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Sumário 1. Agradecimento 2. prefácio 3. UM UNIVERSO EM EXPANSÃO: RAQUEL TIVERON ESTÁ VOCACIONADA PARA SER A MELHOR JURISTA DA SUA GERAÇÃO BRASILEIRA 4. INTRODUÇÃO 1. PARTE I 2. A CRISE 3. DO PARADIGMA 4. PUNITIVO 5. tudo o que é sólido 6. desmancha no ar? 7. CAPÍTULO I 8. O SISTEMA PENAL POSTO EM QUESTÃO crise de legitimidade da pena de prisão? 1. 1.1 A tensão entre facticidade e validade no direito:a importância do reconhecimento da legitimidade da lei penal 2. 1.2 O déficit de legitimidade da lei penal 3. 1.3 O uso político da sanção penal para excluir: uma visão agnóstica da pena 4. 1.4 Críticas às tradicionais funções da pena: retribuição e prevenção 5. 1.4.1 Comunicando a pena ao ofensor: a prevenção especial 6. 1.4.2 A ideia de prevenção dirigida à sociedade 7. 1.5 A cifra obscura da criminalidade 8. 1.6 Ineficácia dissuasória da pena de prisão 9. 1.7 Os números da eficácia invertida da prisão 9. CAPÍTULO II 10. OS DEPÓSITOS DE PRESOS COMO FATOR CRIMINÓGENOa morte dos ideais de “ressocialização”? 1. 2.1 A prisão como fator criminógeno 2. 2.2 A realidade carcerária 3. 2.3 O pessimismo do nothing works 4. 2.4 O endurecimento via pena de morte 5. 2.5 Just deserts 6. 2.6 Poderia a pena de prisão ser abolida? 1. PARTE II 7. A EMERGÊNCIA DO PARADIGMA DA TRANSMODERNIDADE 11. da insurgência à assimilação da justiça restaurativa? 12. CAPÍTULO III 13. DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA DO DIREITO, A SOCIOLOGIA JURÍDICA E A TEORIA POLÍTICAfundamentos plurais do novo paradigma 1. 3.1 Contextualizando a revolução: a pós-modernidade 2. 3.1.1 A superação paradigmática rumo à transmodernidade 3. 3.1.2 Justiça restaurativa e transmodernidade 4. 3.2 O fundamento político da jurisconstrução: a democracia deliberativa 5. 3.2.1 A ampliação de atores para o debate na jurisconstrução 6. 3.2.2 Avaliando o grau de inclusão participativa e de deliberação democrática do novo paradigma 7. 3.2.3 O enquadramento do modelo jurisdicional penal na teoria política democrática contemporânea 8. 3.2.4 A democracia deliberativa 9. 3.2.5 A poliarquia 10. 3.2.6 A justiça restaurativa como forma de poliarquia diretamente deliberativa 11. 3.2.7 Críticas à democracia deliberativa 12. 3.3 Compreendendo a dinâmica do encontro restaurativo e as suas bases filosóficas 13. 3.3.1 A justiça restaurativa como esfera pública de deliberação 14. 3.3.2 Justiça restaurativa: um locus para o reconhecimento recíproco 15. 3.3.3 O impacto do encontro face a face segundo Lévinas 16. 3.3.4 O agir comunicativo habermasiano 17. 3.3.5 A dinâmica do círculo restaurativo 18. 3.3.5.1 A metodologia da CNV 19. 3.3.5.2 O caso do encontro entre um adolescente autor de “sequestro relâmpago” e sua vítima, um policial 20. 3.3.5.3 O caso do encontro entre uma vítima idosa e o ladrão de sua residência 21. 3.4 Uma nova racionalidade para a pena: a função comunicativa 22. 3.4.1 A racionalidade comunicativa de Habermas 23. 3.4.2 A função comunicativa da pena 24. 3.4.3 As ponderações de Joel Feinberg 25. 3.4.4 Críticas e respostas à proposta comunicativa da pena 1. PARTE III 26. ONDE SE ENCONTRA O FUNDAMENTO DA VALIDADE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA? 14. A BUSCA DE SUA SUSTENTABILIDADE TEÓRICA 15. CAPÍTULO IV 16. DAS ESTRADAS LARGAS AOS BECOS SEM SAÍDAa vereda dos movimentos criminológicos até a emergência restaurativa 1. 4.1 A justiça restaurativa na contramão do atavismo positivo 2. 4.2 Normalidade e funcionalidade do crime — o influxo das teorias sociológicas 3. 4.2.1 A apoteose do bem-estar e a frustração de status: uma contribuição da teoria da anomia 4. 4.2.2 A ordem social como um mosaico de grupos (teorias subculturais) 5. 4.2.3 O crime como resultante das interações psicossociais do indivíduo 6. 4.2.4 As teorias do controle social 7. 4.2.5 Prevenção situacional do crime 8. 4.3 Labelling approach, interacionismo simbólico e construtivismo social 9. 4.4 Apontando as antinomias do sistema penal: o papel das teorias críticas 10. 4.4.1 A criminologia radical 11. 4.4.2 Neorrealismo de esquerda 12. 4.4.3 Minimalismo penal 13. 4.4.4 Garantismo 14. 4.4.5 Abolicionismo 15. 4.5 Entre pirâmides e círculos: a proposta da criminologia pacificadora 16. 4.5.1 A pirâmide de pacificação de Fuller 17. CAPÍTULO V 18. A DINÂMICA VITAL DA JUSTIÇA RESTAURATIVA princípios, características, procedimentos, atores e apostas 1. 5.1 Os princípios da justiça restaurativa 2. 5.1.1 Um destaque para a voluntariedade 3. 5.2 Os atores no procedimento restaurativo 4. 5.2.1 Facilitadores 5. 5.2.2 O advogado: aliado ou opositor? 6. 5.2.3 Ofensores — uma nova visão do “inimigo” 1. 5.2.3.1 Uma observação necessária: a desumanização do ofensor e a mídia 2. 5.2.3.2 O caso da vítima de estupro que encarou seu ofensor 7. 5.2.4 Vítimas 8. 5.2.5 A relação entre ofensor e vítima 9. 5.2.6 Predisposição vitimária e níveis de vitimização 10. 5.2.7 Reaproriação dos conflitos ou retorno à vingança privada? 11. 5.2.8 A vitimização secundária 12. 5.3 O papel da comunidade na justiça restaurativa 13. 5.3.1 A janela da disciplina social 14. 5.3.2 A vergonha reintegradora 15. 5.3.3 Riscos do incremento do controle social pela justiça restaurativa 1. PARTE IV 16. A PRÁXIS 17. RESTAURATIVA 18. NO ORDENAMENTO 19. JURÍDICO BRASILEIRO 19. uma estranha no ninho? 20. CAPÍTULO VI 21. O DILEMA DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL: política de governo ou política de estado? 1. 6.1 A experiência paulista de justiça restaurativa 2. 6.1.1 O diferencial em São Caetano do Sul: a estratégia de sensibilização de lideranças e de “mudança de lentes” dos agentes públicos 3. 6.1.2 A evolução do projeto e a situação atual 4. 6.2 Justiça para o Século XXI em Porto Alegre 5. 6.2.1 A evolução do programa gaúcho 6. 6.3 Uma justiça para maiores no Distrito Federal 22. CAPÍTULO VII 23. EM BUSCA DE UM ESTATUTO LEGALconsolidando a justiça restaurativa no ordenamento jurídico brasileiro 1. 7.1 O espaço legislativo para a edificação da justiça restaurativa no Brasil 2. 7.1.1 Na infanto-adolescência 3. 7.1.2 Nos juizados especiais criminais 4. 7.2 A compatibilização da justiça restaurativa com a lei brasileira 5. 7.2.1 O respeito aos direitos fundamentais dos acusados 6. 7.2.2 A obrigatoriedade da ação penal: mitos e verdades 7. 7.2.3 A mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal em outros países 8. 7.2.4 Limites da capacidade operacional do estado (ou o estado de ineficiência estatal) 9. 7.3 A construção de uma política pública de resolução de conflitos 10. 7.3.1 O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) e a lei do SINASE 11. 7.3.2 A política pública de tratamento adequadoaos conflitos do CNJ 12. 7.3.3 O Projeto de Lei nº 7006, de 2006 13. 7.4 O desafio de um novo papel para o Ministério Público brasileiro 14. 7.4.1 A participação ministerial na experiência comparada 15. 7.4.2 A nova identidade do Ministério Público brasileiro pós-88: indutor de política criminal 16. 7.4.3 Considerações parciais 24. CAPÍTULO VIII 25. PESQUISA EMPÍRICA E ENCONTROS RESTAURATIVOS EM DOIS CASOS DRAMÁTICOS a busca da dimensão humana em meio a conflitos hediondos 1. 8.1 A justiça restaurativa em crimes graves 2. 8.2 Estudo comparativo — caso de estupro tratado na justiça restaurativa no DF e no exterior 3. 8.2.1 Caso 1 — Estupro de vulnerável por três jovens, um deles menor de idade 4. 8.2.2 Caso 2 — Estupro de vulnerável entre irmãos 5. 8.2.3 Análise dos aspectos relevantes em cada situação 6. 8.3 A justiça restaurativa para crimes cometidos em contexto de violência doméstica 7. 8.4 Pesquisa de campo: comparação entre os graus de informação, comunicação e reparação do sistema de justiça criminal e do programa de justiça restaurativa do DF 8. 8.4.1 Aspectos metodológicos da pesquisa de campo 1. 8.4.1.1 Objetivo geral 2. 8.4.1.2 Objetivos específicos 9. 8.4.2 Hipóteses testadas na pesquisa de campo 10. 8.4.3 Sujeitos, locais e instrumento de coleta de dados 11. 8.4.4 Metodologiade investigação e análise 12. 8.4.5 Contextualizando a pesquisa 1. 8.4.5.1 Histórico e peculiaridades das cidades pesquisadas 2. 8.4.5.2 Perfil dos entrevistados 13. 8.4.6 Resultados 14. 8.4.7 Outras considerações relevantes 1. 8.4.7.1 Descriminalização de condutas de menor potencial ofensivo 2. 8.4.7.2 Aplicação de programas restaurativos para delitos cometidos em contexto de violência doméstica 3. 8.4.7.3 Uso abusivo de álcool ou drogas e a importância da integração da justiça restaurativa com as políticas públicas de saúde e com a comunidade 15. 