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Sumário
1. Agradecimento
2. prefácio
3. UM UNIVERSO EM EXPANSÃO: RAQUEL TIVERON ESTÁ
VOCACIONADA PARA SER A MELHOR JURISTA DA SUA
GERAÇÃO BRASILEIRA
4. INTRODUÇÃO
1. PARTE I
2. A CRISE
3. DO PARADIGMA
4. PUNITIVO
5. tudo o que é sólido
6. desmancha no ar?
7. CAPÍTULO I
8. O SISTEMA PENAL POSTO EM QUESTÃO crise de legitimidade da
pena de prisão?
1. 1.1 A tensão entre facticidade e validade no direito:a importância do reconhecimento da
legitimidade da lei penal
2. 1.2 O déficit de legitimidade da lei penal
3. 1.3 O uso político da sanção penal para excluir: uma visão agnóstica da pena
4. 1.4 Críticas às tradicionais funções da pena: retribuição e prevenção
5. 1.4.1 Comunicando a pena ao ofensor: a prevenção especial
6. 1.4.2 A ideia de prevenção dirigida à sociedade
7. 1.5 A cifra obscura da criminalidade
8. 1.6 Ineficácia dissuasória da pena de prisão
9. 1.7 Os números da eficácia invertida da prisão
9. CAPÍTULO II
10. OS DEPÓSITOS DE PRESOS COMO FATOR CRIMINÓGENOa morte
dos ideais de “ressocialização”?
1. 2.1 A prisão como fator criminógeno
2. 2.2 A realidade carcerária
3. 2.3 O pessimismo do nothing works
4. 2.4 O endurecimento via pena de morte
5. 2.5 Just deserts
6. 2.6 Poderia a pena de prisão ser abolida?
1. PARTE II
7. A EMERGÊNCIA DO PARADIGMA DA TRANSMODERNIDADE
11. da insurgência à assimilação da justiça restaurativa?
12. CAPÍTULO III
13. DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA DO DIREITO, A SOCIOLOGIA
JURÍDICA E A TEORIA POLÍTICAfundamentos plurais do novo
paradigma
1. 3.1 Contextualizando a revolução: a pós-modernidade
2. 3.1.1 A superação paradigmática rumo à transmodernidade
3. 3.1.2 Justiça restaurativa e transmodernidade
4. 3.2 O fundamento político da jurisconstrução: a democracia deliberativa
5. 3.2.1 A ampliação de atores para o debate na jurisconstrução
6. 3.2.2 Avaliando o grau de inclusão participativa e de deliberação democrática do novo
paradigma
7. 3.2.3 O enquadramento do modelo jurisdicional penal na teoria política democrática
contemporânea
8. 3.2.4 A democracia deliberativa
9. 3.2.5 A poliarquia
10. 3.2.6 A justiça restaurativa como forma de poliarquia diretamente deliberativa
11. 3.2.7 Críticas à democracia deliberativa
12. 3.3 Compreendendo a dinâmica do encontro restaurativo e as suas bases filosóficas
13. 3.3.1 A justiça restaurativa como esfera pública de deliberação
14. 3.3.2 Justiça restaurativa: um locus para o reconhecimento recíproco
15. 3.3.3 O impacto do encontro face a face segundo Lévinas
16. 3.3.4 O agir comunicativo habermasiano
17. 3.3.5 A dinâmica do círculo restaurativo
18. 3.3.5.1 A metodologia da CNV
19. 3.3.5.2 O caso do encontro entre um adolescente autor de “sequestro relâmpago” e sua
vítima, um policial
20. 3.3.5.3 O caso do encontro entre uma vítima idosa e o ladrão de sua residência
21. 3.4 Uma nova racionalidade para a pena: a função comunicativa
22. 3.4.1 A racionalidade comunicativa de Habermas
23. 3.4.2 A função comunicativa da pena
24. 3.4.3 As ponderações de Joel Feinberg
25. 3.4.4 Críticas e respostas à proposta comunicativa da pena
1. PARTE III
26. ONDE SE ENCONTRA O FUNDAMENTO DA VALIDADE DA JUSTIÇA
RESTAURATIVA?
14. A BUSCA DE SUA SUSTENTABILIDADE TEÓRICA
15. CAPÍTULO IV
16. DAS ESTRADAS LARGAS AOS BECOS SEM SAÍDAa vereda dos
movimentos criminológicos até a emergência restaurativa
1. 4.1 A justiça restaurativa na contramão do atavismo positivo
2. 4.2 Normalidade e funcionalidade do crime — o influxo das teorias sociológicas
3. 4.2.1 A apoteose do bem-estar e a frustração de status: uma contribuição da teoria da
anomia
4. 4.2.2 A ordem social como um mosaico de grupos (teorias subculturais)
5. 4.2.3 O crime como resultante das interações psicossociais do indivíduo
6. 4.2.4 As teorias do controle social
7. 4.2.5 Prevenção situacional do crime
8. 4.3 Labelling approach, interacionismo simbólico e construtivismo social
9. 4.4 Apontando as antinomias do sistema penal: o papel das teorias críticas
10. 4.4.1 A criminologia radical
11. 4.4.2 Neorrealismo de esquerda
12. 4.4.3 Minimalismo penal
13. 4.4.4 Garantismo
14. 4.4.5 Abolicionismo
15. 4.5 Entre pirâmides e círculos: a proposta da criminologia pacificadora
16. 4.5.1 A pirâmide de pacificação de Fuller
17. CAPÍTULO V
18. A DINÂMICA VITAL DA JUSTIÇA RESTAURATIVA princípios,
características, procedimentos, atores e apostas
1. 5.1 Os princípios da justiça restaurativa
2. 5.1.1 Um destaque para a voluntariedade
3. 5.2 Os atores no procedimento restaurativo
4. 5.2.1 Facilitadores
5. 5.2.2 O advogado: aliado ou opositor?
6. 5.2.3 Ofensores — uma nova visão do “inimigo”
1. 5.2.3.1 Uma observação necessária: a desumanização do ofensor e a mídia
2. 5.2.3.2 O caso da vítima de estupro que encarou seu ofensor
7. 5.2.4 Vítimas
8. 5.2.5 A relação entre ofensor e vítima
9. 5.2.6 Predisposição vitimária e níveis de vitimização
10. 5.2.7 Reaproriação dos conflitos ou retorno à vingança privada?
11. 5.2.8 A vitimização secundária
12. 5.3 O papel da comunidade na justiça restaurativa
13. 5.3.1 A janela da disciplina social
14. 5.3.2 A vergonha reintegradora
15. 5.3.3 Riscos do incremento do controle social pela justiça restaurativa
1. PARTE IV
16. A PRÁXIS
17. RESTAURATIVA
18. NO ORDENAMENTO
19. JURÍDICO BRASILEIRO
19. uma estranha no ninho?
20. CAPÍTULO VI
21. O DILEMA DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL: política de
governo ou política de estado?
1. 6.1 A experiência paulista de justiça restaurativa
2. 6.1.1 O diferencial em São Caetano do Sul: a estratégia de sensibilização de lideranças e
de “mudança de lentes” dos agentes públicos
3. 6.1.2 A evolução do projeto e a situação atual
4. 6.2 Justiça para o Século XXI em Porto Alegre
5. 6.2.1 A evolução do programa gaúcho
6. 6.3 Uma justiça para maiores no Distrito Federal
22. CAPÍTULO VII
23. EM BUSCA DE UM ESTATUTO LEGALconsolidando a justiça
restaurativa no ordenamento jurídico brasileiro
1. 7.1 O espaço legislativo para a edificação da justiça restaurativa no Brasil
2. 7.1.1 Na infanto-adolescência
3. 7.1.2 Nos juizados especiais criminais
4. 7.2 A compatibilização da justiça restaurativa com a lei brasileira
5. 7.2.1 O respeito aos direitos fundamentais dos acusados
6. 7.2.2 A obrigatoriedade da ação penal: mitos e verdades
7. 7.2.3 A mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal em outros países
8. 7.2.4 Limites da capacidade operacional do estado (ou o estado de ineficiência estatal)
9. 7.3 A construção de uma política pública de resolução de conflitos
10. 7.3.1 O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) e a lei do SINASE
11. 7.3.2 A política pública de tratamento adequadoaos conflitos do CNJ
12. 7.3.3 O Projeto de Lei nº 7006, de 2006
13. 7.4 O desafio de um novo papel para o Ministério Público brasileiro
14. 7.4.1 A participação ministerial na experiência comparada
15. 7.4.2 A nova identidade do Ministério Público brasileiro pós-88: indutor de política
criminal
16. 7.4.3 Considerações parciais
24. CAPÍTULO VIII
25. PESQUISA EMPÍRICA E ENCONTROS RESTAURATIVOS EM
DOIS CASOS DRAMÁTICOS a busca da dimensão humana em meio a
conflitos hediondos
1. 8.1 A justiça restaurativa em crimes graves
2. 8.2 Estudo comparativo — caso de estupro tratado na justiça restaurativa no DF e no
exterior
3. 8.2.1 Caso 1 — Estupro de vulnerável por três jovens, um deles menor de idade
4. 8.2.2 Caso 2 — Estupro de vulnerável entre irmãos
5. 8.2.3 Análise dos aspectos relevantes em cada situação
6. 8.3 A justiça restaurativa para crimes cometidos em contexto de violência doméstica
7. 8.4 Pesquisa de campo: comparação entre os graus de informação, comunicação e
reparação do sistema de justiça criminal e do programa de justiça restaurativa do DF
8. 8.4.1 Aspectos metodológicos da pesquisa de campo
1. 8.4.1.1 Objetivo geral
2. 8.4.1.2 Objetivos específicos
9. 8.4.2 Hipóteses testadas na pesquisa de campo
10. 8.4.3 Sujeitos, locais e instrumento de coleta de dados
11. 8.4.4 Metodologiade investigação e análise
12. 8.4.5 Contextualizando a pesquisa
1. 8.4.5.1 Histórico e peculiaridades das cidades pesquisadas
2. 8.4.5.2 Perfil dos entrevistados
13. 8.4.6 Resultados
14. 8.4.7 Outras considerações relevantes
1. 8.4.7.1 Descriminalização de condutas de menor potencial ofensivo
2. 8.4.7.2 Aplicação de programas restaurativos para delitos cometidos em contexto de
violência doméstica
3. 8.4.7.3 Uso abusivo de álcool ou drogas e a importância da integração da justiça
restaurativa com as políticas públicas de saúde e com a comunidade
15. 8.4.8 Conclusão
26. CONCLUSÕES
27. REFERÊNCIAS
AGRADECIMENTO
Uma tese de doutorado não é escrita e amadurecida durante quatro anos sem o apoio e a colaboração de
importantes pessoas. Quero registrar meu agradecimento e carinho especial:
A Deus, pelas bênçãos e pelas dificuldades permitidas, para que eu aprendesse a superá-las;
À minha mãe e ao meu pequeno anjinho, pois sei que juntos assistem ao coroamento do esforço que
vivenciaram comigo. Aquela, por mais tempo e este, durante sua breve passagem neste mundo;
Ao Álvaro e à Valentina, pelo amor incondicional, pela paciência e pela companhia nas longas
madrugadas;
Ao meu pai, pelo seu exemplo, pelo incentivo aos estudos e por todas as oportunidades que me
proporcionou;
Ao Júnior, pela ajuda com seu colossal conhecimento informático e generoso coração;
À Claudia, Dalilian e Luciene, pela sua dedicação à pequena Valentina, para que eu tivesse a
tranquilidade de estudar;
À Rosemari Barletta, pela companhia firme e permanente ao longo desses anos e pelo apoio
incondicional à confecção desta tese, cuja “gestação” vem acompanhando;
Ao meu orientador, Prof. Dr. Roberto Freitas Filho, pela confiança em mim depositada e por todos os
seus ensinamentos, como professor e como pessoa;
Ao amigo, mentor, filósofo, habitante eterno do meu coração, Prof. Dr. Rossini Corrêa, detentor de um
conhecimento monumental, sorriso aberto e amizade incondicional, pelo seu amparo nas horas de
desespero, pelo incentivo à pesquisa e à publicação e por sua eterna e sincera disponibilidade em ajudar;
Ao Prof. Dr. Bruno Amaral Machado, meu exemplo profissional, acadêmico e humano, que, mesmo
estando em um patamar de conhecimento muito acima dos mortais, não se furta a descer e iluminar com
seu brilho único aos que, como eu, lhe pedem socorro;
Aos meus professores do UniCEUB, na pessoa dos docentes Álvaro Ciarlini, Léa Ciarlini, Bruno
Amaral Machado e Luciana Musse, membros da minha banca de qualificação, pela disposição em
discutir comigo a pesquisa e dar um norte a ela;
Aos professores Josué Silva e René Mallet Raupp, profissionais excepcionais em suas áreas, sem cujo
conhecimento esta tese não seria possível da forma em que se encontra;
À Thays Braga, pesquisadora nata, que emprestou sua gentileza e simpatia ao trabalho de campo;
Ao Conselho Superior do MPDFT, pela confiança em mim depositada, concedendo-me licença para a
redação desta tese e, especialmente ao Prof. Dr. Rogério Schietti, que acreditou e encampou
pessoalmente este sonho;
Ao Dr. Weiss Webber e à Lúcia Helena Barbosa de Oliveira, pessoas e profissionais singulares, que
labutam diuturnamente para a humanização do sistema de justiça criminal e para a implementação da
Justiça Restaurativa;
Ao corpo de funcionários do UniCEUB, nas pessoas especialíssimas de Rosilene Croner Abreu e
Rosileide Oliveira Nunes, rosas na minha vida, que, com amizade e apoio, tornaram essa missão mais
leve;
Por último, e não por ser menos importante, à valorosa equipe da Justiça Restaurativa do TJDFT — nas
pessoas da Helena, do Manoel e da Bárbara, visto que acreditam na causa restaurativa e a vivenciam
inspirando todos que têm a sorte de cruzar os seus caminhos —, pelo crédito e pelo amplo e irrestrito
apoio para a confecção deste trabalho;
Sem a ajuda de todos vocês, amigos, esta tese não seria possível!
PREFÁCIO
UM UNIVERSO EM EXPANSÃO:
RAQUEL TIVERON ESTÁ VOCACIONADA PARA SER A
MELHOR JURISTA DA SUA GERAÇÃO BRASILEIRA
Rossini Corrêa 1
Um dos nós górdios da crise da modernidade e da construção, ainda
embrionária, da pós-modernidade, sem a mínima dúvida, se encontra na
dimensão institucional da Sociedade, na medida em que a crise do Estado
alcança uma ressonância quase universal, a perpassar as organizações sociais
de substrato urbano-industrial. A chamada Grande Sociedade, na tessitura
complexa de elementos que a definiram, seguramente encontrou em sua
caminhada estadual, em última instância, o ribombar da Revolução Francesa,
a experiência da Codificação do Direito e a mística, senão mistificação, da
Escola da Exegese.
Os clamores da Razão, retomados, no mínimo, desde o século XIII da
cristandade, por Santo Tomás de Aquino, na esteira do seu Mestre de
Pensamento, Alberto da Saxônia, que se tornaria, em Paris, Alberto Magno,
por ser considerado ali o maior sábio de todos os tempos e um preceptor
apoteótico em sua Universidade e se transformaria, na Igreja, Santo Alberto
Magno, em virtude da proclamação dos elevados serviços que o alçaram,
também, ao reconhecimento como Doutor e à sua proclamação como
padroeiro dos cientistas, não cessaram de avançar.
O Renascimento recepcionou o espírito do racionalismo medieval, passando,
entretanto, a cultivá-lo, mais por ser portador da supostamente confiável
ordenação da razão, do que por ser aristotélico. Começará no Ressurgimento
o processo de desconstrução incessante do Estagirita, que foi merecedor da
melhor dedicação intelectual e acadêmica não apenas de Santo Alberto
Magno e de Santo Tomás de Aquino, em seu resgate e nos comentários
produzidos, desde que ambos já dialogavam com a tradição do aristotelismo
árabe.
Avicena era persa, nascido em 980 e Averróis era andaluz, nascido em 1126,
constituindo os dois estrelas polares de uma suntuosa tradição da Era de Ouro
do Islã, religião em expansão no mundo desde o seu nascimento, no século
VII depois de Cristo, do Oriente Médio para o Norte da África e deste para a
Península Ibérica, enquanto procurava a vastidão de outros horizontes da
geografia conhecida. Avicena e Averróis foram produtos do código ético do
Islã original, a que se reportou Roger Garaudy, quando os califas não eram do
petróleo, e trouxeram para a Península Ibérica, e desta para a Europa,
significativos valores civilizatórios. Ambos foram mestres de múltiplos
saberes, inclusive da teologia profunda e do direito canônico muçulmano,
irrigando a sua visão de mundo com o singular conhecimento da tradição
filosófica grega, inclusive, de Platão e de Aristóteles.
O trabalho de Santo Alberto Magno e Santo Tomás de Aquino foi, portanto,
de resgate, comentário e estabelecimento de Aristóteles no ambiente
universitário da Alemanha, da França e da Itália, cristianizando-o, ao passo
em que, do Estagirita ofereciam interpretação distinta da consagrada pelo
islamismo da tradição muçulmana, que levaria a cristandade da cavalaria à
sangrenta experiência das Doze Cruzadas, por hipótese, em busca do Reino
Cristão de Jerusalém.
O Renascimento começou todo um processo de racionalismo anti-aristotélico,
por combater a Igreja, o Papado e o Estado Religioso, cuja doutrina teológica
passou a repousar em fundamentos racionais advindos, de maneira mais
próxima, do Estagirita, cuja filosofia foi posta em auxilio de sua doutrina da
fé desde a cristianização de Sócrates, por São Justino e de Platão, por Santo
Agostinho. Confrontar a Igreja, o Papado e o Estado Religioso, com certeza,
passou a ser confundido com a negação de Aristóteles. Eis o Estagirita, em
consequência, contestado na política de Nicolau Maquiavel, na epistemologiade Francis Bacon e na filosofia social de Thomas Hobbes, entre muitos outros
que se seguiriam, em movimento que duraria meio milênio. O Ressurgimento
pretendeu retornar à cultura do paganismo, dela retirando a tradição
aristotélica, que se cristianizara na sociedade medieval contestada pela
modernidade em ascensão.
Os iluministas – cujo movimento intelectual foi maturado entre 1650 e 1750,
difundindo-se da Holanda para a França, a Itália, a Escócia, a Alemanha, a
Inglaterra e outras paragens da Europa – tornaram-se herdeiros desta tradição
racionalista advinda do Medievo e retomada no Renascimento, exaltando-a
como instrumento de reinvenção geométrica do mundo da vida. Neste
sentido, advogaram o advento de um Estado, de um Poder e de um Direito
segundo os ditames da Razão. Nos momentos mais radicais do movimento
iluminista, sem cuidados, a Razão foi o substituto simbólico de Deus.
Na esfera jurídica, o Direito dos iluministas foi reivindicado segundo a
perspectiva naturalista. Sucede que, uma vez conquistado o Poder pela
Revolução Francesa, caminhou-se na diretriz da consumação do Estado
Nacional Soberano, que começara a nascer entre os séculos XIII e XIV da
cristandade. A centralidade do Estado tornou-se a regra magna da era das
nações, conformando as ideias de soberania econômica e soberania política,
em um mundo de assimetrias entre nações e colônias e de embates imperiais
entre nações do epicentro da comunidade internacional.
As metrópoles do mundo estatizaram o Direito, positivando-o, ao revés de sua
reivindicação naturalista pretérita à Revolução Francesa e difundindo-o como
o máximo de engenharia jurídica racional, por meio da obra de codificador de
Napoleão Bonaparte. Aquilo a que denominei alhures de ‘Razão Legal’
tornou-se a regra redutora da experiência jurídica, cujo positivismo repudiou,
em seu monismo estatista, todos os pluralismos jurisprudentes, para restringir
o Direito ao Estado, na reificação do Legalismo, do Tecnicismo e do
Formalismo, em Norma Geral que pretendeu responder a toda a complexa e
variegada experiência de vida social, no suposto de que dispunha de
previsibilidade e de completitude suficientes para equacioná-la em sua
totalidade.
Nada mais falacioso. De mim para mim, sonhando com o reverso, de um
Direito que, transfigurado, servisse de energia de transfiguração da vida
social, emancipando-a de maneira solidaria, escrevi em determinado tempo:
‘Da ampliação das referidas experiências dar-se-á a ponte para o futuro, em
que poderão sobreviver os julgamentos por Tribunal, mas excelerão a
negociação, a conciliação, a facilitação, a mediação e a arbitragem, em um
mundo de luta por um Direito mais, muito mais comprometido com a
Sociedade do que com o Estado; com o Caso do que com a Lei; com a Justiça
do que com a Segurança; com as Pessoas do que com as Coisas; sabendo
sempre que, no Caso, o prioritário é a consideração das Pessoas, centelhas
humanas e divinas de dramas e de esperanças. Construí-lo é tarefa de todos.
Jamais valerá apenas ficar à espera, pois a tibieza é contrária à lição da
sabedoria e não transfigura em claridade as névoas cinzentas da existência’.
A ‘Razão Legal’ por mim criticada, impermeável ao magistério de Pietro
Verri, em Observações sobre a Tortura e de Cesare Beccaria, em Dos
Delitos e das Penas , duas magistrais figuras do iluminismo italiano,
programou de maneira diversa o sistema penal, em paradigma totalmente
fracassado, por sua incapacidade de restaurar para a sociabilidade aqueles
que, regra geral, a sociedade empurrou para a criminalidade. De onde o mal
formado como ‘gente’ do sistema prisional resultar deformado como ‘bicho’.
O sistema penal passou a ser, de maneira crescente na modernidade, a
consumação da tragédia.
Eis que a Tese Doutoral de Raquel Tiveron, ora servida em livro, intitulada
Justiça Restaurativa e Emergência da Cidadania na Dicção do Direito , a
qual constitui a melhor contribuição das letras jurídicas nacionais à relevante
temática em questão, vem significar, na melhor tradição dialética, a presença
da utopia no Direito à Esperança, na expectativa de que topias sejam possíveis
e tópicas conquistem substantivação, na dinâmica da construção global de um
novo modo de produção jurídica.
Trata-se de uma obra de estreia adulta de uma jurista destinada a ser única em
sua geração brasileira, se confirmar, como está desafiada a fazê-lo, com
constante trabalho, fidelidade criativa e renovada reflexão, a vocação de que é
portadora. Raquel Tiveron, desta maneira, acrescentará ao ser humano
excepcional que é, em sua aguda sensibilidade aberta à beleza e à alegria, os
horizontes múltiplos do trabalho intelectual fértil e diferenciado, no qual
inscreverá, decerto, as digitais de sua personalidade de jurista comprometida,
filosófica e sociologicamente, com os valores mais expressivos da tradição
humanística, em busca de um ser mais humano, em uma ordem social em que
o todo seja mais de todos.
Compreendendo o estrangulamento moral do direito de punir do Estado, cujo
sistema penal instituiu a decomposição do humano como mecanismo
vingativo de punição, Raquel Tiveron, que também visualiza o porquê de
outras camadas sociais conhecerem a impunidade, mergulha na Justiça
Restaurativa enquanto semente de um paradigma criminal alterativo, no qual
Ego e Alter , em dialogia reconstrutiva do humano perdido, possam em si
reinventar a humanidade possível. É a percepção de que a (re)humanização de
todos é um produto do Verbo, esta própria condição do humano, que o
humano define e o humano restaura, à margem da marcha do ordinário no
sistema judicial do Estado, no qual a Lei Geral se aplica, com cegueira do
espírito e à distancia de toda e qualquer pedagogia, à multiplicidade de casos
concretos, como guilhotina à procura de pescoços, sem sensibilidade humana
e moral frente às dores e dramas da vida do mundo desumano.
Raquel Tiveron contribui de maneira decisiva para o debate em torno de um
novo modo de produção do direito, receptivo ao concurso vertical da
Sociedade, como alternativa à máquina deficitária e em crise de legitimidade,
do Estado da era das nações. Do argumento teórico à análise empírica, o
presente livro conversa com o direito comparado e reclama não somente uma
mudança legislativa no Brasil, bem como uma renovação de mentalidade
compatível com as exigências da sociedade pós-moderna em formação,
exigente em todas as latitudes, sobretudo, nos domínios em que não há
tradição de devolução dos poderes aos geradores do poder.
É a situação do Brasil, este ‘acampamento apressado’ de que falava Gilberto
Amado, a tremular no fio da navalha, correndo o risco de ‘encontrar a
decadência sem ter experimentado a civilização’, como sublinhou Claude
Levi-Strauss. Brasil que não pode ser objeto de desistência, como reclamou a
altivez moral e política de Eduardo Campos, candidato à Presidência da
República vitimado em acidente aéreo, em 13 de agosto de 2014, mas que
deixou um legado de ética pública que fecundará os sonhos das novas
gerações, cuja bandeira será a de transformar o ‘acampamento apressado’ em
responsável civilização, capacitada, esta, a ser e a estar, aqui e no mundo, com
a soberana consciência de que gente tem que ser tratada como gente.
A Justiça Restaurativa versada por Raquel Tiveron foi delineada com mão de
mestra e compreendeu em profundidade o evolver do rio subterrâneo a
procurar a superfície, no compromisso com os seus mais relevantes aspectos –
‘gestão emancipatória e participativa do conflito, devoluçãoda sua
administração aos seus protagonistas, o empoderamento comunitário e
elevado conteúdo pedagógico’ – a construir uma legitimidade nova, para a
combalida arquitetura da justiça criminal.
Neste sentido, quando o polêmico Desembargador Estadual do Rio de
Janeiro, Siro Darlan, em entrevista à BBC Brasil, realiza a impugnação global
do papel que a Constituição da República Federativa do Brasil – Artigo 127 -
O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do
regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis –
reserva ao Ministério Público, o livro ora publicado encontra em Raquel
Tiveron alguém que o vincula, por meio da Justiça Restaurativa, ao visceral
compromisso democrático e aos caminhos desafiantes da transmodernidade.
Se se quiser, entretanto, na valorosa tessitura da Tese Doutoral Justiça
Restaurativa e Emergência da Cidadania na Dicção do Direito ,
construída por Raquel Tiveron como testemunho do seu excepcional talento,
encontrar um ponto central, a melhor resposta será a de que o seu centro está
em toda parte, segundo uma irrecusável exigência. Qual? A de que, em toda
parte deste todo orgânico, de maneira essencial, exista o compromisso
humano com um mundo mais humano, de interminável construção, mas de
necessária e infinita procura, a reconhecer o fundamento de validade da
magna aspiração: ‘Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão fartos ’ (Mateus 5.6).
Por ora, convido todos a saciarem a sua fome e a sua sede de justiça,
realimentando a constante busca, na bem-aventurança da leitura de Raquel
Tiveron e de sua decisiva obra Justiça Restaurativa e Emergência da
Cidadania na Dicção do Direito . Desfrutemos juntos deste banquete do
espírito que, segundo a nossa maior satisfação, já está soberanamente servido,
para que nunca mais se tenha por ‘satisfeita a Justiça’, por alguma ‘salutar
dureza’ das Leis, quando em gemidos não só a Natureza, mas a Consciência,
como no verso de Manuel Maria Barbosa du Bocage:
AO RÉU QUE FOI CONDUZIDO AO PATÍBULO
NO DIA 11 DE JULHO DE 1797
Ao crebro som do lúgubre instrumento,
Com tardo pé caminha o delinquente;
Um Deus consolador, um Deus clemente
Lhe inspira, lhe vigora o sofrimento:
Duro nó pelas mãos do algoz cruento
Estreitar-se no colo o réu já sente;
Multiplicada a morte anseia a mente,
Bate horror sobre horror no pensamento:
Olhos e ais dirigindo à Divindade,
Sobe, envolto nas sombras da tristeza,
Ao termo expiador da iniquidade:
Das leis se cumpre a salutar dureza:
Sai a alma dentre o véu da humanidade;
Folga a Justiça, e geme a Natureza’.
Brasília-DF, agosto de 2014.
1 Advogado e Professor em Brasília. Filósofo do Direito, Rossini Corrêa é autor de Saber Direito –
Tratado de Filosofia Jurídica; Jusfilosofia de Deus; Crítica da Razão Legal; O Liberalismo no
Brasil; e Teoria da Justiça no Antigo Testamento . Pertence à Academia Brasiliense de Letras. É
membro titular do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
INTRODUÇÃO
O objetivo do presente estudo é avaliar as condições para o desenvolvimento
da justiça restaurativa no Brasil como um novo paradigma de justiça criminal,
cujo propósito é orientar o trabalho dos órgãos desse sistema.
A primeira parte do estudo será dedicada à análise do paradigma punitivo
atual e o contexto fático, político, jurídico e filosófico da sua crise. Este
paradigma apresenta sinais de esgotamento que podem ser constatados na
realidade precária do sistema carcerário no qual ocorrem corriqueiras
violações dos direitos fundamentais dos apenados e dos princípios basilares
do Estado democrático de direito. Exemplo disso é o histórico “massacre do
Carandiru”, com a morte de 111 presos e o recente assassínio de 63 reclusos
no presídio maranhense de Pedrinhas.
Considerando a forma como são acautelados os apenados atualmente, a pena
de prisão tem sido aplicada mediante o sacrifício da dignidade humana, o que
compromete a legitimidade do sistema punitivo. O cárcere encontra-se
colapsado com a ocupação de mais de meio milhão de pessoas em trezentas
mil vagas e com outros trezentos e vinte mil mandados de prisão aguardando
cumprimento, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do
Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça
(InfoPen), explorados na primeira parte do trabalho.
Quanto ao modo de acautelar os presos, a realidade brasileira viola
frontalmente a normativa internacional, tornando quimérica a aplicação das
“Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Prisioneiros”, consoante
registrou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário.
O embrutecimento, a ociosidade, o abandono e as violações sexuais fazem
com que o recluso se torne outra vítima, gerando a chamada “síndrome de
vitimização do cárcere”. Esta síndrome causa revoltas e motins face à
impossibilidade de se executar as condenações sob a égide da legalidade e da
humanidade.
Os sintomas de debilidade do paradigma punitivo atual se manifestam não só
no campo fático, mas também no político e no jurídico. Quanto ao aspecto
político, denuncia a criminologia crítica que atesta que o direito penal vem
sendo utilizado como técnica de controle social em prol da criação de uma
sociedade de controle e exclusão. Nesta sociedade, são selecionadas, para
repressão severa (por meio de políticas endurecedoras do tipo “lei e ordem”),
as condutas conflituosas praticadas pelas camadas mais débeis e marginais da
sociedade (em geral, delitos patrimoniais).
Este uso de sanções penais é incoerente, já que condutas que causam
prejuízos muito maiores do que todos os roubos e furtos somados do país,
como a corrupção, são pontualmente punidos. Portanto, o uso político e
incoerente da sanção penal — que permanece, inclusive no projeto de reforma
do Código Penal — também contribui para o questionamento da legitimidade
do sistema.
Para o exame dessas questões, será utilizado o estudo bibliográfico de autores
da criminologia, em especial da corrente crítica, ou seja, autores como
Alessandro Baratta, Claus Roxin, Louk Hulsman, Lola Aniyar de Castro,
Eugenio Raúl Zaffaroni, Antonio Beristain e Juarez Cirino dos Santos.
Do ponto de vista jurídico, as finalidades atribuídas em lei à pena privativa de
liberdade — em especial as de prevenção do delito, de reinserção e de
“ressocialização” do condenado — são diuturnamente descumpridas. Ao
invés de desempenhar suas funções jurídicas declaradas, a pena de prisão
opera numa eficácia invertida, que, no lugar de reduzir a criminalidade,
incrementa-a, pois o contato com outros presos no cárcere propicia
oportunidades para mais práticas criminosas, à medida que consolida valores
delitivos, gerando a reincidência.
Desta forma, a seletividade das pessoas a serem encarceradas e a
impossibilidade de cumprimento dos fins prescritos pela lei incutem à pena
certa dose de injustiça, colocam em evidência a fragilidade dos fundamentos
do modelo punitivo e põem em xeque a sua legitimidade (SILVA et al, 2006,
p. 801 e KARAM, 2004, p. 93).
Seria impossível tratar de temas como pena e prisão sem perpassar pelos
aspectos filosóficos sobre o assunto, tendo em vista que o fundamento do
direito de punir, a natureza da pena, sua finalidade, o emprego da pena de
morte, por exemplo, a despeito do seu conteúdo marcadamente jurídico,
sempre foram objeto de reflexão por parte dos grandes filósofos da história.
Este assunto é tratado na primeira parte dotrabalho.
Compreender os fundamentos desta crise de legitimação do direito penal,
sejam fáticos, jurídicos, políticos ou filosóficos, pode auxiliar no
desenvolvimento de alternativas para se minimizar os efeitos negativos da
aplicação da pena e fazê-la mais consentânea com os princípios do Estado
democrático de direito. Neste trabalho, referimo-nos especificamente à
alternativa representada pela justiça restaurativa cujo formato e benefícios
serão evidenciados na segunda parte deste estudo.
Em resposta à crise paradigmática relatada, a justiça restaurativa se apresenta
como paradigma alternativo que oferece uma resposta ao crime inspirada nos
valores transmodernos de convergência, humanização e “outridade”. Ela
reconhece o crime como um conflito humano e propõe um modelo penal mais
reparador e integrador.
A justiça restaurativa promove uma intervenção tridimensional sobre o crime:
mediante a reparação dos danos patrimoniais e emocionais das vítimas, com a
responsabilização e reintegração do ofensor e pela participação comunitária
no processo.
Ela o faz por meio de um processo deliberativo que congrega os afetados por
um delito na construção de respostas para o tratamento do delito (a
“jurisconstrução”, anunciada por Warat). Estas características da justiça
restaurativa conferem a ela componentes democráticos significativos, como a
participação e a deliberação, características que a diferenciam do sistema
ordinário de justiça, e que podem contribuir para suprir o seu déficit de
legitimidade, fato que é identificado na primeira parte deste estudo.
A teoria política contemporânea (de Schumpeter, Robert Dahl, Joshua Cohen
e Charles Sabel) será usada a para enquadrar a justiça restaurativa e o sistema
de justiça criminal em modelos democráticos com o fito de avaliar qual deles
promoveria, em maior grau, os valores democráticos fundamentais.
A filosofia e os conceitos teóricos de Jürgen Habermas (esfera pública de
deliberação, agir comunicativo e racionalidade comunicativa), de Emmanuel
Lévinas (encontro face a face) e de Axel Honneth (reconhecimento
intersubjetivo recíproco) serão usados para se compreender a dinâmica
restaurativa e os seus fundamentos. Para tanto, será feita uma revisão
bibliográfica do referencial teórico mencionado sem o propósito de abordar
todas as dimensões da teoria completa de cada um deles.
Por ser um paradigma em construção e não possuir uma teoria própria, a
justiça restaurativa se vale do conhecimento das escolas criminológicas que a
antecederam para engendrar uma teoria de resposta ao crime, integrando
elementos de várias delas. Na terceira parte do trabalho, com auxílio do
método histórico, será percorrido, por meio de um estudo longitudinal, os
movimentos criminológicos que mais contribuem para a sua edificação.
Na quarta parte deste trabalho será avaliada a práxis restaurativa brasileira por
meio dos três programas pioneiros de justiça restaurativa iniciados em 2005
que já apresentam alguns resultados nestes nove anos de atividade. Optou-se
pelo corte metodológico para o exame de apenas estas três experiências
brasileiras por elas possuírem dados consolidados há mais tempo e por serem
as incentivadoras das demais. Conhecer estes programas, ao mesmo tempo
em que se dissemina a informação sobre o que tem sido feito, torna possível
se identificar onde estão as principais lacunas e ausências visando ao seu
aperfeiçoamento.
Procurar-se-á identificar seus méritos, a fim de testá-los por meio de hipóteses
junto à opinião dos usuários do sistema de justiça por meio de uma pesquisa
exploratória de campo. As respostas quantitativas serão trabalhadas
estatisticamente, a fim de confirmar ou refutar as hipóteses estabelecidas.
