	da	responsabilidade	e	da	empatia	pela	proximidade	face	a	face	de
Lévinas	 são	 perspectivas	 úteis	 para	 compreender	 o	 desenrolar	 do	 encontro,
especialmente	porque	fornecem	um	conjunto	de	mecanismos	que	nos	ajuda	a
entender	a	importância	da	linguagem	e	do	despertar	empático	para	se	chegar	a
um	 consenso	 138	 e	 à	 assunção	 de	 responsabilidades	 compartilhadas	 para	 a
solução	das	consequências	do	conflito.
Estas	não	são	as	únicas	perspectivas	ou	os	únicos	quadros	a	partir	dos	quais	se
pode	 explicar	 o	 processo	 restaurativo,	 no	 entanto,	 eles	 proporcionam	 um
ponto	de	partida	para	uma	discussão	mais	aprofundada	que	possa	colmatar	a
lacuna	entre	teoria	e	prática	restaurativa.
3.4	Uma	nova	racionalidade	para	a	pena:	a	função	comunicativa
A	teoria	de	Habermas	foi	utilizada	em	três	momentos	distintos	neste	trabalho.
Em	 primeiro	 lugar,	 utilizou-se	 a	 tensão	 identificada	 pelo	 autor	 entre
facticidade	e	validade	do	direito	para	compreender	a	crise	de	legitimidade	por
que	passa	a	lei	penal.	Por	meio	de	suas	ideias,	foi	possível	perceber	que,	mais
importante	do	que	o	 rigor	da	 lei	 penal,	 está	o	preenchimento	das	 condições
validade	do	direito,	a	fim	de	que	este	seja	reconhecido	legítimo	e	merecedor
de	obediência	(seção	1.1).
Em	 segundo	 lugar,	 valemo-nos	 do	 conceito	 de	 esfera	 pública	 habermasiana
para	 assimilar	 a	 importância	 de	 uma	 arena	 neutra,	 voltada	 para	 a	 discussão
racional,	para	o	debate	e	o	consenso,	da	qual	participam	comunidade,	ofensor,
vítima	e	seus	apoiadores	no	tratamento	de	conflitos	(seção	3.3.1).
A	interlocução	realizada	neste	encontro	é	denominada	por	Habermas	de	“agir
comunicativo”,	 o	 qual	 possui	 uma	 racionalidade	 própria,	 emancipadora,
chamada	por	ele	de	“racionalidade	comunicativa”.	A	razão	comunicativa	não
estabelece	 normas,	 valores,	 formas	 de	 agir	 ou	 resultados	 válidos	 a	 serem
alcançados,	 mas	 permite	 às	 partes	 chegarem	 a	 um	 acordo	 racionalmente
motivado	sobre	a	melhor	maneira	de	agir.
Por	meio	desta	nova	racionalidade,	é	possível	comunicar	ao	ofensor	sobre	a
sua	responsabilização,	de	um	modo	racional	e	persuasivo,	oferecendo-lhe	uma
justificação	para	a	pena.	A	sanção,	comunicada	nestes	termos,	assumiria	uma
função	 de	 persuasão	 e	 de	 expressão	 da	 condenação,	 não	 se	 tratando	 de
simples	ato	de	incapacitação,	retribuição	ou	vingança.	Portanto,	às	funções	de
prevenção	 e	 retribuição	 da	 pena,	 atualmente	 existentes,	 acrescentar-se-ia,
como	 alternativa,	 a	 comunicativa,	 estudada	 por	 James	 Fishkin	 na	 teoria
explicitada	a	seguir.
Nesta	 seção,	portanto,	 explicamos	a	 racionalidade	comunicativa	presente	no
encontro	restaurativo	e	como	ela	pode	atuar	para	conferir	uma	nova	função	à
pena,	mais	consentânea	com	os	princípios	da	justiça	restaurativa.
3.4.1	A	racionalidade	comunicativa	de	Habermas
A	 racionalidade	 comunicativa	 de	 Habermas	 diz	 respeito	 à	 formação	 de
consensos	 com	 base	 em	 razões	 aceitáveis	 para	 todos	 os	 envolvidos.	 Ela	 se
vale	das	razões	para	chegar	a	um	entendimento	comum	sobre	algo	por	meio
de	um	convencimento	 livre,	manifestando-se	nos	processos	de	comunicação
(COELHO,	 2013b,	 p.	 1).	 As	 suas	 razões	 não	 se	 encontram	 vinculadas	 a
nenhum	dos	sujeitos,	mas	emergem	do	próprio	meio,	do	agir	comunicativo.
A	 racionalidade	 comunicativa	 não	 teria	 por	 objetivo	 o	 êxito,	 mas	 o
entendimento.	Seus	participantes	não	se	tratam	como	objetos	e	meios,	senão
como	 sujeitos	 livres	 e	 iguais,	 capazes	 de	 avaliação	 e	 crítica	 139	 .	 Habermas
(1997b,	 p.	 92)	 ressalta	 a	 finalidade	 de	 compreensão	 mútua	 (na	 razão
comunicativa)	em	contraposição	à	de	satisfação	de	interesses	individuais	(da
razão	instrumental),	nos	seguintes	termos:
Ainda	 conforme	 Habermas	 (1997a,	 p.	 20),	 “a	 razão	 comunicativa,	 ao
contrário	da	 figura	clássica	da	 razão	prática,	não	é	uma	 fonte	de	normas	do
agir”.	 Ou	 seja,	 a	 razão	 comunicativa	 não	 estabelece	 de	 antemão	 normas,
valores,	formas	de	agir	ou	resultados	válidos	a	serem	alcançados	(COELHO,
2013c,	p.	1).	Segundo	o	filósofo	tedesco:
O	que	age	comunicativamente	não	se	defronta	com	o	“ter	que”	prescritivo	de	uma	regra
de	 ação	 e,	 sim,	 com	 o	 “ter	 que”	 de	 uma	 coerção	 transcendental	 fraca	—	 derivado	 da
validade	 deontológica	 de	 um	 mandamento	 moral,	 da	 validade	 axiológica	 de	 uma
constelação	 de	 valores	 preferidos	 ou	 da	 eficácia	 empírica	 de	 uma	 regra	 técnica
(HABERMAS,	1997a,	p.	20).
A	 razão	 comunicativa	 fixa	 um	 processo	 (no	 caso,	 o	 discurso)	 em	 que	 os
próprios	 participantes	 podem,	 em	 caso	 de	 problematização,	 chegar	 a	 um
acordo	racionalmente	motivado	sobre	a	melhor	maneira	de	agir.	Ela	atribui	a
este	resultado,	qualquer	que	ele	seja,	a	presunção	de	ser	racional	em	virtude
de	 ter	 sido	 obtido	 mediante	 um	 discurso.	 Trata-se,	 portanto,	 de	 uma	 razão
procedimental,	 cuja	 racionalidade	 está	 no	 processo	 que	 justificam	 suas
normas,	ou	seja,	no	fato	de	as	normas	terem	sido	obtidas	por	meio	do	discurso
(COELHO,	2013c,	p.	1).
3.4.2	A	função	comunicativada	pena
A	 ausência	 de	 resultados	 auspiciosos	 e	 efetivos	 para	 as	 propostas	 de
retribuição	 e	 prevenção	 da	 pena,	 vista	 nas	 seções	 1.4	 e	 1.6,	 leva-nos	 a
perquirir	se	haveria,	no	âmbito	da	filosofia	penal,	uma	finalidade	proveitosa	a
se	 perseguir	 com	 a	 punição.	 Afinal,	 pode	 haver	 maneiras	 melhores	 e	 mais
úteis	 de	 lidar	 com	 os	 delitos	 em	 sociedade	 do	 que	 punir	 ofensores,	 como
respostas	reparatórias,	terapêuticas,	conciliatórias	etc.
Encarar	 a	 punição	 pura	 e	 simples	 como	 resposta	 a	 um	 ato	 criminoso
corresponde	a	ignorar	o	fato	de	que	quase	todos	os	que	estão	encarcerados	um
dia	 retornarão	 para	 a	 comunidade,	 talvez	 até	 mais	 irascíveis	 que	 antes.