8.4.8 Conclusão 26. CONCLUSÕES 27. REFERÊNCIAS AGRADECIMENTO Uma tese de doutorado não é escrita e amadurecida durante quatro anos sem o apoio e a colaboração de importantes pessoas. Quero registrar meu agradecimento e carinho especial: A Deus, pelas bênçãos e pelas dificuldades permitidas, para que eu aprendesse a superá-las; À minha mãe e ao meu pequeno anjinho, pois sei que juntos assistem ao coroamento do esforço que vivenciaram comigo. Aquela, por mais tempo e este, durante sua breve passagem neste mundo; Ao Álvaro e à Valentina, pelo amor incondicional, pela paciência e pela companhia nas longas madrugadas; Ao meu pai, pelo seu exemplo, pelo incentivo aos estudos e por todas as oportunidades que me proporcionou; Ao Júnior, pela ajuda com seu colossal conhecimento informático e generoso coração; À Claudia, Dalilian e Luciene, pela sua dedicação à pequena Valentina, para que eu tivesse a tranquilidade de estudar; À Rosemari Barletta, pela companhia firme e permanente ao longo desses anos e pelo apoio incondicional à confecção desta tese, cuja “gestação” vem acompanhando; Ao meu orientador, Prof. Dr. Roberto Freitas Filho, pela confiança em mim depositada e por todos os seus ensinamentos, como professor e como pessoa; Ao amigo, mentor, filósofo, habitante eterno do meu coração, Prof. Dr. Rossini Corrêa, detentor de um conhecimento monumental, sorriso aberto e amizade incondicional, pelo seu amparo nas horas de desespero, pelo incentivo à pesquisa e à publicação e por sua eterna e sincera disponibilidade em ajudar; Ao Prof. Dr. Bruno Amaral Machado, meu exemplo profissional, acadêmico e humano, que, mesmo estando em um patamar de conhecimento muito acima dos mortais, não se furta a descer e iluminar com seu brilho único aos que, como eu, lhe pedem socorro; Aos meus professores do UniCEUB, na pessoa dos docentes Álvaro Ciarlini, Léa Ciarlini, Bruno Amaral Machado e Luciana Musse, membros da minha banca de qualificação, pela disposição em discutir comigo a pesquisa e dar um norte a ela; Aos professores Josué Silva e René Mallet Raupp, profissionais excepcionais em suas áreas, sem cujo conhecimento esta tese não seria possível da forma em que se encontra; À Thays Braga, pesquisadora nata, que emprestou sua gentileza e simpatia ao trabalho de campo; Ao Conselho Superior do MPDFT, pela confiança em mim depositada, concedendo-me licença para a redação desta tese e, especialmente ao Prof. Dr. Rogério Schietti, que acreditou e encampou pessoalmente este sonho; Ao Dr. Weiss Webber e à Lúcia Helena Barbosa de Oliveira, pessoas e profissionais singulares, que labutam diuturnamente para a humanização do sistema de justiça criminal e para a implementação da Justiça Restaurativa; Ao corpo de funcionários do UniCEUB, nas pessoas especialíssimas de Rosilene Croner Abreu e Rosileide Oliveira Nunes, rosas na minha vida, que, com amizade e apoio, tornaram essa missão mais leve; Por último, e não por ser menos importante, à valorosa equipe da Justiça Restaurativa do TJDFT — nas pessoas da Helena, do Manoel e da Bárbara, visto que acreditam na causa restaurativa e a vivenciam inspirando todos que têm a sorte de cruzar os seus caminhos —, pelo crédito e pelo amplo e irrestrito apoio para a confecção deste trabalho; Sem a ajuda de todos vocês, amigos, esta tese não seria possível! PREFÁCIO UM UNIVERSO EM EXPANSÃO: RAQUEL TIVERON ESTÁ VOCACIONADA PARA SER A MELHOR JURISTA DA SUA GERAÇÃO BRASILEIRA Rossini Corrêa 1 Um dos nós górdios da crise da modernidade e da construção, ainda embrionária, da pós-modernidade, sem a mínima dúvida, se encontra na dimensão institucional da Sociedade, na medida em que a crise do Estado alcança uma ressonância quase universal, a perpassar as organizações sociais de substrato urbano-industrial. A chamada Grande Sociedade, na tessitura complexa de elementos que a definiram, seguramente encontrou em sua caminhada estadual, em última instância, o ribombar da Revolução Francesa, a experiência da Codificação do Direito e a mística, senão mistificação, da Escola da Exegese. Os clamores da Razão, retomados, no mínimo, desde o século XIII da cristandade, por Santo Tomás de Aquino, na esteira do seu Mestre de Pensamento, Alberto da Saxônia, que se tornaria, em Paris, Alberto Magno, por ser considerado ali o maior sábio de todos os tempos e um preceptor apoteótico em sua Universidade e se transformaria, na Igreja, Santo Alberto Magno, em virtude da proclamação dos elevados serviços que o alçaram, também, ao reconhecimento como Doutor e à sua proclamação como padroeiro dos cientistas, não cessaram de avançar. O Renascimento recepcionou o espírito do racionalismo medieval, passando, entretanto, a cultivá-lo, mais por ser portador da supostamente confiável ordenação da razão, do que por ser aristotélico. Começará no Ressurgimento o processo de desconstrução incessante do Estagirita, que foi merecedor da melhor dedicação intelectual e acadêmica não apenas de Santo Alberto Magno e de Santo Tomás de Aquino, em seu resgate e nos comentários produzidos, desde que ambos já dialogavam com a tradição do aristotelismo árabe. Avicena era persa, nascido em 980 e Averróis era andaluz, nascido em 1126, constituindo os dois estrelas polares de uma suntuosa tradição da Era de Ouro do Islã, religião em expansão no mundo desde o seu nascimento, no século VII depois de Cristo, do Oriente Médio para o Norte da África e deste para a Península Ibérica, enquanto procurava a vastidão de outros horizontes da geografia conhecida. Avicena e Averróis foram produtos do código ético do Islã original, a que se reportou Roger Garaudy, quando os califas não eram do petróleo, e trouxeram para a Península Ibérica, e desta para a Europa, significativos valores civilizatórios. Ambos foram mestres de múltiplos saberes, inclusive da teologia profunda e do direito canônico muçulmano, irrigando a sua visão de mundo com o singular conhecimento da tradição filosófica grega, inclusive, de Platão e de Aristóteles. O trabalho de Santo Alberto Magno e Santo Tomás de Aquino foi, portanto, de resgate, comentário e estabelecimento de Aristóteles no ambiente universitário da Alemanha, da França e da Itália, cristianizando-o, ao passo em que, do Estagirita ofereciam interpretação distinta da consagrada pelo islamismo da tradição muçulmana, que levaria a cristandade da cavalaria à sangrenta experiência das Doze Cruzadas, por hipótese, em busca do Reino Cristão de Jerusalém. O Renascimento começou todo um processo de racionalismo anti-aristotélico, por combater a Igreja, o Papado e o Estado Religioso, cuja doutrina teológica passou a repousar em fundamentos racionais advindos, de maneira mais próxima, do Estagirita, cuja filosofia foi posta em auxilio de sua doutrina da fé desde a cristianização de Sócrates, por São Justino e de Platão, por Santo Agostinho. Confrontar a Igreja, o Papado e o Estado Religioso, com certeza, passou a ser confundido com a negação de Aristóteles. Eis o Estagirita, em consequência, contestado na política de Nicolau Maquiavel, na epistemologiade Francis Bacon e na filosofia social de Thomas Hobbes, entre muitos outros que se seguiriam, em movimento que duraria meio milênio. O Ressurgimento pretendeu retornar à cultura do paganismo, dela retirando a tradição aristotélica, que se cristianizara na sociedade medieval contestada pela modernidade em ascensão. Os iluministas – cujo movimento intelectual foi maturado entre 1650 e 1750, difundindo-se da Holanda para a França, a Itália, a Escócia, a Alemanha, a Inglaterra e outras paragens da Europa – tornaram-se herdeiros desta tradição racionalista advinda do Medievo e retomada no Renascimento, exaltando-a como instrumento de reinvenção geométrica do mundo da vida. Neste sentido, advogaram o advento de um Estado, de um Poder e de um Direito segundo os ditames da Razão. Nos momentos mais radicais do movimento iluminista, sem cuidados, a Razão foi o substituto simbólico de Deus. Na esfera jurídica, o Direito dos iluministas foi reivindicado segundo a perspectiva naturalista. Sucede que, uma vez conquistado o Poder pela Revolução Francesa, caminhou-se na diretriz da consumação do Estado Nacional Soberano, que começara a nascer entre os séculos XIII e XIV da cristandade. A centralidade do Estado tornou-se a regra magna da era das nações, conformando as ideias de soberania econômica e soberania política, em um mundo de assimetrias entre nações e colônias e de embates imperiais entre nações do epicentro da comunidade internacional. As metrópoles do mundo estatizaram o Direito, positivando-o, ao revés de sua reivindicação naturalista pretérita à Revolução Francesa e difundindo-o como o máximo de engenharia jurídica racional, por meio da obra de codificador de Napoleão Bonaparte. Aquilo a que denominei alhures de ‘Razão Legal’ tornou-se a regra redutora da experiência jurídica, cujo positivismo repudiou, em seu monismo estatista, todos os pluralismos jurisprudentes, para restringir o Direito ao Estado, na reificação do Legalismo, do Tecnicismo e do Formalismo, em Norma Geral que pretendeu responder a toda a complexa e variegada experiência de vida social, no suposto de que dispunha de previsibilidade e de completitude suficientes para equacioná-la em sua totalidade. Nada mais falacioso. De mim para mim, sonhando com o reverso, de um Direito que, transfigurado, servisse de energia de transfiguração da vida social, emancipando-a de maneira solidaria, escrevi em determinado tempo: ‘Da ampliação das referidas experiências dar-se-á a ponte para o futuro, em que poderão sobreviver os julgamentos por Tribunal, mas excelerão a negociação, a conciliação, a facilitação, a mediação e a arbitragem, em um mundo de luta por um Direito mais, muito mais comprometido com a Sociedade do que com o Estado; com o Caso do que com a Lei; com a Justiça do que com a Segurança; com as Pessoas do que com as Coisas; sabendo sempre que, no Caso, o prioritário é a consideração das Pessoas, centelhas humanas e divinas de dramas e de esperanças. Construí-lo é tarefa de todos. Jamais valerá apenas ficar à espera, pois a tibieza é contrária à lição da sabedoria e não transfigura em claridade as névoas cinzentas da existência’. A ‘Razão Legal’ por mim criticada, impermeável ao magistério de Pietro Verri, em Observações sobre a Tortura e de Cesare Beccaria, em Dos Delitos e das Penas , duas magistrais figuras do iluminismo italiano, programou de maneira diversa o sistema penal, em