O estudo será completado qualitativamente com a análise comparativa de dois
casos de estupro tratados pela justiça restaurativa — um no Brasil e outro no
exterior — a fim de aprofundar a compreensão da dinâmica e dos princípios
restaurativos. Os casos foram selecionados metodologicamente, procurando-
se explorar a maior quantidade de variáveis possíveis em cada um deles, a
despeito das diferenças de contexto em que ocorreram. Considerou-se o fato
de se tratarem de crimes graves, de natureza sexual, cujas vítimas e ofensores
possuíam a mesma idade na data dos fatos (treze e dezoito anos,
respectivamente) e eram conhecidos entre si (no primeiro caso, irmãos; no
segundo, namorados). Dessa forma, tornar-se-á possível a sua avaliação com
profundidade e, ao mesmo tempo, a comparação para a extração de
conclusões válidas.
A partir do estudo dos casos, será possível visualizar as similaridades e as
diferenças das intervenções restaurativas no Brasil e no exterior, e também
perceber as vantagens que o tratamento restaurativo oferece. Afinal, tão
válido quanto o conhecimento teórico — constituído a partir de conceitos
gerais, efetuado na primeira parte da pesquisa — é o conhecimento indutivo,
obtido a partir da prática, como a reflexão ora proposta.
A justiça restaurativa, em especial sob a forma de mediação penal, já está
incorporada e em vigor no ordenamento jurídico de alguns países europeus e
americanos, independentemente do sistema de direito adotado e está
integrando ousados projetos de modernização da justiça.
Na Espanha, por exemplo, mecanismos de justiça restaurativa estão em
andamento em mais de quarenta tribunais. No Canadá, o Código Penal e a lei
menorista (“Youth Criminal Justice Act” — YCJA) foram alterados para
incluírem princípios restaurativos. Na Nova Zelândia, há a previsão expressa
no “Sentencing Act” de 2002 da obrigação de juízes de condenação
considerarem os processos restaurativos como atenuantes da pena. Estes
estatutos serão analisados na terceira parte do estudo, todavia sem a pretensão
de esgotar o seu exame ou de advogar a sua cópia para o ordenamento
jurídico brasileiro, em respeito às especificidades locais, tão valorizadas pela
justiça restaurativa.
Neste processo, destaca-se também, o necessário envolvimento do Ministério
Público em virtude da sua posição de titular da ação penal e da sua
conformação constitucional ampliada pela Constituição Federal de 1988 para
a concretização de suas promessas de cidadania. Na Alemanha e em Portugal,
por exemplo, a remessa de um processo para o acordo restaurativo fica a
cargo do Ministério Público. Neste último país, é o Ministério Público quem
designa o mediador para a causa. O mediador é escolhido dentre vários que
constam de uma lista de profissionais cadastrados no Ministério da Justiça.
No México, em 2008, procedeu-se a uma reforma constitucional na qual se
permitiu, entre outras medidas, a mediação penal no sistema de justiça
criminal. Esta reforma representou uma mudança paradigmática muito
significante, porque estatuiu, em sede constitucional, que as leis devem prever
meios alternativos de resolução de disputas inclusive em matéria penal, e que
o Ministério Público pode considerar critérios de oportunidade para o
exercício da ação penal.
Na Argentina, a mediação penal o ocorre no âmbito do próprio Ministério
Público (no “Gabinete de Resolução Alternativa de Litígios Departamentais”
do Ministério Público). A ele é textualmente atribuída a responsabilidade de
pacificar conflitos e buscar a reconciliação entre as partes, com respeito às
garantias constitucionais e neutralizando os prejuízos derivados do processo
penal.
No Brasil, por não haver uma legislação específica para regulamentá-la, a
prática restaurativa vem encontrando o seu caminho em espaços em que há
alguma margem legal para a justiça consensuada(como nos juizados especiais
criminais nos quais é autorizada uma solução conciliatória para o crime) ou
quando o fato não é tecnicamente considerado crime (para atos infracionais
praticados por adolescentes, inimputáveis penalmente) e, por isso, não são
passíveis tecnicamente de pena ou de persecução penal.
Entretanto, para se desenvolver e ser amplamente adotada no Brasil, a justiça
restaurativa precisa oferecer respostas a dois questionamentos: como
compatibilizá-la com alguns direitos e garantias individuais dos acusados (por
exemplo, o princípio da presunção de inocência ou da não-culpabilidade), já
que ela tem como pressuposto o reconhecimento e a responsabilização do
ofensor pela prática do delito? e Como compatibilizá-la com o princípio da
obrigatoriedade da ação penal pública pelo Ministério Público, quando
presentes indícios de autoria e materialidade do crime?
Isso porque a participação do ofensor no acordo restaurativo demanda, em
primeiro lugar, o reconhecimento da sua responsabilidade pelo ato. O
problema jurídico que se instaura a este respeito é o de que esta exigência
pode, aparentemente, contrastar com a garantia da presunção de inocência ou
da não-culpabilidade do acusado.
O princípio da obrigatoriedade da ação penal pública informa que o
Ministério Público está obrigado a oferecer a denúncia ao tomar
conhecimento de uma conduta típica e antijurídica. Assim, a atuação
ministerial será vinculada, ou seja, ele não pode optar por não denunciar em
tais casos, ainda que por razões de política criminal, tendo em vista a natureza
indisponível do interesse público.
Entretanto, a vigorar esse entendimento, quase não haverá espaço de consenso
para as partes deliberarem a respeito do tratamento para as consequências do
crime, o que impedirá o desenvolvimento da justiça restaurativa para abarcar
crimes mais graves. Dessa forma, os programas de justiça restaurativa
continuarão restritos aos conflitos de menor potencial ofensivo, no qual há
algum espaço legal reservado ao consenso das partes para a resolução do
conflito (nos crimes de ação penal privada ou pública condicionada à
representação do ofendido).
Portanto, viabilizar a aplicação da justiça restaurativa a crimes mais graves
parece ser a saída para que ela possa ser útil para auxiliar no
desencarceramento e nas mudanças dos números e da realidade prisional.
Estas são questões que necessitam ser enfrentadas — e o serão no decorrer
deste trabalho — para que a justiça restaurativa tenha chance de florescer,
abrindo uma chance para que as partes envolvidas no conflito como
protagonistas alcancem o consenso e decidam a melhor forma de solucionar
os seus litígios.
PARTE I
A CRISE
DO PARADIGMA
PUNITIVO
TUDO O QUE É SÓLIDO
DESMANCHA NO AR?
CAPÍTULO I
O SISTEMA PENAL POSTO EM QUESTÃO CRISE DE
LEGITIMIDADE DA PENA DE PRISÃO?
Na primeira parte do estudo, analisam-se os sinais de esgotamento do sistema
penal a fim de compreender o contexto fático da sua crise de legitimação.
Os sintomas da debilidade deste sistema se manifestam na realidade das
prisões, nas quais ocorrem corriqueiras violações dos direitos fundamentais
dos apenados, o que evidencia a fragilidade do modelo punitivo, desafiando a
sua legitimidade e a propositura de alternativas a ele.
O conceito habermasiano de tensão entre facticidade e validade do direito é
utilizado para explicar como a dissenção entre os fins programados da pena
(prevenir e “ressocializar 2 ”) e a realidade fática do seu cumprimento
(reincidência e geração de carreiras criminosas a partir da prisão) afetam a
legitimidade do direito penal e do próprio sistema de justiça criminal, pois
fazem com que se questione o uso da força e do poder de punir pelo Estado.
A criminologia crítica é empregada para demonstrar esta crise de legitimidade
e de eficiência do sistema, visto que as supostas vantagens anunciadas por ele
são muito inferiores aos custos arcados pela população sem que se dispense
aos reclusos um tratamento digno (o qual está bastante distante das “Regras
Mínimas da ONU para o Tratamento de Prisioneiros”), conforme constatou a
CPI do sistema carcerário.
Por fim, seria impossível tratar de temas como pena e prisão, sem perpassar
pelos aspectos filosóficos sobre o assunto, tendo em vista que o fundamento
do direito de punir, a natureza da pena, sua finalidade, o emprego da pena de
morte, por exemplo, a despeito do seu conteúdo marcadamente jurídico,
sempre foram objeto de reflexão por parte dos grandes filósofos da história.
1.1 A tensão entre facticidade e validade no direito:
a importância do reconhecimento da legitimidade
da lei penal
Antes de abordar a crise do sistema penal propriamente dita, é preciso
demonstrar a importância do reconhecimento da sua legitimidade pelos
cidadãos. Isso porque, a confiança na lei e a crença na sua legitimidade são
pressupostos de primeira ordem para o funcionamento exitoso do sistema e,
por outro lado, a deslegitimação contínua da lei penal pode contribuir para o
comprometimento deste modelo.
Habermas observa que, para existir socialmente, o direito deve satisfazer
simultaneamente a duas condições necessárias, ainda que aparentemente
contraditórias: a facticidade e a validade.
O direito preenche os requisitos da facticidade, ou seja, existe como um fato
social concreto, à medida que está positivado (incorporado ao mundo jurídico
por um ato legislativo) e por ser dotado de coerção (que lhe confere eficácia).
Essas características — positividade e coerção — tornam-no apto a ser
conhecido e obedecido pelos cidadãos (COELHO, 2013d, p. 1).
Além da facticidade, há a necessidade de se conferir validade ao direito, no
sentido de que seja reconhecido como “valioso” pelos cidadãos. Sobre a
importância do atributo da validade, assevera Habermas (1997a, p. 9):
o modo de operar de um sistema político, constituído pelo Estado de direito, não pode ser
descrito adequadamente, nem mesmo em nível empírico, quando não se leva em conta a
dimensão de validade do direito e a força legitimadora da gênese democrática do direito.
Para o reconhecimento da sua validade, o direito precisa preencher duas
condições: proteger a liberdade e possuir legitimidade. Na medida em que
protege as liberdades individuais, o direito é considerado caro aos cidadãos. O
seu reconhecimento como legítimo faz com que o direito obtenha adesão
racional por parte dos indivíduos (COELHO 2013d, p. 1).
Consoante Habermas, as duas características do direito — facticidade e a
validade — são complementares e essenciais, a despeito de se encontrarem
em constante tensão. Assim, a liberdade (condição de validade) limita a
coerção estatal (condição de facticidade), mas ao mesmo tempo a torna
aceitável. Já a coerção limita a liberdade, mas, por outro lado, a torna-a
possível. Nas palavras de Habermas (1997a, p. 49), “as normas do direito são,
ao mesmo tempo e sob aspectos diferentes, leis da coerção e leis da
liberdade.”
O mesmo se passa com a positividade e a legitimidade. Para Habermas, não
basta que as normas tenham sido positivadas para terem validade, pois o fato
de estarem positivadas quer dizer que elas existirem, no entanto podem ter
sido impostas, por exemplo, o que não as justificaria do ponto de vista da
legitimidade:
Só vale como direito aquilo que obtém força de direito através de procedimentos
juridicamente válidos — e que provisoriamente mantém força de direito, apesar da
possibilidade de derrogação, dada no direito. Porém, o sentido desta validade do direito
somente se explica através da referencia simultânea à sua validadesocial ou fática
(Geltung) e à sua validade ou legitimidade (Gültigkeit) (HABERMAS, 1997a, p. 50).
No mesmo sentido, o magistério de José Rossini Campos do Couto Corrêa
(2011, p. 175) salienta que existência e legitimidade são coisas distintas,
sendo que esta seria fruto do procedimento, como defende Habermas:
Não nasceu o Homem para o Estado, nasceu o Estado para o Homem. E mais: ninguém
autorizou o Estado, em seu nascedouro, a retirar a Vida do Homem. E ainda: a simples
existência do Estado e do Direito a ambos não legitima. O consentimento é consequência
do procedimento.
Observa André Coelho (2013d, p. 1) que, sem legitimidade, a positividade
consistiria em atos de decisão que não teriam por que serem obedecidos. Por
outro lado, sem positividade, a legitimidade é impossível:
A positividade implica possibilidade de tornar qualquer conteúdo em direito, ao passo que
a legitimidade obriga a que apenas certos conteúdos possam ser tornados direito. No
plano conceitual, novamente, ambos são opostos. Contudo, sem legitimidade, a
positividade consistiria em atos de decisão que não teriam por que ser obedecidos,
enquanto, sem positividade, os conteúdos que merecem ser obedecidos não teriam atos de
decisão com os quais se tornarem obrigatórios. Novamente, sem positividade, a
legitimidade é impossível, mas, sem legitimidade, a positividade é inaceitável (COELHO,
2013d, p. 1).
Consoante Habermas (1997a, p. 12), a legitimidade do Estado mede-se pelo
seu reconhecimento por parte dos que estão submetidos à sua autoridade. A
legitimidade é condição direta de validade, que faz com que o direito seja
reconhecido como merecedor de obediência (COELHO, 2013d, p. 1). Sobre a
importância da legitimidade, assevera Habermas:
A aceitação da ordem jurídica é distinta da aceitabilidade dos argumentos sobre os quais
ela apoia a sua pretensão de legitimidade […]. Os membros do direito têm que poder
supor que eles mesmos, numa formação livre da opinião e da vontade política,
autorizariam as regras às quais eles estão submetidos como destinatários […]. O direito
extrai a sua força muito mais da aliança que a positividade do direito estabelece com a
pretensão à legitimidade (HABERMAS, 1997a, p. 59-60).
Assim, por causa da dependência recíproca entre facticidade e validade, o
direito (especialmente o direito penal) deve satisfazer, ao mesmo tempo, a
ambas condições. Por conseguinte, é necessária uma constante renovação do
direito para que possa gerir seus eventuais déficits que, no momento, é de
legitimidade, consoante identificaram os criminólogos críticos, na discussão
feita a seguir.
1.2 O déficit de legitimidade da lei penal
Na opinião da criminologia crítica — que muito contribuiu para uma análise
questionadora do direito penal e seus fundamentos —, o paradigma punitivo
atual encontra-se esgotado não só na sua eficácia prática, mas também na sua
legitimidade moral (quanto ao direito de punir) e política (no tocante à
definição dos eventos classificados como delitos). Segundo os críticos, este
modelo lastreia-se em pressupostos tradicionais bastante contestáveis, como o
de que há pessoas más, merecedoras da pena de prisão. Isso ocorre em razão
de uma norma oriunda do consenso coletivo, ou seja, a lei penal.
Quanto à legitimidade do direito de punir, temos que a aplicação puramente
do castigo e da punição sobre o condenado é oriunda da tradição que confere
autoridade religiosa e moral ao soberano. Considera Warat (2001, p. 170) que
o direito moderno ostentou esta autoridade, legislando os significados e os
padrões de justiça em nome de uma suposta ordem racional plena.
Habermas (1997b, p. 23) critica esta visão, asseverando que o conceito de
soberania, segundo o qual o Estado monopoliza os meios da aplicação
legítima da força, traz em si uma ideia absolutista de concentração de poder,
capaz de sobrepujar todos os demais poderes deste mundo”. Consoante o
autor, o ideal é uma visão procedimentalista de exercício do poder que remete
à ideia de soberania do povo e “chama a atenção para condições sociais
marginais, as quais possibilitam a auto-organização de uma comunidade
jurídica” (HABERMAS, 1997b, p. 25).
Aduz Beristain (2000, p. 59) que “passamos da cultura mágica à cultura
mítica e depois ao homem racional, onde permanecemos estancados,
ancorados, há muitos séculos”. O atual paradigma punitivo, afirma o
professor espanhol (2000, p. 176), “padece de múltiplos anacronismos que
devem ser rejeitados, como o seu crasso maniqueísmo, sua excessiva
abstração filosófica, seu casamento com a moral religiosa, seu falso
pressuposto de que toda a sociedade está de acordo com o Estado, com a
classe dominante, etc. Esquece a diversidade de cosmovisões que convivem
na sociedade e merecem seu amplo respeito”.
No tocante ao segundo tipo de legitimidade (da criminalização ou da
definição dos eventos classificados como delitos), a lei penal declara certos
tipos de conduta como erradas e exige que todos os cidadãos acatem os seus
decretos. Entretanto, tal legitimidade tem sido contestada em face não só da
ausência de um consenso sobre os valores por ela afirmados, mas porque suas
determinações geralmente revelam a imposição de princípios próprios de
cidadãos mais favorecidos socialmente ou exercentes de algum poder 3 .
Neste sentido, assevera Ferrajoli (2010, p. 18) que o direito penal constituiria,
em verdade, uma técnica de controle social, conforme várias orientações —
autoritárias, idealistas, ético-estatais, positivistas, irracionais, espirituais,
correcionais ou também puramente tecnicistas e pragmáticas — que formam
o fundo filosófico da cultura penal dominante 4 .
Maria Lúcia Karam (2004, p 73) 5 argumenta que
crimes são meras criações da lei penal, através da seleção de determinadas condutas
conflituosas ou socialmente negativas, que, por intervenção da lei penal, recebem esta
denominação. O que é crime em um determinado lugar, pode não ser em outro; o que hoje
é crime, amanhã poderá não ser.
Quanto a este aspecto — de que o que é crime em lugar pode não ser em
outro - é exemplar a descriminalização do uso de drogas para uso recreativo,
recentemente admitida nos estados americanos de Washington e Colorado,
num país conhecido por estar há mais de quarenta anos em “guerra contra as
drogas”.
1.3 O uso político da sanção penal para excluir:
uma visão agnóstica da pena
Para a criminologia crítica, o discurso jurídico define o crime como realidade
ontológica pré-constituída e apresenta o sistema de justiça criminal 6 como
instituição neutra, que realiza uma atividade imparcial. Mas, em verdade, de
acordo com esta escola, há uma criminalização desigual dos fatos (uso
político da sanção penal) se concentrando nas drogas e na área patrimonial,
por exemplo, e não nos crimes contra a economia, a ordem tributária, meio
ambiente etc. 7
O sistema de justiça, por seu turno, funcionaria como instituição que
transforma o cidadão em “criminoso”, segundo o alvedrio dos operadores do
direito, “repletos de preconceitos, estereótipos, traumas e outras
idiossincrasias pessoais” (CIRINO DOS SANTOS, 2013b, p. 2). Ele serviria,
antes de tudo, para diferenciar e administrar os conflitos existentes na
sociedade, taxando-os de “criminosos” (BARATTA, 1987, p. 628). Em
perspectiva idêntica, acrescenta Louk Hulsman (2003, p. 195):
somos inclinados a considerar “eventos criminais” como eventos excepcionais que
diferem de forma importante de outros eventos que não são definidos como criminais […].
Criminosos seriam — nesta visão — uma categoria especial de pessoas, e a natureza
excepcional da condutacriminal e/ou do criminoso justificam a natureza especial da
reação contra eles.
Ainda acerca da incoerência e do uso político da sanção penal, Alessandro
Baratta (1987, p. 19) define o sistema criminal como um “aglomerado
arbitrário de objetos heterogêneos” (comportamentos puníveis), que não têm
em comum outro elemento senão o de estarem sujeitos a respostas punitivas,
em razão de uma definição completamente artificial, resultante de uma
decisão humana modificável. A fronteira entre o crime e outras ações
prejudiciais ao homem é artificial e está constantemente sujeita a mudanças.
Afinal, os crimes não são atitudes necessariamente diferentes de outras ações
pelas quais as pessoas prejudicam as outras.
Louk Hulsman (1993, p. 64) exemplifica a afirmativa do colega italiano: “um
belo dia, o poder político para de caçar as bruxas e aí não existem mais
bruxas. (…). É a lei que diz onde está o crime; é a lei que cria o ‘criminoso’”.
Nessa mesma esteira, Alessandro Baratta questiona:
O que mais teriam em comum “delitos” tão diferentes entre si, como, por exemplo, o
aborto e o funcionamento ilegal das instituições do Estado, a injúria entre particulares e a
grande criminalidade organizada, os pequenos furtos e as grandes infrações ecológicas,
as calúnias e os atentados contra a saúde no trabalho industrial, além do fato de estarem
sujeitos a uma resposta punitiva? Como se pode aceitar a pretensão de um sistema, como
o penal, de responder, com os mesmos instrumentos e os mesmos procedimentos, a
conflitos de tão vasta heterogeneidade? 8 (BARATTA, 1987, p. 642).
A constatação de diferentes condutas a serem punidas com o mesmo remédio
— a pena — refuta, portanto, a natureza ontológica do crime ou do ofensor.
Assim, a seleção de condutas como criminosas encontraria muito mais uma
justificativa política do que orgânica, uma manifestação de poder do Estado.
Nas palavras de Maria Lúcia Karam (2004, p. 82), “a pena, na realidade, só se
explica — e só pode se explicar — em sua função simbólica de manifestação
de poder e em sua finalidade não explicitada de manutenção e reprodução
deste poder”. A mesma lógica é identificada por Louk Hulsman (2003, p.
191), que não considera “a justiça criminal como um sistema que distribui a
punição, mas como um sistema que usa a linguagem da punição de uma
maneira que esconde os reais processos que acontecem e gera apoio através
da apresentação incorreta destes processos como semelhantes a processos
conhecidos e aceitos pelo público”.
Os valores dignos de proteção — assim escolhidos por quem tem o poder para
tanto — são refletidos não só na definição dos tipos penais, como na realidade
carcerária e nas propostas de política criminal e atuação legislativa brasileira.
Conforme Fabiana Costa Barreto 9 (SENADO FEDERAL, 2013b, p. 1), apenas
nove tipos de crimes, na maioria patrimoniais, são responsáveis por
praticamente 80% da população carcerária atual do país, entre eles: roubo
(simples e qualificado), tráfico de entorpecentes, furto etc. 10
A elaboração do projeto de reforma do Código Penal também é exemplo desta
seleção. Na proposta, foram descriminalizadas condutas geralmente
perpetráveis pelas categorias privilegiadas, tais como a violação de direito
autoral (quando se tratar de cópia de obra, som ou vídeo de um só exemplar,
para uso privado); a eutanásia e o aborto no caso de feto anencéfalo 11 . Houve,
além disso, um endurecimento da lei com relação aos crimes praticados mais
comumente pela população, como jogos de azar (transformando em crime a
atual contravenção penal do “jogo do bicho”); crimes contra a honra (que
tiveram a sua pena máxima dobrada) e a criminalização da violação de
comunicação eletrônica ou intrusão informática (inspirada pela divulgação
não autorizada de fotos de uma famosa atriz televisiva). Dificultou-se,
também, a progressão de pena em casos com violência e grave ameaça ou
lesão social, como no caso dos constantes “arrastões” em restaurantes de São
Paulo, que fez com que o movimento nos estabelecimentos diminuísse,
motivando as alterações, segundo declarou o relator da comissão 12 .
Edson Passetti 13 identifica certa seletividade em relação aos crimes
patrimoniais, asseverando que ela “dimensiona os privilégios, segrega os
demais como perigosos e os associa [os crimes] aos mais pobres” (2004, p.
26). Desse modo, a igualdade perante a lei e a segurança jurídica do cidadão
vulnerável “desmoronam diante de sua clientela restrita a um limitado número
de violadores da lei penal” (KARAM, 2004, p. 93). Consoante essa autora,
uma intervenção assim seleta é, por isso mesmo, injusta, pois faz com que a
reação punitiva se dirija, necessária e prioritariamente, aos membros das
classes subalternas, hipossuficientes e alijados de poder (KARAM, 2004, p.
93) 14 .
Esta seletividade não é só injusta como também compromete a legitimidade
do direito penal, construído para escudar o oposto desta realidade, ou seja,
protege os mais fracos contra os mais fortes. A esse respeito, observa Tatiana
Viggiani Bicudo:
Entendemos que um direito penal legítimo é aquele que representa um limite máximo ao
poder puntivo do Estado. Dito em outras palavras, é o Direito que se estrutura como a
garantia dos mais fracos contra os mais fortes, quer seja o mais forte representado pelos
poderes públicos quer seja pelos particulares (BICUDO, 2010, p. 184).
O desenvolvimento deste modelo penalizador resultou na criação de uma
sociedade de controle e reclusão caracterizada pelo encarceramento em massa
de pessoas socialmente excluídas devido à criação de um complexo prisional-
industrial composto por uma rede de funcionários e entidades (públicas e
privadas) que sobrevivem por força da acusação, do policiamento, da punição
e da continuidade do castigo sob forma diversa (estimagizadora), mesmo após
o término do cumprimento da pena (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 189).
A esse respeito, observa Alessandro Baratta (2002, p. 186) que a sociedade
era quem necessitaria de reforma:
A verdadeira reeducação deveria começar pela sociedade, antes que pelo condenado:
antes de querer modificar os excluídos, é preciso modificar a sociedade excludente,
atingindo assim, a raiz do mecanismo de exclusão.
Sobre uma eventual imposição da pena a um ou outro membro das classes
dominantes ou a algum condenado “enriquecido”, Maria Lúcia Karam (2004,
p. 94) considera que tal fato serviria tão-somente para legitimar o sistema
penal e melhor ocultar o seu papel de dominação. Neste mesmo diapasão,
Boaventura de Sousa Santos (1996, p. 33) considera que o combate à
corrupção é apenas pontual e não sistêmico. O combate tópico à corrupção
consiste na sua repressão seletiva, incidindo sobre alguns casos eleitos por
razões de política judiciária.
A sua investigação é particularmente fácil; porque contra eles há uma opinião forte a
qual, se defraudada pela ausência de repressão, aprofunda a distância entre os cidadãos e
a administração da justiça; porque, sendo exemplares, têm um elevado potencial de
prevenção; porque a sua repressão tem baixos custos políticos 15 (SOUSA SANTOS, 1996,
p. 33).
Dessa forma, consoante o autor, um ou outro caso de repercussão seria
selecionado para fins de repressão exemplar com o fim único de transmitr a
ideia de que também se realiza o combate à “grande criminalidade”.
Ferrajoli (2010, p. 196) salienta outro aspecto relacionado à legitimidade da
lei penal: o seu custo. O autor não se refere apenas ao “custo da justiça”
propriamente dito, mas também ao “custo das injustiças” inerentes ao
funcionamento concreto de um sistema penal. Issoocorre porque, embora
todos estejam sujeitos às leis penais, nem todos “criminosos” se veem
submetidos ao processo e à pena. Muitos culpados subtraem-se ao julgamento
e à condenação (“cifra da ineficiência”) ou, sendo inocentes, são obrigados a
suportar um julgamento, o cárcere e o erro judiciário em razão da inevitável
falibilidade do sistema penal (“cifra da injustiça” 16 ). Ambas as cifras são
facetas do “custo da injustiça”, identificado por Ferrajoli.
Para o professor florentino, ambas as cifras geram complicações,
normalmente ignoradas quando se trata da justificação da pena e do direito
penal. Se os custos da ineficiência são geralmente tolerados com base em
doutrinas e ideologias de justiça, os custos da injustiça (impostos aos
inocentes), na sua opinião, são injustificáveis (FERRAJOLI, 2010, p. 196).
Em suma, por todos os motivos elencados é que os chamados “abolicionistas”
— como Juarez Cirino dos Santos e Eugenio Raúl Zaffaroni — não
reconhecem a legitimidade ou a justificação do direito penal. Louk Hulsman
(2003, p. 198) acrescenta que “a justiça criminal não é “natural” e sua
“construção” não pode ser legitimada. (…) a linguagem prevalecente sobre a
justiça criminal tem de ser desconstruída e a justiça criminal aparecerá como
um problema público em vez de uma solução para problemas públicos”.
Os críticos abolicionistas defendem a supressão do direito penal, por sua total
ausência de fundamento ético-político e transferem ao Estado o ônus de
justificar suficientemente a utilização da pena, este “poderoso recurso de
coação de que ele dispõe para limitar os direitos individuais com o propósito
de assegurar a convivência pacífica” (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p.
471). Adiantam, outrossim, ser impossível essa justificativa, já que as
supostas vantagens do sistema criminal são inferiores aos seus custos (como
os de limitação da liberdade de ação para a população em geral, de sujeição a
um processo por aqueles tidos como suspeitos e de punição dos condenados)
(FERRAJOLI, 2010, p. 196).
Os abolicionistas acusam o sistema de justiça criminal ter se tornado um
arranjo de extremos, variando entre “prisões infamantes” e a “liberdade
condicional ineficaz”, sem abrir a possibilidade de outra resposta mais
eficiente e particularizada aos conflitos. Usando uma analogia médica, Jerome
Miller (1989, p. 1) 17 diz que:
seria como pedir a um médico uma solução para o alívio da dor de cabeça, sendo-lhe
informado que há apenas dois tratamentos: uma aspirina ou uma lobotomia. Ou então ir
ao médico com um braço quebrado ou com uma apendicite aguda e ele lhe oferecer os
mesmos dois tratamentos disponíveis: uma aspirina ou uma lobotomia.
Esta excrescência resulta do fato de que, como qualquer outra doença física
ou social, o comportamento criminoso não é unitário. Da mesma forma que a
enfermidade, se as opções de tratamento são limitadas, a probabilidade de
sucesso também será. A conclusão é que as chances terapêuticas do ofensor 18
são tão maiores quanto mais opções existirem.
No mesmo sentido, acrescenta Maíra Rocha Machado (2012, p. 1):
Não há dúvida de que o baixíssimo grau de criatividade para se pensar sanções que sejam
adequadas e eficientes para lidar com as mais diversas modalidades de crimes são as
causas da obsolescência do sistema penal. Nos crimes que lesionam o patrimônio público,
causa estranheza que o foco seja a prisão e não a recuperação do patrimônio público ou o
aperfeiçoamento de mecanismos de controle e transparência para que tais práticas sejam
evitadas.
Além de tornar o sistema ineficiente, esse cenário contribui para a
superlotação das prisões brasileiras. Temos quase meio milhão de pessoas
presas e somos — em um ranking pouco louvável — o quarto país que mais
encarcera no mundo (perdendo para EUA, China e Rússia).
Neste ponto, a justiça restaurativa tem muito a oferecer, como soluções mais
apropriadas, reparadoras, criativas, estabelecidas pelas próprias partes. Num
acordo restaurativo, as soluções são lastreadas na diversidade, com alta
sensibilidade para as condições locais e pessoais da ofensa e de suas
circunstâncias. Uma vez cada conflito é único, sentenças padronizadas não
seriam adequadas para sua solução, embora situações semelhantes anteriores
possam servir como base para a construção de uma resposta.
Neste diapasão entre minimalismo ou abolicionismo do direito penal, a justiça
restaurativa, segundo a classificação de Luigi Ferrajoli (2010, p. 196), pode
ser tida como uma doutrina minimalista, reformadora do sistema penal, na
medida em que preceitua a redução da esfera de intervenção penal, ou, na
mais ousada das suas versões, a abolição especifica da pena de reclusão em
favor de sanções penais menos aflitivas.
De todo modo, em quaisquer destas vertentes, a justiça restaurativa pode
auxiliar numa resposta à crise de legitimidade do poder punitivo estatal em
três aspectos: diminuindo a violência estatal representada pela pena (mediante
a apresentação de alternativas para reparação, que não as penas excessivas e
inutilmente aflitivas) 19 ; minimizando o impacto da seletividade das condutas
criminosas (visto que confere voz e poder decisório aos excluídos, dando-lhes
substancial acesso à justiça) e mitigando (ou eliminando) os “custos das
injustiças”, na expressão de Ferrajoli, uma vez que o acordo restaurativo, com
suas implicações, somente é firmado se contar com a voluntariedade e o
consenso do autor do fato.
Destarte, a justiça restaurativa apresenta o potencial de aplacar a
“brutalidade” do sistema penal, tal como referido por Juarez Cirino dos
Santos, na medida em que oportuniza ao ofensor ser, de fato, escutado;
dispensa tratamento não só respeitoso, mas também digno e humano durante
o procedimento. A justiça restaurativa também possui mecanismos que
garantem que as obrigações constantes no acordo restaurativo não sejam
desmedidas e injustas, já que necessitam do assentimento do ofensor, do seu
advogado (se for o caso) e do Ministério Público e do juiz (GARCÍA-
PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 367).
A justiça restaurativa oferece, ainda, novas propostas finalísticas para a pena,
como a de reparação e de comunicação ao ofensor da reprovabilidade de sua
conduta (presente na chamada “vergonha reintegradora”). São propostas
diversas dos tradicionais propósitos de retribuição ou prevenção da pena, as
quais se encontram superadas, conforme justificado a seguir.
1.4 Críticas às tradicionais funções da pena:
retribuição e prevenção 20
O artigo 59 do Código Penal estabelece, como finalidades da pena (na qual se
inclui a de prisão), a retribuição e a prevenção do crime ao determinar ao juiz
que aplique a pena “necessária e suficiente para reprovação e prevenção do
crime”.
Edmundo Oliveira explica que o caráter retributivo da pena não decorre de
considerações de ordem moral, mas da própria natureza do mecanismo usado
pelo Estado para ilidir a criminalidade e aduz:
Até hoje não se inventou outro mecanismo diferente, até porque nenhum novo Pasteur
descobriu a vacina contra o crime, ainda que grande parte do trabalho dos criminólogos
consista em identificar as causas da criminalidade e apontar a terapêutica dos crimes
(ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 472).
Ressalta o autor a função e a necessidade da pena a perpetuação do
funcionamento deste sistema:
sempre que houver a possibilidade de delitos, será então forçoso lançar mão da ameaça
penal para evitar o crime e executá-la se ele não for evitado, a fim de que a pena não se
desmoralize como promessa lírica que não se cumpre (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p.
472).
Entretanto, criminólogos críticosapontam outro significado para a pena como
retribuição. Consoante informam, retribuir pela imposição da pena consistiria
simplesmente, em expiar ou compensar o mal injusto causado pelo crime, sem
qualquer racionalidade utilitária, unicamente com base no conteúdo religioso
de expiação, à semelhança retributiva da justiça divina (CIRINO DOS
SANTOS, 2012b, p. 3) 21 .
O autor faz referência à época em que se atribuía uma compreensão religiosa
à justiça penal. Como o crime suscitava a cólera divina, ela só seria aplacada
com o respectivo castigo, o que tornava necessária a expiação do culpado.
No mesmo rumo, a crítica de Louk Hulsman (1993, p. 126 e 127):
O “programa” de atribuição da culpa típico da justiça criminal é uma cópia verídica da
doutrina do “último julgamento” e do “purgatório” desenvolvidas em certas variedades
pela teologia crista ocidental. É marcado também pelas características da “centralidade”
e do “totalitarismo específicas dessas doutrinas. Naturalmente, essas origens - essa
“velha” racionalidade - estão escondidas por trás de novas palavras: “Deus” é
substituído por “Lei”, “consenso do povo”, “purgatório” é substituído por “prisão” e,
em certa medida, por “multa”.
A retribuição, conforme descrevem, conceberia a pena como um fim em si
mesmo, de forma absoluta, como um “castigo”, uma “reação” ou “vingança”
pelo crime. Historicamente, a retribuição é associada ao princípio bíblico da
“lei de talião” ou “da lei da vingança”. Sintetizada pela expressão “olho por
olho, dente por dente”, este ponto de vista punitivo argumenta que o ofensor
deve experimentar o mal que atraiu para si.
Nilo Batista (2004, p. 111) assinala que esse sentimento de vingança,
atualmente se encontra revertido pelo cognome “justiça”, exemplificado pelo
jargão publicitário “não se cogita de vingança, e sim de justiça”. Ao mesmo
tempo, assevera Beristain, esta expressão não oculta o sentido vindicativo e
expiacionista do sistema penal (2000, p. 172). Ela estaria ainda radicada num
suposto nexo entre culpa e punição, fundando-se na convicção de que é justo
“transformar mal em mal” (FERRAJOLI, 2010, p. 236).
As teorias de índole retributiva justificam a pena pelo seu valor axiológico, ou
seja, a pena não seria “um meio” ou “um custo”, mas um dever-ser
metajurídico, que possui em si seu próprio fundamento. A legitimidade da
pena seria, portanto, apriorística, no sentido de que não é condicionada por
finalidades extrapunitivas (como prevenir outros delitos, desestimular crimes
na comunidade, reeducar o ofensor), senão como reação ao delito.