Quando	 as	 pessoas	 são	 condenadas	 ao	 ostracismo	 da	 comunidade,	 elas	 não
têm	motivos	para	se	preocupar	sobre	como	suas	ações	poderão	atingi-las	ou
aos	demais	membros	(BRANCHER,	2007,	p.	7).
Em	vista	disso,	convém	lembrar	que	a	censura	ao	ofensor	pode	ser	transmitida
de	 várias	 formas	 —	 das	 mais	 severas	 até	 as	 mais	 veniais.	 A	 justiça
restaurativa	 anima	 o	 nosso	 sistema	 penal	 para	 a	 construção	 de	 um	modelo
menos	vingativo.	De	acordo	com	a	proposta	restaurativa,	a	repreensão	estatal
não	 precisa	 corresponder	 necessariamente	 à	 violência	 ou	 à	 prisão,	 pois,
muitas	vezes,	este	tipo	de	tratamento	é	improdutivo	e	tampouco	necessário.	A
sua	 proposta	 é	 a	 de	 valorização,	 muito	 mais	 do	 que	 da	 retribuição	 ou
prevenção,	da	função	comunicativa	da	pena.
Na	justiça	restaurativa,	a	função	comunicativa	decorreria	do	procedimento	de
deliberação	racional	entre	os	participantes	(vítima,	ofensor	e	comunidade)	que
discutem,	no	decorrer	do	encontro	restaurativo,	a	respeito	da	contribuição	de
cada	um	para	o	fato	criminoso,	da	forma	de	responsabilização	do	autor	e	da
reparação	 dos	 danos	 à	 vítima	 e	 à	 comunidade,	 entre	 outras	 questões	 que
entenderem	 relevantes.	 Nela,	 a	 definição	 da	 pena	 é	 feita	 de	 forma
participativa	e	não	apenas	imposta	por	uma	autoridade	exterior	ao	conflito.	A
sanção	não	seria	uma	consequência	ontológica,	natural,	mas	uma	construção
social	a	partir	do	dano	causado	com	vistas	para	o	futuro	(BERISTAIN,	2000,
p.	187).
Ao	 final	 do	 encontro,	 firma-se	 consensualmente	 o	 acordo	 restaurativo,	 que
contém	 obrigações	 e	 compromissos	 recíprocos.	 Por	 meio	 dele,	 e	 também
devido	 à	 sua	 participação	 ativa	 em	 todo	 o	 processo,	 as	 partes	 tanto	 podem
comunicar	as	razões	que	as	levaram	àquela	situação	conflituosa	como	podem
ser	comunicadas	sobre	as	consequências	de	suas	ações	e	como	repará-las.	Em
que	 pese	 o	 processo	 restaurativo	 possa	 não	 desfazer	 o	 mal	 causado,	 ele	 é
guiado	pela	possibilidade,	entre	outras,	de	transformar	a	compreensão	de	cada
um	 sobre	 suas	 ações	 e	 parcela	 de	 contribuição	 para	 solução	 do	 fato.	 Essa
compreensão	é	assaz	 importante,	como	explica	Raimon	Panikkar,	citado	por
Beristain	 (2000,	P.	179):	 “O	delito	 e	o	mal	desaparecem,	 em	certo	grau,	ou
quase	 todo,	 quando	 são	 compreendidos.	 Ainda	 que,	 sociologicamente,
permaneça	todo	o	dano	produzido”.
A	 participação	 dos	 envolvidos	 também	 apresenta	 a	 vantagem	 de	 evitar
distorções	sobre	seus	posicionamentos	e	interesses.	Nas	questões	criminais,	a
participação	 do	 ofensor	 é	 importante	 não	 apenas	 porque	 confere	 a
oportunidade	 de	 conhecer	 a	 sua	 versão	 dos	 fatos,	 mas	 também	 devido	 ao
próprio	 significado	 da	 sua	 presença	 e	 do	 status	 concedido	 a	 ele	 (de
participante	 e	protagonista	do	processo	decisório).	Afinal,	 o	objetivo	de	um
julgamento	 não	 precisaria	 ser	 o	 de	 realizar	 uma	 determinação	 precisa	 dos
fatos	e	determinar	uma	sanção,	mas	também	o	de	envolver	o	ofensor	de	forma
racional	 no	 processo	 de	 discussão,	 de	 julgamento	 e	 de	 reparação	 (DUFF,
1986,	p.	35).
Em	 relação	 ao	 ofensor,	 uma	 vez	 que	 a	 função	 comunicativa	 da	 pena	 se
manifesta	por	meio	da	discussão	e	do	convencimento	 racional,	 ele	pode	 ser
racionalmente	persuadido	sobre	a	importância	de	respeito	às	normas	sociais	e
jurídicas,	pois	o	diálogo	expõe	as	necessidades	de	informações	e	emocionais
da	 vítima,	 necessidades	 centrais	 para	 sua	 recuperação	 e	 para	 o
desenvolvimento	 entre	 eles	 de	 uma	 empatia	 que	 pode	 conduzir	 a	 uma
diminuição	do	comportamento	criminoso	no	futuro	(UMBREIT,	2007,	p.	1).
A	justiça	restaurativa	propicia,	assim,	um	processo	mais	dialógico,	visto	que
não	comunica	simplesmente,	mas	persuade	as	partes	envolvidas	140	.
Em	relação	ao	ofensor,	o	objetivo	de	responsabilizá-lo	não	é	apenas	para	levá-
lo	a	mudar	seu	comportamento,	mas	a	fazê-lo	pelas	razões	certas.	Ou	seja,	ele
deve	ser	convencido,	por	um	processo	de	argumentação	que	procura	levá-lo	a
compreender	 e	 a	 aceitar	 sua	 responsabilidade	 para	 avaliar	 o	 seu
comportamento	passado	e	orientar	sua	conduta	futura	(DUFF,	1986,	p.	48).
A	 pena,	 assim,	 assume	 uma	 função	 de	 comunicação,	 de	 persuasão	 e	 de
expressão	da	condenação,	não	se	 tratando	de	simples	meio	de	 incapacitação
ou	de	tutela	das	partes	e	dos	ofensores.
Oferece-se,	destarte,	uma	justificação	da	pena	ao	autor	e	não	mera	retribuição
ou	 vingança.	 Portanto,	 às	 funções	 de	 prevenção	 e	 retribuição	 da	 pena,
atualmente	 existentes,	 acrescentar-se-ia,	 como	 alternativa,	 a	 comunicativa
propiciada	pela	justiça	restaurativa.	Neste	ponto,	o	conceito	de	esfera	pública
de	 deliberação	 de	 Habermas	 e	 a	 sua	 teoria	 da	 ação	 comunicativa	 são
particularmente	 úteis	 para	 a	 compreensão	 do	 encontro	 restaurativo	 como
locus	para	 o	 encontro	 entre	 comunidade,	 ofensor,	 vítima	 e	 seus	 apoiadores,
bem	 como	 a	 comunicação	 ao	 ofensor	 da	 sua	 responsabilização	 de	 modo
racional	e	persuasivo.
Além	 disso,	 uma	 função	 comunicativa	 da	 pena	 introduziria	 no	 processo
criminal	o	conceito	de	cidadania	responsável	que	exige	comprometimento	do
ofensor	 e	dos	demais	no	cumprimento	das	obrigações	assumidas	 (SIMÕES,
2010,	p.	43).	Se,	no	modelo	vigente,	o	papel	reservado	ao	ofensor	é	cumprir
(sofrer)	 a	 pena,	 na	 proposta	 restaurativa,	 sua	 responsabilidade	 consiste	 em
compreender	 o	 impacto	 de	 sua	 ação	 e	 o	 comprometer-se	 em	 reparar	 esse
dano.	Desta	forma,	se	no	modelo	atual	o	ofensor	não	tem	responsabilidade	de
solução	 do	 problema	 (do	 delito),	 mas	 apenas	 de	 cumprir	 a	 pena,	 no
restaurativo,	ele	a	assume.	A	sua	dívida	não	é	mais	abstrata	perante	o	Estado	e
a	sociedade,	mas	concreta	e	também	em	prol	da	vítima	(BERISTAIN,	2000,	p.