paradigma totalmente fracassado, por sua incapacidade de restaurar para a sociabilidade aqueles que, regra geral, a sociedade empurrou para a criminalidade. De onde o mal formado como ‘gente’ do sistema prisional resultar deformado como ‘bicho’. O sistema penal passou a ser, de maneira crescente na modernidade, a consumação da tragédia. Eis que a Tese Doutoral de Raquel Tiveron, ora servida em livro, intitulada Justiça Restaurativa e Emergência da Cidadania na Dicção do Direito , a qual constitui a melhor contribuição das letras jurídicas nacionais à relevante temática em questão, vem significar, na melhor tradição dialética, a presença da utopia no Direito à Esperança, na expectativa de que topias sejam possíveis e tópicas conquistem substantivação, na dinâmica da construção global de um novo modo de produção jurídica. Trata-se de uma obra de estreia adulta de uma jurista destinada a ser única em sua geração brasileira, se confirmar, como está desafiada a fazê-lo, com constante trabalho, fidelidade criativa e renovada reflexão, a vocação de que é portadora. Raquel Tiveron, desta maneira, acrescentará ao ser humano excepcional que é, em sua aguda sensibilidade aberta à beleza e à alegria, os horizontes múltiplos do trabalho intelectual fértil e diferenciado, no qual inscreverá, decerto, as digitais de sua personalidade de jurista comprometida, filosófica e sociologicamente, com os valores mais expressivos da tradição humanística, em busca de um ser mais humano, em uma ordem social em que o todo seja mais de todos. Compreendendo o estrangulamento moral do direito de punir do Estado, cujo sistema penal instituiu a decomposição do humano como mecanismo vingativo de punição, Raquel Tiveron, que também visualiza o porquê de outras camadas sociais conhecerem a impunidade, mergulha na Justiça Restaurativa enquanto semente de um paradigma criminal alterativo, no qual Ego e Alter , em dialogia reconstrutiva do humano perdido, possam em si reinventar a humanidade possível. É a percepção de que a (re)humanização de todos é um produto do Verbo, esta própria condição do humano, que o humano define e o humano restaura, à margem da marcha do ordinário no sistema judicial do Estado, no qual a Lei Geral se aplica, com cegueira do espírito e à distancia de toda e qualquer pedagogia, à multiplicidade de casos concretos, como guilhotina à procura de pescoços, sem sensibilidade humana e moral frente às dores e dramas da vida do mundo desumano. Raquel Tiveron contribui de maneira decisiva para o debate em torno de um novo modo de produção do direito, receptivo ao concurso vertical da Sociedade, como alternativa à máquina deficitária e em crise de legitimidade, do Estado da era das nações. Do argumento teórico à análise empírica, o presente livro conversa com o direito comparado e reclama não somente uma mudança legislativa no Brasil, bem como uma renovação de mentalidade compatível com as exigências da sociedade pós-moderna em formação, exigente em todas as latitudes, sobretudo, nos domínios em que não há tradição de devolução dos poderes aos geradores do poder. É a situação do Brasil, este ‘acampamento apressado’ de que falava Gilberto Amado, a tremular no fio da navalha, correndo o risco de ‘encontrar a decadência sem ter experimentado a civilização’, como sublinhou Claude Levi-Strauss. Brasil que não pode ser objeto de desistência, como reclamou a altivez moral e política de Eduardo Campos, candidato à Presidência da República vitimado em acidente aéreo, em 13 de agosto de 2014, mas que deixou um legado de ética pública que fecundará os sonhos das novas gerações, cuja bandeira será a de transformar o ‘acampamento apressado’ em responsável civilização, capacitada, esta, a ser e a estar, aqui e no mundo, com a soberana consciência de que gente tem que ser tratada como gente. A Justiça Restaurativa versada por Raquel Tiveron foi delineada com mão de mestra e compreendeu em profundidade o evolver do rio subterrâneo a procurar a superfície, no compromisso com os seus mais relevantes aspectos – ‘gestão emancipatória e participativa do conflito, devoluçãoda sua administração aos seus protagonistas, o empoderamento comunitário e elevado conteúdo pedagógico’ – a construir uma legitimidade nova, para a combalida arquitetura da justiça criminal. Neste sentido, quando o polêmico Desembargador Estadual do Rio de Janeiro, Siro Darlan, em entrevista à BBC Brasil, realiza a impugnação global do papel que a Constituição da República Federativa do Brasil – Artigo 127 - O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis – reserva ao Ministério Público, o livro ora publicado encontra em Raquel Tiveron alguém que o vincula, por meio da Justiça Restaurativa, ao visceral compromisso democrático e aos caminhos desafiantes da transmodernidade. Se se quiser, entretanto, na valorosa tessitura da Tese Doutoral Justiça Restaurativa e Emergência da Cidadania na Dicção do Direito , construída por Raquel Tiveron como testemunho do seu excepcional talento, encontrar um ponto central, a melhor resposta será a de que o seu centro está em toda parte, segundo uma irrecusável exigência. Qual? A de que, em toda parte deste todo orgânico, de maneira essencial, exista o compromisso humano com um mundo mais humano, de interminável construção, mas de necessária e infinita procura, a reconhecer o fundamento de validade da magna aspiração: ‘Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos ’ (Mateus 5.6). Por ora, convido todos a saciarem a sua fome e a sua sede de justiça, realimentando a constante busca, na bem-aventurança da leitura de Raquel Tiveron e de sua decisiva obra Justiça Restaurativa e Emergência da Cidadania na Dicção do Direito . Desfrutemos juntos deste banquete do espírito que, segundo a nossa maior satisfação, já está soberanamente servido, para que nunca mais se tenha por ‘satisfeita a Justiça’, por alguma ‘salutar dureza’ das Leis, quando em gemidos não só a Natureza, mas a Consciência, como no verso de Manuel Maria Barbosa du Bocage: AO RÉU QUE FOI CONDUZIDO AO PATÍBULO NO DIA 11 DE JULHO DE 1797 Ao crebro som do lúgubre instrumento, Com tardo pé caminha o delinquente; Um Deus consolador, um Deus clemente Lhe inspira, lhe vigora o sofrimento: Duro nó pelas mãos do algoz cruento Estreitar-se no colo o réu já sente; Multiplicada a morte anseia a mente, Bate horror sobre horror no pensamento: Olhos e ais dirigindo à Divindade, Sobe, envolto nas sombras da tristeza, Ao termo expiador da iniquidade: Das leis se cumpre a salutar dureza: Sai a alma dentre o véu da humanidade; Folga a Justiça, e geme a Natureza’. Brasília-DF, agosto de 2014. 1 Advogado e Professor em Brasília. Filósofo do Direito, Rossini Corrêa é autor de Saber Direito – Tratado de Filosofia Jurídica; Jusfilosofia de Deus; Crítica da Razão Legal; O Liberalismo no Brasil; e Teoria da Justiça no Antigo Testamento . Pertence à Academia Brasiliense de Letras. É membro titular do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. INTRODUÇÃO O objetivo do presente estudo é avaliar as condições para o desenvolvimento da justiça restaurativa no Brasil como um novo paradigma de justiça criminal, cujo propósito é orientar o trabalho dos órgãos desse sistema. A primeira parte do estudo será dedicada à análise do paradigma punitivo atual e o contexto fático, político, jurídico e filosófico da sua crise. Este paradigma apresenta sinais de esgotamento que podem ser constatados na realidade precária do sistema carcerário no qual ocorrem corriqueiras violações dos direitos fundamentais dos apenados e dos princípios basilares do Estado democrático de direito. Exemplo disso é o histórico “massacre do Carandiru”, com a morte de 111 presos e o recente assassínio de 63 reclusos no presídio maranhense de Pedrinhas. Considerando a forma como são acautelados os apenados atualmente, a pena de prisão tem sido aplicada mediante o sacrifício da dignidade humana, o que compromete a legitimidade do sistema punitivo. O cárcere encontra-se colapsado com a ocupação de mais de meio milhão de pessoas em trezentas mil vagas e com outros trezentos e vinte mil mandados de prisão aguardando cumprimento, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça (InfoPen), explorados na primeira parte do trabalho. Quanto ao modo de acautelar os presos, a realidade brasileira viola frontalmente a normativa internacional, tornando quimérica a aplicação das “Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Prisioneiros”, consoante registrou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário. O embrutecimento, a ociosidade, o abandono e as violações sexuais fazem com que o recluso se torne outra vítima, gerando a chamada “síndrome de vitimização do cárcere”. Esta síndrome causa revoltas e motins face à impossibilidade de se executar as condenações sob a égide da legalidade e da humanidade. Os sintomas de debilidade do paradigma punitivo atual se manifestam não só no campo fático, mas também no político e no jurídico. Quanto ao aspecto político, denuncia a criminologia crítica que atesta que o direito penal vem sendo utilizado como técnica de controle social em prol da criação de uma sociedade de controle e exclusão. Nesta sociedade, são selecionadas, para repressão severa (por meio de políticas endurecedoras do tipo “lei e ordem”), as condutas conflituosas praticadas pelas camadas mais débeis e marginais da sociedade (em geral, delitos patrimoniais). Este uso de sanções penais é incoerente, já que condutas que causam prejuízos