Ferrajoli explica que as teorias retributivas contêm influência da ideia
kantiana segundo a qual a pena é uma retribuição ética, que se justifica pelo
valor moral da lei penal violada e pelo castigo que é imposto ao culpado 22 . Em
sua obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, publicada em 1785,
Kant argumentou que os seres humanos são agentes livres e racionais 23 ,
portanto, devem reconhecer suas ações e aceitar suas consequências. Desta
forma, a pena como retribuição respeitaria a dignidade do ofensor, porque o
trataria como agente responsável por seu ato (COELHO, 2012, p. 1).
A justificação retributiva é chamada quia peccatum , ou seja, diz respeito ao
passado. As razões utilitárias para a pena, por seu turno, a consideram e a
justificam como meio para a prevenção de futuros delitos, isto é, são do tipo
ne peccetur , ou seja, referem-se ao futuro (FERRAJOLI, 2010, p. 29 e 236).
Maria Lúcia Karan (2004, p. 81) questiona a irracionalidade da pena
retributiva:
Por que razão o mal deveria ser compensado com outro mal de igual proporção: se o mal
é algo que se deseja ver afastado ou evitado, por que se deveria reproduzi-lo, por que se
deveria insistir nele com a pena? […] Decerto pareceria mais lógica a opção pela
reparação do dano material ou moral causado pelo crime, especialmente porque aí se
levariam em conta os interesses das pessoas diretamente afetadas.
Zaffaroni (1991b, p. 210) complementa a crítica informando que o próprio
nome “penalização” indica um sofrimento. Entretanto, o sofrimento existe em
quase todas as penas da lei: “sofremos quando se embarga a casa, quando se
cobram juros de mora, quando se anula um processo, quando se coloca em
quarentena, quando se conduz à força para depor etc.” Nenhum desses
sofrimentos, pontifica, é chamado de “castigo”, porque eles têm um sentido,
isto é, servem para resolver um conflito. A pena, por outro lado, seria um
sofrimento — “órfão de racionalidade” —, que há séculos procura um sentido
e não pôde ser encontrado, simplesmente porque existe a não ser como
manifestação do poder 24 .
Mais modernamente, o ideal retribuicionista encontra-se preocupado com a
proporcionalidade na aplicação desta “vingança”. Seus defensores visam,
ademais, garantir que os ofensores recebam “a justa punição” para seus erros,
de forma proporcional à gravidade de sua ofensa, como apregoa a teoria do
just deserts 25 .
Passos e Penso (2009, p. 81) destacam que a função da pena é, portanto, mal
compreendida, pois até hoje a sociedade a associa à vingança, enxergando as
medidas alternativas, por exemplo, como formas de impunidade:
Ainda não conseguimos diferenciar vingança de punição e a sociedade não consegue
visualizar resposta para o delito sem a pena privativa de liberdade, entendendo que as
medidas e penas alternativas refletem a impunidade. Isso significa que estamos longe de
compreender a punição como uma função de controle social, no qual os métodos punitivos
têm sua especificidade e a sua validade, compreendendo a pena como um meio e não
como fim.
Aponta Beristain (2000, p. 184) que, realmente, a pena representou um
progresso se comparado à vingança imediata e ilimitada (especialmente das
sociedades primitivas). A pena procura evitar os excessos de uma reação
incontrolada, introduzindo o processo no lugar da vingança. Não obstante, ele
mantém a disposição primitiva de inimizade das vítimas (e de toda a
sociedade) contra o ofensor. O processo penal não eliminaria essa relação
adversarial, mas a ritualizaria. Ele conservaria o “castigo”, a inflição de dor
ao ofensor e despreza as vítimas para que o Estado ocupe seu lugar 26 .
A justiça restaurativa se opõe ao ideário meramente retributivo da pena e
propõe um novo modelo de justiça no qual a resposta para o crime, ao invés
de impor danos adicionais sobre o ofensor, procura restabelecer a situação
violada. Ela introduz a ideia de um maior respeito pelo ofensor, resgata a
vítima e propicia uma atmosfera de diálogo, visando ao entendimento sobre
as formas de restauração do “malefício” causado, em substituição do tom de
expiação e castigo retributivos (BERISTAIN, 2000, p. 184).
Ao substituir a ideia de retribuição pela de reparação, a justiça restaurativa
busca atitudes positivas, verdadeiramente úteis e de baixos custos sociais (a
chamada “restituição criativa”), cujo foco está em ações futuras, ao invés de
condutas do passado, sintonizando as exigências sociais e expectativas em
torno de uma solução do crime (BERISTAIN, 2000, p. 185).
1.4.1 Comunicando a pena ao ofensor: a prevenção especial
As doutrinas utilitaristas (ou relativas) são tradicionalmente divididas entre
teorias da prevenção especial e da prevenção geral.
A prevenção especial é dirigida ao ofensor e comunica-lhe as consequências
da pena. É subdividida em duas categorias — negativa e positiva — conforme
a sua forma de atuação. A negativa (ou de neutralização do ofensor) se
verifica com a prisão do condenado e o seu confinamento no cárcere. A
dimensão positiva é a de correção do condenado por meio da pena (ou
“ortopediamoral do estabelecimento penitenciário”, no dizer de Juarez Cirino
dos Santos (2013c, p. 5)).
O ideal de prevenção especial negativa visa à proteção da sociedade contra o
ofensor e pressupõe que o condenado, ao longo do período em que cumpre a
pena de prisão, estaria neutralizado, ou seja, impedido de cometer novos
delitos por estar fora da circulação social.
Na prática, este efeito é contestado pelo fato de que, mesmo na prisão, o
condenado pode cometer alguns crimes simples — agressão a outro interno
ou a um agente penitenciário — ou complexos — comandar o crime
organizado. É certo que, de modo geral, as oportunidades para cometimento
de novos delitos são reduzidas, mas o contato com outros presos propicia, na
verdade, oportunidades para mais práticas criminosas após a liberação do
cárcere visto que, imerso em um ambiente corrompido, o detento estabelece
conexões com outros “delinquentes”, assimila novas técnicas criminais e
consolida valores delitivos (SIMÕES, 2010, p. 38).
Outra crítica feita ao uso da pena de prisão como forma de neutralização e
proteção da sociedade é a de que, considerando a forma como são acautelados
os reclusos atualmente, não se pode defender a pena mediante o sacrifício da
dignidade humana. A infamação dos seus cidadãos não poderia ser vista como
meio íntegro de defesa da sociedade (GALVÃO JÚNIOR, 2003, p. 2).
A prevenção especial positiva, por seu turno, presume a alteração dos valores
do ofensor por meio da punição (a chamada “reabilitação” ou “reforma”).
Com a prisão, imagina-se que o ofensor também seria demovido de cometer
crimes futuros, devido a sua experiência de suplício e à ameaça de ser punido
novamente, caso reincida (SIMÕES, 2010, p. 37-38). O campo de inferência
da prevenção especial positiva vai além: o condenado, após cumprir a pena, já
não cometeria crimes, não só porque teme a punição, mas porque estaria
convencido de que o comportamento criminoso é equivocado.
Segundo a criminologia crítica, o insucesso deste uso da pena é comprovado
pelos altos índices de reincidência e pela influência negativa da subcultura da
prisão sobre o condenado. O cumprimento da pena marca a entrada do
ofensor pela “porta giratória” das prisões, onde sempre volta a entrar,
marcando o início de uma carreira delitiva, na qual o crime prediz o próprio
crime, iniciando um círculo vicioso e consolidando a “profecia
autorrealizável” (self-fulfilling prophecy ) (MERTON, 1948, p. 196). Dessa
forma, é improvável que o encarceramento contribua para uma melhora do
interno, pois se encontra imerso na subcultura carcerária.
A crítica feita à pena como prevenção especial baseia-se no fato de que o
efeito de reabilitação pode ser alcançado também por meios não punitivos e,
quiçá com maior eficácia, como a justiça restaurativa, muito mais profunda,
abrangente e democrática (SIMÕES, 2010, p. 38).
Em primeiro lugar, o padrão preventivo ordinário implica uma intervenção
tardia no problema criminal (déficit etiológico), de forma reativa e não
preventiva, sem que possa impedi-lo ou solucioná-lo. Incide ainda sobre os
efeitos do crime e não sobre os conflitos propriamente ditos. Em segundo
lugar, revela um acentuado traço individualista e ideológico na seleção dos
seus destinatários e no desenho dos seus programas (déficit social) e, por fim,
concede um protagonismo desmedido às instâncias oficiais do sistema legal
(déficit comunitário) (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p.
356).
Prevenir o delito seria algo mais do que dissuadir o “infrator” potencial com a
ameaça do castigo. O conceito de prevenção não poderia se desvincular da
gênese do fenômeno criminal, isto é, de uma intervenção dinâmica e positiva
que neutralize suas origens. A mera dissuasão deixa essas causas intactas. No
lugar de compor conflitos, reprime-os, e eles adquirem um caráter mais grave
do que o próprio contexto originário (BARATTA, 1987, p. 628).
A prevenção, por conseguinte, deve ser contemplada numa perspectiva mais
ampliada, com a mobilização de todos os setores comunitários para enfrentar
solidariamente o problema do crime. Ademais, refrear o crime não interessa
exclusivamente aos poderes públicos e ao sistema legal. Interessa a todos.
Não é um corpo “estranho” alheio à sociedade, mas um problema que diz
respeito a ela (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 356).
1.4.2 A ideia de prevenção dirigida à sociedade
A prevenção geral, assim como a especial, apresenta uma dimensão positiva e
uma negativa, ambas direcionadas aos demais membros da sociedade. Sua
dimensão negativa reside no poder intimidador da pena, pelo qual o Estado
espera desestimular potenciais “infratores”, contendo impulsos criminosos da
população, com a ameaça do castigo 27 .
A prevenção geral negativa se vale da dimensão simbólica e apelativa da
pena, em especial da cominação de altas penas em abstrato 28 . Consoante esta
perspectiva, a pena seria essencial para reforçar as proibições, para indicar o
que é permitido e para mostrar aos cidadãos que a observância aos
mandamentos legais é absolutamente necessária. Segundo Zaffaroni e
Oliveira (2010, p. 471), “é a dosagem de vigor da pena que desperta na
consciência de cada um o efeito inibidor da norma penal imperativa”. A
prevenção equivaleria, portanto, à dissuasão mediante o efeito inibitório da
pena. No rigor e na severidade da pena é que estaria a suposta eficácia
preventiva do mecanismo intimidatório. Prevenção, dissuasão e intimidação,
nesta perspectiva, seriam termos correlatos (GARCÍA-PABLOS DE
MOLINA; GOMES, 2012, p. 360).
Consoante aponta Maria Lúcia Karam (2004, p. 79), “a história demonstra
que a função de prevenção geral negativa jamais funcionou. A ameaça,
mediante leis penais, não evita a formação de conflitos ou a prática das
condutas qualificadas como crimes”.
As razões para esse insucesso já foram identificadas por Beccaria, em 1764,
para quem o que importa não é a gravidade das penas, mas a rapidez
(imediatidade) com que são aplicadas. Para ele, o fundamental não é o rigor
do castigo, mas sua certeza ou infalibilidade 29 , ou seja, a pena que realmente
intimida é a que se executa, pronta e implacavelmente, de forma proporcional
ao delito e, cabe acrescentar, que seja percebida pela sociedade como justa e
merecida (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 362).
Edmundo Oliveira observa:
De que adianta a lei cominar penas gravíssimas, se certos delinquentes têm bons motivos
para achar que não as sofrerão? Reafirme-se: a força intimidativa das penas previstas em
lei reside na certeza da punição (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 473)
Thomas Mathiesen acrescenta que o insucesso das penas severas como
método de prevenção reside na própria brutalidade das penas. A mensagem é
claramente direcionada aos mais fracos e vulneráveis do sistema que, ao as
receberem, desfiam-nas ou a as desconsideram, cientes da impossibilidade da
sua execução:
Vocês podem perguntar: por que esses resultados? Deixe-me lembrar, resumidamente, que
a ineficiência preventiva da prisão se constitui em um problema de comunicação. Nesse
contexto, a punição é um modo pelo qual o Estado tenta comunicar uma mensagem,
especialmente a grupos particularmente vulneráveis na sociedade. Como um método de
comunicação, é extremamente rude. A própria mensagem é difícil de ser transmitida,
devido à incomensurabilidade da ação e da reação. A mensagem é filtrada e deturpada
durante processo e é confrontada com uma resposta cultural nos grupos que a
desconsidera, acabando por neutralizá-la (2003, p. 92).
A realidade e a doutrina criminológica têm demonstrado, portanto, o contrário
do que pregaa prevenção geral negativa, ou seja, tem mostrado que a pena
dura e cruel é de difícil execução prática e não intimida, o que torna o sistema
desacreditado.
O aspecto positivo da prevenção geral, por sua vez, informa que a execução
concreta da pena cumpriria a função de estabilizar as expectativas normativas
da comunidade bem como a de restabelecer a confiança no ordenamento
jurídico violado, numa perspectiva hegeliana.
Observa ainda Maria Lúcia Karam (2004, p. 80) que, de acordo com esse
ponto de vista, a pessoa do ofensor se converte em instrumento para uma ação
simbólica, cujos fins a ultrapassam:
Aqui, com clareza insofismável, aparece a figura do bode expiatório naquele que,
recebendo a pena, deve cumpri-la, seja para dissuadir os demais da prática do crime, seja
para exercitá-los no reconhecimento da norma e na fidelidade ao direito.
Aplicada dessa forma, a pena acaba por tornar o direito penal simbólico, ou
seja, o homem não seria o cerne de sua preocupação, mas mero objeto da
sanção penal, “portador de funções jurídico-penais”. Ou, como diria Foucault
(2008, p. 165), trata-se da mera sujeição “dos que são percebidos como
objetos e a objetivação dos que se sujeitam” à pena.
Nessa concepção, o direito penal não existiria para ser efetivo, mas teria
função meramente política de criar símbolos na psicologia popular,
produzindo efeitos úteis, como o de legitimar o poder político e o próprio
direito penal (CIRINO DOS SANTOS, 2013c, p. 3).
Na locução mais contundente de Louk Hulsman (2004, p. 36), a justiça
criminal não é
um sistema destinado a dispensar punições, mas sim um sistema que usa a linguagem da
punição de modo a esconder os reais processos em curso e produzir consenso através de
sua errônea apresentação, assimilando-os aos processos conhecidos e aceitos pelo
público.
Critica-se que a demonstração da validade da norma jurídica às custas de um
responsável seria uma variante do direito penal do inimigo de Günther
Jackobs 30 , que distingue cidadãos e inimigos, de acordo com a determinação
dos agentes de controle social. O outro é visto como um inimigo, ou seja,
perigoso, anormal, subversivo, pertencente a grupos ou classes tidos como
intoleráveis (PASSETTI, 2004, p. 21) 31 . Essa distinção assenta-se no
maniqueísmo simplista que divide as pessoas entre boas e más. Conforme
anota Maria Lúcia Karam (2004, p. 89), a intervenção do sistema penal
corresponde a um desejo irracional de castigo sobre esse ser “diferente”,
pertencente a uma espécie apartada do comum. Desejo que é prontamente
atendido.
A imposição da pena a um responsável pela prática de um crime também
exerce outra função: a de “absolvição” de todos os demais não selecionados
pelo sistema penal, que, assim, podem comodamente se autointitularem
“cidadãos de bem”, diferentes e contrapostos ao “criminoso”, ao
“delinquente”, ao mau (KARAM, 2004, p. 89).
Aos bons cidadãos, aplica-se o respeito a todos os direitos. Aos inimigos,
esses direitos costumam ser negados, o que vulnera o princípio de igualdade
perante a lei (CIRINO DOS SANTOS, 2012a, p. 12). Isso ocorre porque,
segundo Louk Hulsman (2004, p. 43), somos levados a considerar os “eventos
criminosos” como fatos excepcionais, ou seja, fatos que diferem
substancialmente de outros eventos não definidos como crimes. Assim, sob
tal ponto de vista, os ofensores tornam-se uma categoria especial de pessoas e
a natureza excepcional da conduta criminosa justifica a natureza especial da
reação feita contra eles.
Alessandro Baratta (1987, p. 11) lembra que, a despeito do “sacrifício
simbólico do condenado considerado como bode expiatório”, a maior parte
dos infratores da lei penal, em especial dos crimes mais graves, permanece
impune. Os reveses desta incongruência são ressaltados por Juarez Cirino dos
Santos (2013a, p. 4), o qual lembra que, se a punição do “criminoso” reforça a
fidelidade jurídica do povo e reduz a criminalidade, a não punição do
“infrator” reduz a confiança da população na austeridade do Direito,
ampliando a criminalidade.
Ironiza o autor, por fim, afirmando que, na verdade, a pena de prisão e todo o
arcabouço do sistema de justiça não falharam no cumprimento de suas
funções, apesar de não as terem cumprido com “absoluto sucesso histórico,
porque a gestão diferencial da criminalidade garante as desigualdades sociais
em poder e riqueza das sociedades fundadas na relação capital/trabalho
assalariado” (CIRINO DOS SANTOS, 2005b, p. 5) 32 .
1.5 A cifra obscura da criminalidade
Ao se tratar da impunidade, é de rigor se mencionar a chamada “cifra negra”
da criminalidade. A esse respeito, Lola Aniyar de Castro (1983, p. 67)
menciona a existência de três tipos de criminalidade: a legal, a aparente e a
real. A legal é a registrada nas estatísticas oficiais, restrita aos casos em que
houve condenação. A aparente ou judicializada refere-se a toda criminalidade
levada ao conhecimento dos órgãos de controle social — polícia, ministério
público, juízes etc. —, ainda que não apareça registrada nas estatísticas e a
real reporta-se à quantidade de delitos cometidos em determinado momento.
Pode-se observar que há diferença de volume entre as três categorias de
criminalidade, em especial a real, cuja extensão não é conhecida. Entre a
criminalidade real e a aparente (noticiada), há uma grande quantidade de
crimes que não são conhecidos. A criminalidade aparente é, segundo a
criminóloga venezuelana, tão-somente “uma mostra não representativa da
delinquência” (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 34). A diferença entre elas é
o que se denomina “cifra obscura”, “cifra negra” ou “delinquência oculta”
(ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 68).
O filtro mais importante da cifra obscura está nos primeiros níveis: do
descobrimento do fato, da atitude da vítima e da conduta da polícia. Muitos
fatos criminosos não são descobertos ou não são comunicados pela vítima por
alguns motivos: porque não é percebido por ela como fato criminoso (pode,
por exemplo, pensar que o objeto foi extraviado ao invés de subtraído);
porque ela julga o incidente sem importância; porque ela teme represálias ou
mesmo porque, ao comunicá-lo, teria que confessar um fato criminoso ou
desonroso de sua parte (por exemplo, sua própria torpeza num crime de
estelionato, o seu envolvimento com a prostituição, a frequência a um
ambiente mal-afamado, a lida com jogos ilícitos, em casos de extorsão);
porque ela foi ameaçada pelo ofensor para não denunciá-lo (com agressões
físicas, ameaças verbais ou atos de vandalismo); porque há envolvimento de
parentes ou amigos no crime (como no caso de delitos sexuais); por
desconfiança ou aversão à polícia (por acreditar que o crime não será
investigado ou solucionado devido à burocracia exigida nas delegacias);
porque sua comunidade é culturalmente contra denúncias; porque a
condenação do autor lhe resultaria mais despesas ou danos do que o
decorrente do próprio delito (por exemplo, vítimas de violência doméstica,
cujo agressor-provedor é preso); por simpatia ao acusado; para não ter que
testemunhar ou comparecer aos atos processuais; pela possibilidade de obter
reparação por outra via etc. (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 69-70) 33 .
Louk Hulsman (2004, p. 49) observa que estes e muitos outros fatos
criminosos são, portanto, intencionalmente tratados fora do sistema de justiça
criminal.
No tocante à contribuição da polícia para a cifra negra, esta pode ocorrer em
decorrência de desinteresse na apuração (quando não há vítimas
determinadas,como nos crimes relacionados às drogas); da incapacidade de
mobilização do efetivo; de incapacidade técnica para se desvendar o delito
(autoria desconhecida); devido a algum impedimento processual; pelo
desinteresse em não o descobrir ou não o perseguir em virtude de pressões do
poder etc. (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 70).
A esses fatores para a inércia policial, Sousa Santos acrescenta “o elevado
nível de estereotipização da criminalidade por parte das polícias de
investigação (a respeito dos crimes considerados mais importantes ou dos
criminosos considerados mais prováveis ou mais perigosos)”. Além disso,
poderia haver uma possível falta de vontade política para alargar o controle
social a outros domínios representa riscos para a instituição que os investiga
(SOUSA SANTOS, 1996, p. 693).
Consoante Lola Aniyar de Castro (1983, p. 68), a cifra negra diminui à
medida que aumentam a gravidade e a visibilidade do delito, isto é, ela seria
maior em crimes menos ostensivos, como aborto, furtos no comércio,
estelionato, roubo de veículos segurados etc.
Louk Hulsman (2004, p. 45) discorda da ideia de que a punição é
proporcional à gravidade do delito (o correspondente à ideia de que “isto é tão
grave que não se pode deixar impune”), pois, na prática, fatos com
consequências verdadeiramente desastrosas, como a limpeza étnica na
Iugoslávia e na África, quase sempre escapam da punição.
Na verdade, crimes cotidianos da realidade brasileira, como a corrupção,
produzem consequências mais graves do que a de vários roubos ou furtos
somados e permanecem fora da seara de apuração (a chamada “cifra
dourada”). Neste sentido, completa Versele (1979, p. 27):
Além da cifra negra dos delinquentes que escapa a toda detenção oficial, existe uma cifra
dourada de criminosos que detêm o poder político e que o exercem impunemente, lesando
os cidadãos e a coletividade em proveito de suas oligarquias, ou que dispõem de um poder
econômico que se desenvolve em detrimento da sociedade em seu conjunto.
Observa Seffair (2013, p. 10) que, curiosamente, em nosso país, “desviar
milhões de reais de recursos públicos geralmente não implica em outras
consequências jurídicas, senão ainda mais status político e admiração social”.
Por outro lado, a intervenção é diferente quando se trata de crimes praticados
pelas classes mais baixas:
Indivíduos desprovidos de melhor condição econômica, observam silenciosamente este
mau exemplo, se armam e se transformam em “inimigos da sociedade” ao assaltar outros
seres humanos ou traficar drogas ilícitas em busca de patrimônio a qualquer custo, sendo
punidos exemplarmente e jogados ao cárcere, sujeitos às condições impostas pelas facções
criminosas que comandam nossos presídios (SEFFAIR, 2013, p. 10).
No tocante à criminalidade legal (condenações) e à aparente (registrada), a
diferença entre elas também é considerável, visto que nem todos os casos que
chegam ao conhecimento das autoridades recebem sentença condenatória ao
final por diferentes razões (por falta de provas, desinteresse, falta de
diligência dos funcionários, falta de queixa-crime ou desistência desta, tráfico
de influência, porque não se encontrou o autor etc.) (ANIYAR DE CASTRO,
1983, p. 69). Além da deficiência na comunicação de crimes (que evidencia a
discrepância entre a criminalidade real e a aparente), o hiato entre a
criminalidade legal (condenações obtidas) e a aparente (crimes comunicados)
também pode estar relacionado à falta de equipamentos e de peritos em
número suficiente para a produção de provas confiáveis para lastrear uma
condenação (KAHN, 2012, p. 88). Neste espírito, aduz o sociólogo que “uma
investigação precária produz uma acusação frágil, que, por sua vez acarreta
lentidão judicial e incerteza quanto à condenação ou absolvição do indivíduo,
feita geralmente por falta de provas”.
Para se ter uma ideia, segundo dados do Conselho Nacional do Ministério
Público (CNMP) 34 , durante o ano de 2012, foram recebidos 3.294.394
inquéritos policiais e termos circunstanciados pelo Ministério Público de
todos os estados e do Distrito Federal (CNMP, 2013, p. 58-60). Destes,
258.519 foram arquivados no mesmo ano (aproximadamente, 9,3% do
número total). Também deste montante, 395.346 foram denunciados (cerca de
18,04% do total). A maior parte dos feitos (72,66%), por conseguinte, ainda
depende de alguma apuração policial para decidir sobre o seu desfecho.
A pesquisa criminológica para quantificação da cifra negra é bastante
complexa. Relata Louk Hulsman (2004, p. 49) que, inicialmente, para terem
uma ideia da frequência e da natureza de um crime, os criminólogos
trabalhavam com os “dados estatísticos” extraídos das atividades dos tribunais
penais. Entretanto, quando se descobriu que muitos fatos criminosos
comunicados à polícia nem sequer chegavam aos tribunais, estes cientistas
passaram a atentar mais para as estatísticas da polícia do que para as judiciais.
De acordo com o criminólogo holandês (HULSMAN, 2004, p. 49), há
algumas décadas, começaram a ser introduzidas as pesquisas de autoconfissão
e de vitimização para melhor apuração destes dados. Nas primeiras, pergunta-
se a pessoas selecionadas por amostragem qual a frequência em que
cometeram atos potencialmente criminosos, em um determinado período, e
quantas vezes, após o ato criminoso, se seguiu uma intervenção da justiça
criminal. Nas segundas, fazem-se perguntas sobre a ocorrência e as
consequências de um evento criminoso. Lola Aniyar de Castro (1983, p. 71)
ressalva que, ainda assim, essa metodologia apresenta algumas falhas, como
falta de colaboração do público (desabituado a pesquisas, enquetes, etc.); o
não preenchimento correto dos dados nos formulários; a existência de delitos
que não são confessáveis, nem sob promessa de anonimato e devido ao fato
de que as vítimas geralmente só recordam dos delitos mais graves e dos mais
recentes. Conclui Hulsman que, o que se sabe, até agora, é que a efetiva
criminalização é um fato raro e excepcional (2004, p. 49).
Observa o autor (HULSMAN, 2004, p. 50-52) que o fato de estes crimes não
serem noticiados não significa que não sejam cotidianamente tratados de
modo alternativo, ou seja, de forma não judicial. Estas condutas são
enfrentadas de vários modos, sobre os quais não temos muitas informações,
mas são relevantes para a determinação da legitimidade da justiça criminal.
Isso demonstra que a criminalização não é uma resposta específica aos
eventos, mas sim um modo específico de olhar para estes. Neste aspecto, a
abordagem restaurativa poderia funcionar como uma alternativa ao modo de
tratar tais fatos, em substituição à pena de prisão pura e simples.
Estima-se que a taxa nacional de registro de ocorrências (criminalidade
aparente) esteja em torno de trinta por cento do total de fatos considerados
criminosos (criminalidade real) (KAHN, 2012, p. 88). Boaventura de Sousa
Santos considera esta discrepância de 70% entre o registro da criminalidade
aparente e a real (cifra negra) muito elevada se comparada aos padrões
europeus, americanos ou australianos. Ainda segundo o sociólogo lusitano, o
fato de a grande maioria das notícias de crimes permanecer alheia ao sistema
não significa que tenhamos uma “cultura jurídica de pacificação”, mas sim
uma “cultura jurídica passiva”. Haveria, em verdade, uma cultura de “fuga à
judicialização”, devida, em grande parte, a um juízo negativo da população
sobre a adequação das soluções judiciais aos conflitos, aos custos deste
sistema e à sua morosidade 35 (SOUSA SANTOS, 1996, p. 694).
Boventura Sousa Santos(1996, p. 695) observa que esta cultura jurídica
cidadã passiva se manifesta não só na omissão em relação à comunicação dos
crimes, mas também por meio de uma deficiente interiorização dos direitos
conquistados (muitas vezes concebidos como expressões de benevolência
estatal); por uma aceitação de que é natural o Estado pactuar com a não
aplicação ou má aplicação das leis (prática tolerada pelo Estado porque é
promovida por ele mesmo) e por um nível baixo de participação política, em
geral.
1.6 Ineficácia dissuasória da pena de prisão
Como visto, a prevenção geral da pena, em sua dimensão negativa, pretende
dissuadir a prática criminosa mediante a intimidação causada pela imposição
de penas mais severas. Muitas políticas criminais do nosso tempo (em
verdade, “políticas penais” ou “políticas eleitoreiras”) 36 identificam-se com
este modelo 37 .
A opinião pública, estimulada pelos meios de comunicação que potencializam
o medo do delito, assume, de forma simplória, a necessidade de um
desmedido rigor político-criminal para fazer frente ao crime (GARCÍA-
PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 360) 38 .
Há uma crença no full enforcement, ou seja, uma convicção de que o aumento
da pena de um crime seja suficiente para evitá-lo (GARCÍA-PABLOS DE
MOLINA; GOMES, 2012, p. 489). Esta foi a tônica das últimas reformas
penais no Brasil (como a Lei nº 10.972, de 2004, que instituiu o regime
disciplinar diferenciado; a Lei nº 12.850, de 2013, que trata das organizações
criminosas; a Lei nº 8.072, de 1990, conhecida lei dos crimes hediondos,
encampada pela novelista Glória Perez após a morte de sua filha, e a sempre
presente proposta de redução da maioridade penal 39 ). Este endurecimento se
inspira no movimento norte-americano law and order , que predica o
agravamento das penas, criação de novos tipos penais, restrição ou supressão
de direitos e garantias fundamentais e uma execução penal rígida (GARCÍA-
PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 495) 40 .
Geralmente, quanto maior o alarme social, maior a urgência e interesse na
produção de novas normas penais. A respeito disso, Alessandro Baratta
pondera que a edição de leis de afogadilho contraria o princípio da resposta
não-contingente do direito penal. Quer dizer: a lei penal é um ato solene
reservado aos problemas sociais fundamentais, gerais e duradouros em uma
sociedade e não instrumento de contemplação de situações atípicas ou
excepcionais. A sua edição deve compreender um estudo aprofundado, um
debate parlamentar exaustivo, acompanhado de ampla discussão pública. A
edição de leis penais de emergência, feita mediante o uso emocional ou
irracional do direito penal, derroga o caráter de “abstração e a generalidade”
da norma introduz o inconveniente de corromper a lógica dos códigos e gera
desproporcionalidade entre sanções penais vigentes e as novas (BARATTA,
1987, p. 631).
Nos Estados Unidos, o exemplo mais eloquente desta tendência populista na
condução da “política penal” é a lei do three strikes and you are out (numa
referência à regra do beisebol, segundo a qual um jogador é expulso após
cometer a terceira falta). As razões que originaram a three strikes law não são
muito distintas das que ensejam mudanças similares na legislação brasileira 41 .
A referida lei impõe a obrigatoriedade da pena de prisão ao ofensor
reincidente 42 após o cometimento do seu terceiro crime grave ou violento 43 ,
como forma de “retirá-lo de circulação” da vida em sociedade. Atualmente,
vinte e oito estados americanos adotam uma legislação neste sentido, variando
em rigor conforme as especificidades locais 44 (LAMANCE, 2013, p. 1).
Após intensa campanha publicitária a favor da instituição destas normas em
todo o país, constatou-se que elas não traziam os resultados esperados. A
prática mostrou que as leis não necessariamente reduziram a criminalidade
violenta, no entanto, ao contrário, trouxeram um efeito oposto: houve algumas
evidências de que os ofensores, quando da prática do terceiro crime, passaram
a agredir mais os policiais, no afã de não serem capturados (WORRALL,
2004, p. 288).
Em relação à lei dos three strikes, outras críticas foram feitas, especialmente
em virtude da desproporção das penas dos crimes pelos quais o réu é preso.
Um condenado por furto, por exemplo, poderia receber uma pena de 25 anos
de prisão segundo esta lei, caso fosse o terceiro crime praticado. Entretanto,
se ela não estivesse em vigor naquele local, sua pena de prisão seria de apenas
alguns meses 45 . Além disso, ao considerar os crimes anteriores cometidos pelo
réu para a imposição do regime mais gravoso, a lei o pune novamente por tais
delitos, ainda que ele já tenha cumprido a pena 46 . A apreciação judicial dos
fatos também restou seriamente comprometida neste sistema, já que os juízes
devem aplicar rigorosamente a lei quando do cometimento do terceiro crime,
não importando sua convicção sobre a justiça deste cumprimento no caso
concreto.
A eficácia das leis penais mais severas é contestável, pois o efeito dissuasório
da pena encontrar-se-ia mais condicionado pela percepção do ofensor sobre a
efetiva imposição do castigo do que pelo quantum da pena em si. O ofensor
indeciso valora e analisa com mais acuidade as consequências próximas e
imediatas de sua conduta (por exemplo, o risco de ser preso) do que as finais
ou definitivas (gravidade da pena cominada pela lei para o delito) (GARCÍA-
PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 361).
Mais modernamente, ponderou-se que o efeito dissuasório preventivo talvez
estivesse mais associado ao funcionamento do sistema legal (mais do que ao
rigor nominal da pena ou à possibilidade de ser pego e processado), ou seja:
mais e melhores policiais, mais e melhores juízes, mais e melhores prisões
poderiam conferir maior efetividade ao sistema legal e, por conseguinte,
prevenir crimes. Entretanto, essa suposta efetividade do castigo significa mais
reclusos nas prisões, porém não necessariamente menos delitos (GARCÍA-
PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 363).
Segundo Lola Aniyar de Castro (1983, p. 66-67), este tipo de resultado - e
melhores policiais, mais e melhores juízes, mais e melhores prisões - não é
significativo, porque a criminalidade pode permanecer a mesma, havendo
apenas uma multiplicação de esforços por parte da polícia e maior eficiência
dos tribunais. Ademais, fórmulas repressivas ou intimidatórias são meramente
sintomatológicas, policialescas e não cuidam das raízes do problema criminal,
prescindindo da sua análise científica.
Sobre o efeito destas políticas, observa Rogério Schietti (CRUZ, 2011, p. 63)
que a criação de novos crimes e o aumento de penas não resolvem o problema
da criminalidade. Quando muito, aliviam a sensação de impunidade e fazem
crer que o Estado está intervindo com maior rigor 47 .
Desta forma, para uma possível política dissuasória e preventiva do crime,
devem-se considerar outros fatores, além da duração ou do rigor do castigo,
como a natureza do delito, o tipo de ofensor, o apoio informal que ele possa
receber pelo comportamento desviado, a rapidez e imediação da resposta
penal, o modo pelo qual a sociedade e o ofensor percebem o castigo
(efetividade) etc. (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 361).
A justiça restaurativa apresenta potencial para atender satisfatória e
simultaneamente a todos esses fins concorrentes, como a segurança pública, a
dissuasão, a reabilitação do ofensor — , respondendo às necessidades das
vítimas e de prevenção (BRANCHER, 2007, p. 6). Ela preserva todos os
recursos enumerados e, ao invés do fortalecimento do controle social do
delito, propicia uma melhor sincronização entre controlesocial formal e
informal, como o envolvimento ativo da comunidade, da família e dos que
estão em entorno do ofensor (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES,
2012, p. 363).
Claus Roxin (1997, p. 109) vê fortes razões para a inclusão deste tipo de
resposta ao conflito como uma “terceira via” do direito penal. Ele sugere que,
para fatos puníveis atualmente com multas, ela poderia ser dispensada quando
o ressarcimento dos danos se desse por completo e, em caso de crimes mais
graves, a reparação deveria resultar em uma atenuação obrigatória de punição
ou em até sua remissão.
De acordo com o jurista alemão, a pesquisa empírica mostrou que ambos os
feridos (autor e vítima) e a comunidade não costumam exigir um castigo
adicional ao autor quando ele repara os danos, em casos de crime de pequeno
ou médio porte. Para ele, a justiça restaurativa é bem-vinda em favor dos
interesses das vítimas, cuja reparação de danos é geralmente frustrada com a
prisão do autor. Ressalva o autor que a questão da reparação dos danos não é
uma questão meramente jurídico-civil. Se feita de acordo com os princípios
restaurativos, por exemplo, ela contribuiria significativamente para a
realização das finalidades da punição. Consoante preleciona, isso é possível à
medida que se requer que o autor enfrente as consequências de seu ato e
conheça os legítimos interesses da vítima. Este enfrentamento tem mais
chances de ser reconhecido pelo autor como algo necessário, justo, melhor do
que a pena, e pode fomentar o reconhecimento das normas penais, tal como
propõe a função de prevenção geral positiva da pena (ROXIN, 1997, p. 109).