175).	 Trata-se,	 em	 última	 instância,	 de	 uma	 orientação	 favorável	 ao
empoderamento,	à	responsabilização	e	ao	reconhecimento	da	autonomia	dos
implicados	no	conflito.
3.4.3	As	ponderações	de	Joel	Feinberg
A	questão	da	pertinência	da	via	 comunicativa	para	 a	 transmissão	da	 rigidez
penal	foi	estudada	por	Joel	Feinberg	141	(1965,	p.	397),	nos	idos	de	1960.	Para
este	filósofo	político,	a	desaprovação	social	e	sua	adequada	expressão	são	o
que	melhor	 respondem	 ao	 crime,	 ao	 invés	 do	 tratamento	 rígido	 ou	 da	 dor.
Assim,	 para	 exprimir	 juízos	 sobre	 a	 responsabilidade,	 o	 sistema	 de	 justiça
criminal	 não	 precisaria	 fazê-lo	 necessariamente	 por	 meio	 da	 imposição	 de
penas	de	prisão.	Haveria	 situações	 em	que	modos	 alternativos	de	 expressão
estenderiam	o	manto	da	responsabilidade	de	forma	mais	eficaz	e	mais	 justa.
Nas	palavras	de	Feinberg	(1965,	p.	415):
É	 claro	 que	 devemos	 condenar	 a	 prática	 de	 crimes.	 Mas	 por	 que	 esta	 condenação
envolveria	 qualquer	 dor	 ou	 dificuldade?	 Por	 que	 a	 condenação	 viria	 pelo	 meio	 físico
usual,	 o	 encarceramento	 e	 o	 tratamento	 corporal?	 Poder-se-ia	 imaginar	 um	 ritual
público,	explorando	os	dispositivos	mais	confiáveis	de	religião	e	de	mistério,	de	música	e
drama,	 tudo	 para	 expressar	 da	 forma	 mais	 solene	 a	 condenação	 do	 criminoso	 pela
comunidade	por	seu	ato	covarde.	142
Assim,	 de	 acordo	 com	 Feinberg,	 a	 censura	 pelo	 ato	 praticado,	 o	 pesar	 e	 a
aflição	decorrentes	deste	podem	sercomunicados	ao	ofensor	até	mesmo	por
meio	 de	 um	 sistema	 de	 punições	 simbólicas,	 como	 o	 serviço	 comunitário
obrigatório	 ou	 multa.	 Acrescente-se	 a	 isso	 que,	 numa	 perspectiva
comunicativa,	 é	 perfeitamente	 possível	 que	 as	 partes	 cheguem	 a	 um
entendimento	quanto	à	aplicação	deste	tipo	de	penalidade.
Feinberg	se	dedicou	a	distinguir	a	gravidade	da	pena	em	relação	aos	demais
tipos	 de	 sanções,	 em	 função	 da	 capacidade	 expressiva	 de	 cada	 uma	 delas.
Para	 tanto,	 o	 filósofo	 americano	 salientou	 que	 estamos	 sujeitos	 às	 mais
diversas	penalidades,	em	vários	aspectos	(civil,	administrativo	etc.),	tais	como
a	multa	pecuniária,	a	multa	de	trânsito,	a	suspensão	do	direito	de	dirigir,	entre
outras.	A	diferença	entre	elas	não	estaria	necessariamente	na	sua	gravidade	ou
na	 rigidez	 em	 que	 são	 aplicadas	 (Feinberg,	 1965,	 p.	 403)	 .	 Por	 exemplo,	 a
perda	 do	 poder	 familiar	 de	 um	 pai	 em	 relação	 a	 todos	 os	 seus	 filhos	 pela
prática	 de	maus-tratos	 contra	 um	 deles,	 ou	 a	 perda	 de	 um	 herdeiro	 do	 seu
direito	 sucessório	 por	 indignidade	 podem	 ser	muito	mais	 severas	 do	 que	 o
castigo	 imposto	 na	 condenação	 pela	 prática	 de	 maus-tratos	 ou	 mesmo	 de
crime	 contra	 a	 honra	 do	 autor	 da	 herança,	 cujas	 penas	 são	menores	 do	 que
dois	anos	de	prisão	143	.
O	que	as	diferencia,	segundo	Feinberg,	é	que	as	punições	de	natureza	criminal
teriam	 um	 significado	 simbólico	 ou	 expressivo,	 que	 falta	 às	 demais
penalidades.	As	penas	expressariam	atitudes	de	ressentimento,	de	indignação
e	desaprovação,	em	nome	de	quem	o	castigo	é	 infligido	 (Feinberg,	1965,	p.
398).	Esta	expressão	da	pena	seria	uma	fonte	“independente”	de	sofrimento	e
é	o	que	lhe	conferiria	atributos	que	a	distinguem	das	demais	sanções.	O	autor
cita	 exemplos	 ou	 situações	 que	 evidenciam	as	 características	 distintivas	 das
penas,	as	quais	transmitiriam	a	reprovação	social:
a)	 a	 desaprovação	 oficial	 (authoritative	 disavowal)	 :	 ao	 punir	 um
funcionário	 público	 corrupto,	 por	 exemplo,	 um	 governo	 expressaria	 a
intolerância	com	sua	ação.	Assim,	a	chamada	do	faltante	para	a	punição
indica	que	ele	não	agiu	com	o	beneplácito	do	Estado;
b)	 não-aquiescência	 simbólica	 (nonacquiescence	 simbolic	 ):	 para
Feinberg,	 ao	 não	 punir	 assassinatos	 de	 amantes	 em	 crimes	 passionais,
pode-se	 afirmar	 que	 o	 estado	 do	 Texas	 os	 tolera.	 Chamá-los	 para	 a
responsabilização	 penal	 pode	 significar	 uma	 recusa	 em	 identificar-se
com	estes;
c)	 justificar	a	 lei	 (vindicating	 the	 law	 ):	 apesar	da	previsão	 legal,	 se	os
linchamentos	 nunca	 são	 punidos,	 conclui-se	 que	 a	 lei	 contra	 eles	 é
ineficaz.	 A	 punição	 do	 linchador,	 neste	 caso,	 poderia	 funcionar	 como
uma	reafirmação	da	lei;
d)	 absolvição	 dos	 demais	 (absolution	 of	 others	 ):	 a	 punição	 de	 uma
pessoa	por	um	crime	alivia	outros	de	suspeita	e	de	culpa	pela	prática	do
mesmo	crime.
Feinberg	 conclui,	 destarte,	 que	 uma	 condenação	 simbólica	 não	 se	 confunde
necessariamente	com	um	tratamento	rígido.	Em	favor	da	suavidade	das	penas,
informando	 que	 elas	 não	 necessitam	 ser	 cruéis	 para	 serem	 dissuasórias,
também	já	se	manifestou	Beccaria,	na	sua	célebre	obra	de	1764,	no	parágrafo
intitulado	“Da	doçura	das	penas”.	Entretanto,	a	conclusão	dos	filósofos	não	é
indene	de	críticas.
3.4.4	Críticas	e	respostas	à	proposta	comunicativa	da	pena
A	proposta	 comunicativa	 contempla	 o	 castigo	 como	 forma	 de	 comunicação
entre	comunidade	e	ofensor,	com	vistas	a	quatro	metas:	o	arrependimento,	a
autorreforma,	a	reparação	e	a	conciliação.	Apresenta,	dessa	forma,	um	novo
modelo	 de	 controle	 penal	 (eunômico)	 frente	 ao	 modelo	 repressivo	 clássico
(anômico),	que	apresenta	as	vantagens	de	ser	mais	“comunicativo,	horizontal,
responsabilizador,	 educativo,	 inovador,	 orgânico,	 terapêutico,	 racional,	 de
direito	 real,	 funcional,	 liberalizador	 e	 reparador”	 (GARCÍA-PABLOS	 DE
MOLINA;	GOMES,	2012,	p.	444).