muito maiores do que todos os roubos e furtos somados do país, como a corrupção, são pontualmente punidos. Portanto, o uso político e incoerente da sanção penal — que permanece, inclusive no projeto de reforma do Código Penal — também contribui para o questionamento da legitimidade do sistema. Para o exame dessas questões, será utilizado o estudo bibliográfico de autores da criminologia, em especial da corrente crítica, ou seja, autores como Alessandro Baratta, Claus Roxin, Louk Hulsman, Lola Aniyar de Castro, Eugenio Raúl Zaffaroni, Antonio Beristain e Juarez Cirino dos Santos. Do ponto de vista jurídico, as finalidades atribuídas em lei à pena privativa de liberdade — em especial as de prevenção do delito, de reinserção e de “ressocialização” do condenado — são diuturnamente descumpridas. Ao invés de desempenhar suas funções jurídicas declaradas, a pena de prisão opera numa eficácia invertida, que, no lugar de reduzir a criminalidade, incrementa-a, pois o contato com outros presos no cárcere propicia oportunidades para mais práticas criminosas, à medida que consolida valores delitivos, gerando a reincidência. Desta forma, a seletividade das pessoas a serem encarceradas e a impossibilidade de cumprimento dos fins prescritos pela lei incutem à pena certa dose de injustiça, colocam em evidência a fragilidade dos fundamentos do modelo punitivo e põem em xeque a sua legitimidade (SILVA et al, 2006, p. 801 e KARAM, 2004, p. 93). Seria impossível tratar de temas como pena e prisão sem perpassar pelos aspectos filosóficos sobre o assunto, tendo em vista que o fundamento do direito de punir, a natureza da pena, sua finalidade, o emprego da pena de morte, por exemplo, a despeito do seu conteúdo marcadamente jurídico, sempre foram objeto de reflexão por parte dos grandes filósofos da história. Este assunto é tratado na primeira parte dotrabalho. Compreender os fundamentos desta crise de legitimação do direito penal, sejam fáticos, jurídicos, políticos ou filosóficos, pode auxiliar no desenvolvimento de alternativas para se minimizar os efeitos negativos da aplicação da pena e fazê-la mais consentânea com os princípios do Estado democrático de direito. Neste trabalho, referimo-nos especificamente à alternativa representada pela justiça restaurativa cujo formato e benefícios serão evidenciados na segunda parte deste estudo. Em resposta à crise paradigmática relatada, a justiça restaurativa se apresenta como paradigma alternativo que oferece uma resposta ao crime inspirada nos valores transmodernos de convergência, humanização e “outridade”. Ela reconhece o crime como um conflito humano e propõe um modelo penal mais reparador e integrador. A justiça restaurativa promove uma intervenção tridimensional sobre o crime: mediante a reparação dos danos patrimoniais e emocionais das vítimas, com a responsabilização e reintegração do ofensor e pela participação comunitária no processo. Ela o faz por meio de um processo deliberativo que congrega os afetados por um delito na construção de respostas para o tratamento do delito (a “jurisconstrução”, anunciada por Warat). Estas características da justiça restaurativa conferem a ela componentes democráticos significativos, como a participação e a deliberação, características que a diferenciam do sistema ordinário de justiça, e que podem contribuir para suprir o seu déficit de legitimidade, fato que é identificado na primeira parte deste estudo. A teoria política contemporânea (de Schumpeter, Robert Dahl, Joshua Cohen e Charles Sabel) será usada a para enquadrar a justiça restaurativa e o sistema de justiça criminal em modelos democráticos com o fito de avaliar qual deles promoveria, em maior grau, os valores democráticos fundamentais. A filosofia e os conceitos teóricos de Jürgen Habermas (esfera pública de deliberação, agir comunicativo e racionalidade comunicativa), de Emmanuel Lévinas (encontro face a face) e de Axel Honneth (reconhecimento intersubjetivo recíproco) serão usados para se compreender a dinâmica restaurativa e os seus fundamentos. Para tanto, será feita uma revisão bibliográfica do referencial teórico mencionado sem o propósito de abordar todas as dimensões da teoria completa de cada um deles. Por ser um paradigma em construção e não possuir uma teoria própria, a justiça restaurativa se vale do conhecimento das escolas criminológicas que a antecederam para engendrar uma teoria de resposta ao crime, integrando elementos de várias delas. Na terceira parte do trabalho, com auxílio do método histórico, será percorrido, por meio de um estudo longitudinal, os movimentos criminológicos que mais contribuem para a sua edificação. Na quarta parte deste trabalho será avaliada a práxis restaurativa brasileira por meio dos três programas pioneiros de justiça restaurativa iniciados em 2005 que já apresentam alguns resultados nestes nove anos de atividade. Optou-se pelo corte metodológico para o exame de apenas estas três experiências brasileiras por elas possuírem dados consolidados há mais tempo e por serem as incentivadoras das demais. Conhecer estes programas, ao mesmo tempo em que se dissemina a informação sobre o que tem sido feito, torna possível se identificar onde estão as principais lacunas e ausências visando ao seu aperfeiçoamento. Procurar-se-á identificar seus méritos, a fim de testá-los por meio de hipóteses junto à opinião dos usuários do sistema de justiça por meio de uma pesquisa exploratória de campo. As respostas quantitativas serão trabalhadas estatisticamente, a fim de confirmar ou refutar as hipóteses estabelecidas. O estudo será completado qualitativamente com a análise comparativa de dois casos de estupro tratados pela justiça restaurativa — um no Brasil e outro no exterior — a fim de aprofundar a compreensão da dinâmica e dos princípios restaurativos. Os casos foram selecionados metodologicamente, procurando- se explorar a maior quantidade de variáveis possíveis em cada um deles, a despeito das diferenças de contexto em que ocorreram. Considerou-se o fato de se tratarem de crimes graves, de natureza sexual, cujas vítimas e ofensores possuíam a mesma idade na data dos fatos (treze e dezoito anos, respectivamente) e eram conhecidos entre si (no primeiro caso, irmãos; no segundo, namorados). Dessa forma, tornar-se-á possível a sua avaliação com profundidade e, ao mesmo tempo, a comparação para a extração de conclusões válidas. A partir do estudo dos casos, será possível visualizar as similaridades e as diferenças das intervenções restaurativas no Brasil e no exterior, e também perceber as vantagens que o tratamento restaurativo oferece. Afinal, tão válido quanto o conhecimento teórico — constituído a partir de conceitos gerais, efetuado na primeira parte da pesquisa — é o conhecimento indutivo, obtido a partir da prática, como a reflexão ora proposta. A justiça restaurativa, em especial sob a forma de mediação penal, já está incorporada e em vigor no ordenamento jurídico de alguns países europeus e americanos, independentemente do sistema de direito adotado e está integrando ousados projetos de modernização da justiça. Na Espanha, por exemplo, mecanismos de justiça restaurativa estão em andamento em mais de quarenta tribunais. No Canadá, o Código Penal e a lei menorista (“Youth Criminal Justice Act” — YCJA) foram alterados para incluírem princípios restaurativos. Na Nova Zelândia, há a previsão expressa no “Sentencing Act” de 2002 da obrigação de juízes de condenação considerarem os processos restaurativos como atenuantes da pena. Estes estatutos serão analisados na terceira parte do estudo, todavia sem a pretensão de esgotar o seu exame ou de advogar a sua cópia para o ordenamento jurídico brasileiro, em respeito às especificidades locais, tão valorizadas pela justiça restaurativa. Neste processo, destaca-se também, o necessário envolvimento do Ministério Público em virtude da sua posição de titular da ação penal e da sua conformação constitucional ampliada pela Constituição Federal de 1988 para a concretização de suas promessas de cidadania. Na Alemanha e em Portugal, por exemplo, a remessa de um processo para o acordo restaurativo fica a cargo do Ministério Público. Neste último país, é o Ministério Público quem designa o mediador para a causa. O mediador é escolhido dentre vários que constam de uma lista de profissionais cadastrados no Ministério da Justiça. No México, em 2008, procedeu-se a uma reforma constitucional na qual se permitiu, entre outras medidas, a mediação penal no sistema de justiça criminal. Esta reforma representou uma mudança paradigmática muito significante, porque estatuiu, em sede constitucional, que as leis devem prever meios alternativos de resolução de disputas inclusive em matéria penal, e que o Ministério Público pode considerar critérios de oportunidade para o exercício da ação penal. Na Argentina, a mediação penal o ocorre no âmbito do próprio Ministério Público (no “Gabinete de Resolução Alternativa de Litígios Departamentais” do Ministério Público). A ele é textualmente atribuída a responsabilidade de pacificar conflitos e buscar a reconciliação entre as partes, com respeito às garantias constitucionais e neutralizando os prejuízos derivados do processo penal. No Brasil, por não haver uma legislação específica para regulamentá-la, a prática restaurativa vem encontrando o seu caminho em espaços em que há alguma margem legal para a justiça consensuada(como nos juizados especiais criminais nos quais é autorizada uma solução conciliatória