1.7 Os números da eficácia invertida da prisão
Diante do exposto, o paradigma punitivo atual falha em cumprir sua proposta
de reprimir a criminalidade, mas também veremos que ele opera
contrariamente à sua função. Como observa Juarez Cirino dos Santos (2005a,
p. 5), o sistema carcerário é marcado por uma eficácia invertida, pois “em
lugar de reduzir a criminalidade, introduz os condenados em carreiras
criminosas, produzindo reincidência e organizando a delinquência”.
Um dos fatores para a inoperância e a eficácia invertida da pena de prisão é o
número de detentos e a forma como eles se encontram alojados. Conforme
dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da
Justiça (InfoPen), a população carcerária brasileira está estimada em meio
milhão de pessoas (mais exatamente 548.003, em dezembro de 2012) 48 . Na
mesma época, o país possuía apenas 309.074 vagas para seu abrigamento, o
que gera uma taxa de ocupação de 77,3% superior à capacidade e um déficit
de 238.929 vagas no sistema penitenciário. Portanto, seria necessária a
construção de aproximadamente duzentas e quarenta mil acomodações apenas
para manter os atuais presos na forma como determina a lei de execução
penal, já que as prisões existentes não têm condições de habitabilidade.
Na toada da demanda crescente por uma maior criminalização e
encarcerização (comum não só no Brasil, mas também em outros países do
mundo, conforme já visto), o país ostenta a quarta maior população carcerária
mundial em números absolutos, estando atrás apenas dos Estados Unidos
(com 2.228.424 pessoas presas), da China (1.701.344 presos) e da Rússia
(675.000 reclusos), segundo dados do último relatório anual do Centro
Internacional de Estudos Prisionais do King’s College London (LONDON,
2014, p. 1) 49 .
Em termos percentuais, considerando a população total destes países (China
— 1.355.692.576; Rússia — 142.470.272; Estados Unidos — 318.892.103 e
Brasil — 202.656.788 50 ), o Brasil também ocupa o quarto lugar, com 0,2% da
sua população encarcerada (Estados Unidos, 0,69%; Rússia, 0,47%; Brasil,
0,2% e China, 0,1%), ou seja, uma proporção de 270 pessoas presas para cada
cem mil habitantes.
Nos últimos dez anos, o quantitativo da população carcerária mais que
dobrou, aumentando de 233.859 (dados de dezembro de 2001) para os atuais
548.003 (dados de dezembro de 2012) 51 , o que gera um índice de crescimento
de 134% (BRASIL, 2009, p. 364). Para se ter uma ideia, o aumento da
população brasileira entre os anos 2000 e 2010 (anos em que houve censo
demográfico pelo IBGE) foi de 12,48% (de 169.590.693 habitantes em 2000
para 190.755.799 em 2010). Destarte, comparando os índices de crescimento
destes períodos (120% X 12,48%), pode-se concluir que o aumento
proporcional da população carcerária foi muito maior — dez vezes superior
ao da população em geral — ascensão que não veio acompanhada, na mesma
intensidade, de políticas públicas ou melhorias para os detentos.
O incremento da população carcerária não é um evento exclusivamente
brasileiro. Os Estados Unidos, por exemplo, quintuplicaram seus presos nos
últimos anos: de 500 mil, em 1980, para 2,2 milhões de presos em 2011,
especialmente após a edição da three strikes law . Com suas punições
demasiado severas e longas — variando de no mínimo de 25 anos até a prisão
perpétua, sem permitir, muitas vezes, a liberdade condicional — a população
carcerária norte-americana aumentou drasticamente.
Não existem dados ou informações precisas sobre o custo de todo este
encarceramento, em especial o dispendido com a manutenção de cada preso.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário, após
diligências a cada uma das penitenciárias do país, entre os anos de 2007 e
2009, estimou que cada nova vaga no sistema custa aos cofres públicos cerca
de R$ 22.000,00 por ano (BRASIL, 2009, p. 363). Este valor é apenas
prognosticado, já que há grande disparidade nos gastos informados por cada
estado, com variações entre R$ 500,00 (Amapá) e R$ 1.700,00 (Minas
Gerais) por mês. A oscilação se deve, principalmente, à diferença do valor
pago nas contratações de serviços como alimentação, remuneração de agentes
de segurança etc. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN),
a média mensal nacional de custo de cada preso em presídios comuns é de R$
1.300,00 e, nos de segurança máxima, de R$ 4.500,00 (BRASIL, 2009, p.
364).
Cabe, aqui, ressalvar que os gastos efetuados com a manutenção do preso ou
da prisão não correspondem ao custo do delito para a sociedade. Anota Lola
Aniyar de Castro (1983, p. 48) que as despesas com a execução da lei
(número de forças policiais), tratamento (cárcere, colônias penais,
manicômios judiciais, estabelecimentos para menores de idade) e
administração da justiça (juízes, promotores, servidores, etc.) são apenas as
mais aparentes. Há outros custos do crime, como o da repressão; o da
investigação (estudos científicos, DNA, perícia); o da prevenção (pública e
privada, como investimento em sistemas de alarme, segurança, caixa forte,
despesas para as companhias de seguro, empresas privadas etc.); o dos danos
causados (dos bens, da lesão ou do sofrimento da vítima, individual ou
coletiva, pública ou privada); o do lucro cessante (como despesa médica, ônus
à economia pelo decréscimo na produtividade); o do custo social (a
manutenção das famílias dos detentos, ajuda às vítimas, etc.) e outros não
estimáveis facilmente do ponto de vista econômico).
A criminóloga venezuelana ressalta especialmente o custo dos chamados
“crimes do colarinho branco”, que supera, em muitas vezes, o somatório de
todos os furtos e roubos do país, pois “altera a qualidade de vida, obriga a
frequentes gastos com reparações, limita as entradas de impostos, traz em si a
ruína de pequenas empresas, aumenta o custo de vida e implica, além disso,
um alto custo moral, tomando-se em conta que os autores desses fatos,
geralmente sãoos lideres da comunidade” (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p.
48).
Segundo o Banco Mundial, os países latino-americanos dispendem cerca de
oito por cento do seu Produto Interno Bruto (PIB) no combate ao crime e à
violência, incluindo a segurança dos cidadãos, os processos judiciais e os
gastos com saúde 52 . Esta despesa enfraquece o crescimento econômico não
apenas por salários perdidos, mas porque desvia o investimento de recursos
públicos já escassos para o sistema penal judiciário, em vez de promover a
atividade econômica.
O custo da manutenção do arranjo prisional é um dos principais argumentos
que tem levado legisladores e formuladores de políticas públicas a
reconsiderarem o mérito do atual sistema punitivo, especialmente porque o
gasto implica cortes em outras áreas de investimento que poderiam funcionar
como polos de inclusão (políticas sociais de educação, saúde, cultura,
trabalho, assistência social) (UMBREIT, 2007, p. 1). Quer dizer, a população
estaria custeando um sistema que, ao invés de “recuperar” os detentos, torna-
os piores, além de deixar de atuar preventivamente, o que seria menos custoso
e doloroso.
O eleitorado americano, por exemplo, costumeiro entusiasta quanto a
programas de “guerra contra o crime”, não acolheu com simpatia os custos
carcerários desses programas. A aplicação da three strikes law teve um
impacto significativo, com o gasto médio de manutenção do preso
encarcerado de vinte e cinco mil dólares por ano (HEYER, 2011, p. 1229).
Isso porque a longevidade das penas de prisão acarreta o envelhecimento da
população carcerária, provocando um aumento nos gastos decorrentes não só
do prolongamento temporal, mas também com os cuidados médicos próprios
da senilidade. Além disso, muitos detentos idosos não precisariam mais de
contenção, mas o rigor legal impõe a sua permanência, fato que eleva os
custos e diminui a disponibilidade de vagas para os que realmente precisam
de repressão. Esta despesa foi bastante criticada pela população norte-
americana, que reivindicou o uso do orçamento para outros fins, tais como
construção de escolas ou de programas de reabilitação para os próprios
detentos 53 .
Ainda numa perspectiva utilitarista, percebe-se que tamanho investimento no
encarceramento não corresponde necessariamente a uma diminuição do
número de crimes. No Brasil, no período que compreende os anos de 1998 e
2008, o número total de homicídios registrados pelo Sistema de Informações
sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM) passou de 41.950 para
50.113, o que representou um incremento de 17,8%, índice superior ao
crescimento populacional do período, estimado oficialmente em 17,2%.
(BRASIL, 2011, p. 21). Segundo o estudo “Mapa da Violência 2011”, feito
pelo Ministério da Justiça (BRASIL, 2011, p. 24), o número de mortes
violentas no país no período excede, com folga, o de vários conflitos armados
registrados no mundo 54 .
Outro dado que atesta o colapso do paradigma punitivo é o número de
mandados de prisão que aguardam cumprimento. Quando da implantação do
“Banco Nacional de Mandados de Prisão”, o CNJ apurou a existência de 500
mil ordens de prisão a serem cumpridas em dezessete estados brasileiros e no
Distrito Federal, de acordo com informações enviadas pelos Tribunais de
Justiça destes estados 55 . Atualmente, este número é de 390.653 mandados não
cumpridos 56 . Face à superlotação constatada, verifica-se que o sistema
penitenciário estaria completamente inviabilizado se as determinações do
paradigma punitivo fossem realmente observadas e o Estado cumprisse suas
ordens judiciais.
Com o déficit existente de cerca de 200 mil vagas e mais de 390 mil
mandados judiciais por cumprir, é forçoso admitir que o sistema entrou em
colapso e exige a revisão da política criminal e penitenciária atual. Nem
mesmo as soluções mais populares, como a construção de mais presídios, por
exemplo, seriam capazes de resolver satisfatoriamente o nó górdio a que
chegou a questão 57 . Acerca da ruína desse arranjo, Maria Lúcia Karam (2004,
p. 92) observa que, “se, em algum momento, o sistema de justiça penal tivesse
que ser julgado sob uma ótica de produtividade — como tendem a fazer
alguns tecnocratas retóricos que falam de ‘justiça-empresa’ — a falência já
teria sido, há tempos, inexoravelmente declarada”.
2 A expressão “ressocializar” foi utilizada entre aspas a fim de pontuar nossa discordância com o termo
(em que pese ser o utilizado pela legislação), nos moldes do pensamento de Foucault (2008, p. 183), que
rechaça expedientes de qualquer natureza que, a pretexto de educação ou tratamento, visem disciplinar
ou mecanizar o sujeito (tornando-o “corpo dócil”). No mesmo sentido, a criminologia crítica, que
propõe a substituição semântica de “ressocialização” por “reintegração social”, deslocando a atenção do
condenado para a relação sujeito/comunidade (CIRINO DOS SANTOS, 2005b, p. 6).
3 A respeito da relação entre poder e seletividade dos crimes, Boaventura de Sousa Santos (1996, p. 38)
ressalta que “um poder político concentrado, tradicionalmente assente numa pequena classe política de
extracção oligárquica, soube ao longo dos anos criar imunidades jurídicas e fácticas que redundaram na
impunidade geral dos crimes cometidos no exercício de funções políticas. Esta prática transformou-se
na pedra angular de uma cultura jurídica autoritária nos termos da qual só é possível condenar ‘para
baixo’ (os crimes das classes populares) e nunca ‘para cima’ (os crimes dos poderosos).”
Ressalta o sociólogo lusitano que o desempenho dos tribunais é também muito seletivo e acentua essas
assimetrias. No domínio da justiça penal, por exemplo, há uma disponibilidade geral das Cortes para a
judicialização de um número relativamente restrito de tipos de crimes e também no tipo de litigantes,
quais sejam, dos mais pobres (1996, p. 687).
4 No mesmo diapasão, Zaffaroni (2003, p. 99), para quem “a legitimação do poder punitivo é, portanto,
simultaneamente, legitimação de componentes do Estado de polícia e atua em detrimento do Estado de
direito”.
5 Juíza aposentada, membro do IBCCrim — Instituto Brasileiro de Ciências Criminais — e da
“Associação de Juízes para a Democracia”, entre outros organismos.
6 Por “justiça criminal” entende-se aqui como “uma forma específica de interação de uma gama de
agentes: a lei, a polícia, os tribunais, a prisão (produtos da criminalização secundária)” (HULSMAN,
1993, p. 121)
7 Neste mesmo sentido, é a teoria do “realismo marginal jurídico-penal”, de Eugenio Raúl Zaffaroni.
Diz-se realista, porque reconhece o atuar real e irracional das agências punitivas e a deslegitimação do
poder de punir, já que as penas criminais não podem ser juridicamente fundamentadas, senão segundo o
seu sentido político (teoria agnóstica da pena) (BATISTA, s/d, p. 6).
8 No mesmo sentido, temos a constatação de Louk Hulsman (2004, p. 43): “Dentro do conceito de
criminalidade, encontramos variadas situações, ligadas entre si. Em sua maior parte, têm propriedades
diversas e nenhum denominador comum: violência na família, violência em um contexto anônimo das
ruas, arrombamentos, diversas formas de receber mercadorias ilegalmente, diferentes condutas no
trânsito, a poluição do ambiente, algumas modalidades de atividade política. Não se pode identificar
qualquer estrutura comum, quer na motivação de quem está implicado em tais fatos, quer na natureza de
suas consequências, quer nas possibilidades de enfrentá-los (seja em um sentido preventivo, seja no
sentido de controle do conflito). Tudo o que estes fatos têm em comum é que o sistema de justiça
criminal está autorizado a intervir contraeles. Alguns destes eventos causam um sofrimento
significativo a quem está diretamente envolvido, geralmente prejudicando tanto o autor quanto a vítima.
Consideremos, por exemplo, os acidentes de trânsito e a violência na família”.
9 Promotora de justiça e pesquisadora, autora da dissertação de Mestrado em Direito (Universidade de
Brasília), “Flagrante e prisão provisória na criminalização de furto: da presunção de inocência à
antecipação de pena”, 2006. Disponível em: http://repositorio.bce.unb.br/handle/10482/5179 . Acesso:
em 30 dez. 13.
10 Para Boaventura de Sousa Santos (1996, p. 687), o aumento da criminalidade contra bens
patrimoniais nos últimos anos estaria relacionado à toxicodependência.
11 Conforme texto definitivo e oficial do anteprojeto (Projeto de Lei do Senado nº 236, de 2012)
acessado no sítio do Senado Federal. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=106404 . Acesso: em 6 fev. 2013.
12 Entrevista do relator da comissão, o procurador da República Luiz Carlos Gonçalves em junho de
2012. Disponível em: http://noticias.bol.uol.com.br/brasil/2012/06/28/nao-teve-assunto-tabu-diz-relator-
sobre-reforma-do-codigo-penal.jhtm . Acesso: em 5 fev. 13.
13 Professor livre-docente coordenador do núcleo de sociologia da PUC-SP.
14 Consoante Túlio Kahn (2012, p. 87), sociólogo e ex-chefe da Coordenadoria de Análise e
Planejamento (CAP) da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, em países em desenvolvimento,
como é o caso do Brasil, haveria maior propensão para a prática de crimes, sejam eles associados à
pobreza e à desigualdade social, como os crimes contra a pessoa (homicídio, lesões etc.) ou associados à
riqueza, como os crimes patrimoniais (roubos e furtos). Os crimes contra a pessoa normalmente
ocorrem na periferia das grandes cidades, onde há elevado consumo de droga e álcool, poucas opções de
lazer, disponibilidade de armas e uma cultura de violência para a resolução de conflitos. Em relação aos
crimes patrimoniais, o aumento da renda e do emprego implica não só maiores opções de ganhos
“dentro da lei”, mas também maior disponibilidade de bens subtraíveis (celulares, automóveis etc.), em
especial quando o crescimento econômico é acelerado e desigual, como no caso brasileiro. A realidade
econômica e social brasileira seria, portanto, terreno fértil para a prática de ambos os tipos de crimes,
patrimoniais e contra a pessoa, justamente por congregar fatores desfavoráveis tão distintos, como, por
exemplo, crescimento rápido e desorganizado, grande oferta de bens, desigualdade social e baixa
expectativa de punição. Assim, tornam-se cada vez mais necessárias alternativas criativas e
multipontuais para se reverter tais estatísticas (KAHN, 2012, p. 87).
15 A despeito de sua opinião cética, o professor da universidade de Coimbra reconhece que, em anos
mais recentes, tem se multiplicado os sinais de um ativismo dos tribunais no combate à criminalidade
organizada, à corrupção da classe política e até dentro do próprio sistema judicial, o que explica as
dificuldades dos tribunais de exercerem o controle penal nestes domínios (SOUSA SANTOS, 1996, p.
39).
16 Conforme o jurista italiano, esta cifra engloba: “a) os inocentes reconhecidos por sentença
absolutória, após terem se sujeitado ao processo e, não poucas vezes, ao encarceramento preventivo; b)
os inocentes condenados com sentença definitiva e posteriormente absolvidos em grau de revisão
criminal; c) as vítimas dos erros judiciários não reparados, cujo número restará sempre ignorado
(verdadeira cifra negra da injustiça)” (FERRAJOLI, 2010, p. 196).
17 Assistente social clínico americano, Jerome Miller é considerado uma autoridade em reforma de
sistemas penais juvenis e de adultos. Defensor de alternativas ao encarceramento, ele liderou o
fechamento de vários reformatórios juvenis em Massachusetts no início de 1970.
18 Neste trabalho utilizaremos o termo “ofensor” para nos referimos à “pessoa objeto da intervenção
penal”, pois como ressalta Maíra Rocha Machado (2005, p. 80), expressões como “delinquente” ou
“criminoso” dão a entender uma distinção entre pessoas boas e más, “entre eles e nós”, o que contraria o
escopo deste trabalho. Ademais, como assevera a autora, “o que parece ser uma simples questão de
linguagem relaciona-se muito estreitamente às escolhas do aplicador do direito e do pesquisador”.
19 Sobre a reparação no sistema atual, assinala Louk Hulsman (1993, p. 121): “A criminalização é um
serviço cujos “clientes potenciais” (as vítimas) não querem comprar. O que elas normalmente querem é
proteção e reparação. Estes são produtos que a justiça criminal não vende (…).”
20 A crítica neste trabalho se limita às duas funções mais tradicionais da pena, não se ignorando a
existência de outras finalidades, como a de expiação, de emenda e de defesa social.
21 A respeito do caráter retributivo da pena, aduz o professor paranaense: “A pena como compensação
ou retribuição atualiza o impulso de vingança, tão velho quanto o mundo. A psicologia popular parece
explicar essa sobrevivência, aparentemente regida pelo talião: olho por olho, dente por dente. Mas a
determinação é social, não biológica: na base da psicologia do povo está a tradição religiosa judaico-
cristã ocidental, que sustenta uma imagem retributivo-vingativa da justiça divina” (CIRINO DOS
SANTOS, 2013a, p. 2).
22 Salo Carvalho faz a seguinte ressalva: “O modelo penalógico de Kant é estruturado na premissa
básica de que a pena não pode ter jamais a finalidade de melhorar ou corrigir o homem, ou seja, o fim
utilitário ilegítimo. Se o direito utilizasse a pena como instrumento de dissuasão, acabaria por
mediatizar o homem, tornando-o imoral. Logo, a penalidade teria como thelos a imposição de um mal
decorrente da violação do dever jurídico, encontrando neste mal (violação do direito) sua devida
proporção. Muito embora utilize critérios de medida e proporção da pena, Kant rememorará modelos
primitivos de vingança privada. A teoria absoluta da pena sob o viés kantiano recupera o principio
taliônico, encobrindo-o, no entanto, pelos pressupostos de civilidade e legalidade” (CARVALHO, 2003,
p. 122).
23 “Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a
representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as
acções das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática” (KANT, 1785, p.
47).
24 No original: “El mismo nombre de ‘pena’ indica un sufrimiento, pero sufrimiento hay en casi todas
las sanciones jurídicas: sufrimos cuando nos embargan la casa, cuando nos cobran un interés punitorio,
nos anulan un proceso, nos ponen en cuarentena, nos llevan por la fuerza a declarar como testigos etc.
Ninguno de estos sufrimientos se llama ‘pena’, porque tienen un sentido, es decir, conforme a modelos
abstractos todos sirven para resolver algún conflicto. La pena, en lugar, como sufrimiento huérfano de
racionalidad, hace varios siglos que busca un sentido y no lo encuentra, sencillamente porque no lo
tiene, más que como manifestación de poder” (ZAFFARONI, 1991a, p. 210).
25 A teoria do just deserts (no sentido de “apenas o merecido”) defende que a punição deve ser
proporcional à gravidade da infração cometida.
26 Louk Hulsman (1993, p. 124) ilustra a situação da vítima no atual sistema de justiça criminal da
seguinte forma: “O código criminal e outras legislações penais contêm muitas “incriminações”; eles são
como “caixas” prontas que podem receber a realidade de fora recortada e simplificada para adequá-la à
prefiguração da caixa (…). Nocaso da justiça criminal, a vítima não pode escolher a caixa. Isto é feito
pelo policial e pelo promotor público principalmente de acordo com os hábitos e as práticas em uso na
organização. Essas escolhas podem ter importantes consequências para a possibilidade de prisão do
suposto criminoso e muitos outros efeitos no procedimento judicial. Se o acusado é condenado, a vítima
não tem influencia na escolha e na execução da sentença”.
27 A ideia de dissuasão remete à teoria da coação psicológica ou da intimidação proposta por Feuerbach
no século XVIII, para quem a ameaça de punição legal é um fator decisivo para o indivíduo com
tendências antissociais que, antes de praticar uma conduta criminosa sopesaria racionalmente as
vantagens esperadas, frente ao risco de ser punido. A teoria de Feuerbach foi contestada pelo seu
contemporâneo Beccaria, para quem a prática criminosa não é desestimulada pela gravidade da pena,
mas pela certeza ou probabilidade da punição (CIRINO DOS SANTOS, 2013c, p. 6). Mais
contemporaneamente, Gary S. Becker, economista e ganhador do prêmio Nobel em 1992, dedicou-se,
entre outros assuntos, ao cálculo dos benefícios de uma ação criminosa, tendo em conta a probabilidade
de alguém ser identificado e punido (análise econômica do delito). Assim, segundo o professor
americano, em países onde a punição é falha, faria mais sentido optar-se pelo crime.
28 Por exemplo: homicídio (“art. 121 do Código Penal: Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte
anos”; corrupção passiva (art. 317), “Pena — reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.”, etc.
29 Na sua clássica obra Dos delitos e das penas , tão jurídica quanto filosófica, e marcante para o direito
penal, o autor observa: “Não é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança, mas a
certeza do castigo, o zelo vigilante do magistrado e essa severidade inflexível que só é uma virtude no
juiz quando as leis são brandas. A perspectiva de um castigo moderado, mas inevitável causará sempre
uma forte impressão mais forte do que o vago temor de um suplício terrível, em relação ao qual se
apresenta alguma esperança de impunidade” (BECCARIA, 1764, p. 113).
Aduz ainda o fidalgo a necessidade de observância da proporcionalidade da pena, para que não
constitua uma agressão: “É que, para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser
essencialmente pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas,
proporcionada ao delito e determinada pela lei.” (BECCARIA, 1764, p. 201)
30 O penalista alemão apresentou esta teoria em 2004, no clássico artigo Bürgerstrafrecht und
Feindstrafrecht (direito penal do cidadão e direito penal do inimigo). Disponível em: http://www.hrr-
strafrecht.de/hrr/archiv/04-03/index.php3?seite=6 . Acesso em: 5 jan. 14.
31 Jackobs não pressupõe que os cidadãos não cometam crimes. Entretanto, explica Juarez Cirino dos
Santos (2012a, p. 5), o cidadão seria autor de crimes “normais” e preservariam uma atitude de
fidelidade jurídica intrínseca, sendo capazes de manter as expectativas normativas da comunidade sem
desafiar o sistema social. Já o inimigo seria autor de “crimes de alta traição”, que assume uma atitude de
insubordinação jurídica intrínseca, capaz de produzir um estado de guerra contra a sociedade e perderia
a qualidade de pessoa portadora de direitos, porque desafia o sistema social.
32 A tese apontada pelo autor corresponde à da criminologia crítica, detalhada na seção 4.4, a qual
denuncia o fracasso histórico do sistema penal no cumprimento dos seus objetivos ideológicos (funções
aparentes ou declaradas) e identifica o êxito histórico do sistema punitivo no cumprimento dos seus
objetivos reais (funções ocultas), na medida em que funciona como aparelho de garantia e de
reprodução do poder social (CIRINO DOS SANTOS, 2005b, p. 5).
33 Há algumas iniciativas que visam estimular a comunicação de crimes que são dignas de nota, como
o registro de boletins de ocorrência via internet, para crimes cometidos sem violência, como é feito no
Distrito Federal. Túlio Kahn observa que “este tipo de informação é fundamental para o mapeamento do
crime e a melhoria da eficiência do trabalho policial” (KAHN, 2012, p. 88).
34 Dados divulgados na publicação “Ministério Público — Um Retrato” que apresenta informações
relativas ao ano de 2012, enviadas por todas as unidades dos Ministérios Públicos ao CNMP até 31 de
março de 2013. Disponível em:
http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Noticias/2013/Arquivos/ANUARIO_UM_RETRATO_Completo_Final_17_06_2013.pdf
. Acesso em: 31 dez. 13.
35 No tocante à morosidade, Sousa Santos relata que, muitas vezes, é difícil definir as fronteiras entre o
que é negligência e o que é a duração dos processos resultantes de outras causas, como o volume de
trabalho e a acumulação de processos. Neste rumo, o professor da Universidade de Coimbra identificou
dois tipos de morosidades sistêmicas: a endógena ao sistema e a funcional (que serviria os interesses de
ambas ou de uma das partes implicadas). A primeira delas seria inerente ao próprio sistema processual e
seria devida à necessidade de existirem prazos para que as partes possam exercer ponderadamente os
seus direitos processuais com observância do contraditório, para que os magistrados possam proferir
suas decisões com reflexão e para que os funcionários possam cumprir, sem atropelos, as tarefas que
lhes são confiadas. Já a segunda (morosidade funcional) radica no funcionamento obsoleto dos serviços
dos tribunais, como o mau aproveitamento (ou carência) dos recursos humanos; a não utilização de
meios materiais que permitiriam uma maior rentabilização daqueles ou, ainda, a rotina há muitos anos
neles instalada (SOUSA SANTOS, 1996, p. 431).
36 O termo “política penal” é empregado no sentido dado por Alessandro Baratta (2002, p. 201), ou
seja, de “resposta à questão criminal circunscrita ao âmbito do exercício da função punitiva do Estado”.
Difere de “política criminal”, mais genérico, para se referir ao “programa do Estado para controlar a
criminalidade” (CIRINO DOS SANTOS, 2013b, p. 1).
37 Observa Seffair (2013, p. 2) que a violência sempre foi uma preocupação dos indivíduos e gera uma
demanda da sociedade por medidas intensivas de segurança pública. Não existe plataforma de governo
que não contemple ações no âmbito da segurança, sendo um dos mais relevantes elementos de prestação
de serviços públicos realizados pelo Estado, confundindo-se até mesmo com a justificação da própria
existência deste.
Historicamente, no Brasil, as políticas públicas de segurança estiveram voltadas para a repressão, como
a compra de armas, viaturas, construção de presídios etc. As ações de segurança pública eram
associadas à atuação da polícia e se restringiam à contenção social e ao uso da força. Como observa
Souza (2011, p. 1), nas lacunas deixadas pela ausência de políticas de segurança mais completas, que
promovessem a cidadania, o protagonismo coube às corporações policiais livres para decidir sua forma
de atuação. Em segundo plano, houve ações como investimento no treinamento policial, desarmamento
da população em geral e controle de armas, amadurecimento de programas de proteção a testemunhas,
melhorias no sistema prisional, reforma na legislação penal, controle de venda e uso de bebidas
alcoólicas, etc. (LIMA, 2010, p. 1).
Ainda segundo o autor (SEFFAIR, 2013, p. 5), o Brasil tem sido prodigioso em converter programas de
segurança pública em meios de promoção publicitária de governos. Findos estes, as estratégias de
segurança são abandonadas, pois o próximo governante não quer conviver com a herança política do
antecessor, restando ao Ministério Público e ao Judiciário arrumar um meiode atuar diante de
“resíduos”, como o número elevado de processos e o aprofundamento da complexidade da violência.
38 A esse respeito, observa Gary LaFree (2002, p. 879) que, mesmo nos Estados Unidos, que possuem
o sistema mais austero e punitivo do mundo, muitos americanos — entre eles políticos e notoriedades
da mídia — afirmam que a maioria dos “criminosos” recebem apenas um “tapinha na mão” ( a slap on
the wrist ). No Canadá e nos Estados Unidos, para se ganhar a aprovação dos eleitores, a fórmula
eleitoreira encontrada pelos políticos foi propor reduções bruscas no orçamento do governo, mas
aumentos significativos nos gastos com policiamento e prisões.
39 No Brasil, o esforço mais conhecido pela aprovação da redução da maioridade penal de dezoito para
dezesseis anos foi o de Ari Friedenbach, pai de Liana Friedenbach, estuprada, torturada e morta aos
dezesseis anos de idade, juntamente com seu namorado Felipe Caffé (dezenove anos) por um imputável
e um menor de idade, conhecido como “Champinha”. Com a causa da redução da maioridade penal, Ari
foi eleito vereador em 2012 em São Paulo. Atualmente, afirma ser contra a proposta.
40 Segundo o criminólogo espanhol, “o maior problema da justiça criminal brasileira não é a ausência
de leis duras (já as temos), mas o não cumprimento das leis vigentes” (GARCÍA-PABLOS DE
MOLINA; GOMES, 2012, p. 489).
41 Em junho de 1992, a jovem Kimber Reynolds, de dezoito anos, foi abordada por dois homens ao sair
de um restaurante local. Os autores, ao lhe tomarem a bolsa, efetuaram, com uma pistola 357 magnum,
um disparo na sua cabeça. A jovem morreu 26 horas depois do ataque. Seu pai, Mike Reynolds,
prometeu “que faria qualquer coisa para evitar que isso acontecesse a outras crianças” (“I promised her
that if I could do anything to prevent this from happening to other kids, I would do everything I could”).
Os responsáveis pela morte dela eram reincidentes, o que motivou Mike Reynolds a encabeçar a jornada
pela aprovação da three strikes law . A campanha ganhou reforço dezoito meses após a morte de Kimber
Reynolds, quando a adolescente Polly Klaas, de doze anos de idade, foi sequestrada, estuprada e
assassinada por Richard Allen Davis, também reincidente (HEYER, 2011, p. 1220-1221).
Consoante David Greenberg (2004, p. 243), professor de sociologia da universidade de Nova Iorque, a
austera lei norte-americana three strikes and you are out ganhou o apoio de muitos grupos de interesses
e, em especial, de um governador impopular, Pete Wilson, que a usou buscando revitalizar sua
campanha. Segundo Gary LaFree (2002, p. 877), professor do departamento de criminologia e justiça
criminal da universidade de Maryland, estas leis populistas podem causar punição excessiva e
dificuldades de controle pelo Estado.
42 Ofensor reincidente ou “criminoso habitual” ( persistent ofender ), como a ele se refere a legislação
de alguns estados (especialmente Connecticut e Kansas).
43 Os crimes violentos e graves são arrolados nas leis estaduais americanas e geralmente incluem
homicídio doloso (murder ), roubo com emprego de arma, estupro e outros crimes sexuais, roubo a
residência ( burglary ) e agressão com a intenção de cometer um roubo ou assassinato ( assault )
(HEYER, 2011, p. 1232).
44 A primeira three strikes law foi aprovada em 1993, em Washington. Na Califórnia, a lei decorreu de
iniciativa popular e foi aprovada por uma maioria de 72% de votos a favor e 28% contra. Massachusetts
foi o último estado a aprovar a three strikes law , acompanhando Arizona, Arkansas, California,
Colorado, Connecticut, Florida, Georgia, Indiana, Kansas, Louisiana, Maryland, Massachusetts,
Montana, Nevada, New Hampshire, New Jersey, New Mexico, North Carolina, North Dakota,
Pennsylvania, South Carolina, Tennessee, Texas, Utah, Vermont, Virginia, Washington e Wisconsin.
Alguns destes aplicam a lei já para o segundo crime violento. New Hampshire é o que aplica a lei de
forma mais branda, com pena máxima de prisão de 30 anos para a terceira condenação criminal
(LAMANCE, 2013, p. 1).
45 O propósito inicial era aplicar a lei apenas para crimes violentos. Entretanto, há estados como a
Califórnia em que não se exigia que o terceiro strike fosse grave ou violento, fazendo com que as
pessoas fossem encaminhadas à prisão perpétua por sanções menores, inclusive contravenções penais (
misdemeanor ). É o caso de subtração de valores inferiores a quatrocentos dólares em propriedades,
como o furto de três tacos de golfe de uma loja (Ewing x Califórnia 538 U.S. 11, 2003) ou o furto de
uma fatia de pizza de pepperoni de um grupo de crianças (People v Williams, Cr No. YA 020612-01.).
Ambos os autores ostentavam condenações anteriores por roubo, mesmo já tendo cumprido pena de
prisão por elas. Casos disponíveis em: http://supreme.justia.com/cases/federal/us/538/11/case.html e
http://www.threestrikes.org/calaw01.html . Acesso em: 1º out. 13.
46 A Califórnia tem mais crimes que se enquadram na categoria de “graves” ou “violentos” do que
outros estados. Computam-se no número de três faltas os delitos cometidos durante a menoridade penal.
A lei californiana também não leva em conta o tempo decorrido entre os crimes, de forma que os crimes
anteriores são incluídos na contagem, mesmo se praticados muitos anos antes. Por fim, o estado lidera o
ranking nacional de sentenças sob a lei three strikes , com mais de 90% de todas as sentenças impostas.
47 O aspecto sintomático desta situação foi a redução significativa do número de encarcerados em
virtude da three strikes law nos EUA. A depender do ponto de vista, a lei pode ser considerada um
sucesso ou um fracasso. Apenas no ano de 1996, 1.700 sentenças de prisão perpétua foram impostas nos
58 condados da Califórnia, com base na lei three strikes . Entre 2008-2010, esse número caiu para menos
de 200 por ano. No condado de Sacramento, foram 94 sentenças no ano de 1996. Este número caiu para
16 em 2010. Para o procurador ( district attorney) de Sacramento, Jan Scully, a razão da queda nestes
números não é o reconhecimento paulatino do fracasso da lei, mas o contrário, o seu sucesso absoluto,
já que todos os ofensores reincidentes se encontrariam encarcerados (no original: “not just in
Sacramento but across the state, we’ve put away people on three strikes and they aren’t now in our
communities”. Informação disponível em:
http://ballotpedia.org/wiki/index.php/California_Proposition_184,_the_Three_Strikes_Initiative_(1994)
. Acesso em: 2 out. 13.
48 Disponível em: http://portal.mj.gov.br/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?
DocumentID={BFF5E35A-C0E2-4F02-BEF9-92DC225F5998}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-
420B-9F76-15A4137F1CCD} . Acesso em: 4 fev. 13.
49 Disponível em: http://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total?
field_region_taxonomy_tid=All&=Apply. Acesso em: 10 ago. 14.
50 Fonte: CIA — Central Intelligence Agency. The world factbook . Disponível em:
https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/ . Acesso em: 10 ago. 14.
No caso brasileiro, consideramos a população carcerária e a total referentes ao ano de 2010, consoante
os dados fornecidos pelo INFOPen e IBGE para este ano. Disponíveis em: InfoPen:
http://portal.mj.gov.br/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID=
{9388597E-6809-4EF0-AAF6-D328D8E3B388}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-420B-9F76-
15A4137F1CCD} e IBGE: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm .
Acesso em: 15 fev. 13.
51 Idem, ibidem.
52 Fonte:
http://siteresources.worldbank.org/INTLAC/Resources/FINAL_VOLUME_I_SPANISH_CrimeAndViolence.pdf
53 Constatações como estas motivaram,no ano de 2012, a aprovação da “Proposição 36” pelos eleitores
californianos, que instituiu uma série de temperamentos ao rigor da lei three strikes : imposição da pena
de prisão perpétua somente quando a nova condenação criminal for “grave ou violenta”; revisão das
sentenças de prisão perpétua anteriormente aplicadas fora deste critério (que beneficiou cerca de 3.000
condenados, cuja terceira falta era um crime não-violento) e a substituição da pena de vinte e cinco anos
de prisão ou prisão perpétua por tratamento, para o caso de reiteração de posse de drogas para uso
próprio. (Informação disponível no guia de informação oficial ao eleitor do governo californiano:
http://voterguide.sos.ca.gov/propositions/36/. Acesso em: 2 out. 13).
54 São eles, por exemplo: guerrilha colombiana (1964-2000; 45.000 mortes); disputa territorial entre
Armênia e Azerbaijão (1988-1994, 30.000 mortes); guerra civil na Nicarágua (1972-1979, 30.000
mortes); guerra do Golfo (1990-1991, 10.000 mortes); guerra civil em Sri Lanka (1978-2000, 50.000
mortes); o movimento emancipatório/étnico da Chechênia (1994-1996, 50.000 mortes) entre outros.
Fonte: UNESCO. Mortes matadas por arma de fogo no Brasil 1979-2003, p. 19. Disponível em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001399/139949por.pdf . Acesso em: 4 fev 13.
55 Obviamente, muitas destas se referem a um mesmo ofensor, contra o qual pode haver várias ordens
de captura. Além disso, é possível que muitas delas não estejam mais válidas, pela prescrição da pena
ou pela morte do acusado, por exemplo. Dessa forma, não é possível saber com exatidão a quantos
ofensores se refere esta quantidade de mandados.
56 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/bnmp/ . Acesso: em 10 ago. 2014.
57 Maria Lúcia Karam (2004, p. 91) acrescenta que a ineficácia operacional do sistema penal
demonstrada pelos números citados é intencional. Segundo ela, a excepcionalidade de sua intervenção é
condição de sua própria existência. A impunidade não ocorreria apenas por questões conjunturais ou por
deficiências operacionais. A ideia é fazer com que as condenações dos identificados como “criminosos”,
diante do “grande número de crimes que diuturnamente ocorrem”, sejam cumpridas com maior rigor.
Destarte, o objetivo do sistema não seria alcançar todos os responsáveis pela prática das condutas
criminalizadas, mas atuar excepcionalmente e com rigor sobre os selecionados.
CAPÍTULO II
OS DEPÓSITOS DE PRESOS
COMO FATOR CRIMINÓGENO
A MORTE DOS IDEAIS DE “RESSOCIALIZAÇÃO”?
Observa Lola Aniyar de Castro (1983, p. 187) que a pena privativa de
liberdade substituiu as penas corporais e capitais e, no lugar de suplícios,
surgiram as casas de correção e detenção. Supostamente, a humanidade
deveria substituir a crueldade das penas, mas não é o que ocorre dadas as
condições de acondicionamento dos presos 58 . Sobre estas condições,
emblemática exposição de motivos do relatório final da CPI do Sistema
Carcerário, na qual relata as razões para a sua criação:
As constantes rebeliões, a violência entre encarcerados, com corpos mutilados; os óbitos
não explicados no interior dos estabelecimentos; denúncias de torturas e maus-tratos;
presas vítimas de abusos sexuais; crianças encarceradas; corrupção de agentes públicos;
superlotação; reincidência elevada; organizações criminosas controlando a massa
carcerária; custos elevados de manutenção de presos; falta de assistência jurídica e
descumprimento da Lei de Execução Penal motivaram o Deputado Domingos Dutra a
requerer a criação da CPI sobre o sistema carcerário brasileiro (BRASIL, 2009, p. 41).
A realidade prisional do Brasil viola frontalmente a normativa internacional,
tornando quimérica a sua aplicação prática. As “Regras Mínimas da ONU
para o Tratamento de Prisioneiros” (ONU, 1955) prescrevem exigências
mínimas para um tratamento digno dos presos e para os locais a eles
destinados. Entre elas, está a exigência de que satisfaçam as condições de
higiene, o volume de ar, o espaço mínimo, a iluminação, o aquecimento e a
ventilação; que as janelas sejam suficientemente grandes para que os presos
possam ler e trabalhar com luz natural e ar fresco; que a luz artificial seja
suficiente para os presos poderem ler ou trabalhar sem prejudicar a visão; que
todos os locais sejam mantidos e conservados escrupulosamente limpos
(ONU, 1955).
No Brasil, essas condições estão longe de serem cumpridas. A Comissão
Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário identificou numa
penitenciária no Piauí a seguinte situação: “além de paredes encardidas pela
sujeira e pelo tempo, não havia luz nos corredores e nas celas. Quando a CPI
retornou no meio da noite, para refazer a diligência, os Deputados usaram
lanternas e isqueiros para iluminar o local” (BRASIL, 2009, p. 269). Em São
Paulo, a CPI encontrou numa cela do “castigo”, no Centro de Detenção
Provisória de Pinheiros, dez homens que esperavam transferência. No local
não havia nem entrada de ar nem de luz, e eles informaram à CPI que estavam
há mais de sessenta dias sem banho-de-sol (BRASIL, 2009, p. 269).
A normativa da ONU sobre o tratamento de prisioneiros (ONU, 1955)
determina também que sejam postos à disposição dos presos meios para
cuidarem do cabelo e da barba, a fim de que conservem o respeito por si
mesmos; que cada preso disponha de uma cama individual e de roupa de
cama suficiente e própria, trocada com frequência. Contrastando com esta
prescrição, na cidade de Formosa, Estado de Goiás, a CPI identificou na cela
da Cadeia Pública local setenta homens e apenas um banheiro, nas seguintes
condições:
Na verdade, um buraco no chão, chamado de “banheiro”. Na hora do “aperto”, quando a
privada está ocupada, o jeito é improvisar. Num cantinho da cela, há várias garrafas PET
de dois litros. É nelas que os detentos urinam, porque nem sempre dá para esperar que o
banheiro seja desocupado. Há ainda o banheiro “vitrine”, onde os presos são obrigados a
fazer suas necessidades na frente de todos os companheiros e também à vista de quem
estiver passando no corredor, pois, através das grades, podem ser observados urinando ou
defecando. É que a cela, de 5x5, abriga quase setenta homens. Dentro dela havia um
banheiro e, para que coubessem mais homens (que dormem no chão), as paredes do
banheiro foram derrubadas e a privada ficou no meio da cela, à mostra, obrigando os
apenados a passar pelo vexame de ficarem como numa vitrine, enquanto usam o
“banheiro”. […] depois de usar as privadas, os detentos não têm água para lavar as
mãos, nem sequer para jogar água na privada, porque em muitos presídios só é permitido
jogar água uma vez por dia, independentemente de quantas pessoas e de quantas vezes a
privada foi usada. […] (BRASIL, 2009, p. 191 e 196).
Já na Colônia Agrícola de Campo Grande (MS), unidade prisional de regime
semi-aberto, a CPI verificou que uma parte dos presos dormia em barracas
improvisadas e outros presos compartilhavam com porcos a pocilga
(BRASIL, 2009, p. 191 e 196).
As “Regras Mínimas” (ONU, 1955) prescrevem ainda que a administração
penitenciária forneça a cada preso uma alimentação de boa qualidade, bem
preparada, bem e servida e com valor nutritivo; que todo preso tenha ao
menos uma hora por dia para fazer exercícios apropriados ao ar livre —
apenas para citar algumas delas. Entretanto, em relação à alimentação e
ingestão líquida, a CPI do sistema carcerário encontrou essa situação:
Em muitos estabelecimentos, os presos bebem em canos improvisados, sujos, por onde a
água escorre. Em outros,os presos armazenam água em garrafas de refrigerantes, em
face da falta constante do líquido precioso. Em vários presídios, presos em celas
superlotadas passam dias sem tomar banho por falta de água. […] No Instituto Penal
Paulo Sarasate, no Ceará, a comida dos presos é fornecida em sacos plásticos e os
detentos usam as mãos, porque a direção do presídio não fornece talheres. […] Denúncias
de cabelos, baratas e objetos estranhos misturados na comida foram constantes. Comida
azeda, estragada ou podre também foi denunciada. […] A pouca quantidade e a má
qualidade da comida servida não condizem com os preços exorbitantes que o contribuinte
paga — em média R$ 10,00 — por preso. Nas diligências realizadas, a CPI verificou que
a quantidade, a qualidade e a variedade da alimentação servida aos presos não valem
mais do que R$ 3,00 (três reais) por preso ao dia (BRASIL, 2009, p. 195-200).
No tocante ao atendimento à saúde do preso, informa o relatório da CPI o
seguinte episódio, ocorrido entre um detento e um parlamentar da Comissão:
— ‘Quanto tempo você está assim?’
— ‘Quatro anos.’
O jovem, no presídio Vicente Piragibe, localizado na cidade do Rio de Janeiro, carrega
uma bolsa de colostomia. Tem que fazer cirurgia, mas como para a administração é
apenas mais um preso, está lá, carregando a bolsa, numa visão impressionante. A mesma
situação foi encontrada em outras cadeias, como em Franco da Rocha, em São Paulo,
onde o preso também tinha a bolsa pendurada na barriga e já estava assim há três anos.
[…] Em Porto Velho, o preso esperou tanto tempo pelo atendimento, que a gangrena
avançou demais. Depois de meses lutando e chorando por atendimento, foi levado ao
hospital, onde recebeu a notícia de que teria que amputar o pé. Mas não havia vagas,
então, para tratar de um detento e fazer a cirurgia. Ele foi mandado de volta ao presídio,
para aguardar até o dia em que surgisse uma possibilidade de cirurgia. O preso, um
homem de mais de 60 anos, com o pé erguido para o alto, tinha uma visível expressão de
dor e sofrimento. No Centro de Detenção Provisória, em Pinheiros, a CPI encontrou um
homem com um enorme tumor no pescoço. Ele reclamava de dor e disse que, embora o
caroço já tivesse feito dois aniversários, nenhum médico o havia atendido ainda (BRASIL,
2009, p. 203).
As consequências práticas da realidade contrária à normativa internacional
sobre a pessoa do preso são abordadas neste capítulo.
2.1 A prisão como fator criminógeno
Há muito filósofos como Foucault, Bentham ou Goffman advertiam que este
fracasso da prisão não é ocasional, afinal, seus objetivos são distintos dos
declarados, e na realidade seriam o de controlar, disciplinar, selecionar e
degradar.
Foucault (2008, p. 183-184) aponta a origem do cárcere como a mesma das
outras instituições (exército, escola, hospital, fábrica). O núcleo de todas elas
é a disciplina. O professor do Collège de France demonstra como a
regulamentação dos exércitos, das instituições educacionais, dos cárceres,
hospitais e oficinas perseguem uma ideia construtiva, arquitetônica, do corpo
(economia política do corpo), acostumando-o a determinados movimentos,
repetitivos e regulares, de modo que possa funcionar docilmente como uma
máquina. Desta forma, a prisão é vista por Foucault como um mecanismo de
transformar o “criminoso” violento, agitado, impulsivo (sujeito real) em
preso, em sujeito disciplinado, mecânico (sujeito ideal) (ANIYAR DE
CASTRO, 1983, p. 191).
Também ressaltando o aspecto disciplinar da prisão, escreveu Jeremy
Bentham em 1787 o seu projeto de panopticum (pan + opticum ), em uma
série de cartas remetidas de Crecheff, na Rússia, a um amigo na Inglaterra:
O panóptico ou a casa de inspeção: contendo a ideia de um princípio de construção
aplicável a qualquer sorte de estabelecimento no qual pessoas de qualquer tipo
necessitem ser mantidas sob inspeção; e em particular, às casas penitenciárias, prisões,
casas de indústrias, casas de trabalho; casas para pobres, manufaturas, hospícios,
lazaretos, hospitais, escolas, com um plano de administração (BENTHAM, 1789, p. 15).
O “panopticum” seria, pois, a representação arquitetônica da disciplina,
simbolizando a possibilidade de “ver sem ser visto” 59 .
Erving Goffman (1974, p. 17) enfatizou a rotina prisional a fim de demonstrar
a incongruência entre a sua dinâmica como instituição totalizadora e a vida
extramuros, o que impossibilitaria o intercâmbio social do preso e o seu
preparo para o retorno à convivência no mundo externo. De acordo com o
sociólogo canadense, enquanto na sociedade atual o indivíduo tende a dormir,
brincar e trabalhar em diferentes lugares - com diversos coparticipantes, sob
distintas autoridades e sem um plano racional geral - nas instituições totais,
todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única
autoridade, na companhia de um grupo de pessoas onde todos são tratados da
mesma forma e obrigados a fazer as mesmas coisas em conjunto, em horários
estabelecidos, de acordo com num plano racional único planejado para
atender aos objetivos oficiais da instituição 60 . Os internados vivem nelas com
limitado contato com o mundo e são controlados por uma pequena equipe,
que geralmente presta um serviço diário de oito horas.
Mais hodiernamente, Juarez Cirino dos Santos (2005a, p. 3) define a prisão
como “instrumento de gestão diferencial da criminalidade” e não de supressão
desta. Haveria, portanto, uma distinção entre os objetivos ideológicos e os
objetivos reais do arranjo carcerário: os imaginados seriam a repressão e a
redução da criminalidade, enquanto os factuais são a repressão seletiva da
criminalidade e a organização da “delinquência”.
Para a crítica criminológica, a prisão reproduz intramuros a criminalidade e as
injustiças das relações sociais vigorantes fora deles 61 . O cárcere seria útil para
a produção e reprodução dos “delinquentes” selecionados entre as camadas
mais débeis e marginais da sociedade. Ele representa como normais as
relações de desigualdade existentes na sociedade exterior. Como acentua
Antonio Beristain (2000, p. 173), são os “pobres diabos”, “delinquentes de
bagatela”, vítimas de nossas estruturas sociais injustas, que representam mais
de 90% dos que vivem em nossos cárceres. A violência estatal, até então vista
como inútil, seria, na verdade, violência útil do ponto de vista da
autorreprodução do sistema social, da manutenção das relações de produção,
da defesa dos interesses dos detentores do poder e para a distribuição desigual
dos recursos (BARATTA, 1987, p. 628).
Roberto Lyra destacou o processo de degradação humana e assimilação de
novas práticas criminosas patrocinados pela prisão. Segundo ele, a prisão
é a ruptura, de oficio, do chamado contrato social. O preso passa, compulsoriamente, a
vegetar, noutra sociedade. Prisão é a morte moral, morte cívica, morte civil, morte mesmo
pela consumição da vida (LYRA, 1971, p. 108-109).
Este jurista brasileiro destacou o efeito criminógeno da prisão, definindo-a
como “escola anormal de periculosidade”, um “curso de aperfeiçoamento
celerado mantido pelo Estado”. Quanto aos fins da pena, destacou:
Seja qual for o fim atribuído à pena, a prisão é contraproducente. Nem intimida, nem
regenera. Embrutece e perverte. Insensibiliza ou revolta. Descaracteriza e desambienta.
Priva de funções. Inverte a natureza. Gera cínicos ou hipócritas (LYRA, 1971, p. 120)
Portanto, em que pesem as funções declaradas da pena de prisão — seja do
ponto de vista filosófico, funcional ou utilitário —, desde há muito, elas têmsido subvertidas (se é que algum dia existiram, como denunciam os filósofos).
Seja com propósito disciplinar, como instrumento de seleção ou de
gerenciamento da criminalidade, o fato é que a prisão gera uma paulatina
degradação do encarcerado, com efeitos criminógenos exatamente inversos
aos pretendidos, dignos de serem esmiuçados.
2.2 A realidade carcerária
A perversidade no cumprimento da pena faz com que o ofensor se torne, em
certo ponto, uma nova vítima, pois se responde à violência perpetrada por ele
com outro tipo de violência, a estatal. Isso porque, a pretexto de combater
violência, o direito penal acaba gerando mais violência, nem sempre legítima,
mas como pretexto para a violação sistemática de direitos humanos
(QUEIROZ, 2007, p. 1). Nas palavras de Louk Hulsman:
Gostaríamos que quem causou um dano ou um prejuízo sentisse remorsos, pesar,
compaixão por aquele a quem fez mal. Mas como esperar que tais sentimentos possam
nascer no coração de um homem esmagado por um castigo desmedido, que não
compreende, que não aceita e não pode assimilar? Como este homem incompreendido,
desprezado, massacrado, poderá refletir sobre as consequências de seu ato na vida da
pessoa que atingiu? […] Para o encarcerado, o sofrimento da prisão é o preço a ser pago
por um ato que uma justiça fria colocou numa balança desumana. E, quando sair da
prisão, terá pago um preço tão alto que, mais do que se sentir quite, muitas vezes acabará
por abrigar novos sentimentos de ódio e agressividade. […] O sistema penal endurece o
condenado, jogando-o contra a ‘ordem social’ na qual pretende reintroduzi-lo, fazendo
dele uma outra vítima (1993, p. 71-72).
Edmundo Oliveira (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 460) cita alguns
problemas humanos do recluso: insegurança, embrutecimento, solidão,
ociosidade, abandono da família, desajuste sexual 62 e incertezas quanto ao
futuro livre. Tais sentimentos são passíveis de causar-lhe a chamada
“síndrome de vitimização do cárcere” a qual o faz sentir-se “credor” da
sociedade e livre para exercer a violência, devido às violações rotineiras que
padece no cárcere 63 , violências que vão além da privação da sua liberdade:
Uma vez conscientizada a vitimização, o preso comporta-se como possuidor de um imenso
crédito em relação à sociedade, sentindo-se às vezes com poderes para fazer exercitar
seus direitos até com o uso de violência física por não estabelecer um fluxo de causa e
efeito entre seu crime e a perda da liberdade. A sensação de vitimizado desmotiva a
reabilitação pessoal. […] No ambiente carcerário existe todo um processo de crescente
redução do valor antiético do crime, sempre que se procura estabelecer uma comparação
com os efeitos da pena reclusiva imposta ao condenado. Para aquele que furtou, o direito
de propriedade de sua vítima não se equipara com a perda maior do valor da liberdade. O
homicida, mesmo admitindo a proporcionalidade de valores, diante da inoperância da
execução penal, adquire também a posição de vitimizado, que se estereotipa em suas
atitudes e comportamentos.
Aponta Edmundo Oliveira (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 464) que
vítimas e ofensores possuem, de fato, características comuns, como a
propensão a atos violentos, a correr riscos, à desvalorização da autoestima, à
satisfação de impulsos proibidos e à realização de acidentes. O autor relata
que, aos problemas preexistentes à experiência carcerária, outros tantos se
agregam, fazendo com que o condenado se embruteça, se perverta, se
insensibilize. O seu sentimento é o de que as autoridades não se preocupam
com ele, julgando-se um marginalizado social. A síndrome carcerária, a
desanimação, a revolta, os motins e as tentativas de fugas são decorrentes da
impossibilidade de se executar as condenações sob a égide da legalidade e da
humanidade.
Lola Aniyar de Castro (1983, p. 193) explica este fenômeno pelo fato da
prisão não ensinar ao preso viver fora da sociedade, mas criar nele uma
consciência de injustiça da pena aplicada e provocar a rebelião contra os
abusos de poder a que é submetido dentro do cárcere. O preso adquire, então,
a consciência de que, se sua condição social fosse outra, certamente não
estaria na prisão, como normalmente não estão os mais afortunados
(ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 460).
Em virtude do tipo de vida que são obrigados a levar — isolamento, trabalho
escasso, violência por parte de guardas e de outros detentos, rompimento de
vínculos (familiar, profissional e social), perda do direito de serem
considerados membros confiáveis da sociedade — os reclusos ficam cada vez
mais distanciados dos modelos de comportamento social.
A vida no cárcere consolida o status de “criminoso” à pessoa, gera
estereótipos e afeta as possibilidades laborativas futuras. Promove, ainda, a
interiorização do papel do “criminoso” no recluso, a construção psíquica da
sua autoimagem como tal, causando-lhe deformações emocionais. As
definições legais e a rejeição social determinam a percepção do “eu” como
efetivamente desviante, conduzindo-o a viver marginalmente, conforme a
imagem interiorizada (KARAM, 2004, p. 98).
O preso é, desta forma, introduzido em um processo de desculturação,
caracterizado pelo desaprendizado progressivo dos valores e das normas de
convivência social. No cárcere, a punição não lhe acrescenta as habilidades
necessárias para a convivência futura no mundo exterior. Ao isolar e
estigmatizar os escolhidos, o sistema os faz mais desadaptados ao convívio
social e, consequentemente, mais aptos a realizar novas condutas socialmente
negativas (KARAM, 2004, p. 97). “Um mínimo de raciocínio lógico repudia a
ideia de se pretender reintegrar alguém à sociedade, afastando-o dela”
(KARAM, 2004, p. 81). Isso porque as ideias de “ressocialização”,
“reeducação” e “reintegração” à sociedade são absolutamente incompatíveis
com a segregação, consoante lembram Maria Lúcia Karam e Zaffaroni
(1991b, p. 223): o encarceramento é algo tão absurdo quanto tentar ensinar
alguém a jogar futebol em um elevador 64 .
Por estas razões é que, ao invés de controlar a delinquência e de reintegrar o
apenado na comunidade, a pena privativa de liberdade tem fomentado a
exclusão e o crime, estigmatizando o condenado e servindo como incentivo
para a aprendizagem da prática criminosa. Para sobreviver neste ambiente
inóspito, o ofensor assimila novas práticas criminosas num processo de
aculturação conforme os valores e as normas deste (como a violência, a
corrupção e a “malandragem”, nas palavras de Juarez Cirino dos Santos
(2013c, p. 5)). Cria associações e relações paralelas de poder, que reforçam a
cultura da violência e a geração de futuras organizações criminosas (CRUZ,
2011, p. 62-63) 65 .
Toda esta dinâmica o torna confiante e motivado para persistir na “carreira
criminosa”. “Trata-se de uma delinquência formada no subsolo do aparelho
judicial, da qual a justiça desvia os olhos pela vergonha que experimenta ao
castigar aqueles a quem condena, forte o bastante para deixar o juiz sem voz”
(FOULCAULT, 2008, p. 216).
Dessa forma, o sistema penal produz o “criminoso” em pelo menos dois
momentos distintos: no processo de criminalização, ao qualificar
determinadas situações conflituosas ou fatos socialmente negativos como
crimes e com a interiorização do etiquetamento legal e social pelo condenado,
desde o primeiro contato com o sistema penal, especialmente por intermédio
da prisão provisória (KARAM, 2004, p. 98).
Do ponto de vista das consequências paraos que circundam o recluso,
acrescenta Rogério Schietti (CRUZ, 2011, p. 64) que, quanto mais pessoas
são presas, um número maior de famílias é desestruturado e seus dependentes
têm maior probabilidade de se envolver em ilícitos, caso não recebam
assistência social adequada. Assim, além das consequências diretas da
punição sobre a figura do ofensor, deve-se, portanto, considerar também o
sofrimento (de toda espécie), infligido aos seus amigos e parentes 66 .
Em suma, Edmundo Oliveira identifica três ordens de desvantagens do
cárcere: utilitária (relativa ao custo de construção, com a manutenção de sua
estrutura administrativa, sem qualquer retomo); de ordem moral (ao final, a
prisão, seria puro castigo) e de ordem social (não desempenhando o seu papel
“ressocializador” à altura dos esforços e dos investimentos implementados)
(ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 460).
Diante destes fatos, conclui Ferrajoli (2010, p. 379) que, da forma como tem
sido praticada, a prisão é muito mais do que a “privação de um tempo abstrato
de liberdade”. Ela tem elementos de aflição física (manifestados nas formas
de vida e de tratamento, “e que diferem das antigas penas corporais somente
porque não estão concentradas no tempo, senão que se dilatam ao longo da
duração da pena”) e de aflição psicológica (solidão, isolamento, sujeição
disciplinar, perda da sociabilidade, da afetividade e até da identidade).
Todas essas adversidades do cárcere geram a reincidência, que desmente a
promessa de “ressocialização” do condenado. De acordo com o ex-presidente
do CNJ, Cezar Peluso, o Brasil possuía, em março de 2012, uma das maiores
taxas de reincidência do mundo, estimada pelo órgão em 70% (BRASIL,
2011, p. 1). Expressada nas palavras de Foucault (2008, p. 216), a
reincidência é “a vingança da prisão contra a justiça”. Percebe-se que a
própria prisão tem se tornado um obstáculo intransponível para a
“ressocialização”, de forma que “o problema da prisão torna-se a própria
prisão” (PRUDENTE, 2011, p. 1).
Conclui-se, por conseguinte, que o encarceramento é dispendioso para o
Estado, não reintegra ou ressocializa e ainda versa o apenado nas “carreiras
criminais” (PASSETTI, 2004, p. 26). Assim, embora o Estado despenda cada
vez mais com repressão, com a polícia, com a construção de novas prisões,
com a edição e aplicação de mais leis incriminadoras, com mais condenações,
a resposta de uma sociedade mais justa e segura ainda não se faz presente.
Neste contexto, o que se sobressai é a inflação legislativa, a sobrecarga dos
tribunais, a ineficiência da justiça e a ineficácia das penas clássicas
(PALADINO, 2010, p. 406).
2.3 O pessimismo do nothing works
Até a primeira metade do século XX, a política criminal confiava na força
ressocializadora da execução da pena, entretanto, a realidade indigna do
cárcere ora relatada desacreditou o “ideal de reabilitação” (ZAFFARONI;
OLIVEIRA, 2010, p. 472-473). O senso de pessimismo e de incapacidade
instalado pela falha no cumprimento deste mister pode ser traduzido pela
expressão “nada funciona” (nothing works) 67 .
“Nothing works” foi a locução utilizada por Robert Martinson ao divulgar, na
revista “The public interest”, uma pesquisa feita por ele — em conjunto com
Douglas Lipton e Judith Wilks — com 231 pessoas que frequentaram
programas de reabilitação entre os anos de 1945 e 1967. A pesquisa foi
intitulada “The effectiveness of correctional treatment: a survey of treatment
evaluation studies”. Após o estudo, os pesquisadores chegaram à conclusão
de que, com poucas e isoladas exceções, os esforços de reabilitação feitos até
aquele momento não tiveram efeito significativo sobre a reincidência. A partir
daí, a expressão nothing works tornou-se um “mantra” para designar o
fracasso dos programas liberais de reabilitação e para a retribuição ou
dissuasão como justificativas para a punição.
Algumas pesquisas relataram que as diferenças das taxas de reincidência entre
jovens que receberam os serviços especiais (aconselhamento, programas
educacionais, orientação, assistência à saúde, acampamentos) e os que não
dispuseram de semelhante trato foram insignificantes e concluíram que este
tipo de intervenção é de pouca eficácia 68 .
A partir do reconhecimento da falha do sistema de justiça criminal em
alcançar a reabilitação dos agressores 69 , algumas posturas extremas
reclamaram o regresso à pura retribuição. As conclusões de Martinson
repercutiram para que o propósito da reabilitação fosse abandonado, por
exemplo, dos programas de correção nos Estados Unidos. Em 18 de janeiro
de 1989, a Suprema Corte americana, no julgamento Mistretta v. United
States 70 , considerou razoável e racional a remoção da reabilitação das
“diretrizes condenatórias” federais ao sentenciar os réus. Estes passaram a ser
condenados estritamente em retribuição ao crime cometido, sem
reconhecimento de fatores em seu favor, como receptividade ao tratamento,
histórico pessoal e familiar, esforços anteriores para reabilitar-se ou possíveis
alternativas à prisão. Neste processo, o Estado pôde eximir-se da sua
responsabilidade com a reabilitação e a reintegração dos ofensores.
Robert Martinson — que se suicidou em 1980 — talvez imaginasse que seu
ceticismo acerca da reabilitação, se bem divulgado, esvaziasse as prisões.
Segundo ele próprio asseverou, se as prisões não podem ser reformadas,
devem ser gradualmente demolidas 71 . Entretanto, o efeito foi contrário.
Contemporaneamente, a reabilitação ainda se encontra ausente de boa parte
do sistema de correção americano. Penas mais pesadas, prisões-celeiros
(warehouses ) tornaram-se a regra. O raciocínio é que, se “nada funciona”
para reabilitar os “infratores”, deve-se neutralizá-los por meio de duras penas
de prisão e do uso ocasional da pena de morte (MILLER, 1989, p. 1).
Além dos efeitos surtidos nas decisões judiciais e na execução da pena,
Francis T. Cullen e Paul Gendreau (2001, p. 316) relatam que o nothing works
teve reflexos indesejados no pensamento criminológico. Conforme os
professores canadenses, ao apontar que nada funciona, essa ideologia
legitimou a “destruição do conhecimento criminológico”, fazendo com que, a
partir daí, os criminólogos se concentrassem na crítica de que nada funciona,
ao invés de empregarem seus esforços na “construção do conhecimento”,
apontando o que é que funcionaria.
2.4 O endurecimento via pena de morte
Manifestações contundentes em favor de políticas penais rigorosas como a
pena de morte não são um fenômeno recente. Conforme os diálogos narrados
por Platão, a pena de morte era defendida por Sócrates como fruto da
necessidade de obediência irrestrita às leis. O próprio Sócrates não se furtou a
esta obediência, enfrentando sua pena de morte, decidida pelo Tribunal
Popular mediante a ingestão do cálice de cicuta, narrada nas palavras de José
Rossini Campos do Couto Corrêa (2011, p. 164-165):
Sócrates não titubeou frente ao Tribunal Popular, composto de 501 juízes, muitos deles
marinheiros e comerciantes, dos quais 280 votaram pela condenação e 221 pela
absolvição, com 59 sufrágios decidindo o destino do mestre dos mestres, que não abjurou
da Filosofia, declarando que jamais faria outra coisa em sua existência, mesmo que mil
vezes tivesse que morrer. […] Nada de fuga, nada de multa, nada de exílio, nada de
suborno, nada de abjuração e, muito menos, nada de comutação da pena.
Platão (2013, p. 358-359), em As leis , Livro IX, demonstra acolher a pena de
morte, afirmando que ela seria apenas o menor dosmales, se benéfica para
outros cidadãos:
Entendemos que toda punição legalmente aplicada não visa ao mal, mas via de regra
produz um destes dois efeitos: ou torna a pessoa que sofreu a punição, melhor ou a torna
menos má. Mas se qualquer cidadão é reiteradamente condenado por esse ato, ou seja, a
perpetração de alguma falta gravíssima e infame contra os deuses, os pais ou o Estado, o
juiz o considerará como já incurável reconhecendo que, apesar de todo o treinamento e
educação que recebeu desde a infância, não se conteve, a ponto de cometer a pior das
iniquidades. Para ele apenas será a morte, o menor dos males, o que para os outros
[cidadãos] será um exemplo benéfico, pois o verão caído em desgraça e eliminado para
além das fronteiras do país.
Walter Nunes da Silva Júnior (2009, p. 8) aduz que, para Platão, a pena de
morte era uma “pena natural” para delitos graves, como os praticados contra
as divindades, os cultos, os genitores e contra o próprio homicídio.
O mesmo autor informa que, após o Renascimento, a pena (incluindo a de
morte) não tinha mais a finalidade de aplacar a ira dos deuses, mas de
proteger a ordem e a paz públicas, como forma de imposição da autoridade do
soberano e do Estado. Nesta época, desenvolveu-se, também, o “anti-
humanismo”, caracterizado por uma Igreja e um poder estatal autoritários em
que se perseguiram bruxos e bruxas, mediante execuções em fogueiras,
guerras religiosas sangrentas etc (SILVA JÚNIOR, 2009, p. 10).
Para manter a autoridade do soberano, além da pena de morte, inseriu-se, no
ordenamento jurídico, mecanismos bárbaros, utilizados tanto para a punição
dos culpados quanto como meio processual para se “descobrir a verdade”. O
corpo do homem tornou-se “objeto da pena” e “objeto do processo” e padecia
provações (suplícios) com o fito de “esclarecer” o crime 72 . A tortura, por
exemplo, foi a técnica empregada para se “encontrar a verdade” do crime em
processos “secretos” 73 , e a pena corporal foi infligida publicamente como
exemplo aos demais e como forma estratégica de prevenção geral. A prisão,
nesta época, era apenas uma forma de detenção do homem para a aplicação da
futura pena corporal (SILVA JÚNIOR, 2009, p. 11).
Anos mais tarde, a pena de morte ainda era defendida pelos filósofos
modernos. Para Kant, ela também atenderia ao seu imperativo categórico, no
sentido de que “se ele matou, deve morrer”. A finalidade da pena capital,
assim como das demais, seria aplicar a justiça como igualdade, de realizar a
perfeita correspondência entre o crime e o castigo, não podendo ser mitigada
ou afastada por razões de utilidade ou felicidade sob pena de injustiça. Assim,
se a comunidade não punisse o assassino com a morte, tornar-se-ia cúmplice
de seu crime e, indiretamente, responsável pelo sangue derramado, consoante
anota André Coelho (2012, p. 1).
Um dos primeiro arautos contra a pena de morte foi Beccaria, que se valendo
de argumentos contratualistas de Rousseau e da doutrina da divisão dos
poderes de Montesquieu, criticou as atrocidades do sistema penal, em especial
a pena capital, a tortura e os suplícios. Segundo Bobbio, a obra de Beccaria
influenciou o debate sobre a pena de morte e inspirou a primeira lei penal que
a aboliu, a lei toscana de 1786 74 .
Silva Júnior (2009, p. 11) explica que, sob a influência de Montesquieu,
Beccaria desenvolveu a ideia de que o direito de punir estatal deve ser
limitado pela lei e só poderia ser exercido dentro dos parâmetros concebidos
pela sociedade e estabelecidos em lei. A influência contratualista em Beccaria
é explicada por Bobbio:
Se sociedade política deriva de um acordo dos indivíduos que renunciam a viver em
estado de natureza e criam leis para se proteger reciprocamente (o contrato social), é
inconcebível que esses indivíduos tenham posto à disposição de seus semelhantes também
o direito à vida (BOBBIO, 2004, p. 69).
Assim, posto que o indivíduo tivesse se comprometido perante a sociedade
com o pacto social, conferindo ao Estado o poder-dever de puni-lo, caso
viesse a transgredir as normas de conduta, ele conservaria o seu direito à vida,
pois não o teria renunciado.
A despeito da tese contrária à pena de morte de Beccaria ter encontrado
entusiastas de renome como Voltaire, que lhe deu visibilidade, ela não foi
acolhida pelos criminologistas que se seguiram. Tanto Enrico Ferri quanto
Cesare Lombroso foram partidários da pena capital, seja pela sua função
exemplar, seja pela “seleção” que ela institui ao eliminar a “raça criminosa”.
Ferri, porém lamentava seu escasso impacto dissuasório ou intimidatório
devido à sua pouca utilização. Raffaele Garófalo a considerava um
mecanismo de seleção artificial que segue o sábio modelo da natureza (uma
espécie de “darwinismo social”) (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA;
GOMES, 2000, p. 175 e 182).
Outras escolas que se seguiram à clássica (escola positiva, terceira escola
italiana, moderna, técnico-jurídica, da defesa social) também encontraram
partidários à pena de morte. Junto a elas, há outros autores que contribuíram
de forma relevante e aprofundada para o exame da questão da pena de morte.
Entretanto, a menção ou a abordagem de todos eles ultrapassaria o nosso
escopo de uma singela contextualização histórica desta problemática.