Entretanto,	 a	 atribuição	de	uma	 função	essencialmente	comunicativa	à	pena
está	 longe	 de	 ser	 consenso.	 O	 primeiro	 argumento	 contrário	 é	 que	 ela	 não
comportaria	a	rigidez	necessária	para	fazer	frente	aos	crimes	mais	graves	cujo
castigo	também	deve	ser	exemplarmente	comunicado.
Numa	perspectiva	consequencialista,	critica-se	a	teoria	comunicativa	da	pena
argumentando	que	muitos	ofensores	não	seriam	demovidos	por	um	sistema	de
censura	meramente	formal	ou	por	castigos	meramente	simbólicos	144	.	Afinal,	o
tratamento	 penal	 endurecido	 adicionaria	 um	 elemento	 dissuasor	 e	 apelaria
para	o	cumprimento	da	lei.	Do	ponto	de	vista	retribucionista,	pode-se	alegar
que	o	tratamento	rigoroso	traduz	o	desprezo	da	sociedade	para	com	o	sistema
de	 valores	 do	 indivíduo	 recalcitrante	 e,	 portanto,	 ele	 seria	 indispensável	 e
incompatível	 com	 uma	 função	 simbólica-comunicativa	 da	 pena	 145	 .	 Assim,
segundo	tais	convicções,	a	condenação	deve	ser	expressa	por	uma	providência
rígida	e	o	seu	grau	de	dureza	expressaria	a	intensidade	de	reprovação.
Em	resposta,	argumenta	Feinberg	que	há	situações	em	que	a	punição	rigorosa
não	 é	 necessária,	 tampouco	 seria	 suficiente	 para	 transmitir	 a	 rigidez
pretendida.	A	introdução	de	penas	mais	severas	não	resolveu	necessariamente
o	 problema	 da	 redução	 da	 criminalidade	 146	 .	 Ao	 contrário,	 esta	 medida
apresenta	 o	 risco	 de	 tornar	 as	 penas	 austeras	 e,	 paradoxalmente,	 menos
frequentemente	 aplicáveis.	 Beato	 Filho	 (1999,	 p.	 22),	 por	 exemplo,
identificou	 que	 “estados	 americanos	 que	 adotaram	 severas	 sanções	 para	 o
porte	 de	 armas	 verificaram	 que,	 após	 algum	 tempo,	 os	 policiais	 tendiam	 a
aplicá-las	muito	menos”.
Para	o	filósofo,	ainda	que	não	se	possa	descartar	totalmente	a	punição,	ela	não
serve	isoladamente	a	nenhum	propósito	social	útil:
Houve	 um	 tempo	 em	 que	 a	 forca	 e	 a	 tortura	 foram	 os	 principais	 símbolos	 claros	 de
vergonha	e	ignomínia.	Agora	vamos	condenar	criminosos	à	servidão	penal	como	forma	de
tornar	 seus	 crimes	 infames.	Não	 seria	 possível	 fazer	 o	 trabalho	mais	 economicamente?
Será	 que	 não	 existe	 uma	 forma	de	 estigmatizar	 sem	 infligir	 qualquer	 dor	 (inútil)	 ainda
mais	para	o	corpo,	para	a	família	e	para	a	capacidade	criativa?	147	(1965,	p.	401).
Feinberg	destaca,	ademais,	a	falta	de	economicidade	da	punição	por	meio	da
prisão	e	a	inutilidade	da	dor	por	ela	infligida	(não	só	ao	apenado,	mas	também
aos	seus	familiares	e	à	nossa	capacidade	de	reflexão).	Nils	Christie	(1977,	p.
9)	assinalou	que	a	 imposição	meramente	de	dor	para	o	delito	passado	não	é
moral,	mas	bárbara	e	se	podemos	comunicar	a	reprovação	aos	ofensores	por
meio	 da	 censura,	 não	 devemos	 fazê-lo	 pela	 entrega	 da	 dor	 punitiva.	 No
mesmo	 sentido,	 Foucault	 (2008,	 p.	 66),	 que	 salientou	 o	 abandono	 da
dramaturgia	 das	 execuções	 públicas,	 substituído	 pela	 brutalidade	 da	 pena
corporal	e	“pelo	concreto	e	aço”	do	sistema	carcerário	moderno.	Este	poder
punitivo	 e	 manipulador	 mudou	 de	 locus,	 mas	 manteve	 inalterada	 a	 sua
natureza,	 estando	 oculto	 em	 outros	 projetos	 “humanitários”,	 igualmente
reformadores	de	pessoas,	ainda	que	inconscientemente.
Uma	abordagem	comunicativa	para	a	pena	tampouco	significa	leniência	para
com	 o	 ofensor.	 Ao	 contrário,	 exige-lhe	 o	 reconhecimento	 voluntário	 da
prática	 do	 seu	 ato,	 disposição	 para	 reparar	 suas	 consequências	 e	 para	 o
encontro	 com	 a	 vítima,	 o	 que	 nem	 sempre	 é	 fácil	 e	 pode	 lhe	 trazer
desconforto,	pois	deve	revelar-se	e	lidar	com	a	vergonha	e	a	culpa.	Portanto,
por	 meio	 deste	 ritual	 de	 crítica	 e	 censura,	 a	 função	 comunicativa	 da	 pena
atende	 à	 demanda	 da	 sociedade	 de	 reafirmação	 dos	 seus	 valores	 e
demonstração	 da	 sua	 seriedade.	 Por	 outro	 lado,	 ela	 também	 confere	 uma
resposta	 honesta	 ao	 delito,	 respeitando	 os	 ofensores	 como	 agentes	 morais
responsáveis.
A	concepção	da	punição	sob	o	aspecto	comunicativo	serve,	em	algum	grau,
aos	 objetivosutilitaristas	 do	 sistema	 penal,	 em	 especial	 de	 prevenção	 do
crime,	pois	a	ameaça	e	a	 imposição	de	punição	 transmitiriam	aos	potenciais
ofensores	a	mensagem	de	que	sofrerão	algo	desagradável	caso	transgridam	a
lei.	Por	isso,	a	função	comunicativa	seria	uma	forma	de	codificá-los	a	não	o
fazerem,	influenciando	comportamentos	futuros.
Uma	 teoria	 comunicativa	 da	 pena	 poderia	 ser	 criticada	 por	 representar	 um
retribucionismo	 disfarçado,	 já	 que	 ambos	 têm	 em	 comum	 o	 fato	 de	 serem
retrógrados,	ou	seja,	relacionados	a	fatos	passados	e	dados	em	resposta	a	uma
ação	 digna	 de	 reprovação.	 Entretanto,	 o	 retribucionismo	 presente	 no	 papel
comunicativo	não	é	absoluto,	já	que	atribui	à	punição	uma	sofisticada	relação
com	outro	fim	social:	a	dissuasão.
Nas	 palavras	 de	 Hampton	 (1981,	 p.	 215),	 a	 punição	 seria	 então	 justificada
como	 uma	 forma	 de	 prevenir	 delitos,	 na	 medida	 em	 que	 se	 preocupa	 em
educar	cidadãos	para	não	se	envolverem	nesse	tipo	de	comportamento.	Neste
aspecto,	 Feinberg	 (1965,	 p.	 416)	 apresenta	 outra	 distinção	 entre	 a	 função
comunicativa	 e	 a	 retribuição:	 esta	 visaria	 distribuir	 sofrimento	 para	 os	 que
moralmente	o	merecem,	enquanto	aquela	visaria	 expressar	 a	 condenação	da
sociedade.