para o crime) ou quando o fato não é tecnicamente considerado crime (para atos infracionais praticados por adolescentes, inimputáveis penalmente) e, por isso, não são passíveis tecnicamente de pena ou de persecução penal. Entretanto, para se desenvolver e ser amplamente adotada no Brasil, a justiça restaurativa precisa oferecer respostas a dois questionamentos: como compatibilizá-la com alguns direitos e garantias individuais dos acusados (por exemplo, o princípio da presunção de inocência ou da não-culpabilidade), já que ela tem como pressuposto o reconhecimento e a responsabilização do ofensor pela prática do delito? e Como compatibilizá-la com o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública pelo Ministério Público, quando presentes indícios de autoria e materialidade do crime? Isso porque a participação do ofensor no acordo restaurativo demanda, em primeiro lugar, o reconhecimento da sua responsabilidade pelo ato. O problema jurídico que se instaura a este respeito é o de que esta exigência pode, aparentemente, contrastar com a garantia da presunção de inocência ou da não-culpabilidade do acusado. O princípio da obrigatoriedade da ação penal pública informa que o Ministério Público está obrigado a oferecer a denúncia ao tomar conhecimento de uma conduta típica e antijurídica. Assim, a atuação ministerial será vinculada, ou seja, ele não pode optar por não denunciar em tais casos, ainda que por razões de política criminal, tendo em vista a natureza indisponível do interesse público. Entretanto, a vigorar esse entendimento, quase não haverá espaço de consenso para as partes deliberarem a respeito do tratamento para as consequências do crime, o que impedirá o desenvolvimento da justiça restaurativa para abarcar crimes mais graves. Dessa forma, os programas de justiça restaurativa continuarão restritos aos conflitos de menor potencial ofensivo, no qual há algum espaço legal reservado ao consenso das partes para a resolução do conflito (nos crimes de ação penal privada ou pública condicionada à representação do ofendido). Portanto, viabilizar a aplicação da justiça restaurativa a crimes mais graves parece ser a saída para que ela possa ser útil para auxiliar no desencarceramento e nas mudanças dos números e da realidade prisional. Estas são questões que necessitam ser enfrentadas — e o serão no decorrer deste trabalho — para que a justiça restaurativa tenha chance de florescer, abrindo uma chance para que as partes envolvidas no conflito como protagonistas alcancem o consenso e decidam a melhor forma de solucionar os seus litígios. PARTE I A CRISE DO PARADIGMA PUNITIVO TUDO O QUE É SÓLIDO DESMANCHA NO AR? CAPÍTULO I O SISTEMA PENAL POSTO EM QUESTÃO CRISE DE LEGITIMIDADE DA PENA DE PRISÃO? Na primeira parte do estudo, analisam-se os sinais de esgotamento do sistema penal a fim de compreender o contexto fático da sua crise de legitimação. Os sintomas da debilidade deste sistema se manifestam na realidade das prisões, nas quais ocorrem corriqueiras violações dos direitos fundamentais dos apenados, o que evidencia a fragilidade do modelo punitivo, desafiando a sua legitimidade e a propositura de alternativas a ele. O conceito habermasiano de tensão entre facticidade e validade do direito é utilizado para explicar como a dissenção entre os fins programados da pena (prevenir e “ressocializar 2 ”) e a realidade fática do seu cumprimento (reincidência e geração de carreiras criminosas a partir da prisão) afetam a legitimidade do direito penal e do próprio sistema de justiça criminal, pois fazem com que se questione o uso da força e do poder de punir pelo Estado. A criminologia crítica é empregada para demonstrar esta crise de legitimidade e de eficiência do sistema, visto que as supostas vantagens anunciadas por ele são muito inferiores aos custos arcados pela população sem que se dispense aos reclusos um tratamento digno (o qual está bastante distante das “Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Prisioneiros”), conforme constatou a CPI do sistema carcerário. Por fim, seria impossível tratar de temas como pena e prisão, sem perpassar pelos aspectos filosóficos sobre o assunto, tendo em vista que o fundamento do direito de punir, a natureza da pena, sua finalidade, o emprego da pena de morte, por exemplo, a despeito do seu conteúdo marcadamente jurídico, sempre foram objeto de reflexão por parte dos grandes filósofos da história. 1.1 A tensão entre facticidade e validade no direito: a importância do reconhecimento da legitimidade da lei penal Antes de abordar a crise do sistema penal propriamente dita, é preciso demonstrar a importância do reconhecimento da sua legitimidade pelos cidadãos. Isso porque, a confiança na lei e a crença na sua legitimidade são pressupostos de primeira ordem para o funcionamento exitoso do sistema e, por outro lado, a deslegitimação contínua da lei penal pode contribuir para o comprometimento deste modelo. Habermas observa que, para existir socialmente, o direito deve satisfazer simultaneamente a duas condições necessárias, ainda que aparentemente contraditórias: a facticidade e a validade. O direito preenche os requisitos da facticidade, ou seja, existe como um fato social concreto, à medida que está positivado (incorporado ao mundo jurídico por um ato legislativo) e por ser dotado de coerção (que lhe confere eficácia). Essas características — positividade e coerção — tornam-no apto a ser conhecido e obedecido pelos cidadãos (COELHO, 2013d, p. 1). Além da facticidade, há a necessidade de se conferir validade ao direito, no sentido de que seja reconhecido como “valioso” pelos cidadãos. Sobre a importância do atributo da validade, assevera Habermas (1997a, p. 9): o modo de operar de um sistema político, constituído pelo Estado de direito, não pode ser descrito adequadamente, nem mesmo em nível empírico, quando não se leva em conta a dimensão de validade do direito e a força legitimadora da gênese democrática do direito. Para o reconhecimento da sua validade, o direito precisa preencher duas condições: proteger a liberdade e possuir legitimidade. Na medida em que protege as liberdades individuais, o direito é considerado caro aos cidadãos. O seu reconhecimento como legítimo faz com que o direito obtenha adesão racional por parte dos indivíduos (COELHO 2013d, p. 1). Consoante Habermas, as duas características do direito — facticidade e a validade — são complementares e essenciais, a despeito de se encontrarem em constante tensão. Assim, a liberdade (condição de validade) limita a coerção estatal (condição de facticidade), mas ao mesmo tempo a torna aceitável. Já a coerção limita a liberdade, mas, por outro lado, a torna-a possível. Nas palavras de Habermas (1997a, p. 49), “as normas do direito são, ao mesmo tempo e sob aspectos diferentes, leis da coerção e leis da liberdade.” O mesmo se passa com a positividade e a legitimidade. Para Habermas, não basta que as normas tenham sido positivadas para terem validade, pois o fato de estarem positivadas quer dizer que elas existirem, no entanto podem ter sido impostas, por exemplo, o que não as justificaria do ponto de vista da legitimidade: Só vale como direito aquilo que obtém força de direito através de procedimentos juridicamente válidos — e que provisoriamente mantém força de direito, apesar da possibilidade de derrogação, dada no direito. Porém, o sentido desta validade do direito somente se explica através da referencia simultânea à sua validadesocial ou fática (Geltung) e à sua validade ou legitimidade (Gültigkeit) (HABERMAS, 1997a, p. 50). No mesmo sentido, o magistério de José Rossini Campos do Couto Corrêa (2011, p. 175) salienta que existência e legitimidade são coisas distintas, sendo que esta seria fruto do procedimento, como defende Habermas: Não nasceu o Homem para o Estado, nasceu o Estado para o Homem. E mais: ninguém autorizou o Estado, em seu nascedouro, a retirar a Vida do Homem. E ainda: a simples existência do Estado e do Direito a ambos não legitima. O consentimento é consequência do procedimento. Observa André Coelho (2013d, p. 1) que, sem legitimidade, a positividade consistiria em atos de decisão que não teriam por que serem obedecidos. Por outro lado, sem positividade, a legitimidade é impossível: A positividade implica possibilidade de tornar qualquer conteúdo em direito, ao passo que a legitimidade obriga a que apenas certos conteúdos possam ser tornados direito. No plano conceitual, novamente, ambos são opostos. Contudo, sem legitimidade, a positividade consistiria em atos de decisão que não teriam por que ser obedecidos, enquanto, sem positividade, os conteúdos que merecem ser obedecidos não teriam atos de decisão com os quais se tornarem obrigatórios. Novamente, sem positividade, a legitimidade é impossível, mas, sem legitimidade, a positividade é inaceitável (COELHO, 2013d, p. 1). Consoante Habermas (1997a, p. 12), a legitimidade do Estado mede-se pelo seu reconhecimento por parte dos que estão submetidos à sua autoridade. A legitimidade é condição direta de validade, que faz com que o direito seja reconhecido como merecedor de obediência (COELHO, 2013d, p. 1). Sobre a importância da legitimidade, assevera Habermas: A aceitação da ordem jurídica é distinta da aceitabilidade dos argumentos sobre os quais ela apoia a sua pretensão de legitimidade […]. Os membros do direito têm que poder supor que eles mesmos, numa formação livre da opinião e da vontade política, autorizariam as regras às quais eles estão submetidos como destinatários […]. O direito extrai a sua força muito mais da aliança que a positividade do direito estabelece com a pretensão à legitimidade (HABERMAS, 1997a, p. 59-60). Assim, por causa da dependência recíproca entre facticidade e validade, o direito (especialmente o direito penal) deve satisfazer, ao mesmo tempo, a ambas condições. Por conseguinte, é necessária uma constante renovação do direito para que possa gerir seus eventuais déficits que, no momento, é de legitimidade, consoante identificaram os criminólogos críticos, na discussão feita a seguir. 