Atualmente, no Brasil, a pena de morte ainda é admitida, para os casos de
guerra declarada (art. 5º, XLVII, CF). Nos Estados Unidos, ela é aceita em
cerca de trinta e cinco estados americanos. Seu fundamento é a dissuasão
geral, vista na seção 1.4.2, uma vez que pressupõe que a pena capital previna
homicídios futuros, o que faria com que os ofensores se refreariam em matar
por temer o castigo final.
A respeito do suposto efeito dissuasivo da pena capital, ponderam Fuller e
Wozniak (2006, p. 266) que a sua medição é uma tarefa difícil. Questionam os
autores se os homicidas, de fato, cogitariam da possibilidade de serem
executados posteriormente por esta razão. Estimam os americanos que a
maioria dos ofensores provavelmente não calcula racionalmente as
consequências de suas ações antes de praticá-las ou, se o fazem, é provável
que a sanção capital não os impediria de qualquer maneira.
Por outro lado, lembram que, quando o Estado mata, ele apresenta um modelo
de comportamento que pode ter consequências remotas como, por exemplo, a
“síndrome do suicida-assassino” (quando pessoas incapazes de cometer
suicídio matam outra pessoa na expectativa de que o Estado as execute), a
“síndrome do carrasco” (quando ofensores em série acreditam que estão
fazendo um serviço à sociedade, eliminando os indivíduos indesejáveis) e a
notoriedade, na hipótese em que indivíduos, animados pela atenção conferida
pela mídia a casos sensacionalistas, matam com o fim de se tornarem
conhecidos 75 .
Entre argumentos utilitaristas e razões éticas contrárias à pena de morte,
Bobbio (2004, p. 74) cita a sua irreversibilidade, em caso de erro judiciário,
que, neste caso, seria irreparável. O cientista político refuta ainda a
possiblidade de alegação de uma suposta “legítima defesa” pelo Estado, ao
aplicar a pena de morte, e assevera: “A condenação à morte depois de um
processo não é mais um homicídio em legítima defesa, mas um homicídio
legal, legalizado, perpetrado a sangue frio, premeditado. Um homicídio que
requer executores, ou seja, pessoas autorizadas a matar” 76 .
2.5 Just deserts
A teoria do just deserts (no sentido de “apenas o merecido”) defende que a
punição deve ser proporcional à gravidade da infração cometida. Os
defensores desta filosofia (cujo arauto maior é Andrewvon Hirsch 77 )
enfatizam a importância do devido processo legal, das sentenças com prazos
determinados e a remoção da discricionariedade judicial no momento de
sentenciar (BARTON, A., 2004, p. 1). Este pensamento tornou-se influente
nos Estados Unidos durante a década de 1970, após a publicação da obra
“Doing Justice”, de Hirsch, que explorava as conclusões do “Committee for
the Study of Incarceration”. Assim como o nothing works de Robert
Martinson, os princípios retributivos do just deserts influenciaram a retirada
da ideia de reabilitação do modelo americano (VON HIRSCHI, 1985, p. 19-
26).
Com base na classificação outrora citada, just deserts pode ser considerada
uma filosofia retributiva da pena. Ao contrário das correntes preocupadas em
prevenir futuras infrações (como a dissuasão, a reabilitação ou a
incapacitação), a vertente retributiva se importa com a punição dos crimes já
cometidos (quia peccatum) , ao modo kantiano (ver seção 1.3.1). Trata-se de
punição sob o eufemismo de just deserts.
Segundo o just deserts , embora outros benefícios positivos possam advir da
punição (como, por exemplo, a prevenção de novos crimes), existem os que
são simplesmente efeitos incidentais da sanção e não o seu fim precípuo 78 .
O modelo just deserts foi bastante prestigiado nos Estados Unidos em meados
da década de 1970, em virtude da crescente preocupação com as práticas
discricionárias e discriminatórias do modelo de reabilitação ou de tratamento,
então dominantes (BARTON, A., 2004, p. 2) 79 . Nestes métodos, um ofensor
poderia receber uma medida de segurança por tempo indeterminado e seria
liberado apenas quando estivesse “curado”. O ideal incapacitante era, dessa
forma, utilizado para endossar penas de prisão excessivamente longas, a fim
de evitar futuras agressões pelo indivíduo. O just deserts e a sua ideia de
proporcionalidade pretendiam estabelecer limites para a extensão e para o tipo
de punição aplicada (BARTON, A., 2004, p. 2) 80 .
Alana Barton (2004, p. 2) relata que, ao longo da década de 1990, a ideologia
punitiva — juntamente com uma crescente ênfase na proteção “do público”
— continuou a florescer nos Estados Unidos e também no Reino Unido. A
autora acusa a direita política destes países de apropriar-se da filosofia do just
deserts e alterar o foco da proporcionalidade para a aplicação de castigos mais
severos e sentenças mais longas (nos moldes da tree strikes law ), tornando as
sentenças desproporcionalmente graves.
Em que pese o modelo just deserts possa, teoricamente, oferecer decisões
mais justas e imparciais (restringindo sentenças desproporcionais ou
“exemplares”, que contenham punições inconsistentes e discriminatórias),
Barbara Hudson 81 aponta que o just deserts , com sua ênfase no tratamento
igualitário para crimes semelhantes, não leva em conta fatores estruturais e
econômicos, tais como a pobreza. A criminologista britânica afirma que neste
modelo não há espaço para o reconhecimento das desigualdades sociais e,
portanto, não permite mitigações para pessoas que tenham menos
oportunidades de permanecerem obedientes à lei.
O bloqueio de oportunidades pode, de fato, levar a processos criminógenos ou
a atividades desviantes, consoante já identificara Robert Merton desde 1938,
em sua teoria criminológica da anomia (v. seção 4.2.1). Assim, uma sentença
preocupada apenas com o crime, que não reconhece outras questões de fundo
ou circunstancias do ofensor, poderia perpetuar a discriminação contra os
pobres, as minorias, as mulheres e os jovens (BARTON, A., 2004, p. 2).
Portanto, concluímos com Barton e Hudson que, teorias como o just deserts
— que em tese poderiam garantir um sistema justo e imparcial de justiça por
meio da aplicação dos princípios de coerência e de proporcionalidade —
necessitam ser cuidadosamente equilibradas com outras mais flexíveis, como
a justiça restaurativa, que permitam a consideração de circunstâncias
individuais e do impacto das desigualdades estruturais, tanto no
comportamento ofensivo quanto no processo de criminalização (BARTON,
A., 2004, p. 2).
2.6 Poderia a pena de prisão ser abolida?
Há mais de trinta anos, Lola Aniyar de Castro lançou a seguinte provocação,
até hoje bastante atual: “Apesar do seu fracasso, a prisão não desaparece. Por
quê?”. Segundo ela, a prisão se mantém porque introduz um elemento no seu
autor: o estigma, representado pelos antecedentes penais do ofensor. A prisão
não pretenderia, assim, acabar com o cometimento de infrações penais, mas
distinguir umas das outras, definindo a “verdadeira delinquência”. Consoante
a criminóloga venezuelana, é conveniente considerar a plebe “imoral ou
sediciosa, bárbara ou fora da lei”. O ofensor aparece como pertencendo a um
mundo diferente, o do “basfond”, o do vilão, fazendo crescer a desconfiança
para com as classes baixas e, por oposição, a confiança nas altas (ANIYAR
DE CASTRO, 1983, p. 194).
Louk Hulsman acrescenta a esta perquirição o fato de que a prisão — e
mesmo a pena de morte — não só permanecem, como são defendidas
inclusive por aqueles que mais sofrem o peso do sistema penal 82 . À mesma
conclusão chegou o realista Roger Matthews. Para este, apesar de todas as
queixas sobre a ineficiência, os custos da prisão e suas consequências
nefastas, a população em geral a prefere, se comparada a outras políticas.
“Ninguém defende a prisão, mas ninguém é contra ela, apesar de seus custos”
(MATTHEWS, 2009, p. 349).
Este reclamo pela prisão também é identificado por Luiz Flávio Gomes
(2001, p. 37), “A população desesperada, totalmente incrédula […] pede o
irracional (pena de morte), o inconstitucional (prisão perpétua), o absurdo
(agravamento de penas, mais rigor na execução) e o aberrante (diminuição da
maioridade penal)”.
De acordo com Louk Hulsman, isso ocorre porque:
Na vida real, muito poucas pessoas ficam satisfeitas com o que está acontecendo com a
justiça criminal quando elas (ou pessoas próximas a elas) são diretamente envolvidas em
um evento que é criminalizado. […] Quando se dá a estas pessoas a possibilidade de
escolher outras soluções, elas têm muitas dificuldades para achar uma solução fora do
modelo punitivo. E quando se pede uma manifestação àqueles que não estão diretamente
envolvidos nas situações problemáticas, eles manifestam solidariedade com o sistema da
justiça criminal e pedem, inclusive, uma solução mais grave. Esse estado de coisas faz
com que os políticos, na maioria das vezes, combatam as medidas de minimalização ou
abolição da justiça criminal (1993, p. 127).
Luisa de Marillac Passos e Maria Aparecida Penso (2009, p. 80 e 89)
acrescentam que, em geral, a sociedade não consegue perceber uma
alternativa de punição que não seja a prisão. Caso adote outros meios de
resolução de conflitos, o sistema de justiça criminal é visto como ineficiente e
promotor da impunidade:
A comunidade tem a Justiça como ineficiente no sentido do controle social, pois entende
que a Justiça tem que ser unicamente punitiva, ou seja, deve basear-se na privação de
liberdade, caso contrário não estará cumprindo o seu papel, e que as medidas alternativas
seriam então uma forma ‘de passar a mão na cabeça’ de quem comete algum delito.
Rogério Schietti alerta para os riscos e enganos trazidos por este tipo de
pensamento que poderia espargir a repressão contra todos,
indiscriminadamente, às custas de valorosos direitos e garantias individuais
duramente conquistados:
Sobre isso e ante o ingresso, no sistema de justiça criminal brasileiro, de pessoas
detentoras de cargos e prestígio político que até há alguns anos as afastavam do risco de
punição penal, tivemosoportunidade de observar (Cruz, 2011: 27) que ultimamente se
passou a ver, com maior frequência, cenas de conhecidos políticos e grandes empresários
algemados e conduzidos ao cárcere preventivo, a engendrar a percepção, pela população
em geral, de uma espécie de «democratização» na aplicação da prisão cautelar. […] soa
irracional, a pretexto de combater a generalizada impunidade em relação a certos setores
da sociedade, institucionalizar-se uma repressão abusiva contra todos, jogando no ralo a
custosa construção dos valores e princípios do direito penal moderno (Gomes, 1995: 166)
(CRUZ, 2013, p. 50).
Maíra Rocha Machado atribui parte da responsabilidade por essa
desinformação pública aos próprios operadores do direito, que poderiam
valer-se de oportunidades em que estão em evidência para esclarecer à
população sobre meios alternativos e mais eficazes que a prisão:
Além disso, é preciso tocar na responsabilidade do próprio Poder Judiciário, que
sistematicamente perde a oportunidade de comunicar à opinião pública que há várias
outras formas de punir além do envio à prisão. Isso aconteceu no julgamento da AP 470,
em que o debate sobre penas restritivas de direitos, multa e reparação do dano ficou para
segundo plano até o presente momento. Enquanto essas questões não se tornarem
protagonistas de nossa política de penas, não há política de criação de vagas que resolva
o problema do nosso sistema prisional (MACHADO, M., 2012, p. 1).
Maria Lúcia Karam (2004, p. 84) aduz, como razões para a indispensabilidade
da prisão, o seu simbolismo (bastante expressivo) e sua visibilidade (com a
exposição da condenação penal). Fato é que, conforme observado na seção
1.5, nas tendências criminalizadoras hoje dominantes, a pena privativa de
liberdade subsiste com incidência e rigor cada vez maiores, a despeito das
suas conhecidas mazelas.
Diante de todas estas constatações, Thomas Mathiesen arrisca uma conclusão:
Devemos, então, concluir que a abolição das prisões é “um sonho impossível”? À
primeira vista, parece que sim. No mínimo, o presente e o futuro imediato parecem
sombrios. O clima político favorece enormemente a prisão; realmente, o clima político
aprova o ressurgimento de algo tão medieval quanto a sentença de morte. Hoje em dia,
nos Estados Unidos, não existe mais o político manifestando-se contra a sentença de
morte. A ordem do dia é: “três vaciladas e você está fora (MATHIESEN, 2003, p. 81-82).
O autor vislumbra, portanto, a impossibilidade de abolição das prisões a curto
e médio prazos, principalmente em face das “políticas penais” (que não são
verdadeiramente “políticas criminais”) já referidas nas seções 1.6, 2.3 e 2.5
(como tree strikes and you are out, nothing works, just deserts ), estimuladas
pelos próprios parlamentares e seus eleitores, como lembrou Hulsman 83 .
No mesmo sentido, entende Salo de Carvalho (2013, p. 1 e 9) que, na atual
conjuntura (em especial na realidade brasileira), o abolicionismo do sistema
penal se revela impraticável, porque o modelo abolicionista, em última
instância, levaria a uma possível “anarquia punitiva”, isento de legalidade e
de limites às liberdades.
No mesmo diapasão, Antonio Beristain (2000, p. 55) relata que “a história
sociológica e a filosofia jurídica ensinam que, sem sanções penais, resulta
impossível a convivência, ao menos nos tempos historicamente conhecidos e
na atualidade”. Aduz, entretanto, que esta necessidade de aplicação de
sanções penais não significa “que os delinquentes tenham que ser
encarcerados entre quatro paredes para castigá-los com intuito unicamente
vingativo, sem gastar um minuto para sua integração na sociedade”
(BERISTAIN, 2000, p. 55).
Afora todas as deformidades apontadas na pena de prisão — tanto em relação
ao seu déficit de legitimidade quanto à sua prática desvirtuada das finalidades
propostas (ver seções 1.1 e 1.2) —, alguns abolicionistas a consideram
necessária. Mathiesen (2003, p. 97) reconhece que “temos que admitir talvez
a possibilidade de que encarcerar alguns indivíduos permaneça. A forma de se
tratar deles deveria ser completamente diferente do que acontece hoje em
nossas prisões”. Nils Christie (1977, p. 4) não descarta a necessidade de
prisão para casos de maior periculosidade, mas alerta que o sistema de justiça
não é eficiente em determinar “os incorrigíveis” e os que não necessitam de
segregação.
Ferrajoli (2010, p. 231) encara a prisão como uma técnica institucional de
minimização da reação violenta à desviação socialmente não tolerada,
funcionando como garantia do acusado contra os arbítrios, os excessos e os
erros conexos a sistemas não jurídicos de controle social (por exemplo, a
vingança privada) 84 . A pena, segundo o jurista italiano, é justificada como mal
menor, ou seja, porque seria menos aflitiva e menos arbitrária do que outras
reações não-jurídicas, que se produziriam na sua ausência (FERRAJOLI,
2010, p. 312). Juarez Cirino dos Santos (2005b, p. 7) assente que o objetivo
imediato é “menos melhor cárcere” e “mais menos cárcere”, com a
maximização dos substitutivos penais, das hipóteses de regime aberto, dos
mecanismos diversórios 85 (diversion) e de todas as indispensáveis mudanças
humanistas do cárcere.
Ferrajoli (2010, p. 378-379) ressalva, entretanto, que a imprescindibilidade da
pena de prisão não impede a sua justificada superação a longo prazo ou, ao
menos, uma drástica redução da sua duração, a curto e médio prazos.
Existem, ainda conforme o professor italiano, dois fatores que fazem com que
não resulte utópica uma batalha pela abolição da pena privativa de liberdade,
mesmo que seja a longo prazo. O primeiro deles é a insatisfação cada vez
mais difundida no interior da cultura jurídica (inclusive dos operadores
carcerários) e o segundo refere-se ao seu caráter cada vez mais obsoleto.
Mathiesen comparte da necessidade desta expectativa de superação:
Porém, creio que a conclusão do “sonho impossível” é muito apressada. Em um trecho
provocativo sobre as vitórias abolicionistas do passado, o criminologista alemão
Sebastian Scheerer lembra-nos que “nunca houve uma transformação social significante
na história que não tenha sido considerada irreal, estúpida ou utópica pela grande
maioria dos especialistas, mesmo antes do impensável se tornar realidade (MATHIESEN,
2003, p. 82).
Assim como um dia imaginamos impossível a abolição da escravatura, por
exemplo — hoje uma realidade incontestável —, o mesmo pode ser pensado
em relação à medieva pena de prisão, especula Mathiesen.
Em conclusão, pode-se afirmar que, se no atual estágio ainda não podemos
prescindir das prisões, a pena privativa de liberdade deve ser deixada como
um último e extremo recurso, visto que ela evidencia, de forma cada vez mais
inequívoca, o seu esgotamento histórico sem cumprir as promessas de
retribuição e de “ressocialização” com um mínimo de humanidade ou
plausibilidade.
Imperiosa é, por fim, a mudança de orientação na política criminal brasileira
para uma responsabilização proveitosa do ofensor, reparando vítima e
comunidade atingidas, envolvendo todos no processo de sua reinserção social,
tal como aventa a justiça restaurativa 86 . Afinal, no sistema de justiça criminal,
o ofensor não é efetivamente responsabilizado, mas punido pelo ato praticado.
Renato Campos de Vitto (2005, p. 41) provoca sobre essa necessidade de
mudança: “Antes de mais nada, precisamos definir o que, de fato, se pretende
construir por meio do nosso sistema de Justiça: uma nação de jaulas ou uma
nação de cidadãos.”
Em resposta, Mathiesen (2003, p. 96) indica um caminho de objetivos
semelhantesao restaurativo: “A direção desse novo clima, é com certeza,
difícil de predizer, mas provavelmente implicaria numa ênfase renovada no
apoio real às vitimas, assim como nos recursos e serviços sociais ao
transgressor, uma vez que a solução altamente repressiva falhou
completamente”.
García-Pablos de Molina (2012, p. 437) comenta o potencial rejuvenescedor
da justiça restaurativa como alternativa à crise ora identificada: “Representam
ou parecem representar a nova seiva rejuvenescedora do sistema, capaz de
apresentar, com seu discurso positivo e otimista, alternativas válidas ao
niilismo do nothing works que caracteriza o referido sistema.”
Esta aspiração perdura há anos como já vaticinou o penalista e ministro da
justiça alemão, Gustav Radbruch (1961, p. 97): “Não precisamos de um
Direito Penal melhor, mas de algo melhor do que o Direito Penal”.
Beristain (2000, p. 55) encoraja esta expectativa: “Oxalá, as próximas
gerações possam prescindir da sanção penal”. De acordo com o autor
espanhol, historicamente já demonstramos que a superação é possível, afinal,
“afortunadamente, superamos o antigo homo faber , trabalhador, e o homo
sapiens , que constata a realidade exterior a ele. Chegamos ao homo pius ,
compassivo e solidário, ao homo creator , que do seu interior vai fazendo e
refazendo as coisas” (BERINSTAIN, 2000, p. 57). Somos, portanto,
fundamental e essencialmente criadores. Ademais, tão indesejável quanto a
prisão em grades seria a nossa prisão em ideias limitadas. A justiça
restaurativa apresenta-se, nesta senda, como uma nova seiva criadora.
58 Não é por outra razão que autores como João Carlos Galvão Júnior (2003, p. 2-3) proclamam a
inconstitucionalidade da pena de prisão: “Reconhecemos que a prisão é uma realidade absolutamente
inconstitucional, visto que, pelo Texto Maior, ‘ninguém será [ou deveria ser] submetido a tortura nem a
tratamento desumano ou degradante’ (CF, art. 5.º , inc. III). Aliás, o mesmo diploma constitucional
proíbe as penas cruéis (inc. XLVII, e), assinala que ‘a pena será cumprida em estabelecimentos
distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado’ e assegura aos presos ‘o
respeito à integridade física e moral.”
No mesmo sentido, declara García-Pablos de Molina (2012, p. 494): “penas proibidas “formalmente”
pela nossa Constituição (art. 5.°, XLVII), penas cruéis, trabalhos forçados, pena de morte via aids etc.)
acham-se presentes no dia-a-dia de qualquer estabelecimento prisional.”
59 Bentham (1789, p. 29-31) afirma: “Não apenas isso, mas quanto maior for a probabilidade de que
uma determinada pessoa, em um determinado momento, esteja realmente sob inspeção, mais forte será a
persuasão — mais intenso, se assim posso dizer —, o sentimento que ele tem de estar sendo
inspecionado. […] Regozijo-me com o fato de que há, agora, pouca dúvida de que o plano possui as
vantagens fundamentais que venho atribuindo a ele: quero dizer, a aparente onipresença do inspetor (se
os teólogos me permitirem a expressão), combinada com a extrema facilidade de sua real presença.”
60 Segundo Goffman (1974, p. 17), “Nas instituições totais, existe uma divisão básica entre um grande
grupo controlado, que podemos denominar o grupo dos internados, e uma pequena equipe de
supervisão. Geralmente, os internados vivem na instituição e têm o contato restrito com o mundo
existente fora de suas paredes; a equipe dirigente muitas vezes trabalha num sistema de oito horas por
dia e está integrada no mundo exterior. Cada agrupamento tende a conceber o outro através de
estereótipos limitados e hostis; a equipe dirigente muitas vezes vê os internados como amargos,
reservados e não merecedores de confiança; os internados muitas vezes veem os dirigentes como
condescendentes, arbitrários e mesquinhos. Os participantes da equipe dirigente tendem a sentir-se
superiores e corretos; os internados tendem, pelo menos sob alguns aspectos, a sentir-se inferiores,
fracos, censuráveis e culpados” .
61 Boaventura de Sousa Santos (1996, p. 692) observa que, no domínio da justiça penal, os grandes
“consumidores” (réus) são indivíduos jovens do sexo masculino. Porém, do seu ponto de vista, a
juventude da população prisional recomenda, ao contrário, um uso muito maior das medidas alternativas
à pena de prisão do que aquele que tem sido feito.
62 A homossexualidade, a prostituição e a castração química são realidades do sistema carcerário,
segundo apurou a CPI. A primeira é facilitada pelas condições de alojamento e pela desconsideração das
necessidades de índole sexual dos presos: “Os colchões são sempre em menor quantidade do que o
número de presos. Os presos têm que colar vários colchões e grudar o corpo com o de outro para se
agasalharem” (BRASIL, 2009, p. 197- 198).
Sobre a prostituição, relata Luiz Fernando Correa da Rocha, Presidente da Federação Brasileira dos
Servidores do Sistema Penitenciário: “Prostituição há, com certeza, nos presídios. Muitas vezes, a
namorada começa a passar para outro preso e assim ela vai visitando um, dois, três. […] O problema
nosso são essas crianças que estão sendo encaminhadas para a prostituição dentro do presídio. […]
Porque o preso também é pressionado lá: ‘Ó, tua filha é bonitinha. Passa para cá, senão acontece alguma
coisa contigo ou com a tua família na rua’. Quando vê, ele é obrigado a entregar a filha ou o filho para
um outro preso. Isso é normal. Seria inocência nossa achar que isso não acontece. […].”. Em relação às
crianças nascidas no presídio e que permanecem com suas mães, cita: “Como também há crianças
presas, no Rio Grande do Sul, dentro do presídio feminino. Nós temos lá, se não me engano, 30
crianças, piazinhas lá, de 3 a 4 anos de idade, que estão presas desde que nasceram. E tem muitos deles
que nem conhecem o que é rua, que ficam na grade ali, pendurados na grade” (BRASIL, 2009, p. 261).
Por fim, quanto à castração química, “à CPI também foi denunciado por presos, e confirmado pelo
Diretor da Penitenciária de Urso Branco, o uso de uma substância na comida chamada salitre, com o
objetivo de diminuir o consumo de alimentos e reduzir o apetite sexual dos internos” (BRASIL, 2009, p.
201).
63 Ilustrando a violência que ocorre literalmente no cárcere, o relatório da CPI carcerária afirma: “Em
uma cadeia na Bahia, o preso disse à CPI que, quando eles têm dores e pedem remédio, o Diretor manda
um agente com um porrete, onde está escrito “dipirona”, para agredi-los. “Porradas” é o remédio que
tomam” (BRASIL, 2009, p. 204).
64 No original: “Sabemos que la ejecución penal no resocializa ni cumple ninguna de las funciones “re”
que se la han inventado (“re”-socialización, personalización, individuación, educación, inserción, etc.),
que todo eso es mentira y que pretender enseñarle a un hombre a vivir en sociedad mediante el encierro
es, como dice Carlos Elbert, algo tan absurdo como pretender entrenar a alguien para jugar futbol dentro
de un ascensor” (ZAFFARONI, 1991a, p. 223).
65 Acerca da arregimentação de presos por organizações criminosas, relata a CPI Carcerária que esta
prática influencia e até determina a rotina e as normas do presídio: “As Regras Mínimas para
Tratamento dos Presos no Brasil asseveram, em seu art. 7º, que os presos pertencentes a categorias
diversas devem ser alojados em diferentes estabelecimentos prisionais ou em suas seções, observadas
características pessoais tais como: sexo, idade, situação judicial e legal, quantidade de pena a que foi
condenado, regime de execução, natureza da prisão e o tratamento específico que lhe corresponda,
atendendoao princípio da individualização da pena. (…) No Rio de Janeiro o critério principal de
separação dos presos é a organização criminosa a que pertencem. A Lei de Execução Penal e seus
critérios de separação dos presos foi substituída pelo Comando Vermelho, pelo Terceiro Comando, pelo
Amigo dos Amigos, Inimigos dos Inimigos ou pelos Amigos de Israel. O mais grave é que esse critério
é aceito e respeitado pelo Secretário de Administração Penitenciária, pelo promotor de execução e pelo
defensor público” (BRASIL, 2009, p. 277).
66 Neste ponto, merecem destaque as conclusões da CPI Carcerária acerca da indiferença com a mulher
reclusa e sobre os impactos na sua família: “(…) na prática, que as políticas de execução penal
simplesmente ignoram a questão de gênero. (…) Há crianças recém-nascidas na maioria dos presídios
do País, muitas delas vivendo em condições subumanas, como a CPI constatou em Recife, onde, na
Colônia Bom Pastor, vimos um bebê de somente seis dias dormindo no chão, em cela mofada e
superlotada, apenas sobre panos estendidos diretamente na laje. (…) Nas cadeias femininas, nem
mesmo absorvente higiênico ou remédios para cólicas estão disponíveis.(…). Quanto aos absorventes,
quando são distribuídos, são em quantidade muito pequena, dois ou três por mulher, o que não é
suficiente para o ciclo menstrual. A solução? As mulheres pegam o miolo do pão servido na cadeia e os
usam como absorvente. (…) Acompanhamos casos de presas com câncer de mama e outros problemas
graves simplesmente deixadas à morte, sem atendimento (BRASIL, 2009, p. 204, 205 e 283).
Sobre o descaso com a mulher presa, vale lembrar o fato, ocorrido no Pará, da adolescente de quinze
anos que “ficou presa por mais de trinta dias em uma cela da Cadeia Pública de Abaetetuba com cerca
de vinte presos do sexo masculino, sendo torturada e estuprada repetidamente, às vistas das autoridades
que administravam a unidade. A menina foi “resgatada” pelo Conselho Tutelar local, após sofrer as mais
variadas e constantes violências sexuais e psicológicas. O Caso Lidiany, porém, não é único. A CPI
acompanhou em, outros Estados, situações semelhantes, e, pior, muitas vezes, as autoridades
responsáveis tratam a questão como de somenos importância. Ouvimos de diversos delegados,
promotores, agentes penitenciários e até juízes que “quando não tem onde prender mulher, a gente
coloca com os homens, mesmo… Fazer o quê?”. (…) Detectamos outros casos semelhantes ao daquela
jovem. Encontramos mais duas detentas, uma já havia tirado cinco meses de cadeia com mais 38
homens, no Estado do Pará — esta inclusive engravidou de um dos presos e teve um filho —, e uma
outra detenta que ficou presa por seis meses, já tirou cadeia acho que duas vezes e tem dois filhos de
presidiários. Ela não sabe nem quem é o pai, porque teve de fazer sexo com outras pessoas também,
dentro do sistema prisional” (BRASIL, 2009, p. 285).
67 A locução foi enfaticamente repetida pela imprensa americana em manchetes (como em “Nothing
works!”), o que contribuiu para a sua difusão. O original da entrevista de Martinson à revista “The
public interest” está disponível em: http://pt.scribd.com/doc/58100576/MARTINSON-What-Works-
Questions-and-Answers-About-Prison-Reform . Acesso em: 25 out. 13.
68 Um estudo feito nas dependências das instituições penais do estado de Ohio relatou que a
“velocidade de reincidência” entre os jovens ofensores, na verdade, se eleva com cada
institucionalização (VITO, Gennaro F; ALLEN, Hary E. Shock probation in Ohio : a comparison of
outcomes. International journal of offender therapy and comparative criminology, vol. 25, no. 1, 1981,
pp. 70-76. Disponível em: http://ijo.sagepub.com/content/25/1/70.extract. Acesso em: 15 out. 10). Esta
experiência foi confirmada numa pesquisa sobre os presos adultos de prisões estaduais da Califórnia
(GREENWOOD, Peter W; TURNER, Susan. Selective incapacitation revisited, RAND publication,
Santa Monica, California, 1987. Disponível em: http://www.rand.org/pubs/reports/R3397.html. Acesso
em: 25 out. 13.). A conclusão de ambas é que as prisões são criminógenas — produzindo a mesma
mazela que pretendem tratar.
69 Neste sentido, o criminologista nova-iorquino afirmou: “the present array of correctional treatments
has no appreciable effect - positive or negative - on rates of recidivism of convicted offenders”
(MARTINSON, 1972, p. 317); “…rehabilitative efforts that have been reported so far have no
appreciable effect on recidivism” (MARTINSON, 1974, p. 25).
70 Relatório do caso disponível em: http://laws.findlaw.com/us/488/361.html . Acesso em: 25 out. 13.
71 Nas palavras de Martinson (1972, p. 327), “on the whole, the prisons have played out their allotted
role. They cannot be reformed and must be gradually torn down”.
72 Consoante Foucault (2008, p. 31-32), “uma pena, para ser considerada um suplício, deve obedecer a
três critérios principais: em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa,
se não medir exatamente, ao menos, apreciar, comparar e hierarquizar; […] o suplício faz parte de um
ritual. É um elemento na liturgia punitiva, e que obedece a duas exigências, em relação à vítima, ele
deve ser marcante: destina-se a […] tornar infame aquele que é a vítima. […] e pelo lado da justiça que
o impõe, o suplício deve ser ostentoso, deve ser constatado por todos, um pouco como seu triunfo.”
73 Silva Júnior (2009, p. 11) explica que, nos processos secretos, o acusado não sabia qual era a
imputação feita contra si, tampouco os depoimentos tomados ou as provas apuradas. “Imperava o
entendimento de que, sendo inocente, de defesa o acusado não precisava, enquanto se fosse culpado, a
ela não teria direito. Era a influência, ainda, de alguns dogmas da concepção religiosa”.
74 Segundo o cientista político, o §51 da referida lei determina: “abolir para sempre a pena de morte
contra qualquer réu, seja primário ou contumaz, e ainda que confesso e convicto de qualquer delito
declarado capital pelas leis até aqui promulgadas, todas as quais ficam revogadas e abolidas no que a
isso se refere” (BOBBIO, 2004, p. 69).
75 Um estudo feito entre estados americanos que aplicam a pena de morte como sanção e os que não a
aplicam demonstrou que a taxa de homicídios, entre os anos de 1991 e 2011, é menor nos que não a
adotam, o que denota a ineficácia do alardeado efeito dissuasório da pena de morte em relação a outras
menos severas. Pesquisa disponível em: http://www.deathpenaltyinfo.org/deterrence-states-without-
death-penalty-have-had-consistently-lower-murder-rates. Acesso em: 18 fev. 13.
Vale ainda mencionar outra interessante pesquisa feita pelos americanos Radelet e Lacock que concluiu
haver consenso entre os maiores criminologistas do mundo de que a pena de morte, por exemplo, não
adiciona qualquer efeito dissuasor significativo além do que já faz uma prisão por longo prazo.
Disponível em: http://www.deathpenaltyinfo.org/files/DeterrenceStudy2009.pdf. Acesso em: 18 fev. 13.
76 Para exemplificar seu argumento, Bobbio (2004, p. 71) cita a frase de Dostoiévski em O Idiota ,
atribuída ao príncipe Myshkin: “E, então, se alguém matou, por que se tem de matá-lo também? Matar
quem matou é um castigo incomparavelmente maior do que o próprio crime. O assassinato legal é
incomparavelmente mais horrendo do que o assassinato criminoso”.
77 Em 1976, Andrew von Hirschi era o diretor do referido comitê, que concluiu que as sentenças de
reabilitação eram, muitas vezes, excessivamente longas e desproporcionais à ofensa cometida e que, por
esta razão, o modelo just deserts deveria substituir o vigente (BARTON, A., 2004, p. 1).
78 Neste aspecto, um argumentoa favor do modelo just deserts é que ele ofereceria um nível de
proteção aos inocentes, inexistente em outras filosofias (ao menos em tese). Por exemplo, a punição de
um inocente poderia ser justificada, teoricamente, dentro de uma teoria de dissuasão geral rigorosa,
segundo a qual justifica-se a imposição do castigo a um inocente, desde que dissuada outros potenciais
ofensores, o que seria benéfico para a sociedade em geral. Como uma teoria retribucionista, o just
deserts defende sanções apenas aos culpados e considera a punição do inocente — independentemente
de qualquer consequência positiva que possa ser alcançada com ela — como inerentemente injusta
(BARTON, A., 2004, p. 1).
79 Alana Barton é coordenadora do programa de criminologia e justiça criminal da Universidade Edge
Hill, na Inglaterra.
80 A autora revela que, na prática, há alguma dificuldade em estabelecer valores de referência para a
proporcionalidade das sentenças. Nos Estados Unidos, estados tradicionalmente mais liberais (como
Minnesota) introduziram “escalas” de castigo mais moderadas, ao passo que estados tradicionalmente
mais punitivos (como o Novo México) se valem de parâmetros muito mais duros. Consequentemente,
naquele país, continua a haver grandes diferenças nas sentenças que os indivíduos recebem por delitos
semelhantes (BARTON, A., 2004, p. 2).
81 Barbara Hudson, socióloga, foi professora na University of Central Lancashire, Reino Unido e
crítica da abordagem just deserts , dedicando-se à construção de uma “teoria social de culpabilidade”.
Para a autora “culpability should be able to be reduced or nullified by economic duress or similar
circumstantial constraint, and that in every case, assessment of culpability should be informed by an
understanding of freedom of choice as a matter of degree, rather than seeing offenders as either totally
freely-choosing, or totally determined” (Hudson, 1995, p. 76).
82 Oportuno aqui ressaltar a opinião de Noberto Bobbio para quem, em matéria de bem e de mal, prisão
ou desencarcerização, pena de morte ou não, o princípio da maioria não é válido. Isso porque “as
pesquisas de opinião provam pouco, já que estão sujeitas às mudanças de humor das pessoas, que
reagem emotivamente diante dos fatos de que são espectadoras. É sabido que a atitude do público diante
da pena de morte varia de acordo com a situação de menor ou maior tranquilidade social. Se não
tivessem ocorrido o terrorismo e o aumento da criminalidade nestes últimos anos, é provável que o
problema da pena de morte sequer tivesse sido levantado” (BOBBIO, 2004, p. 68).
83 Seffair (2013, p. 9) explica que a população tem a percepção de que polícia eficiente é aquela que
realiza muitas prisões e desenrola inquéritos, que Ministério Público eficiente seria aquele que oferece
mais denúncias e que justiça eficiente é a que apresenta maiores índices de condenação, não importando
a forma de fazê-lo. Por estas razões, as políticas públicas na área da segurança, no Brasil, privilegiam o
encarceramento como estratégia de dissuasão da prática de outros crimes, mesmo diante de evidências
científicas de que tal estratégia não obteve êxito em outros lugares.