Foucault,	 que	 sempre	 nutriu	 uma	 profunda	 desconfiança	 em	 relação	 às
“formas	 humanizadas”	 de	 punição	 da	 sociedade	 contemporânea,	 também
criticaria	a	função	comunicativa	da	pena	sob	este	ponto	de	vista.	Até	mesmo	a
novel	 proposta	 comunicativa	 poderia	 ser	 tornar	 uma	delas,	 caso	 não	 realize
uma	verdadeira	ruptura	paradigmática	com	o	sistema	anterior.
Na	verdade,	Foucault	desafia	qualquer	tentativa	de	justificação	da	prática	da
punição,	a	qual	ele	considera	sempre	suspeita.	Seu	ponto	de	vista	é	o	de	que
qualquer	justificação	da	punição	ou	outra	prática	social	similar	estará	sempre
ligada	 a	 ideologias,	 a	 suposições	 e	 ao	 uso	 do	 poder	 de	 forma	 irracional	 e
altamente	 duvidosa.	 Segundo	 ele	 (FOUCAULT,	 2008,	 p.107),	 o	 poder	 de
ameaçar,	 coagir,	 suprimir,	 destruir,	 transformar	 está	 presente	 em	 qualquer
época.	A	censura	agiria	para	modificar	a	conduta	da	pessoa	tratando-o	como
um	objeto	a	ser	manipulado	e	não	como	um	sujeito	responsável	e	autônomo.
A	 perspectiva	 suspeitosa	 de	 Foucault	 serve	 como	 reflexão	 e	 alerta	 para
práticas	 punitivas	 de	 nosso	 tempo.	Uma	 função	 comunicativa	 da	 pena	 deve
conter	limites	para	a	pretendida	persuasão	racional	do	indivíduo	(encontrados
nos	 princípios	 restaurativos	 estudados	 na	 seção	 5.1)	 e	 jamais	 objetivar	 a
reforma,	a	manipulação	ou	o	condicionamento	do	apenado,	como	apregoado
pelas	 teorias	 “reeducativas”	 e	 “ressocializadoras”	 típicas	 do	 paradigma
punitivo.	 Se	 assim	 fosse,	 ela	 se	 limitaria	 a	 endossar	 as	 práticas	 punitivas
atuais,	ofuscando	o	seu	potencial	de	mudar	a	abordagem	punitiva	do	sistema
de	justiça	criminal.	Afinal,	como	disse	o	filósofo,	“as	luzes	que	descobriram
as	liberdades	inventaram	também	as	disciplinas”	(FOUCAULT,	2008,	p.	183).
Após	 a	 análise	 da	 teoria	 de	 Feinberg	 e	 das	 críticas	 de	 Foucault,	 podemos
perceber	 que	muitas	 das	 punições	 instituídas	 pelo	 sistema	 jurídico	hodierno
—	prisão,	multas	e	serviço	comunitário	obrigatório	—	apartadas	de	quaisquer
objetivos	 restaurativos	ou	emancipadores	constituem	não	só	atos	 simbólicos
de	censura,	mas	também	têm	funcionado	como	castigo	retributivo	ao	ofensor,
buscando	sua	obediência	por	meio	de	ameaça,	coação	ou	reforma.
Conclui-se,	portanto,	que	o	sistema	penal	tem	fracassado	não	só	em	atingir	os
seus	 objetivos	 declarados	 de	 punir	 e	 reeducar.	 Falhou,	 também,	 ao	 definir
tanto	seus	objetivos	como	suas	finalidades.	Com	base	na	teoria	comunicativa
da	pena,	 percebemos,	 sobretudo,	 que	o	 sistema	penal	 tem	errado	nos	meios
empregados	 para	 alcançá-los.	 Trata-se	 de	 uma	 alternativa	 violenta,
dispendiosa	 e	 inútil.	A	 atribuição	de	uma	 função	 comunicativa	 à	pena	pode
igualmente	 demonstrar	 a	 desaprovação	 social	 à	 conduta	 e	 responder
satisfatoriamente	a	alguns	crimes,	ao	invés	do	tratamento	rígido	ou	da	dor.
87	Reis	 Friede	 (2009,	 p.	 249)	 observa	 que	 a	 ciência	 do	 direito	 tem	 sido	 classificada	 como	 efetiva
ciência	social,	de	nítida	feição	hermenêutica.	Entretanto,	a	ciência	jurídica	não	se	restringe	a	isso,	pois
se	 caracteriza	 por	 ser	 uma	 ciência	 particular,	 com	 características	 especiais	 tais	 como,	 projeção
comportamental	 (ciência	 de	projeção	de	um	mundo	 ideal	 -	meta	 do	dever-ser)	 e	 por	 ser	 uma	 ciência
inexoravelmente	 axiológica	 (valorativa).	 Nem	 por	 isso	 o	 Direito	 estaria	 distante	 da	 característica
fundamental	 de	 todas	 as	 ciências:	 a	 busca	 permanente	 e	 contínua	 pela	 verdade,	 por	 meio	 da
interpretação	 de	 fatos	 (naturais	 ou	 sociais)	 e	 da	 necessária	 e	 insuperável	 valoração	 intrínseca	 de	 um
dado	fenômeno,	originando	uma	norma	ou	tese	(explicativa	e/ou	comportamental).
88	Entende-se,	aqui,	cultura	como	um	conjunto	de	símbolos,	de	significados,	de	crenças,	de	atitudes	e
de	valores	compartilhados,	transmissíveis	e	apreendidos	(ANIYAR	DE	CASTRO,	1983,	p.	10).
89	 Ressalta	 Lola	 Aniyar	 de	 Castro	 (1983,	 p.	 72)	 que	 há	 dois	 momentos	 marcantes	 da	 história	 da
criminologia:	 o	 aparecimento	 do	 livro	 de	Cesare	Lombroso,	 o	 “Homem	Delinquente”,	 em	1876,	 que
acentua	 o	 nascimento	 da	 Criminologia	 e,	 em	 segundo	 lugar,	 o	 discurso	 pronunciado	 por	 Sutherland
perante	 a	 Sociedade	 Americana	 de	 Criminologia,	 em	 1949,	 na	 qual	 define	 o	 conceito	 de	 “crime	 do
colarinho	branco”.
90	Um	exemplo	citado	pelo	 autor	de	 revitalização	do	positivismo	criminológico,	 a	 fim	de	explicar	o
comportamento	criminoso,	seria	a	“neurocriminologia”,	 influenciada	pela	neurociência	 (CARVALHO,
2009,	p.	319).
91	Vale	aqui	anotar	a	observação	de	Bruno	Amaral	Machado	(2007,	p.	20)	acerca	da	imprecisão	no	uso
do	 termo	“pós-modernidade”:	“embora	não	exista	consenso	sobre	como	denominar	o	momento	atual,
pós-modernidade,	 modernidade	 tardia	 ou	 sociedade	 diferenciada	 funcionalmente,	 a	 sociedade
contemporânea	 apresenta	 elevada	 complexidade,	 que	 se	 reflete	 na	 forma	 como	 operam	 os	 sistemas
político,	econômico	e	jurídico,	entre	outros	(LUHMANN,	1990a;	LUHMANN	e	DE	GIORGI,	2003)”.
92	Sousa	Santos	(2010,	p.	31)	observa	que	as	leis	da	ciência	moderna	pressupõem	ordem	e	estabilidade
do	mundo.	A	 simplicidade	das	 leis	 constitui	 uma	 simplificação	 arbitrária	 da	 realidade,	 que	 confina	o
homem	a	um	horizonte	mínimo	para	 além	do	qual	outros	 conhecimentos	da	natureza,	provavelmente
mais	ricos	e	com	mais	interesse	humano,	ficam	por	conhecer.
93	Warat	 (2001,	 p.	 161)	 define	 humanização	 como	 “a	 possibilidade	 de	 escapar	 das	 condições	 de
alienação	(em	muitos	casos,	determinadas	pelo	próprio	Direito)	e	fugir	para	as	condições	de	produção	e
realização	existencial	da	autonomia”.