1.2 O déficit de legitimidade da lei penal Na opinião da criminologia crítica — que muito contribuiu para uma análise questionadora do direito penal e seus fundamentos —, o paradigma punitivo atual encontra-se esgotado não só na sua eficácia prática, mas também na sua legitimidade moral (quanto ao direito de punir) e política (no tocante à definição dos eventos classificados como delitos). Segundo os críticos, este modelo lastreia-se em pressupostos tradicionais bastante contestáveis, como o de que há pessoas más, merecedoras da pena de prisão. Isso ocorre em razão de uma norma oriunda do consenso coletivo, ou seja, a lei penal. Quanto à legitimidade do direito de punir, temos que a aplicação puramente do castigo e da punição sobre o condenado é oriunda da tradição que confere autoridade religiosa e moral ao soberano. Considera Warat (2001, p. 170) que o direito moderno ostentou esta autoridade, legislando os significados e os padrões de justiça em nome de uma suposta ordem racional plena. Habermas (1997b, p. 23) critica esta visão, asseverando que o conceito de soberania, segundo o qual o Estado monopoliza os meios da aplicação legítima da força, traz em si uma ideia absolutista de concentração de poder, capaz de sobrepujar todos os demais poderes deste mundo”. Consoante o autor, o ideal é uma visão procedimentalista de exercício do poder que remete à ideia de soberania do povo e “chama a atenção para condições sociais marginais, as quais possibilitam a auto-organização de uma comunidade jurídica” (HABERMAS, 1997b, p. 25). Aduz Beristain (2000, p. 59) que “passamos da cultura mágica à cultura mítica e depois ao homem racional, onde permanecemos estancados, ancorados, há muitos séculos”. O atual paradigma punitivo, afirma o professor espanhol (2000, p. 176), “padece de múltiplos anacronismos que devem ser rejeitados, como o seu crasso maniqueísmo, sua excessiva abstração filosófica, seu casamento com a moral religiosa, seu falso pressuposto de que toda a sociedade está de acordo com o Estado, com a classe dominante, etc. Esquece a diversidade de cosmovisões que convivem na sociedade e merecem seu amplo respeito”. No tocante ao segundo tipo de legitimidade (da criminalização ou da definição dos eventos classificados como delitos), a lei penal declara certos tipos de conduta como erradas e exige que todos os cidadãos acatem os seus decretos. Entretanto, tal legitimidade tem sido contestada em face não só da ausência de um consenso sobre os valores por ela afirmados, mas porque suas determinações geralmente revelam a imposição de princípios próprios de cidadãos mais favorecidos socialmente ou exercentes de algum poder 3 . Neste sentido, assevera Ferrajoli (2010, p. 18) que o direito penal constituiria, em verdade, uma técnica de controle social, conforme várias orientações — autoritárias, idealistas, ético-estatais, positivistas, irracionais, espirituais, correcionais ou também puramente tecnicistas e pragmáticas — que formam o fundo filosófico da cultura penal dominante 4 . Maria Lúcia Karam (2004, p 73) 5 argumenta que crimes são meras criações da lei penal, através da seleção de determinadas condutas conflituosas ou socialmente negativas, que, por intervenção da lei penal, recebem esta denominação. O que é crime em um determinado lugar, pode não ser em outro; o que hoje é crime, amanhã poderá não ser. Quanto a este aspecto — de que o que é crime em lugar pode não ser em outro - é exemplar a descriminalização do uso de drogas para uso recreativo, recentemente admitida nos estados americanos de Washington e Colorado, num país conhecido por estar há mais de quarenta anos em “guerra contra as drogas”. 1.3 O uso político da sanção penal para excluir: uma visão agnóstica da pena Para a criminologia crítica, o discurso jurídico define o crime como realidade ontológica pré-constituída e apresenta o sistema de justiça criminal 6 como instituição neutra, que realiza uma atividade imparcial. Mas, em verdade, de acordo com esta escola, há uma criminalização desigual dos fatos (uso político da sanção penal) se concentrando nas drogas e na área patrimonial, por exemplo, e não nos crimes contra a economia, a ordem tributária, meio ambiente etc. 7 O sistema de justiça, por seu turno, funcionaria como instituição que transforma o cidadão em “criminoso”, segundo o alvedrio dos operadores do direito, “repletos de preconceitos, estereótipos, traumas e outras idiossincrasias pessoais” (CIRINO DOS SANTOS, 2013b, p. 2). Ele serviria, antes de tudo, para diferenciar e administrar os conflitos existentes na sociedade, taxando-os de “criminosos” (BARATTA, 1987, p. 628). Em perspectiva idêntica, acrescenta Louk Hulsman (2003, p. 195): somos inclinados a considerar “eventos criminais” como eventos excepcionais que diferem de forma importante de outros eventos que não são definidos como criminais […]. Criminosos seriam — nesta visão — uma categoria especial de pessoas, e a natureza excepcional da condutacriminal e/ou do criminoso justificam a natureza especial da reação contra eles. Ainda acerca da incoerência e do uso político da sanção penal, Alessandro Baratta (1987, p. 19) define o sistema criminal como um “aglomerado arbitrário de objetos heterogêneos” (comportamentos puníveis), que não têm em comum outro elemento senão o de estarem sujeitos a respostas punitivas, em razão de uma definição completamente artificial, resultante de uma decisão humana modificável. A fronteira entre o crime e outras ações prejudiciais ao homem é artificial e está constantemente sujeita a mudanças. Afinal, os crimes não são atitudes necessariamente diferentes de outras ações pelas quais as pessoas prejudicam as outras. Louk Hulsman (1993, p. 64) exemplifica a afirmativa do colega italiano: “um belo dia, o poder político para de caçar as bruxas e aí não existem mais bruxas. (…). É a lei que diz onde está o crime; é a lei que cria o ‘criminoso’”. Nessa mesma esteira, Alessandro Baratta questiona: O que mais teriam em comum “delitos” tão diferentes entre si, como, por exemplo, o aborto e o funcionamento ilegal das instituições do Estado, a injúria entre particulares e a grande criminalidade organizada, os pequenos furtos e as grandes infrações ecológicas, as calúnias e os atentados contra a saúde no trabalho industrial, além do fato de estarem sujeitos a uma resposta punitiva? Como se pode aceitar a pretensão de um sistema, como o penal, de responder, com os mesmos instrumentos e os mesmos procedimentos, a conflitos de tão vasta heterogeneidade? 8 (BARATTA, 1987, p. 642). A constatação de diferentes condutas a serem punidas com o mesmo remédio — a pena — refuta, portanto, a natureza ontológica do crime ou do ofensor. Assim, a seleção de condutas como criminosas encontraria muito mais uma justificativa política do que orgânica, uma manifestação de poder do Estado. Nas palavras de Maria Lúcia Karam (2004, p. 82), “a pena, na realidade, só se explica — e só pode se explicar — em sua função simbólica de manifestação de poder e em sua finalidade não explicitada de manutenção e reprodução deste poder”. A mesma lógica é identificada por Louk Hulsman (2003, p. 191), que não considera “a justiça criminal como um sistema que distribui a punição, mas como um sistema que usa a linguagem da punição de uma maneira que esconde os reais processos que acontecem e gera apoio através da apresentação incorreta destes processos como semelhantes a processos conhecidos e aceitos pelo público”. Os valores dignos de proteção — assim escolhidos por quem tem o poder para tanto — são refletidos não só na definição dos tipos penais, como na realidade carcerária e nas propostas de política criminal e atuação legislativa brasileira. Conforme Fabiana Costa Barreto 9 (SENADO FEDERAL, 2013b, p. 1), apenas nove tipos de crimes, na maioria patrimoniais, são responsáveis por praticamente 80% da população carcerária atual do país, entre eles: roubo (simples e qualificado), tráfico de entorpecentes, furto etc. 10 A elaboração do projeto de reforma do Código Penal também é exemplo desta seleção. Na proposta, foram descriminalizadas condutas geralmente perpetráveis pelas categorias privilegiadas, tais como a violação de direito autoral (quando se tratar de cópia de obra, som ou vídeo de um só exemplar, para uso privado); a eutanásia e o aborto no caso de feto anencéfalo 11 . Houve, além disso, um endurecimento da lei com relação aos crimes praticados mais comumente pela população, como jogos de azar (transformando em crime a atual contravenção penal do “jogo do bicho”); crimes contra a honra (que tiveram a sua pena máxima dobrada) e a criminalização da violação de comunicação eletrônica ou intrusão informática (inspirada pela divulgação não autorizada de fotos de uma famosa atriz televisiva). Dificultou-se, também, a progressão de pena em casos com violência e grave ameaça ou lesão social, como no caso dos constantes “arrastões” em restaurantes