84 Note-se que a justiça restaurativa não se confunde com a vingança privada e que uma reação violenta
ou desproporcional da vítima ao delito não contribui para diminuir seu sofrimento. Exemplo disso
ocorreu numa escola de São Caetano do Sul, em um caso de bullying: uma menina foi apelidada de
“testuda” e assim chamada por meses. Em determinado dia, ela agrediu violentamente quem a tratava
por esse apelido. Levado o caso ao círculo restaurativo, ela pode apontar o quanto o apelido a
incomodava e a fazia sofrer. O autor da alcunha (e vítima da agressão) disse não imaginar o impacto que
aquele apelido lhe causava. As partes chegaram a um acordo e o caso revelou o quanto a menina ainda
se sentia vítima de uma conduta opressora e indesejada, por mais que tenha reagido em excesso. O
círculo restaurativo pode, assim, equacionar o problema com maior profundidade e satisfação a todos
(MELO, EDNIR e YAZBEK, 2008, p. 63).
85 Este mecanismo surgiu no final dos anos 60, nos países de tradição anglo-saxã (sistema americano,
britânico, australiano e canadense, entre outros países), em busca de vias alternativas ao sistema legal,
ou seja, de instâncias não oficiais e mecanismos informais que pudessem resolver os conflitos com
eficácia e menor custo (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 454).
86 Sobre o significado desta mudança de orientação, Beristain (2000, p. 63) afirma: “A nova
espistemologia tem de prestar atenção ao direito penal solidário, fraternal, generoso e criador, que saiba
converter o esterco do delito em flores do companheirismo, o direito talional no direito premial”.
PARTE II
A EMERGÊNCIA DO PARADIGMA
DA TRANSMODERNIDADE
DA INSURGÊNCIA À ASSIMILAÇÃO DA JUSTIÇA
RESTAURATIVA?
CAPÍTULO III
DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA
DO DIREITO, A SOCIOLOGIA
JURÍDICA E A TEORIA POLÍTICA
FUNDAMENTOS PLURAIS DO NOVO PARADIGMA
“Paradigma” é a expressão utilizada por Thomas Kuhn para se referir ao
conjunto de avanços científicos universalmente reconhecidos que, por algum
tempo, fornecem problemas e soluções-modelo para uma comunidade de
pesquisadores (KUHN, 1992, p. 13). Um paradigma define os problemas
legítimos e métodos de pesquisa em uma determinada disciplina e conquista
novos adeptos para além das abordagens triviais, ofertando a esses
profissionais desafios inéditos por resolver.
Um paradigma domina uma disciplina científica, impondo sua matriz
conceitual e suas estratégias cognitivas para a solução de várias questões. À
proporção que se desenvolve e amadurece, ele revela incapacidades
ocasionais para enfrentar novas vicissitudes. As respostas produzidas ao
longo das pesquisas não correspondem mais às expectativas da comunidade
científica. O paradigma é, então, deflacionado ou abandonado quando
estudiosos instigados começam a procurar novas fórmulas e soluções. Não se
trata simplesmente da passagem de uma opção teórica para outra, mas de uma
mudança epistemológica radical. Esta ruptura oportuniza uma forma diferente
de pensar e proporciona novos modelos e teorias que desafiam o modo
tradicional de interpretar e explicar eventos. Obviamente, esta mudança gera
conflitos e resistências cognitivas que são ainda mais evidentes pelo fato de
que não só o modo de configurar e lidar com problemas são questionados,
mas também a habilidade de cientistas e profissionais tradicionais até então
considerados como depositários do “conhecimento oficial” (SALVINI, 2006,
p.1).
Neste estudo, utilizamos a noção de paradigma e de crise paradigmática de
Kuhn para demonstrar a inadequação das respostas dadas para o crime pelo
nosso sistema de justiça criminal e a necessidade da sua superação. A
aplicação do conceito kuhniano de paradigma das ciências sociais (soft
sciences) - na qual se costuma incluir o Direito 87 - seria, a princípio,
questionável, visto que o próprio físico e filósofo atribui a estas ciências um
carácter pré-paradigmático distinguindo-as das ciências naturais (hard
sciences) — essas, sim, paradigmáticas.
Isso se deve ao fato de que, enquanto nas ciências naturais é possível a
formulação de um conjunto de princípios e de teorias sobre a estrutura da
matéria que são aceitos sem discussão por toda a comunidade científica, nas
ciências sociais não haveria consenso paradigmático, pelos seguintes motivos:
os fenômenos sociais são de natureza subjetiva e, como tal, não se deixam
captar pela objetividade do comportamento; as ciências sociais não dispõem
de teoriasexplicativas que lhes permitam abstrair do real para depois buscar
nele, de modo metodologicamente controlado, a prova adequada; as ciências
sociais não podem estabelecer leis universais porque os fenômenos sociais
são historicamente condicionados e culturalmente determinados e as ciências
sociais não podem produzir previsões fiáveis, porque os seres humanos
modificam o seu comportamento em função do conhecimento que sobre ele se
adquire (SOUSA SANTOS, 2010, p. 20).
Trata-se, entretanto, de uma concepção de ciência social típica do
modernismo. Este modelo parte de uma visão mecanicista que distingue entre
natureza e ser humano, entre a matéria e a natureza que a compõe. Porém,
observa Sousa Santos, essa distinção dicotômica entre ciências naturais e
ciências sociais deixou de ter sentido e utilidade, pois todo o conhecimento
científico-natural é também científico-social. Há uma progressiva fusão das
ciências naturais e sociais que coloca a pessoa, autor e sujeito do mundo, no
centro do conhecimento. Ela revaloriza conceitos como ser humano, cultura,
sociedade, historicidade, processo, liberdade, autodeterminação e até
consciência (SOUSA SANTOS, 2010, p. 44).
Esta ciência atual, unívoca, reconhece que não se possui a verdade objetiva de
forma constante e permanente, e que não é possível uma pretensa e utópica
validez universal de seus princípios. Envida uma busca constante e
permanente pela verdade, pela explicação evolutiva dos diversos fenômenos
naturais e sociais num continuum (FRIEDE, 2009, p. 237). Por isso, o
conceito de paradigma científico de Kuhn se aplica a esta ciência enriquecida,
na qual se inclui o Direito.
A reforçar este argumento está a observação de Freitas Filho (2003, p. 30), de
que vigora entre os operadores do direito um conjunto de crenças, o qual
possui certa unidade e uma aceitação por estes profissionais, ainda que não se
faça uma opção declarada por ele. É a chamada “cultura jurídica”, uma
postura ideológica e teórica que guia a prática jurídica (a chamada “cultura
jurídica” 88 ) à qual o conceito de paradigma é também adequado.
Rogério Schietti observa que a cultura jurídica no Direito costuma ser
resistente ao pensamento crítico, o que acarreta lentidão ao seu processo de
atualização e modernização:
[…] a Ciência do Direito é, quiçá, a que ostenta maior lentidão no seu processo de
atualização e modernização. Enquanto a Medicina, a Engenharia, a Física e outras
ciências avançam a passos largos, renovando seus postulados e aperfeiçoando suas
técnicas, em um ritmo compatível com a flexibilidade da sociedade pós-industrial, o
Direito do século XXI ainda é, na sua essência, muito similar ao que se ensinava e
praticava nas primeiras décadas do século XX. Nossa formação acadêmica e profissional
dificulta-nos pensar criticamente o Direito e acompanhar o seu processo de evolução,
bastando olhar o abismo ideológico e semântico que separa o Código de Processo Penal
da Constituição Federal, o que já bastam para impelir os intérpretes e aplicadores do
direito a uma releitura atualizadora de certos dogmas e institutos jurídicos mantidos
intactos no percurso de nossa história colonial, imperial e republicana (CRUZ, 2013, p.
52).
Segundo o autor, não há como dissociar a modernização das instituições da
mudança na cultura jurídica:
De fato, mesmo se tivéssemos o melhor código de processo penal do mundo e as melhores
e mais aparelhadas instituições, nenhum resultado concreto e efetivo se alcançaria sem a
necessária mudança de mentalidade por parte dos operadores do Direito. Afinal, não se
pode reformar a instituição sem uma prévia reforma das mentes, mas não se podem
reformar as mentes sem uma prévia reforma das instituições (Morin, 2000: 99) (CRUZ,
2013, p. 52).
Um exemplo de mudança paradigmática significativa na criminologia (em
que pese alguns autores, como Salo de Carvalho (2009, p. 299-300) assim não
a considere, foi a virada criminológica (criminological turn ) ocorrida nas
décadas de 1940 e 1950, com a publicação dos estudos sociológicos de
Sutherland (The White Collar Crime) e Becker (Outsiders: Studies in the
Sociology of Deviance), que desestabilizaram a estrutura de pensamento
positivista à época, ao ponto de serem tachados de “anti-criminologia” 89 .
O trabalho dos autores inovou ao superar o conceito de criminalidade (que
buscava no homem as causas do crime, tendo-o como objeto de investigação),
em favor da noção de criminalização (como processo social dinâmico, no qual
o homem é sujeito). A partir de então, a criminologia assumiu a feição crítica
e suas investigações foram “direcionadas à crítica dos processos de
criminalização (política criminal), dos fundamentos dogmáticos do direito e
do processo penal (crítica à dogmática penal) e da aplicação judicial do
direito penal e do processo penal (dogmática penal crítica)” (CARVALHO,
2009, p. 305).
Em que pese, vez por outra, um estudo criminológico remontar à etiologia do
crime, como visto na seção 4.1, este tipo de abordagem não encontra guarida
significativa no pensamento criminológico atual 90 . A virada criminológica
desafiou, portanto o paradigma então vigente, em que pese não ter significado
uma ruptura completa com este. Afinal, lembra Khun, a transição
paradigmática não é instantânea, senão um processo sem limite de tempo pré-
definido.
Atualmente, no âmbito penal, a cultura jurídica vigorante é a punitiva. Nela, o
ofensor deve pagar o mal causado por meio da pena, a qual serve para castigá-
lo, desestimulá-lo (assim como os demais cidadãos), neutralizá-lo (retirando-o
do convívio social) e tratá-lo para que volte à vida em sociedade. Entretanto,
o paradigma punitivo contemporâneo não tem logrado oferecer soluções
adequadas para o problema da criminalidade crescente seja porque a reação
ao crime não tem sido rápida, eficaz e capaz de prevenir novos delitos, seja
porque a alegada finalidade de “ressocialização” do ofensor, se considerada
como forma de intervenção benéfica e positiva nele, também não tem sido
alcançada. Tal situação se amolda ao que Kuhn descreve como crise
paradigmática, na qual um número significativo de anomalias se acumula e as
instituições deixam de responder apropriadamente a elas. A identificação dos
limites e das insuficiências estruturais de um paradigma é resultado do grande
avanço no conhecimento que ele mesmo propiciou. Por outro lado, esse
aprofundamento do conhecimento permite ver a fragilidade dos pilares em
que se funda. Neste cenário, a disciplina é lançada em um estado de crise e
novas ideias passam a ser consideradas.
A nova proposta paradigmática é pelo reconhecimento do crime como um
conflito humano, que gera expectativas outras, além do mero castigo ou da
satisfação da pretensão punitiva estatal. A mudança reclamada é por um novo
modelo de justiça penal, mais humano e integrador, que contemple o delito
como um problema social e comunitário, capaz de responder às demandas
legítimas de todos os implicados no fenômeno criminal: a reparação em favor
da vítima, cujo protagonismo foi redescoberto; a reintegração do ofensor e
uma eficaz política criminal prevencionista (racional e com o menor custo
social possível). A demanda é pelo desenvolvimento de uma nova cultura,
resistente às práticas simplificadoras de combate à criminalidade (seja a da
violência estatal em resposta à violência do ofensor ou, no outro extremo, do
permissivo que impede a sua responsabilização) (BRANCHER, 2007, p. 7).
Trata-se de um paradigma bastante ambicioso e que requer a flexibilização de
procedimentos formais,de modo a abranger soluções espontâneas e
comunitárias. Representa uma superação do paradigma anterior, demandando
novas lentes para antigos problemas. Entretanto, é provável que, por algum
tempo, ainda terá que se conviver inusitadamente com ambos os paradigmas,
até que os operadores do sistema de justiça criminal se apercebam do mau
funcionamento do sistema de justiça criminal e da necessidade de se encontrar
caminhos alternativos e até que vítimas, ofensores e comunidades se deem
conta de que o sistema de justiça criminal não os atende, que ignora as suas
necessidades, e que desejariam ser escutados e participarem ativamente da
solução de seus conflitos.
3.1 Contextualizando a revolução: a pós-modernidade 91
O paradigma vigente concebe o crime como sendo uma violação das leis do
Estado. O delito é um fato “típico, antijurídico e culpável”, merecedor de
sanção. Há um enfrentamento simbólico entre a lei e o violador, e a este é
atribuído o papel de sujeito ativo da infração, enquanto a vítima é meramente
o sujeito passivo da relação. Essa concepção ideal de um sujeito formal,
encapsulado em si mesmo e apartado de suas relações humanas, é típica do
paradigma moderno 92 .
Conforme Warat (2001, p 160), esta consideração de pessoas como meros
“sujeitos jurídicos”, o ser pensado como um ente é uma distorção violenta,
viciosa e uma denegação de humanidade. Esta visão impessoal e mecanicista
do indivíduo não se coaduna com a peculiaridade do ser humano, único e
irrepetível. Impõe-se, portanto, uma mudança de paradigma que reconheça a
singularidade do ser, a humanidade presente nas suas relações (a “outridade”)
e a humanização 93 dos seus conflitos.
No vigor deste novo paradigma jurídico-cultural, a justiça passa a se
preocupar com a qualidade de vida e não em castigar supostos desvios
valorativos, morais ou de ações, “considerados como tais por uma civilização
que faz da ordem sua neurose”. A pós-modernidade prenuncia a emergência
de um paradigma de sentidos e de sensibilidades, baseada na relação
interpessoal como condutora da produção de um direito transmoderno
(WARAT, 2001, p 160).
Consoante o professor Warat (2001, p. 179), o discurso científico moderno
emprega termos como determinismo, racionalidade, universalidade e
progresso. O direito não escapou a esses pressupostos míticos e crê na
existência de fórmulas mágicas que podem realizá-los na sociedade, na forma
de uma geometria racional e unívoca, como simbolizam os tipos penais e suas
penas. Atestando o repúdio às grandes narrativas modernas e às suas verdades
universais também no direito, o comentário de Salo de Carvalho (2009, p.
316):
A área da penalogia parece ser a de maior sensibilidade em termos de recepção da crítica
pós-moderna, […] sobretudo, pelo esgotamento dos discursos de legitimação (teorias
absolutas, relativas e ecléticas) a partir da não-correspondência das crenças em suas
finalidades com o real impacto da punição sobre o criminalizado e sobre a sociedade.
O autor acusa a modernidade, no âmbito das ciências criminais, de simplificar
o controle social punitivo, com a fixação de uma resposta penal unívoca (o
cárcere), independente da diversidade do ato praticado:
A fórmula é relativamente simples: reduzir os problemas em casos-padrão, vinculando-os
a respostas-receituário. O sintoma do esgotamento da fórmula dogmática é percebido nas
indagações, nada atuais, sobre quais os critérios que permitem conceber condutas tão
significativamente díspares sob o mesmo rótulo (crime) e como se justificativa à
proposição de mesma resolução (pena) (CARVALHO, 2009, p. 319).
Para Salo, a associação delito-pena constitui uma inaceitável simplificação,
porque ela abarca sob a mesma categoria (crime), problemas muito distintos,
propondo-lhes a mesma solução (pena). O mesmo se sucederia em relação à
criminologia. Segundo o autor, ela poderia, no máximo, fazer eleições
parciais e sugerir respostas limitadas ao problema criminal, já que em
sociedades complexas como a nossa, não seria cabível propor um projeto
metodológico universal:
A vontade de sistema (pretensão de totalidade) além de revelar o caráter narcísico
patológico das ciências (criminais) expõe sintoma de absoluta ausência de maturidade
face à falta de percepção dos limites do possível, sendo que, todas as metodologias, até
mesmo as mais óbvias, têm seus limites. Assim, invariavelmente, apresentam profundos
déficits, teóricos ou práticos (CARVALHO, 2009, p. 330).
Em suma, o sistema de justiça criminal, positivista, dogmático, baseado na
figura do ofensor e na atribuição de culpa, parte de um ponto de vista de
“universal” para as situações problemáticas, sem considerar o seu contexto ou
fornecer alternativas emancipatórias para enfrentá-las (HULSMAN, 2004, p.
68).
Segundo Boaventura de Sousa Santos, a ordem científica emergente questiona
o dogmatismo e a autoridade refutando todas as formas de positivismo, seja
ele lógico ou empírico, bem como quaisquer mecanicismos 94 , seja
materialistas ou idealistas.
Na seara criminal, acrescenta Salo (2009, p. 320), a era pós-moderna
incorpora o fator “complexidade” de modo a possibilitar o reconhecimento da
diferença entre os atos desviantes e os criminalizados e permitir a construção
de respostas distintas para eles (sejam formais ou informais) e diminuir a
violência do controle estatal. Revaloriza-se, portanto, o que
convencionalmente se chama de “humanidades” ou “estudos humanísticos”,
especialmente em matéria de crime e punição (SOUSA SANTOS, 2010, p. 9-
10). Nas palavras de Warat (2001, p. 191):
como se fosse possível, fazem de conta que não existem conflitos existenciais concretos
que transbordam permanentemente a magia sonhada. Uma magia que, no lugar de
ensinar que a riqueza estava na imprevisibilidade, na diversidade, nos fez crer, de modo
extremadamente confiante, na uniformidade, no já dito desde sempre.
Entretanto, adverte o autor, há um momento em que a utopia moderna decai
em favor da condição pós-moderna, cujos pilares são a desconstrução, a
alternativa e a descentralização. Desconstruir, segundo a proposta derridiana,
é “desnudar um edifício para que apareçam suas fissuras, denunciando suas
aporias, ou mais contundentemente: escancarar as escandalosas fendas
irracionais e insensatas dos discursos considerados sérios” (WARAT, 2001, p.
159 e 188). Ao descontruir, o pós-modernismo, abdica-se das ilusões
racionais da modernidade e “deixa de lado as ilusões semiológicas dos
grandes relatos que fundamentaram o sentido comum manipulador dos
juristas da modernidade” (WARAT, 2001, p. 159).
Salo de Carvalho (2009, p. 312) informa que as tendências pós-modernas
causaram uma mudança na agenda da investigação criminológica: eles
substituíram seus tradicionais objetos de análise — crime, criminoso, reação
social, instituições de controle, poder político e econômico — pela formação
da linguagem da criminalização e do controle. Analisa-se, assim, a “gramática
do crime”, um estilo punitivo vigente nos círculos informais de controle
social.
3.1.1 A superação paradigmática rumo à transmodernidade
A transciência, diferentemente da pós-modernidade, não se destina a criticar a
razão, mas a ampliá-la, estendendo-a ao sensível, ao que se vive na
experiência. Se a racionalidade moderna não aceitava o caótico, encerrando-o
em objetividades e conceitualidades, buscando fundamentos absolutos e
universais; a transciência aceita a contradição, o caos, a fragmentação, o
imprevisível na conduta de um indivíduo (WARAT, 2001, p. 190). Salienta
SousaSantos (2010, p. 28) que o novo paradigma em vez da eternidade,
busca a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do
mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em
vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a
desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente 95 .
A expressão “transmoderna” tem a ver com uma tentativa de retorno para a
autonomia, uma transição impulsionada por uma nova sensibilidade como
forma de a pessoa encontrar-se consigo mesma e com os outros. O dever da
ética é substituído por solidariedade, compaixão e alteridade e o
normativismo do Direito é substituído por mediação, participação direta e de
encontro face a face (WARAT, 2001, p. 186). Esse trânsito é chamado por
Warat de “transmodernidade”.
A transmodenidade não diz respeito necessariamente à alteridade, mas sim ao
que Warat (2001, p. 209) chama de outridade: um espaço ético de
reconhecimento, existente entre duas pessoas, que lhes permite se enxergarem
mutuamente, descontruírem-se e, mirando-se um no outro, descobrirem o que
falta em suas supostas existências completas.
A ciência moderna preconizava o conhecimento objetivo, factual e rigoroso,
sem a interferência dos valores humanos ou religiosos. Esta foi a base para a
distinção dicotômica, estanque e incomunicável entre sujeito/objeto que
metodologicamente se articularam pelo distanciamento. O paradigma
transmoderno, por seu turno, introduz a consciência do sujeito no próprio
objeto do conhecimento, ocasionando uma transformação radical nesta
distinção sujeito/objeto. A transmodernidade prega outra forma de
conhecimento, um conhecimento compreensivo e íntimo que não separa,
antes que se une ao pesquisador que é estudado. Para ela, todo conhecimento
científico é também autoconhecimento (SOUSA SANTOS, 2010, p. 33 e 50).
Na transmodernidade, o conhecimento científico traduz-se num saber prático,
ou seja, o conhecimento científico visa, em última instância, constituir-se em
ensinar a viver, em senso comum. Os sistemas de crenças, os juízos de valor
não são colocados antes nem depois da explicação científica da natureza ou
da sociedade, mas são partes integrantes dessa justificação 96 . Na origem de
uma nova racionalidade estão o senso comum e a humanidade,
interpenetrados pelo conhecimento científico (SOUSA SANTOS, 2010, p.
52).
Neste paradigma jurídico-cultural que está aflorando, a ciência abandona
tendências totalizantes e universalizadoras em direção à fragmentação. Acerca
da fragmentação no campo do saber criminológico, um dos sintomas da crise
paradigmática, o comentário de Salo de Carvalho (2009, p. 311):
O fenômeno da fragmentação e, sobretudo, a forma pela qual é tratado pelos
teóricos da criminologia, configura espécie de sintoma, ou seja, como
situação que indicaria, em linguagem khuneana, crise paradigmática.
Representaria o ponto de esgotamento de determinado pensamento — no caso
o da racionalidade criminológica moderna (instrumental) no qual decisões
estratégicas necessitam ser tomadas para salvação, redefinição, reconstrução,
abandono ou esfacelamento do modelo científico convalescente.
A fragmentação pós-moderna, observa Sousa Santos, não é disciplinar, e sim
temática. “Os temas são galerias por onde os conhecimentos progridem ao
encontro uns dos outros. Ao contrário do que sucede no paradigma atual, o
conhecimento avança à medida que o seu objeto se amplia, ampliação que,
como a da árvore, procede pela diferenciação e pelo alastramento das raízes
em busca de novas e mais variadas interfaces” (SOUSA SANTOS, 2010, p.
48).
3.1.2 Justiça restaurativa e transmodernidade
Nesta senda, a justiça restaurativa e a proposta transmoderna possuem muita
coisa em comum. No âmbito restaurativo, o próprio ideal de justiça é
redefinido em prol de um arquétipo reparador e integrador, afinando-se com o
plano transmoderno de criação de um espaço de convergências, solidariedade
e compaixão.
A justiça restaurativa contempla o conflito criminal de modo diferenciado,
optando por tratá-lo (crime handling ) e não o afastar ou suplantar. Ela
reconhece a sua especificidade, complexidade e diversidade, muito
diferentemente da visão impessoal e mecanicista da modernidade mencionada
(GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 454). Ela o
personaliza, de forma a resgatar sua dimensão humana, real, concreta e
histórica, abrindo espaço para a humanização, para o reconhecimento da
“outridade” e para a manifestação de sentimentos e de sensibilidades, tal
como na proposta transmoderna. Nela, as partes têm a oportunidade de
exteriorizar suas vivências com relação ao fato conflitivo, satisfazendo a sua
dimensão emocional e relacional, sem as limitações e os condicionamentos
próprios do processo penal, que instrumentaliza e revitimiza seus personagens
(GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 451 e 460) 97 .
Já a justiça moderna “despersonaliza o conflito delituoso, distancia
artificialmente autor e vítima e propicia a indiferença e a falta de
solidariedade do ofensor em relação à vitima e à comunidade”. Nela, a
intervenção no conflito é feita de modo técnico e formalista. Sua orientação
repressiva a obriga a conformar-se com a imposição do castigo ao culpado,
sem reclamar deste mudança de atitudes” (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA;
GOMES, 2012, p. 448). Sob o prisma da modernidade, a justiça criminal não
apresenta respostas aos conflitos sociais. Pelo contrário, torna-se uma fonte de
conflitos, na opinião de Louk Hulsman (1993, p. 128).
O criminólogo holandês (2004, p.45) acrescenta que o sistema de justiça
criminal reconstrói (ou constrói) o crime e a ordem dos acontecimentos de um
modo bastante específico, produz uma construção artificial da realidade a
partir de um episódio definido no espaço e no tempo, e imobiliza a ação
daquele momento, voltando-se contra uma pessoa, um indivíduo, a quem
pode atribuir o comportamento (a causalidade) e a culpa. Como resultado, o
indivíduo é isolado de seu ambiente, dos amigos, da família, do seu mundo e
da vítima e são ignorados aspectos importantes do conflito. As pessoas são
afastadas artificialmente de seus contextos e separadas. A organização cultural
da justiça criminal criaria, assim, “indivíduos fictícios” e uma interação
“fictícia” entre eles, desconsiderando a sua humanidade, tão valorizada pela
perspectiva transmoderna.
Hulsman questiona a validade e a legitimidade desta reconstrução que
desconsidera e expropria seus principais interessados. Nas suas palavras, essa
reconstrução da realidade não é válida, já que “o menu não é a refeição, o
mapa não é o território. Um evento, objeto de um discurso ou de qualquer
forma de processo decisório, é sempre reconstruído. A reconstrução jamais é
idêntica ao evento.” Para o professor, ela somente seria válida se baseada nas
intenções dos atores principais no mundo real (HULSMAN, 2004, p. 42).
A crítica que o autor faz ao sistema de justiça criminal consiste no fato de que
ele oferece uma construção inválida (não realista) dos fatos e,
consequentemente, também confere uma resposta não realista e não efetiva.
Ele tende a “influenciar organizações como a polícia e os tribunais de um
modo tal que elas se tornam autopoiéticas e não podem lidar de um modo
criativo com as situações problemáticas e tampouco aprender com elas”
(HULSMAN, 1993, p. 123). O que o sistema faz, em síntese, é “segmentar, de
modo artificial, o que vai em nossos corações” (HULSMAN, 2004, p. 62), na
contramão da sensibilidade transmoderna.
Por outro lado, os desafios multifacetadosda justiça contemporânea exigem
dos julgadores e aplicadores do Direito criatividade e empenho para a sua
solução. É necessário que, a despeito do arcabouço jurídico moderno, muitas
vezes rígido e defasado, que se prepare para lidar com os conflitos emergentes
em uma sociedade heterogênea e complexa.
No arcabouço moderno, o Estado continua atuando com base em instrumentos
normativos obsoletos, rigorosos e sem vínculos com a realidade plural
emergente. As demandas atuais geralmente possuem uma dimensão
comunitária e grupal que desafiam as regras processuais vigentes (FARIA,
2004, p. 106) 98 .
Por compreender a especificidade dos conflitos, a justiça restaurativa
reconhece a diversidade das soluções que eles reclamam e oferece
possibilidades de respostas mais criativas, mais adequadas a cada um deles,
renegando a já referida tendência totalizante da modernidade. A justiça
restaurativa propugna fórmulas de intervenção no conflito igualmente
diferenciadas (como a mediação, o círculo de paz, o círculo de sentença etc.),
todas de índole pacificadora, comunicativa, participativa, integradora e
comunitária (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 451). Ela
permite o “trânsito” referido por Warat, no sentido desta nova sensibilidade,
como forma do ser encontrar-se consigo mesmo e com os outros.
O elevado conteúdo pedagógico dos procedimentos restaurativos possibilita
que uma solução para o conflito emerja como consequência natural do
processo de comunicação autor-vítima, da percepção direta do dano causado,
com potencial de mudança de atitudes dos envolvidos, rechaçando qualquer
imposição coativa ou heterônoma de desfechos. Aqui ela coincide com o
culto à riqueza, à diversidade e à imprevisibilidade transmodernas.
Em comum entre o paradigma restaurativo e a transmodernidade está a
valorização da “micro-justiça do cotidiano”, comprometida com as
possibilidades reais e usuais, mediante a afirmação e o reconhecimento da
outridade e não da sua eliminação. Assim, a justiça restaurativa não vê no
outro ou no conflito, algo nocivo, mas uma confrontação construtiva,
revitalizadora. O conflito seria “uma diferença energética, um potencial
construtivo” (MENDONÇA, 2008, p. 122).
A justiça restaurativa, portanto, se une à transmodernidade para conferir um
salto qualitativo no sistema de justiça, superando a condição jurídica moderna
alicerçada no litígio, na rigidez e numa visão negativa do conflito
(MENDONÇA, 2008, p. 123).
Ilustra Warat (2001, p. 82):
os juristas pensam que o conflito é algo que tem de ser evitado. Eles o redefinem,
pensando-o como litígio, como controvérsia. […] Jamais os juristas pensam o conflito em
termos de satisfação, o conflito como forma de inclusão do outro na produção do novo.
Ressalta Rafael Mendonça (2008, p. 97) que, na maioria das vezes, os
próprios sujeitos não conseguem conhecer ou elaborar seus desejos
insatisfeitos e são transformados em partes, em litigantes no “processo” em
que, o que hoje “ganha”, amanhã “perde”. Essa realidade gera cada vez mais
indivíduos insatisfeitos e alienados de si, que em nome de uma vitória
processual, valem-se das estratégias mais censuráveis do ponto de vista ético
(MENDONÇA, 2008, p. 98).
Warat (1998, p. 40) completa afirmando que foi assim que aprendemos
retórica, ou seja, para ganhar, para perder, para argumentar não para mostrar
nossos desejos, mas para derrotar, destruir e aniquilar o outro.
Vezzulla (2001, p. 59) aduz que todas essas circunstâncias
contribuíram para que a sociedade, durante tanto tempo, precisasse depositar num
terceiro a responsabilidade de decidir sobre seus próprios problemas, pois, deixar que um
terceiro decida por nós, nos libera da responsabilidade e da angústia da decisão.
Neste paradigma de “solução de conflitos”, os “acordos de paz” a que se
chegam são impostos externamente em situação de supra-ordenação, tudo isso
após violentos e extenuantes enfretamentos processuais (MENDONÇA, 2008,
p. 98). Revelam Passos e Penso (2009, p. 89 e 92) que, neste paradigma, “a
justiça representa mais um pai protetor a quem invocar do que uma instituição
solidária que está do lado das lutas comunitárias. Essa relação paternalista é
vertical e, por isso, dificulta o diálogo. […] O sistema de justiça, nesta
concepção, é o único detentor dos saberes que importam na relação, é o dono
do discurso, é o que fala, o inatingível que se põe à disposição”.
A justiça restaurativa é um caminho democrático para superar essas
perplexidades da jurisdição ordinária. Ela resgata as potencialidades
emancipatórias do conflito, “como um sendero no qual os verdadeiros atores
da vida são protagonistas” (MORAIS DA ROSA, 2005, p. 19). Assim é que,
enquanto no sistema ordinário se fala em “jurisdição”, em alusão à função e
ao poder estatal de “dizer o direito”, numa perspectiva restaurativa, a
expressão mais adequada é “jurisconstrução”, para descrever a forma de
elaborar a resposta para o conflito que envolve as partes (MENDONÇA,
2008, p. 124). Este termo é mais consentâneo com a natureza humana de ser
inter-relacional, sendo que um dos grandes desafios, atualmente é fomentar as
relações baseadas na parceria e não na dominação, tanto na esfera pública,
quanto na privada (MENDONÇA, 2008, p. 42).
O paradigma emergente nas “ciências abertas” testemunha a existência de
conexão e comunicação constantes entre as pessoas. O humano é parte
integrante na evolução da teia de conexões e comunicações que envolve o seu
sistema. Essa mentalidade difere drasticamente da cosmovisão do paradigma
individualista e subjetivista moderno, baseado inicialmente nas teorias
econômicas liberais e neoliberais, nas quais a competitividade é o foco
principal (MENDONÇA, 2008, p. 43).
3.2 O fundamento político da jurisconstrução:
a democracia deliberativa
Outrora afirmou Noberto Bobbio (2004, p. 1) que “direitos do homem,
democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento
histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos não há
democracia; sem democracia não existem as condições mínimas para a
solução pacífica dos conflitos”. Igualmente, Kant concebia a democracia
como instrumento de busca da paz perpétua.
Neste capítulo busca-se refletir mais detalhadamente acerca dos predicados
democráticos da justiça restaurativa, essenciais na busca da paz e superação
do conflito (os quais supostamente a diferenciariam do sistema ordinário e
poderiam contribuir para suprir o seu déficit de legitimidade, identificado na
primeira parte deste estudo).
Participação e deliberação, por exemplo, são duas características
essencialmente democráticas cuja relevância nos é apontada, entre outros
autores, por Nancy Fraser (seção 3.2.1). Essas características podem ser
relativamente mensuradas, com auxílio das teorias de Sherry Arnstein e
Archon Fung (seção 3.2.2) e permitem a classificação dos sistemas de justiça
em “estágios democráticos” (mais avançados ou menos avançados), segundo
a teoria política contemporânea, com base nos modelos desenvolvidos por
Shumpeter, Robert Dahl, Joshua Cohen e Charles Sabel.
A justiça restaurativa privilegia valores democráticos por meio da ampliação
do rol de participantes na deliberação, pela confiança depositada na sua
capacidade decisória, pelo empoderamento produzido e pela educação para a
paz. Oportuna, portanto, a análise do seu potencial democrático conforme
estas teorias.
3.2.1 A ampliação de atores para o debate na jurisconstrução
Como é sabido, as respostas disponibilizadas pelo sistema de justiça criminal
para resolução de conflitos(absolvição, sentença condenatória, transação
penal, suspensão condicional do processo ou da pena etc.) são restritas e
entabuladas exclusivamente entre Estado e ofensor, de modo que a vítima e a
comunidade são excluídas. Ao agir dessa forma, o sistema desperdiça
possibilidades proveitosas de exploração de novas respostas, e as partes —
para quem haveria a possibilidade de ganhos mútuos — não têm a chance de
captá-los (FARIA, 2004, p. 114).
Também, no entender de Nancy Fraser (2002, p. 19), já não convém que o
Estado funcione como a única instância de justiça. Apesar da sua importância,
o ente estatal constitui apenas um de vários enquadramentos possíveis numa
nova estrutura emergente de múltiplos níveis.
É importante, destarte, que se abra espaço para a emergência de mecanismos
menos institucionalizados de resolução de conflitos e que se desloque alguma
demanda dos tribunais para outras instâncias decisórias — as justiças
emergentes nos espaços infraestatais (as locais, com influência comunitária) e
nos espaços supraestatais (as justiças de caráter internacional e transnacional)
(FARIA, 2004, p. 114).
Ao mesmo tempo, este fenômeno desafia a exclusividade do exercício da
função de dirimir conflitos de interesses, modificando o conceito tradicional
de jurisdição, segundo o qual, o juiz deve substituir a vontade das partes 99 .
Em várias matérias e setores (cível, empresarial, familiar etc.), o Estado —
com sua estrutura organizacional formal, hierarquizada e submetida
rigidamente à lei — vem delegando o monopólio adjudicatório. Ele se depara
com um cenário novo e incerto no qual se movimenta para modernizar suas
estruturas administrativas e para rever seus padrões funcionais, de modo a
continuar assegurando a sua imprescindível independência (FARIA, 2004, p.
114) 100 .
A demanda cada vez maior dos serviços judiciários não traduz,
necessariamente, a democratização dos meios e instrumentos de acesso a ele.
Conforme informações do Ministério da Justiça, as demandas da população
economicamente necessitada não chegam, por muitas vezes, às instâncias
formais da Justiça (BRASIL, 2005, p. 7).
Na opinião de Nancy Fraser e Axel Honneth, o sistema de justiça criminal,
especificamente, não privilegia a interação tampouco as diferenças de
contexto das partes, tendendo a encorajar a vindita, a intolerância, o
autoritarismo, etc. Apregoam, portanto, uma nova concepção de justiça não
identitária que desencoraje a apartação e promova a interação entre as
diferenças, o que significa rejeitar as definições habituais de reconhecimento
(FRASER, 2002, p. 14).