94	 O	 mecanicismo	 é	 uma	 teoria	 que	 oferece	 uma	 explicação	 possível	 para	 os	 fatos	 naturais
interpretando-os	como	movimentos	ou	combinações	de	movimentos	de	corpos	no	espaço.	Aqui,	o	termo
é	 empregado	 para	 designar	 o	 método	 diretivo	 da	 pesquisa	 científica,	 de	 índole	 causalista	 (em
contraposição	ao	finalismo),	reducionista	(por	exemplo,	em	sociologia,	reduzindo	as	leis	sociológicas	a
leis	 biológicas	 e	 psicológicas),	 que	 privilegia	 a	 exigência	 de	 análise	 quantitativa,	 por	 exemplo
(ABBAGNANO,	1998,	p.	653-654).
95	O	conhecimento	 pós-moderno,	 segundo	Sousa	Santos	 (2010,	 p.	 48),	 é	 um	conhecimento	 sobre	 as
condições	de	possibilidade	da	ação	humana	ser	projetada	no	mundo	a	partir	de	um	espaço-tempo	local.
Um	conhecimento	deste	tipo	é	relativamente	imetódico,	utilizando-se	de	uma	pluralidade	metodológica.
O	 sociólogo	 lusitano	 cita	 o	 exemplo	 de	 Foucault	 que	 é,	 ao	 mesmo	 tempo,	 historiador,	 filósofo,
sociólogo	e	 cientista	político,	 cujo	 trabalho	apresenta	 inquestionável	 composição	 transdisciplinar	 semdeixar	de	ser	científico.
96	Observa	Sousa	Santos	 (2010,	 p.	 52)	 que	 a	 ciência	moderna	 não	 é	 a	 única	 explicação	 possível	 da
realidade	 e	 não	 há	 sequer	 qualquer	 razão	 científica	 para	 considerá-la	 melhor	 que	 as	 explicações
alternativas	 da	 metafísica,	 da	 astrologia,	 da	 religião,	 da	 arte	 ou	 da	 poesia.	 A	 razão	 por	 que	 hoje	 se
privilegia	determinada	forma	de	conhecimento	nada	tem	de	científico.	Seria,	no	seu	ponto	de	vista,	um
juízo	de	valor	(SOUSA	SANTOS,	2010,	p.	52).
97	Ainda	segundo	o	autor,	“o	sistema	de	justiça	que	não	oferecer	o	acesso	pela	justiça	restaurativa	não
poderá	 ser	 considerado,	 na	 contemporaneidade,	 um	 sistema	 realmente	 humanizado	 de	 resolução	 de
conflitos”	(GARCÍA-PABLOS	DE	MOLINA;	GOMES,	2012,	p.	451).
98	Por	exemplo,	se	antes	as	decisões	judiciais	se	circunscreviam	aos	autos	e	às	partes,	hoje	a	resolução
de	 litígios	 geralmente	 implica	 a	 implementação	 de	 políticas	 públicas	 cuja	 responsabilidade	 é	 do
Executivo,	segundo	Faria	(2004,	p.	106).
99	Neste	sentido,	Chiovenda	(1969,	p.	11)	ensina	que	a	jurisdição	“é	função	do	Estado	que	tem	como
escopo	a	atuação	da	vontade	concreta	da	lei	por	meio	da	substituição,	pela	atividade	de	órgãos	públicos,
da	atividade	de	particulares	ou	de	órgãos	públicos,	 já	no	afirmar	a	existência	da	vontade	da	 lei,	 já	no
torná-la,	praticamente	efetiva.”
100	Além	do	déficit	participativo,	da	exiguidade	de	respostas	adequadas	aos	conflitos,	da	ausência	de
deliberação	 racional	 entre	 os	 interessados	 e	 de	 todos	 dos	 fatores	 acima	 elencados,	Boaventura	Sousa
Santos	(1996,	p.	301	e	435)	identificou	outros	que	impedem	o	bom	funcionamento	(de	forma	correta	e	a
tempo)	 da	 jurisdição	 na	 seara	 penal,	 capazes	 de	 gerar	 o	 descrédito	 do	 sistema.	 Seriam	 eles:	 a
irracionalidade	 da	 distribuição	 de	 recursos	 humanos	 e	 a	 sua	 mobilidade;	 a	 nem	 sempre	 pronta
substituição	 dos	 funcionários	 ausentes	 (inclusive	 magistrados,	 ressalta	 o	 autor,	 pois	 há	 Varas	 que
permanecem	longos	períodos	sem	juízes,	gerando	atraso	e	acúmulo	de	serviço,	muito	difíceis	de	sanar
posteriormente);	 a	 falta	de	 conhecimento,	 formação	ou	experiência	de	 alguns	 funcionários;	 a	 falta	de
brio	e	de	motivação	de	servidores	e	magistrados	para	minorarem	os	revezes;	a	incapacidade	de	resposta
das	polícias;	a	carência	de	instalações	e	de	condições	de	trabalho	(como	a	falta	de	espaço,	mobiliário	ou
equipamento);	 a	 demora	 das	 perícias	 e	 exames	médicos	 (nomeadamente	 nos	 hospitais	 e	 institutos	 de
medicina	legal);	o	tempo	que	os	processos	aguardam	despachos	ou	andamento	nos	escaninhos	judiciais,
a	ponto	de	ensejar	a	sua	prescrição;	a	demora	no	cumprimento	de	cartas	rogatórias	ou	precatórias	para
inquirição	de	testemunhas;	a	ausência	ou	revelia	do	réu,	entre	outros.
O	sociólogo	ressalta	que	o	mau	funcionamento	do	sistema	de	justiça	criminal	em	virtude	dessas	razões,
além	do	déficit	participativo	e	deliberativo,	é	determinante	na	imagem	que	os	cidadãos	têm	da	justiça.
Afinal,	 tais	fatores	provocam	a	desconfiança	no	sistema,	o	 impedimento	da	 justa	reparação	do	direito
violado	e	a	agravação	do	seu	custo	econômico,	constituindo	um	desincentivo	do	recurso	ao	sistema	de
justiça	(SOUSA	SANTOS,	1996,	p.	387	e	432).
Uma	das	missões	contemporâneas	do	arranjo	democrático	seria	justamente	adotar	estratégias	defensivas
para	 limitar	 a	 erosão	 das	 suas	 instituições,	 entre	 elas	 o	 Poder	 Judiciário	 e	 o	 Ministério	 Público,	 se
possível,	fortalecê-las	e	estendê-las	(FARIA,	2004,	p.	114).
101	Nas	palavras	do	filósofo	tedesco:	“Esses	direitos	subjetivos	[de	comunicação	e	de	participação]	não
podem	 ser	 tidos	 como	 os	 de	 sujeitos	 jurídicos	 privados	 e	 isolados.	 Eles	 têm	 que	 ser	 apreendidos	 no
enfoque	de	participantes	orientados	pelo	entendimento,	que	se	encontram	numa	prática	intersubjetiva	de
entendimento”	(HABERMAS,	1997a,	p.	53).
102	No	 original:	 “El	 juicio	 penal	 atañe	 a	 toda	 la	 sociedad	 (es	 lo	 que	 se	 pretende	 en	 un	 Estado
democrático)	y	 ésta	debe	participar	del	momento	 comunicacional	que	en	él	 se	desarrolla.	La	 función
simbólica,	 como	 proyección	 de	 imágenes	 que	 se	 quierem	 dar	 de	 la	 sociedad,	 tendrá	 éxito	 sólo	 si	 es
realizada	por	los	ciudadanos	y	no	sólo	para	ellos.	A	la	vez	esto	permitirá,	también,	generar	la	reflexión
democrática	 sobre	 ciertas	 funciones	 sociales	 que	 se	 realizan	 privilegiadamente	 el	 marco	 estatal”
(ANITUA,	2013,	p.	115).
103	A	cidadania	a	que	se	refere	a	justiça	restaurativa,	vista	sob	a	óptica	da	doutrina	de	Nancy	Fraser,
não	se	confunde	com	o	conceito	formal	e	individual	do	liberalismo,	mas	de	uma	cidadania	exercitada
com	viés	coletivo,	dotada	de	força	de	pressão,	negociação	e	controle	(FERRAJOLI,	2010,	p.	763).