de São Paulo, que fez com que o movimento nos estabelecimentos diminuísse, motivando as alterações, segundo declarou o relator da comissão 12 . Edson Passetti 13 identifica certa seletividade em relação aos crimes patrimoniais, asseverando que ela “dimensiona os privilégios, segrega os demais como perigosos e os associa [os crimes] aos mais pobres” (2004, p. 26). Desse modo, a igualdade perante a lei e a segurança jurídica do cidadão vulnerável “desmoronam diante de sua clientela restrita a um limitado número de violadores da lei penal” (KARAM, 2004, p. 93). Consoante essa autora, uma intervenção assim seleta é, por isso mesmo, injusta, pois faz com que a reação punitiva se dirija, necessária e prioritariamente, aos membros das classes subalternas, hipossuficientes e alijados de poder (KARAM, 2004, p. 93) 14 . Esta seletividade não é só injusta como também compromete a legitimidade do direito penal, construído para escudar o oposto desta realidade, ou seja, protege os mais fracos contra os mais fortes. A esse respeito, observa Tatiana Viggiani Bicudo: Entendemos que um direito penal legítimo é aquele que representa um limite máximo ao poder puntivo do Estado. Dito em outras palavras, é o Direito que se estrutura como a garantia dos mais fracos contra os mais fortes, quer seja o mais forte representado pelos poderes públicos quer seja pelos particulares (BICUDO, 2010, p. 184). O desenvolvimento deste modelo penalizador resultou na criação de uma sociedade de controle e reclusão caracterizada pelo encarceramento em massa de pessoas socialmente excluídas devido à criação de um complexo prisional- industrial composto por uma rede de funcionários e entidades (públicas e privadas) que sobrevivem por força da acusação, do policiamento, da punição e da continuidade do castigo sob forma diversa (estimagizadora), mesmo após o término do cumprimento da pena (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 189). A esse respeito, observa Alessandro Baratta (2002, p. 186) que a sociedade era quem necessitaria de reforma: A verdadeira reeducação deveria começar pela sociedade, antes que pelo condenado: antes de querer modificar os excluídos, é preciso modificar a sociedade excludente, atingindo assim, a raiz do mecanismo de exclusão. Sobre uma eventual imposição da pena a um ou outro membro das classes dominantes ou a algum condenado “enriquecido”, Maria Lúcia Karam (2004, p. 94) considera que tal fato serviria tão-somente para legitimar o sistema penal e melhor ocultar o seu papel de dominação. Neste mesmo diapasão, Boaventura de Sousa Santos (1996, p. 33) considera que o combate à corrupção é apenas pontual e não sistêmico. O combate tópico à corrupção consiste na sua repressão seletiva, incidindo sobre alguns casos eleitos por razões de política judiciária. A sua investigação é particularmente fácil; porque contra eles há uma opinião forte a qual, se defraudada pela ausência de repressão, aprofunda a distância entre os cidadãos e a administração da justiça; porque, sendo exemplares, têm um elevado potencial de prevenção; porque a sua repressão tem baixos custos políticos 15 (SOUSA SANTOS, 1996, p. 33). Dessa forma, consoante o autor, um ou outro caso de repercussão seria selecionado para fins de repressão exemplar com o fim único de transmitr a ideia de que também se realiza o combate à “grande criminalidade”. Ferrajoli (2010, p. 196) salienta outro aspecto relacionado à legitimidade da lei penal: o seu custo. O autor não se refere apenas ao “custo da justiça” propriamente dito, mas também ao “custo das injustiças” inerentes ao funcionamento concreto de um sistema penal. Issoocorre porque, embora todos estejam sujeitos às leis penais, nem todos “criminosos” se veem submetidos ao processo e à pena. Muitos culpados subtraem-se ao julgamento e à condenação (“cifra da ineficiência”) ou, sendo inocentes, são obrigados a suportar um julgamento, o cárcere e o erro judiciário em razão da inevitável falibilidade do sistema penal (“cifra da injustiça” 16 ). Ambas as cifras são facetas do “custo da injustiça”, identificado por Ferrajoli. Para o professor florentino, ambas as cifras geram complicações, normalmente ignoradas quando se trata da justificação da pena e do direito penal. Se os custos da ineficiência são geralmente tolerados com base em doutrinas e ideologias de justiça, os custos da injustiça (impostos aos inocentes), na sua opinião, são injustificáveis (FERRAJOLI, 2010, p. 196). Em suma, por todos os motivos elencados é que os chamados “abolicionistas” — como Juarez Cirino dos Santos e Eugenio Raúl Zaffaroni — não reconhecem a legitimidade ou a justificação do direito penal. Louk Hulsman (2003, p. 198) acrescenta que “a justiça criminal não é “natural” e sua “construção” não pode ser legitimada. (…) a linguagem prevalecente sobre a justiça criminal tem de ser desconstruída e a justiça criminal aparecerá como um problema público em vez de uma solução para problemas públicos”. Os críticos abolicionistas defendem a supressão do direito penal, por sua total ausência de fundamento ético-político e transferem ao Estado o ônus de justificar suficientemente a utilização da pena, este “poderoso recurso de coação de que ele dispõe para limitar os direitos individuais com o propósito de assegurar a convivência pacífica” (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 471). Adiantam, outrossim, ser impossível essa justificativa, já que as supostas vantagens do sistema criminal são inferiores aos seus custos (como os de limitação da liberdade de ação para a população em geral, de sujeição a um processo por aqueles tidos como suspeitos e de punição dos condenados) (FERRAJOLI, 2010, p. 196). Os abolicionistas acusam o sistema de justiça criminal ter se tornado um arranjo de extremos, variando entre “prisões infamantes” e a “liberdade condicional ineficaz”, sem abrir a possibilidade de outra resposta mais eficiente e particularizada aos conflitos. Usando uma analogia médica, Jerome Miller (1989, p. 1) 17 diz que: seria como pedir a um médico uma solução para o alívio da dor de cabeça, sendo-lhe informado que há apenas dois tratamentos: uma aspirina ou uma lobotomia. Ou então ir ao médico com um braço quebrado ou com uma apendicite aguda e ele lhe oferecer os mesmos dois tratamentos disponíveis: uma aspirina ou uma lobotomia. Esta excrescência resulta do fato de que, como qualquer outra doença física ou social, o comportamento criminoso não é unitário. Da mesma forma que a enfermidade, se as opções de tratamento são limitadas, a probabilidade de sucesso também será. A conclusão é que as chances terapêuticas do ofensor 18 são tão maiores quanto mais opções existirem. No mesmo sentido, acrescenta Maíra Rocha Machado (2012, p. 1): Não há dúvida de que o baixíssimo grau de criatividade para se pensar sanções que sejam adequadas e eficientes para lidar com as mais diversas modalidades de crimes são as causas da obsolescência do sistema penal. Nos crimes que lesionam o patrimônio público, causa estranheza que o foco seja a prisão e não a recuperação do patrimônio público ou o aperfeiçoamento de mecanismos de controle e transparência para que tais práticas sejam evitadas. Além de tornar o sistema ineficiente, esse cenário contribui para a superlotação das prisões brasileiras. Temos quase meio milhão de pessoas presas e somos — em um ranking pouco louvável — o quarto país que mais encarcera no mundo (perdendo para EUA, China e Rússia). Neste ponto, a justiça restaurativa tem muito a oferecer, como soluções mais apropriadas, reparadoras, criativas, estabelecidas pelas próprias partes. Num acordo restaurativo, as soluções são lastreadas na diversidade, com alta sensibilidade para as condições locais e pessoais da ofensa e de suas circunstâncias. Uma vez cada conflito é único, sentenças padronizadas não seriam adequadas para sua solução, embora situações semelhantes anteriores possam servir como base para a construção de uma resposta. Neste diapasão entre minimalismo ou abolicionismo do direito penal, a justiça restaurativa, segundo a classificação de Luigi Ferrajoli (2010, p. 196), pode ser tida como uma doutrina minimalista, reformadora do sistema penal, na medida em que preceitua a redução da esfera de intervenção penal, ou, na mais ousada das suas versões, a abolição especifica da pena de reclusão em favor de sanções penais menos aflitivas. De todo modo, em quaisquer destas vertentes, a justiça restaurativa pode auxiliar numa resposta à crise de legitimidade do poder punitivo estatal em três aspectos: diminuindo a violência estatal representada pela pena (mediante a apresentação de alternativas para reparação, que não as penas excessivas e inutilmente aflitivas) 19 ; minimizando o impacto da seletividade das condutas criminosas (visto que confere voz e poder decisório aos excluídos, dando-lhes substancial acesso à justiça) e mitigando (ou eliminando) os “custos das injustiças”, na expressão de Ferrajoli, uma vez que o acordo restaurativo, com suas implicações, somente é firmado se contar com a voluntariedade e o consenso do autor do fato. Destarte, a justiça restaurativa apresenta o potencial de aplacar a “brutalidade” do sistema penal, tal como referido por Juarez Cirino dos Santos, na medida em que oportuniza ao ofensor ser, de fato, escutado; dispensa tratamento não só respeitoso, mas também digno e humano durante o procedimento. A justiça restaurativa também possui mecanismos que garantem que as obrigações constantes no acordo restaurativo não sejam desmedidas e injustas, já que necessitam do assentimento do ofensor, do seu advogado (se for o caso) e do Ministério Público e do juiz (GARCÍA- PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 367). A justiça restaurativa oferece, ainda, novas propostas finalísticas para a pena, como a de reparação e de comunicação ao ofensor da reprovabilidade de sua conduta (presente na chamada “vergonha reintegradora”). São propostas diversas dos tradicionais propósitos de retribuição ou prevenção da pena, as quais se encontram superadas, conforme justificado a seguir. 