104	Especialista	norte-americana	em	políticas	públicas,	em	especial	da	área	de	saúde.
105	(ARNSTEIN,	1969,	p.	1).
106	A	medição	difere	da	conciliação,	por	ser	uma	“forma	de	solução	de	conflitos	em	que	um	terceiro
neutro	e	imparcial	auxilia	as	partes	a	conversar,	refletir,	entender	o	conflito	e	buscar,	por	elas	próprias,	a
solução.	 Nesse	 caso,	 as	 próprias	 partes	 é	 que	 tomam	 a	 decisão,	 agindo	 o	 mediador	 como	 um
facilitador”.	Já	a	conciliação	é	uma	“forma	de	solução	de	conflitos	em	que	as	partes,	através	da	ação	de
um	terceiro,	o	conciliador,	chegam	a	um	acordo,	solucionando	a	controvérsia.	Nesse	caso,	o	conciliador
terá	a	função	de	orientá-las	e	ajudá-las,	fazendo	sugestões	de	acordo	que	melhor	atendam	aos	interesses
dos	dois	lados	em	conflito”.	Por	fim,	a	arbitragem	é	“forma	de	solução	de	conflitos	em	que	as	partes,
por	 livre	 e	 espontânea	 vontade,	 elegem	 um	 terceiro,	 o	 árbitro	 ou	 o	 Tribunal	 Arbitral,	 para	 que	 este
resolva	a	controvérsia,	de	acordo	com	as	regras	estabelecidas	no	Manual	de	Procedimento	Arbitral	das
Centrais	 de	 Conciliação,	 Mediação	 e	 Arbitragem	 (v.	 Legislação).	 O	 árbitro	 ou	 Tribunal	 Arbitral
escolhido	pelas	partes	emitirá	uma	sentença	que	terá	a	mesma	força	de	título	executivo	judicial,	contra	a
qual	não	caberá	qualquer	recurso,	exceto	embargos	de	declaração.	É,	o	árbitro,	juiz	de	fato	e	de	direito,
especializado	no	assunto	em	conflito,	exercendo	seu	trabalho	com	imparcialidade	e	confidencialidade”
(TJPE,	2013,	p.	1).
107	Professor	de	políticas	públicas	na	Escola	de	Governo	John	F.	Kennedy,	da	Universidade	de	Havard.
108	(FUNG,	2006,	p.	68).
109	(FUNG,	2006,	p.	69).
110	(FUNG,	2006,	p.	70).
111	(adaptado	de	FUNG,	2006,	p.	71).
112	 No	 original:	 “Los	 rituales	 comunicativos	 de	 la	 justicia	 penal	 son	 ceremonias	 que	 despiertan
compromisos	de	valor	específicos	en	los	participantes	y	en	el	público,	y	actúan	así	con	un	importante
contenido	legitimante	y	pedagógico,	reproduciendo	los	valores	republicanos	y	democráticos	y	a	la	vez
generando	 y	 regenerando	 una	 mentalidad	 y	 sensibilidad	 mayores	 hacia	 el	 conflito	 y	 la	 violência”
(ANITUA,	2013,	p.	114).
113	Os	ideais	clássicos	de	democracia	como	“auto-organização	política	da	sociedade”,	“associação	de
sujeitos	livres	e	iguais”	ou	relacionados	à	“regra	da	maioria”	são	censurados	por	Habermas	(1997b,	p.
13),	para	quem	“as	regras	de	uma	democracia	apoiada	na	concorrência,	que	obtém	sua	legitimidade	a
partir	do	voto	da	maioria,	através	de	eleições	livres,	iguais	e	secretas,	tornam-se	plausíveis	a	partir	de
uma	 peculiar	 compreensão	 do	mundo	 e	 de	 si	 mesmo.	 Tal	 compreensão	 apoia-se	 num	 “subjetivismo
ético”	 que	 seculariza,	 de	 um	 lado,	 a	 compreensão	 judaico-cristã	 da	 igualdade	 de	 cada	 ser	 humano
perante	Deus	e	toma	como	ponto	de	partida	a	igualdade	fundamental	de	todos	os	indivíduos”.	O	autor
cita,	 também,	 a	 opinião	 de	 John	Dewey:	 “Os	 críticos	 têm	 razão	 em	 afirmar	 que	 a	 regra	 da	maioria,
enquanto	tal,	é	absurda.	Porém,	ela	nunca	é	pura	e	simplesmente	uma	regra	da	maioria…	É	importante
saber	quais	 são	os	meios	através	dos	quais	uma	maioria	chega	a	ser	maioria:	os	debates	anteriores,	a
modificação	dos	pontos	 de	vista	 para	 levar	 em	contaas	 opiniões	 das	minorias…	Noutras	 palavras,	 a
coisa	 mais	 importante	 consiste	 em	 aprimorar	 os	 métodos	 e	 condições	 do	 debate,	 da	 discussão	 e	 da
persuasão”	(HABERMAS,	1997b,	p.	27).
114	 Joshua	 Cohen	 é	 um	 filósofo	 norte-americano	 especializado	 em	 filosofia	 política,	 professor	 de
ciência	política,	filosofia	e	direito	na	Universidade	de	Stanford.	Charles	Frederick	Sabel	é	professor	de
direito	e	ciências	sociais	na	Universidade	de	Columbia.
115	James	Fishkin	(2009,	p.1)	projetou	implementações	práticas	de	democracia	deliberativa,	descritas
em	cinco	características	essenciais	para	deliberação	 legítima:	 informação	(dados	precisos	e	 relevantes
seriam	 disponibilizados	 a	 todos	 os	 participantes);	 equilíbrio	 material;	 diversidade	 (todas	 as	 posições
relevantes	 para	 o	 assunto	 seriam	 consideradas);	 conscienciosidade	 (os	 participantes	 pesam	 todos	 os
argumentos);	e	igual	consideração	dos	pontos	de	vista.
116	A	respeito	do	tema,	citamos,	na	seção	1.3,	a	analogia	médica	utilizada	por	Jerome	Miller	(1989,	p.
1)	para	descrever	as	opções	de	“tratamento”	bastante	limitadas,	oferecidas	pelo	sistema	criminal:	“Seria
como	 pedir	 a	 um	médico	 uma	 solução	 para	 o	 alívio	 da	 dor	 de	 cabeça,	 sendo-lhe	 informado	 que	 há
apenas	 dois	 tratamentos:	 uma	 aspirina	 ou	 uma	 lobotomia.	 Ou	 então	 ir	 ao	 médico	 com	 um	 braço
quebrado	ou	com	uma	apendicite	aguda	e	ele	lhe	oferece	os	mesmos	dois	tratamentos	disponíveis:	uma
aspirina	ou	uma	lobotomia”.
117	Em	When	the	people	speak:	deliberative	democracy	and	public	consultation	,	publicado	em	2011,
Fishkin	critica	que,	em	todo	o	mundo,	as	reformas	democráticas	trouxeram	o	poder	para	o	povo,	mas	em
condições	nas	quais	as	pessoas	têm	poucas	oportunidades	de	pensar	sobre	o	poder	que	elas	exercem.	A
partir	desta	 ideia,	James	Fishkin	combina	uma	nova	teoria	da	democracia	com	a	prática	real	e	mostra
como	 uma	 ideia	 que	 remonta	 à	 antiga	 Atenas	 pode	 ser	 utilizada	 para	 reavivar	 nossas	 democracias
modernas.	Disponível	em:	http://cdd.stanford.edu/research/whenthepeoplespeak/	 .	Acesso	 em:	 13	 out.
13.
Na	sua	obra	T	he	voice	of	the	people:	public	opinion	and	democracy	,	de	1995,	o	pesquisador	avalia	as
práticas	democráticas	modernas	e	explica	como	tem	sido	a	luta	histórica	para	que	se	escute	a	“voz	do
povo”.	 Ele	 narra	 o	 histórico	 de	mudança	 de	 conceitos	 e	 práticas	 da	 democracia,	 com	 exemplos	 que
incluem	 a	 realidade	 norte-americana.	 Disponível	 em:	 http://www.nuibooks.com/the-voice-of-the-
people-public-opinion-and-democracy-PDF-1258109/.
Por	fim,	em	T	he	dialogue	of	justice:	toward	a	self-reflective	society	,	de	1993,	Fishkin	propõe	o	ideal	de
uma	“sociedade	autorreflexiva”	-	uma	cultura	política	em	que	os	cidadãos	são	capazes	de	decidir	seus
próprios	 destinos	 por	 meio	 de	 um	 diálogo	 sem	 restrições	 que	 levaria	 a	 uma	 democracia	 mais
participativa.	 Nesta	 obra,	 o	 autor	 apresenta	 pesquisas	 de	 opinião	 sobre	 o	 tema.	 Disponível	 em:
http://www.muebooks.com/the-dialogue-of-justice-toward-a-self-reflective-society-hardcover-PDF-
205209/	.
118	Segundo	Glória	Maria	 Palma	 (2004,	 p.	 1),	 o	 interacionismo	 simbólico	 de	George	Hebert	Mead
(1863-1931)	 concebe	 a	 sociedade	 humana	 como	 fundamentada	 na	 base	 do	 consenso	 em	 sentido
compartilhado	na	forma	de	compreensões	e	expectativas	comuns.	Trata-se	de	um	método	científico	de
construção	do	conhecimento	que	concebe	a	vida	social	como	interações	mediadas	simbolicamente.	“O
símbolo	é	construído	nas	 interações	e	dá	o	sentido	da	ação	individual,	assim	como	coordena	as	ações
interindividuais.	O	 simbólico	 não	 é	 resultado	 da	 interação	 do	 sujeito	 consigo,	 nem	do	 sujeito	 com	o
objeto,	mas	do	sujeito	constituído	e	do	sujeito	projetado	pela	linguagem.	O	sujeito	está	em	si	e	está	no
outro	em	interação,	construindo	a	realidade”	(PALMA,	2004,	p.	1).
119	Wittgenstein	utiliza	 a	 expressão	 “jogo	de	 linguagem”	para	 salientar	 que	 “o	 falar	 da	 linguagem	é
uma	parte	de	uma	atividade	ou	de	uma	forma	de	vida”	(1999,	§23).	Para	o	filósofo	da	 linguagem,	“a
significação	de	uma	palavra	é	seu	uso	na	linguagem”	(1999,	§43),	ou	seja,	o	significado	da	palavra	não
deve	 mais	 ser	 compreendido	 como	 algo	 fixo	 e	 determinado,	 como	 uma	 propriedade	 que	 emana	 da
palavra,	 mas	 de	 acordo	 com	 o	 seu	 uso	 em	 um	 determinado	 contexto,	 no	 qual	 falante	 e	 ouvinte
interagem,	empregando	tais	expressões	com	um	objetivo	determinado	(RUY,	2008,	p.	2-3).
120	 Assim	 como	 Wittigenstein,	 Austin	 se	 distanciou	 das	 posições	 essencialistas	 da	 filosofia	 que
restringiam	a	linguagem	à	sua	função	designativa,	dando	precedência	à	semântica	(RODRIGUES,	2012,
p.	36).
Em	sua	obra	How	to	do	Things	With	Words	,	 resultado	de	doze	conferências	ministradas	nos	anos	50,
Austin	 apresenta	 sua	 “teoria	 dos	 atos	 de	 fala”,	 na	 qual	 investiga	 o	 fato	 de	 determinadas	 sentenças
(enunciados	performativos)	corresponderem,	na	verdade,	a	ações	(por	exemplo,	em	“aceito”,	“batizo”,
“lego”,	“aposto”)	(AUSTIN,	1990,	p.	24).	O	enunciado	performativo	teria	três	dimensões	indissociáveis
e	 simultâneas	 (locucionária,	 ilocucionária	 e	 perlocucionária)	 (AUSTIN,	 1990,	 p.	 85),	 sendo	 que	 o
filósofo	 britânico	 classificou	 as	 expressões	 em	 cinco	 grupos,	 conforme	 a	 força	 ilocucionária	 de	 cada
uma	 delas	 (veridictivas,	 exercitivas,	 comissivas,	 comportamentais	 e	 expositivas)	 (AUSTIN,	 1990,	 p.
124).
121	Habermas	 (1997b,	 p.	 56)	 define	 a	 ação	 comunicativa	 ou	 o	 agir	 comunicativo	 como	 o	 “uso	 da
linguagem	orientada	pelo	entendimento,	através	da	qual	os	atores	coordenam	suas	ações”.
122	Uma	 situação	 prática	 em	 que	 foi	 possível	 a	 “conexão	 com	o	 outro”	 e	 o	 reconhecimento	 da	 sua
humanidade	é	relatada	pela	professora	Soraia	Melo,	num	dos	encontros	restaurativos	realizados	numa
escola	do	Rio	de	Janeiro:	“Não	há	nada	tão	intenso	e	transformador	como	aprender	a	se	conectar	com	o
outro,	por	meio	da	humanidade,	da	verdade	que	cada	um	tem	e	divide	por	meio	de	seus	valores,	sonhos
e	fraquezas.	Quando	alguém	chorava	ou	contava	uma	história	muito	pessoal,	eu	tinha	o	desejo	de	chorar
também.	Aprendi	que	escutar	é,	muitas	vezes,	muito	mais	 interessante	e	 libertador	do	que	falar	e	que
não	há	ninguém	que	possa	ter	controle	absoluto	sobre	o	outro.	Há	uma	força	no	círculo,	ela	está	viva	e
por	isso	não	possui	um	dono	—	pertence	a	todos”	(CECIP,	2013,	p.	98).
123	 Um	 relato	 de	 reconhecimento	 empático	 propiciado	 pela	 justiça	 restaurativa	 é	 feito	 por	 uma
educadora	de	uma	escola	no	Rio	de	Janeiro	que	se	disse	mais	próxima	de	seus	alunos	após	participar	de
encontros	restaurativos:	“Ah,	eu	mudei	bastante	coisa,	né?	Eu	olhei	os	problemas	dos	alunos	mais	de
perto,	que	eu	desconhecia,	da	personalidade.	Passei	a	vê-los	com	outros	olhos	a	partir	do	momento	que
conheci	um	pouco	de	cada	um,	no	nosso	círculo	aqui”	(CECIP,	2013,	p.	76	e	77).
124	Honneth	 critica	 especificamente	 as	 teorias	 liberais	 por	 adotarem	 um	 conceito	 de	 liberdade	 de
caráter	 individualista.	 Segundo	 a	 tradição	 liberal,	 em	 uma	 situação	 originária	 ideal	 (denominada	 por
Rawls	 de	 “véu	 da	 ignorância”),	 os	 futuros	 membros	 de	 uma	 sociedade	 deliberariam	 acerca	 dos
princípios	morais	que	os	regerão.	Neste	momento,	eles	calculariam	suas	perspectivas	de	vida	segundo	o
grau	 de	 liberdade	 individual	 colocado	 à	 sua	 disposição.	 Para	 Honneth,	 essa	 suposição	 não	 pode	 ser
absolutamente	verdadeira,	 já	que	as	escolhas	dos	deliberantes	devem	contemplar	 também	a	qualidade
das	 relações	 sociais	 esperadas,	 ou	 seja,	 não	 só	 a	 garantia	 da	 liberdade	 individual,	 mas	 também	 a
reciprocidade	social.	Isso	por	si	só	já	seria	suficiente	para	questionar	a	validade	da	tese	de	deliberação
hipotética	proposta	pelos	liberais	(HONNETH,	2004,	p.	110).
125	O	termo	“Escola	de	Frankfurt”	é	utilizado	para	se	referir	aos	pensadores	afiliados	ao	Instituto	para
Pesquisa	Social	de	Frankfurt,	não	representando	o	nome	de

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