1.4 Críticas às tradicionais funções da pena: retribuição e prevenção 20 O artigo 59 do Código Penal estabelece, como finalidades da pena (na qual se inclui a de prisão), a retribuição e a prevenção do crime ao determinar ao juiz que aplique a pena “necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime”. Edmundo Oliveira explica que o caráter retributivo da pena não decorre de considerações de ordem moral, mas da própria natureza do mecanismo usado pelo Estado para ilidir a criminalidade e aduz: Até hoje não se inventou outro mecanismo diferente, até porque nenhum novo Pasteur descobriu a vacina contra o crime, ainda que grande parte do trabalho dos criminólogos consista em identificar as causas da criminalidade e apontar a terapêutica dos crimes (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 472). Ressalta o autor a função e a necessidade da pena a perpetuação do funcionamento deste sistema: sempre que houver a possibilidade de delitos, será então forçoso lançar mão da ameaça penal para evitar o crime e executá-la se ele não for evitado, a fim de que a pena não se desmoralize como promessa lírica que não se cumpre (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 472). Entretanto, criminólogos críticosapontam outro significado para a pena como retribuição. Consoante informam, retribuir pela imposição da pena consistiria simplesmente, em expiar ou compensar o mal injusto causado pelo crime, sem qualquer racionalidade utilitária, unicamente com base no conteúdo religioso de expiação, à semelhança retributiva da justiça divina (CIRINO DOS SANTOS, 2012b, p. 3) 21 . O autor faz referência à época em que se atribuía uma compreensão religiosa à justiça penal. Como o crime suscitava a cólera divina, ela só seria aplacada com o respectivo castigo, o que tornava necessária a expiação do culpado. No mesmo rumo, a crítica de Louk Hulsman (1993, p. 126 e 127): O “programa” de atribuição da culpa típico da justiça criminal é uma cópia verídica da doutrina do “último julgamento” e do “purgatório” desenvolvidas em certas variedades pela teologia crista ocidental. É marcado também pelas características da “centralidade” e do “totalitarismo específicas dessas doutrinas. Naturalmente, essas origens - essa “velha” racionalidade - estão escondidas por trás de novas palavras: “Deus” é substituído por “Lei”, “consenso do povo”, “purgatório” é substituído por “prisão” e, em certa medida, por “multa”. A retribuição, conforme descrevem, conceberia a pena como um fim em si mesmo, de forma absoluta, como um “castigo”, uma “reação” ou “vingança” pelo crime. Historicamente, a retribuição é associada ao princípio bíblico da “lei de talião” ou “da lei da vingança”. Sintetizada pela expressão “olho por olho, dente por dente”, este ponto de vista punitivo argumenta que o ofensor deve experimentar o mal que atraiu para si. Nilo Batista (2004, p. 111) assinala que esse sentimento de vingança, atualmente se encontra revertido pelo cognome “justiça”, exemplificado pelo jargão publicitário “não se cogita de vingança, e sim de justiça”. Ao mesmo tempo, assevera Beristain, esta expressão não oculta o sentido vindicativo e expiacionista do sistema penal (2000, p. 172). Ela estaria ainda radicada num suposto nexo entre culpa e punição, fundando-se na convicção de que é justo “transformar mal em mal” (FERRAJOLI, 2010, p. 236). As teorias de índole retributiva justificam a pena pelo seu valor axiológico, ou seja, a pena não seria “um meio” ou “um custo”, mas um dever-ser metajurídico, que possui em si seu próprio fundamento. A legitimidade da pena seria, portanto, apriorística, no sentido de que não é condicionada por finalidades extrapunitivas (como prevenir outros delitos, desestimular crimes na comunidade, reeducar o ofensor), senão como reação ao delito. Ferrajoli explica que as teorias retributivas contêm influência da ideia kantiana segundo a qual a pena é uma retribuição ética, que se justifica pelo valor moral da lei penal violada e pelo castigo que é imposto ao culpado 22 . Em sua obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, publicada em 1785, Kant argumentou que os seres humanos são agentes livres e racionais 23 , portanto, devem reconhecer suas ações e aceitar suas consequências. Desta forma, a pena como retribuição respeitaria a dignidade do ofensor, porque o trataria como agente responsável por seu ato (COELHO, 2012, p. 1). A justificação retributiva é chamada quia peccatum , ou seja, diz respeito ao passado. As razões utilitárias para a pena, por seu turno, a consideram e a justificam como meio para a prevenção de futuros delitos, isto é, são do tipo ne peccetur , ou seja, referem-se ao futuro (FERRAJOLI, 2010, p. 29 e 236). Maria Lúcia Karan (2004, p. 81) questiona a irracionalidade da pena retributiva: Por que razão o mal deveria ser compensado com outro mal de igual proporção: se o mal é algo que se deseja ver afastado ou evitado, por que se deveria reproduzi-lo, por que se deveria insistir nele com a pena? […] Decerto pareceria mais lógica a opção pela reparação do dano material ou moral causado pelo crime, especialmente porque aí se levariam em conta os interesses das pessoas diretamente afetadas. Zaffaroni (1991b, p. 210) complementa a crítica informando que o próprio nome “penalização” indica um sofrimento. Entretanto, o sofrimento existe em quase todas as penas da lei: “sofremos quando se embarga a casa, quando se cobram juros de mora, quando se anula um processo, quando se coloca em quarentena, quando se conduz à força para depor etc.” Nenhum desses sofrimentos, pontifica, é chamado de “castigo”, porque eles têm um sentido, isto é, servem para resolver um conflito. A pena, por outro lado, seria um sofrimento — “órfão de racionalidade” —, que há séculos procura um sentido e não pôde ser encontrado, simplesmente porque existe a não ser como manifestação do poder 24 . Mais modernamente, o ideal retribuicionista encontra-se preocupado com a proporcionalidade na aplicação desta “vingança”. Seus defensores visam, ademais, garantir que os ofensores recebam “a justa punição” para seus erros, de forma proporcional à gravidade de sua ofensa, como apregoa a teoria do just deserts 25 . Passos e Penso (2009, p. 81) destacam que a função da pena é, portanto, mal compreendida, pois até hoje a sociedade a associa à vingança, enxergando as medidas alternativas, por exemplo, como formas de impunidade: Ainda não conseguimos diferenciar vingança de punição e a sociedade não consegue visualizar resposta para o delito sem a pena privativa de liberdade, entendendo que as medidas e penas alternativas refletem a impunidade. Isso significa que estamos longe de compreender a punição como uma função de controle social, no qual os métodos punitivos têm sua especificidade e a sua validade, compreendendo a pena como um meio e não como fim. Aponta Beristain (2000, p. 184) que, realmente, a pena representou um progresso se comparado à vingança imediata e ilimitada (especialmente das sociedades primitivas). A pena procura evitar os excessos de uma reação incontrolada, introduzindo o processo no lugar da vingança. Não obstante, ele mantém a disposição primitiva de inimizade das vítimas (e de toda a sociedade) contra o ofensor. O processo penal não eliminaria essa relação adversarial, mas a ritualizaria. Ele conservaria o “castigo”, a inflição de dor ao ofensor e despreza as vítimas para que o Estado ocupe seu lugar 26 . A justiça restaurativa se opõe ao ideário meramente retributivo da pena e propõe um novo modelo de justiça no qual a resposta para o crime, ao invés de impor danos adicionais sobre o ofensor, procura restabelecer a situação violada. Ela introduz a ideia de um maior respeito pelo ofensor, resgata a vítima e propicia uma atmosfera de diálogo, visando ao entendimento sobre as formas de restauração do “malefício” causado, em substituição do tom de expiação e castigo retributivos (BERISTAIN, 2000, p. 184). Ao substituir a ideia de retribuição pela de reparação, a justiça restaurativa busca atitudes positivas, verdadeiramente úteis e de baixos custos sociais (a chamada “restituição criativa”), cujo foco está em ações futuras, ao invés de condutas do passado, sintonizando as exigências sociais e expectativas em torno de uma solução do crime (BERISTAIN, 2000, p. 185). 1.4.1 Comunicando a pena ao ofensor: a prevenção especial As doutrinas utilitaristas (ou relativas) são tradicionalmente divididas entre teorias da prevenção especial e da prevenção geral. A prevenção especial é dirigida ao ofensor e comunica-lhe as consequências da pena. É subdividida em duas categorias — negativa e positiva — conforme a sua forma de atuação. A negativa (ou de neutralização do ofensor) se verifica com a prisão do condenado e o seu confinamento no cárcere. A dimensão positiva é a de correção do condenado por meio da pena (ou “ortopedia
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