Consoante Fraser, o sistema de justiça deve incorporar uma reflexão explícita
sobre o problema do enquadramento, ou seja, devemos perguntar quem são
precisamente os sujeitos relevantes para a justiça e quem são os atores sociais
que devem dela participar. Isso porque os padrões institucionalizados de valor
cultural sempre tratam alguns atores como inferiores, excluídos ou invisíveis,
fazendo com que haja um falso reconhecimento ou uma subordinação de
estatuto (FRASER, 2002, p. 15).
Igualmente, Beristain (2000, p. 75 e 76) reivindica uma democratização dos
poderes mais realista e que permita, ou exija, a intervenção mais direta e
decisiva possível do povo na tarefa legislativa e nos organismos judiciais (a
exemplo do júri). O criminólogo espanhol assume que a participação direta
dos interessados conferiria ao processo maior legitimidade e o tornaria mais
democrático por retirar a jurisdição penal das mãos exclusivas de
profissionais governamentais, a fim de dividi-la com os implicados no
conflito.
Como visto na seção 1.1, a exclusão de outros implicados na discussão de
assuntos de seu interesse desafia a legitimidade do processo, condição de
validade do direito, segundo Habermas. Este desvio de deliberação dos
envolvidos comprometeria o seu conteúdo democrático, conforme adverte
Habermas (1997b, p. 10) para quem, “um conceito procedimental de
democracia é incompatível com o conceito da sociedade centrada no Estado”.
Consoante Habermas (1997a, p. 53), a participação deliberativa é o núcleo de
uma sociedade democrática e um elemento essencial para o desenvolvimento
do indivíduo. Para o filósofo tedesco, os cidadãos devem ser os próprios
agentes da construção democrática, já que deles emana a vontade legítima
(HAMEL, 2009, p. 1). São, portanto, considerados “parceiros” do direito e da
própria democracia, mediante o exercício do direito de comunicação e direito
de participação, de modo a corroborar, inclusive, com a própria legitimidade
do processo 101 . Conforme Habermas (1997b, p. 11):
Nem a pretensão de legitimidade do direito, que se comunica ao poder político através da
forma do direito, nem a necessidade de legitimação, a ser preenchida através do recurso a
determinadas medidas de validade, são descritas na perspectiva dos participantes, ou
seja, nesta perspectiva as condições da aceitabilidade do direito e da dominação política
transformam-se em condições de aceitação, e as condições de legitimidade, em condições
para a estabilidade de uma fé da maioria na legitimidade da dominação.
Aduz Alessandro Baratta (1987, p. 20) que “a ideia da democracia e da
soberania popular são os princípios-guia para a transformação do Estado, não
somente para um modelo formal de Estado de Direito, senão, também, para
um modelo substancial do Estado dos direitos humanos.” De acordo com o
autor, o respeito aos sujeitos e aos seus direitos humanos inclui não dispensar
a eles apenas um tratamento institucional e burocrático, sem torná-los “ativos
na definição dos conflitos de que formam parte e na construção das formas e
dos instrumentos de intervenção institucional idôneos para resolvê-los,
segundo suas próprias necessidades reais”.
Habermas (1997b, p. 17-18) assevera a importância da deliberação para o
convencimento racional dos interessados, a fim de reforçar sua confiança no
jogo democrático:
O abismo que se abre entre aquilo que é afirmado na perspectiva do
observador e aquilo que pode ser aceito na perspectiva de participantes, não
pode ser coberto apenas através de considerações racionais teleológicas […]
os cidadãos racionais não teriam razões suficientes para manter as regras do
jogo democrático, caso se limitassem a isso. […] O processo da política
deliberativa constitui o âmago do processo democrático. E esse modo de
interpretar a democracia tem consequências para o conceito de uma sociedade
centrada no Estado.
No mesmo sentido, observa Gabriel Ignacio Anitua (2013, p. 115), asseverando que as
decisões judiciais devem ser tomadas pelos cidadãos e não só para eles, o que
possibilitaria também gerar a reflexão democrática 102 :
O julgamento criminal diz respeito a toda a sociedade (que é o que se pretende em um
Estado democrático) e esta deve participar do momento comunicacional em que ele se
desenvolve. A função simbólica, como projeção de imagem que se quer dar para a
sociedade, só terá sucesso se for feita por parte dos cidadãos, não apenas para eles. Isso
permitirá, também, gerar a reflexão democrática sobre certas funções sociais que se
realizam privilegiadamente no marco estatal.
A justiça restaurativa atende a esta necessidade plurifocal de justiça, já
anunciada por Fraser e Honneth, por tratar também de cidadania 103 , do
reconhecimento da vítima e do ofensor como atores decisórios, além das
preocupações tradicionais de justiça destacadas pela teoria crítica, como a
reintegração social do ofensor, a seletividade do sistema de justiça, a
igualdade de direitos, de liberdade e de oportunidades.Esta plasticidade lhe
possibilita aumentar o grau democrático nas decisões finais, à medida que a
justiça restaurativa congrega todos os afetados interagindo na construção de
um desfecho para o crime em condições paritárias de expressão e
comunicação.
Portanto, a participação dos interessados para deliberação acerca das decisões
que lhes dizem respeito está diretamente relacionada à sua eficácia,
sentimento de justiça e legitimidade. Eles podem contribuir para o processo
decisório participativo agregando informações relevantes sobre os contornos
específicos do problema e trazendo à tona o conhecimento e os valores locais
relevantes para subsidiarem um desfecho adequado. A participação também
fortalece o senso de pertencimento e de responsabilidade coletiva,
incentivando a compreensão e o cumprimento das decisões (SECHI, 2010, p.
112).
3.2.2 Avaliando o grau de inclusão participativa e de deliberação
democrática do novo paradigma
Cientistas políticos americanos como Sherry Arnstein, Archon Fung e Joshua
Cohel entendem que uma decisão é democrática quanto mais inclusiva,
representativa e comunicativa ela puder ser. Cada qual, por meio de
elaborações gráficas reproduzidas a seguir, pretende demonstrar a
contribuição destes três atributos para o incremento da condição democrática.
Sherry Arnstein (1969, p. 1) 104 , em “A escada de participação da cidadania”
(ladder of participation ), argumenta que a participação do interessado em
qualquer processo decisório que lhe diz respeito é valiosa na medida em que
“é a redistribuição de poder que permite que os cidadãos sejam incluídos no
futuro”. Ilustrando o seu argumento, ela postula uma “escada” de
participação, com oito degraus, de acordo com o grau de empoderamento:
manipulação, terapia, informação, consulta, apaziguamento, parceria,
delegação de poder e, finalmente, o controle cidadão.
Figura 1 - A escada de participação da cidadania 105 .
controle cidadão
grau de empoderamento
delegação de poder
parceria
conciliação
grau de simbolismo
consulta
informação
terapia
não-participação
manipulação
Na escada de participação da cidadania de Sherry Arnstein, a justiça
restaurativa se encontra no último e mais elevado degrau de
representatividade — que varia da manipulação ao controle cidadão, uma vez
que seus acordos são mediados e não obtidos por meio de pura conciliação 106
ou impostos por terceiros.
Visando compreender o funcionamento dos mecanismos de participação em
tomadas de decisões, Archon Fung (2006, p. 66) 107 lançou a ideia de um “cubo
da democracia” (democracy cube ) que permitiria avaliar o “grau
democrático” de um processo decisório, mediante a sua análise em três
dimensões: quem participa (acessibilidade), como os participantes se
comunicam (grau de interação) e o grau de influência das discussões nas
decisões tomadas (autoridade).
A primeira dimensão do cubo diz respeito a quem participa do processo
decisório, ou seja, da acessibilidade à tomada de decisão. Este eixo varia do
grau mais excludente (restrito aos expertos, como juízes, promotores e
advogados) e passa pelos representantes eleitos (sistema americano),
representantes profissionais (árbitros, mediadores), pelos representantes
leigos (conciliadores, líderes comunitários) e pela participação pessoal e
direta dos interessados (ofensor, vítima, comunidade), o que seria o mais
inclusivo possível.
Figura 2 - Primeiro eixo do cubo: acessibilidade ao processo decisório 108 .
Expertos Representantes
Eleitos
Representantes
Profissionais
Representantes
Leigos
Participação
Direta
Mais
excludentes
Mais
inclusivos
No sistema de justiça criminal comum, o número de participantes ativos é
mínimo. Geralmente, só se confere voz às partes (ofensor e vítima) e
testemunhas. Outros afetados pelo crime não são considerados. O ofensor não
atua por si, mas apenas representado por seu advogado (salvo se habilitado
para atuar em causa própria). A vítima é escutada apenas se interessar para o
deslinde do processo. Vítimas e testemunhas se expressam por meio de
depoimento formal, em momento próprio, limitando-se a responder ao que for
perguntado. O ofensor é ouvido no interrogatório, na fase final do
procedimento.
Na justiça restaurativa, o grau de participação é máximo (com participação
direta e ativa de todos os envolvidos), variando apenas em número de atores.
Nos círculos de sentença, este quantitativo é maior, pois reúne um grupo mais
amplo de participantes do que a mediação vítima-ofensor, acrescentando
outras pessoas ligadas aos envolvidos, tais como familiares, amigos e colegas
de trabalho. Logo, podemos concluir que neste eixo do cubo democrático de
Fung (relativo à participação), a justiça restaurativa revelaria o maior
potencial democrático possível, com a participação direta dos interessados.
O segundo eixo do cubo classifica a interação dos participantes na tomada de
decisão. O processo participativo pode variar de uma participação pouco
intensa (por exemplo, escuta passiva) à mais intensa (por exemplo, interação
comunicativa e decisória).
Figura 3 — Segundo eixo do cubo: grau de comunicação 109 .
Ausente/
dispensada
Mero
expectador
Depoimento
formal
Expressa opiniões, sentimentos e
necessidades
Menos
comunicativo
Mais
comunicativo
Na justiça restaurativa, não há julgamento, mas diálogo, que é a sua base.
Portanto, o seu grau de comunicação é intenso. Por meio dele, os
interlocutores podem levantar pretensões de validade, de sinceridade, de
verdade e de retidão, consoante assevera HABERMAS (2012b, p. 124). O
processo dialógico, além de saída para se alcançar o consenso, é um meio de
expressão de pensamentos, sentimentos e experiências, uma maneira de
compreender melhor os fatos, suas causas bem como as consequências das
ações. Por facilitar todas estas possibilidades é que a justiça restaurativa
revela o maior potencial democrático possível, também nesse eixo.
A terceira dimensão diz respeito ao grau de influência dos envolvidos no
processo de tomada de decisão. Em muitas esferas públicas como o sistema
de justiça criminal, a decisão é exclusiva do julgador ou dos julgadores (em
caso de órgão colegiado). Os participantes apenas escutam o veredicto dos
atores centrais e, caso discordem, têm, como forma de manifestação, o
recurso processual. Já na justiça restaurativa, há um conjunto muito maior de
atos deliberativos, por meio dos quais os cidadãos tomam posições, trocam
ideias e, às vezes, mudam de opinião no curso das discussões. A decisão final
é tomada de forma coordenada e pessoal pelos próprios implicados, com
auxílio do mediador, cuja atuação se limita a conduzir o debate, orientando os
participantes na descoberta das suas necessidades.
Figura 4 — Terceiro eixo do cubo: influência na tomada de decisão 110 .
Recebe o veredicto Opinião considerada Delibera Barganha Decide
Menos autoridade Mais
autoridade
Por conferir maior autoridade às partes, permitindo que decidam os termos do
acordo, a justiça restaurativa também apresenta o grau máximo de democracia
neste eixo.
Com base em três perguntas — quem participa, como os participantes se
comunicam e quem toma as decisões — Archon Fung ordenou três vetores
(âmbito da participação, grau de comunicação e influência na tomada de
decisão) em um espaço tridimensional composto pelos três eixos, ao qual
chamou de “cubo de democracia”, por meio do qual se pode aferir o grau
democrático de um processo decisório (FUNG; 2006, p. 66).
Figura 5 — Cubo da democracia 111
Da análise do cubo democrático de Archon Fung,percebe-se que a justiça
restaurativa, em qualquer de suas três dimensões, é o mecanismo de tomada
de decisão mais democrático possível. Do ponto de vista da acessibilidade (ou
de quem dela participa), a justiça restaurativa é a mais democrata por permitir
a atuação pessoal e direta dos interessados (ofensor, vítima, comunidade),
além de ampliar o círculo de pessoas “legitimadas” a intervir no conflito.
Quanto ao grau de interação, a comunicação é intensa, possibilitando a
expressão de sentimentos, opiniões e necessidades e, no tocante à autoridade
ou ao grau de influência das discussões nas decisões tomadas, a justiça
restaurativa pressupõe que o acordo final seja estabelecido de forma
coordenada e pessoal pelos próprios implicados.
Neste sentido, a justiça restaurativa permite uma gestão emancipatória e
participativa do conflito por devolver aos protagonistas a sua administração.
Essa característica também faz com que a justiça restaurativa detenha elevado
conteúdo pedagógico, pois empodera os envolvidos para encontrarem
fórmulas de solução para seu problema.
Neste sentido, a opinião de Gabriel Ignacio Anitua (2013, p. 114) 112 :
Os rituais comunicativos da justiça criminal são cerimônias que despertam compromissos
de valor específicos nos participantes e no público, e atuam assim com um importante
conteúdo legitimante e pedagógico, reproduzindo os valores republicanos e democráticos
e gerando e regenerando uma mentalidade e sensibilidade maiores para o conflito e a
violência.
3.2.3 O enquadramento do modelo jurisdicional penal na teoria política
democrática contemporânea
A doutrina democrática clássica, sintetizada na célebre expressão de Abraham
Lincoln — “A democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo” —
remonta o ideal rousseauniano de protagonismo de um povo soberano, capaz
de produzir a vontade coletiva. Seus fundamentos político-filosóficos
remetem a polis grega cuja ideia central é a plena igualdade política entre os
cidadãos dotados de indelegável soberania 113 (AVRITZER, 2000, p. 27).
A democracia direta oferece vantagens incontestáveis por ser um sistema de
contas para o exercício do poder coletivo, no qual os cidadãos são tratados
como iguais. Sem dúvida, ela limita o exercício do poder, protege a maioria
do governo das minorias, evita flagrantes violações dos direitos das minorias
e promove uma maior capacidade de resposta do governo aos governados
(BOBBIO, 2004, p. 90).
Este ideal democrático de participação direta e de tomada de decisões pelo
povo muitas vezes se revela empiricamente impossível. Em primeiro lugar,
porque a depender da escala política, a participação direta seria
organizacionalmente ou administrativamente inviável. Em segundo, a
heterogeneidade cultural dos cidadãos impediria a troca racional mútua e, em
terceiro, ao priorizar características e deliberações locais, minorias poderiam
ficar à mercê de ideais radicais majoritários (BOBBIO, 2004, p. 64).
Contudo, mesmo diante das dificuldades empíricas de uma teoria democrática
radical, cientistas políticos contemporâneos não desistiram do ideal de
aperfeiçoamento democrático, cônscios das deficiências de um poder
centralizado e das virtudes da descentralização, da participação e da discussão
cidadã (AVRITZER, 2000, p. 27).
A forma atual de exercício da jurisdição penal pode ser interpretada pelo
modelo democrático elitista de Schumpeter. Para este cientista político, o que
caracteriza a democracia, em verdade, é a existência de várias elites que
competem entre si pelo apoio e pela condução das massas. Nas suas palavras,
“o método democrático é um sistema institucional para a tomada de decisões,
no qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva
pelos votos do eleitor” (SCHUMPETER, 1961a, p. 321).
Com uma teoria elitista da democracia, Schumpeter inferiu que as elites é que
seriam portadoras de racionalidade política e, portanto, os únicos atores com
competência para tomarem decisões. Aos demais indivíduos, caberia uma
participação limitada, já que seriam incapazes de ter ideias próprias, restando-
lhes seguir ou não a liderança oferecida (COSTA, 2007, p. 218).
A teoria elitista de Schumpeter parece bastante descritiva do exercício da
jurisdição nos dias atuais. De fato, os operadores do sistema de justiça
criminal (juízes, promotores, delegados, defensores etc.) são selecionados
dentre um grupo seleto de expertos (bacharéis em Direito), tidos como os
únicos dotados do conhecimento apropriado para o trato deste tipo de questão.
Aos jurisdicionados, atualmente cabe cumprir as decisões judiciais —
exemplificado pelo adágio popular “ordem judicial não se discute, se cumpre”
— perpetuando a lógica democrática schumpeteriana de condução das massas
pelas elites.
Todavia, a democracia baseada puramente na representação, como é a
proposta de Schumpeter, é criticada por denotar um “elitismo democrático”
pautado por dois princípios: a redução do conceito de democracia ao aspecto
formal, decorrente da observação do processo e das garantias próprios de um
Estado democrático de direito estabelecido constitucionalmente, e da
justificação da sua racionalidade enquanto decorrente da presença de elites
intelectuais, democraticamente investidas no cargo com poder decisório
(SOUZA, 2010, p. 124).
Entretanto, observa Leonardo Sechi (2010, p. 113), a questão da participação
cidadã na tomada de decisões é bastante controvertida na teoria política
contemporânea. Enquanto para Schumpeter (1961b, p. 52) a cooperação é
prejudicial, pois poucos teriam senso de responsabilidade, capacidade de
discernir os fatos e preparo para agir sobre eles, Habermas (2002a, p. 36),
Joshua Cohen e Charles Sabel (2006, p. 154) 114 , por meio de modelos
procedimentalistas, defendem que a participação tem valor em si mesma e
não nos potenciais resultados que um processo participativo possa trazer
(maior eficácia, maior igualdade etc.), como seria o caso da justiça
restaurativa.
Segundo estes autores, o conceito de democracia se confunde com a própria
participação e deliberação cidadã. Stuart Mill (1981, p. 18), por exemplo,
entende a democracia como “o governo por meio do debate” e a trata como
sendo uma argumentação racional pública, na qual o debate é enriquecido
mediante relações interativas e disponíveis de informações. Igualmente,
Habermas (1997b, p. 24) propõe um conceito de democracia apoiado na teoria
do discurso o qual parte da imagem de uma sociedade descentralizada, que
contém na esfera pública-política “uma arena para a percepção, a
identificação e o tratamento de problemas”. Ele sustenta a importância do
discurso para o reconhecimento do conteúdo democrático e da legitimidade
do direito:
O princípio do discurso tem inicialmente o sentido cognitivo de filtrar contribuições e
temas, argumentos e informações, de tal modo que os resultados obtidos por este caminho
têm a seu favor a suposição da aceitabilidade racional: o procedimento democrático deve
fundamentar a legitimidade do direito. Entretanto, o caráter discursivo da formação da
opinião e da vontade na esfera pública política e nas corporações parlamentares implica,
outrossim, o sentido prático de produzir relações de entendimento, as quais são ‘isentas de
violência’, no sentido de H. Arendt, desencadeando a força produtiva da liberdade
comunicativa. O poder comunicativo de convicções comuns só pode surgir de estruturas
da intersubjetividade intacta. E esse cruzamento entre normatização discursiva do direito
e formação comunicativa do poder é possível, em última instância, porqueno agir
comunicativo os argumentos também formam motivos (HABERMAS, 1997a, p. 191).
Se considerarmos, com estes filósofos, que, num sistema democrático, a
participação e a deliberação popular são fundamentais e se partirmos do
princípio de que quanto maior a sua capacidade deliberativa e decisória mais
democrático será o procedimento, podemos concluir que o modelo de justiça
restaurativo é altamente democrático, dada a sua característica inclusiva e
agregadora, que implica a presença das partes no trato do conflito na condição
de protagonistas do processo.
3.2.4 A democracia deliberativa
A crítica à legitimidade da democracia representativa vem contribuindo para a
institucionalização e expansão de novas práticas — como a justiça
restaurativa — inspiradas nas teorias democráticas participativas e
deliberativas (SOUZA, 2010, p. 128). Nos últimos anos, tem havido uma
reavaliação do peso do elemento decisório em prol do argumentativo, o que é
corroborado na teoria de autores como Habermas e Cohen (SOUZA, 2010, p.
123).
Lorenzo Cini (2011, p. 1-2) e André Coelho (2013e, p. 1) advertem que
democracia participativa não se confunde necessariamente com democracia
deliberativa. A democracia participativa tem como pressuposto básico a
defesa da participação direta dos cidadãos na tomada de decisão, como ocorre
em audiências públicas, conselhos gestores, orçamento participativo etc.
Segundo esta proposta, os agentes decisórios, em número cada vez maior,
devem ser os próprios interessados. A democracia participativa (e não a
deliberativa) se opõe à democracia meramente representativa na qual os
representantes eleitos tomam decisões em nome de seus eleitores. Enquanto a
democracia participativa concentra-se em debater quem devem ser os atores
decisórios, a democracia deliberativa se preocupa com o procedimento, com o
modo como é feita a tomada a decisão.
Esclarecem Tim O´Riordan (2002, p. 87-88) e André Coelho (2013e, p. 1)
que a democracia deliberativa critica concepções de democracia em que os
cidadãos decidem com base em opiniões ou preferências pré-concebidas sobre
um assunto, pois, neste caso, o processo de tomada de decisão não as afetou
ou transformou. Isso porque a democracia deliberativa valoriza a tomada de
decisão como um processo de transformação por meio de argumentos. Os
conceitos e as opções prévias seriam o ponto de partida e não o ponto de
chegada do processo decisório (COELHO, 2013e, p. 1). No mesmo sentido, a
crítica de Habermas (1997b, p. 46): “a integração social, realizada
politicamente, tem que passar através de um filtro discursivo”.
André Coelho (2013e, p. 1) explica também que a democracia deliberativa
pressupõe que os envolvidos no processo argumentativo estejam dispostos a
dar e receber razões, sejam capazes de crítica e passíveis de convencimento e
que todos estejam mais comprometidos com encontrar a melhor decisão e não
em fazer prevalecer a sua convicção inicial a qualquer preço, tal como ocorre
na racionalidade comunicativa de Habermas, examinada na seção 3.4.1.
Para os autores (O´RIORDAN, 2002, p. 91; CINI, 2011, p.5-6 e COELHO,
2013e, p. 1), a democracia deliberativa não especifica qual seria o processo
para se chegar a uma decisão final. Ela não é uma teoria normativa e não
pretende se tornar uma teoria sobre como as decisões devem ser tomadas,
nem mesmo substituir os processos decisórios democráticos já existentes,
como é o caso da justiça restaurativa em relação ao sistema de justiça criminal
atual. A democracia deliberativa pretende ampliá-los, agregá-los,
demonstrando como incrementar o seu teor cognitivo, mediante uma
participação emancipatória e empoderadora dos atores diretamente
interessados. Ela demonstra a necessidade do debate prévio, de concessão de
maior informação aos interessados, de equidade e transparência nos processos
decisórios, para que a tomada de decisão seja uma deliberação mais racional
possível.
Assim como ocorre na justiça restaurativa, na qual o consenso nem sempre é
possível, o seu alcance é também um ideal regulador da democracia
deliberativa, mas não uma exigência concreta. O que ela requer é que a
tomada de decisão tenha sido antecedida de um amplo debate de ideias, em
que cada lado tenha se esforçado para convencer o outro com base em razões.
Ainda que as divergências persistam, elas serão produto de convicções firmes
e esclarecidas. Mesmo sem o alcance do consenso, terá havido um
significativo ganho de teor cognitivo, de qualidade da reflexão e crítica, o que
representa um aprendizado para a solução de conflitos vindouros (COELHO,
2013e, p.1).
Portanto, o modelo de democracia deliberativa pela via restaurativa ora
proposto não é incompatível com a democracia representativa típica do
modelo jurisdicional, podendo ambos coexistir. O que se advoga não é a
democracia participativa (decisão tomada diretamente pelas partes
interessadas), mas que lhes seja conferida a oportunidade de deliberação
racional, que atribui maior legitimidade ao processo decisório, possibilita o
reconhecimento intersubjetivo entre as partes e o aprendizado via
racionalidade comunicativa. A alteração pretendida é, portanto, procedimental
(“jurisconstrução”) e que não afasta a possibilidade de controle judicial do
que foi “construído” (princípio da inafastabilidade da apreciação judicial).
3.2.5 A poliarquia
Uma das formas de democracia deliberativa é poliarquia (governo de muitos),
fruto da teoria democrática pluralista de Robert Dahl. Ela é caracterizada pela
dispersão do poder e pelo reconhecimento da diversidade de interesses entre
os cidadãos (COSTA, 2007, p. 220). Neste sistema, todos teriam direito ao
sufrágio, à expressão política, à associação e acesso a diversas fontes de
informação. Entretanto, ela pressupõe o que se chama de “deliberação
autêntica”, ou seja, que a deliberação entre os decisores esteja livre de
distorções, como um poder decisório obtido por meio da riqueza econômica
ou do apoio de grupos de interesse 115 (LÜCHMANN, 2002, p. 15).
Segundo Habermas (1997b, p. 42), o modelo proposto por Dahl fornece um
processo que proporciona o interesse simétrico de todos e apresenta as
seguintes vantagens:
a) a inclusão de todas as pessoas envolvidas; b) chances reais de participação no
processo político, repartidas equitativamente; c) igual direito a voto nas decisões; d) o
mesmo direito para a escolha dos temas e para o controle da agenda; e) uma situação na
qual todos os participantes, tendo à mão informações suficientes e bons argumentos,
possam formar uma compreensão articulada acerca das matérias a serem regulamentadas
e dos interesses controversos.
A poliarquia, para Dahl, corresponderia a um estágio mais avançado de
democracia e atenderia ao ideal democrático na medida em que propicia baixo
índice de coerção, elevado índice de persuasão e uma relativa autonomia dos
indivíduos (COSTA, 2007, p. 221).
Habermas ressalta a importância da proposta poliárquica de Dahl para a
solução de problemas em sociedades complexas, nas quais a discursão precisa
ser fomentada, não se contentando mais com a divisão de trabalho pura e
simples ou com a delegação de tarefas:
[…] pois o âmago da política deliberativa consiste precisamente numa rede de discursos e
de negociações, a qual deve possibilitar a solução racional de questões pragmáticas,
morais e éticas — que são precisamente os problemas acumulados de uma fracassada
integração funcional, moral e ética da sociedade. A necessidade de coordenação
funcional, que surge nas atuais sociedades complexas, não pode mais ser supridaatravés
do modelo simples da divisão de trabalho ou da cooperação entre indivíduos e
coletividades: são necessários mecanismos de regulação indireta do sistema
administrativo (HABERMAS, 1997b, p. 47).
Na poliarquia, o exercício do poder e o controle de decisões e de políticas
públicas seriam indiretos, realizados por funcionários públicos, eleitos pelo
povo por meio de eleições livres e justas. Portanto, na forma proposta por
Dahl, a poliarquia equivaleria à democracia representativa. De acordo com
ele, “quanto mais cidadãos uma unidade democrática contém, menos esses
cidadãos podem participar diretamente das decisões e mais eles têm de
delegar a outros essa autoridade” (DAHL, 2001, p. 125). Destarte, segundo o
cientista político, em benefício de “uma maior eficácia do sistema
democrático”, seria necessário prescindir de uma participação popular mais
efetiva, o que evidencia a sua defesa de um sistema representativo.
Habermas (1997b, p. 42) atenta para os riscos da representatividade proposta
por Dahl, como a monopolização do saber especializado e a restrição do
acesso às fontes, privando os demais cidadãos do conhecimento:
[…] a maior dificuldade a ser enfrentada daqui para frente pela democracia reside no
encapsulamento do saber político especializado, o que impede os cidadãos de aproveitá-lo
para a formação das próprias opiniões. O perigo principal reside, segundo ele, na
variante tecnocrática de um paternalismo que se nutre nos monopólios do saber. E o
acesso privilegiado às fontes do saber político relevante abre as portas para uma
dominação imperceptível que se estende sobre o público dos cidadãos, os quais não têm
acesso a essas fontes, alimentando-se de uma política simbólica (HABERMAS, 1997b, p.
42).
3.2.6 A justiça restaurativa como forma de poliarquia diretamente
deliberativa
A teoria de Dahl foi aperfeiçoada, no final dos anos noventas, pelos
professores norte-americanos Joshua Cohen, Michael Dorf e Charles Sabel, os
quais, partindo da conclusão de uma crescente volatividade e diversidade nas
sociedades contemporâneas, concluíram que a democracia representativa e a
democracia constitucional não seriam mais modelos tão funcionais e
desejáveis (COHEN; SABEL, 1997, p. 319).
Os autores desenvolveram, então, a teoria da poliarquia diretamente
deliberativa segundo a qual decisões que reúnam interesse público e
interesses privados devem ser tomadas diretamente pelos interessados e
apenas monitoradas pelos poderes estatais (Parlamento, Poder Judiciário etc.)
(LÜCHMANN, 2002, p. 16).
Diferentemente da poliarquia representativa de Dahl, a poliarquia diretamente
deliberativa é um tipo de democracia direta, na qual a deliberação e a
participação são fundamentais para a tomada de decisão. Nela, os cidadãos -
mesmo leigos - participam do processo de tomada de decisão.
O sistema é chamado de poliarquia (governo de muitos) porque tanto a
tomada decisória quanto a sua implementação são devolvidas para unidades
de “níveis inferiores” (indivíduos ou grupos). Ele é diretamente deliberativo
porque uma gama de atores participa da decisão local que seria alcançada por
deliberação, que é, em última instância, a troca de argumentos mutuamente
reconhecidos (COHEN; SABEL, 1997, p. 320). Difere da forma tradicional
de democracia por defender que, para uma decisão democrática legítima, ela
deve ser precedida de deliberação autêntica e não apenas resultar da
agregação de preferências, conforme visto na seção 3.2.4.
Na poliarquia diretamente deliberativa, os arranjos são atraentes e
democráticos porque promovem dois valores democráticos fundamentais: a
deliberação e a participação direta dos interessados.
A ideia de Cohen e Sabel de poliarquia diretamente deliberativa é aplicável à
justiça restaurativa porque ambas têm em comum a capacidade de promover a
democracia na sua forma mais atraente - direta e deliberativa - e assim
aumentar a capacidade coletiva de resolver conflitos etiologicamente
(LÜCHMANN, 2002, p. 31). Assim, como a justiça restaurativa, a poliarquia
diretamente deliberativa é animada pelo reconhecimento dos limites da
capacidade dos julgadores para resolver todos os conflitos criminais, como
demonstra a elevada cifra negra discutida na seção 1.5. Por outro lado, ambas
assumem que os atores — apesar do conflito que os envolve — concordam
em sentido amplo sobre suas necessidades e metas, mas, muitas vezes, não
podem realizar esta concordância, dadas as restrições e uniformidades
próprias das decisões judiciais 116 .
Num acordo restaurativo, as soluções são lastreadas na diversidade, com alta
sensibilidade para as condições locais e pessoais da ofensa e de suas
circunstâncias. Como cada conflito é diferente, sentenças padronizadas ou
cópias de soluções adotadas em outros casos não são adequadas, embora
possam servir como linha de base a partir da qual uma solução possa ser
construída.
Estudos realizados por James Fishkin 117 constataram que a democracia
deliberativa tende a produzir resultados superiores aos de outras formas de
democracia, tais como menos partidarismo, mais simpatia com visões
opostas, um maior compromisso dos envolvidos com as decisões tomadas,
uma maior chance de alcance do consenso, coesão social entre pessoas de
diferentes origens e aumento no espírito público (LÜCHMANN, 2002, p. 33).
Consoante o ex-diplomata americano Carne Ross (2011, p. 1), os debates
decorrentes da democracia deliberativa são muito mais civilizados e
colaborativos do que os realizados em reuniões tradicionais ou em fóruns da
internet.
O modelo democrático deliberativo apresenta outras vantagens. Segundo
Carlos Santiago Nino (1996, p. 65), ele tende, mais que qualquer outro
modelo, a gerar condições ideais de imparcialidade, racionalidade e
conhecimento dos fatos relevantes. Quanto mais estas condições forem
cumpridas, maior a probabilidade de que as decisões tomadas sejam
moralmente corretas.
Uma jurisdição democrático-participativa apresenta, ainda, aspectos
educativos que devem ser considerados. Ao estabelecer a posição de
igualdade entre os cidadãos, com direito a participarem das determinações, os
arranjos democráticos não só respeitam, mas também possibilitam a
disseminação de informações relevantes para a resolução de problemas e
constituem uma oportunidade para a aprendizagem coletiva (LÜCHMANN,
2002, p. 32). No mesmo sentido, assevera Rawls:
Para que os cidadãos de uma sociedade bem ordenada reconheçam uns aos outros como
livres e iguais, as instituições básicas devem educá-los para essa concepção de si mesmos,
assim como expor e estimular publicamente esse ideal de justiça política. […]
familiarizar-se com a cultura pública e participar dela é uma das maneiras que os
cidadãos têm de aprender a se conceberem como livres e iguais, concepção esta que
provavelmente jamais formariam se dependessem apenas de suas próprias reflexões, e que
tampouco aceitariam ou desejariam realizar (1993, p. 79).
Como testifica Rawls, participar da cultura pública é a maneira democrática
de aprendermos que somos livres e iguais, o que dificilmente
compreenderíamos sozinhos, encapsulados em nossas próprias reflexões.
3.2.7 Críticas à democracia deliberativa
André Coelho (2013e, p. 1) informa que a crítica tende a considerar a
democracia deliberativa um processo utópico e irrealizável, especialmente
para o tratamento de conflitos de natureza criminal e de suas consequências.
O debate neste âmbito costuma ser polarizado, explosivo, movido por paixões(tais como ideias sobre prisões longevas, rigor no cumprimento da pena, pena
de morte, descriminalização do uso de drogas, do aborto). Especialmente
quando se trata de uma resposta específica a um crime cometido, afluem
sentimentos, convicções irracionais e intransigentes que não são tão
“civilizados” quanto supõe a democracia deliberativa. Argumenta a crítica
ainda que, em se tratando de partes processuais, leigas e com interesses
presumidamente opostos, elas não teriam argumentos jurídicos para sustentar
suas posições, não abandonariam suas convicções porque estão
emocionalmente ligadas ao fato e, no caso das vítimas, estariam interessadas
apenas na punição do ofensor e este apenas em livrar-se da pena.
Explica o autor que esta posição realista do debate é denominada de
“ceticismo da deliberação”. Em resposta a elas, os deliberacionistas
argumentam que, em realidade, os processos de tomada de decisão nunca são
inteiramente racionais nem inteiramente irracionais. Afinal, os temas de
deliberação em matéria criminal são bastante diversos, variando desde os
mais pragmáticos até os de conteúdo moral. Com isto, diversifica o nível de
paixão do envolvimento dos agentes com suas posições prévias.
Por outro lado, na maior parte das vezes, existe algum consenso sobre fins a
serem alcançados (necessidade de reparação, formas de “expiação” úteis,
reconciliação, convivência pacífica), em que pesem as divergências sobre
meios de atingi-los. Entretanto, esta dissensão pode ser sanada com a escuta,
com a consideração de pontos de vista diferentes e com o acesso a mais
informações sobre novas possibilidades de seguir em frente após o conflito
(COELHO, 2013e, p. 1).
Argumentam ainda os deliberacionistas que as discussões sobre o crime e sua
punição assumem o perfil polarizado, explosivo, intransigente, tal como os
céticos a acusam, justamente pela falta da deliberação a respeito do tema e
não em decorrência do debate. Cidadãos habituados a uma cultura
democrática, aberta, de solução pacífica, apresentados à tomada de decisões
transparentes, inteligíveis e justificadas tendem a socializarem-se de forma
mais comunicativa e racional. Tornam-se capazes de submeter suas opiniões e
preferências prévias ao teste de aceitabilidade, de examinar criticamente, de
olhar sob o ponto de vista do outro, tal como propõe Habermas. Portanto,
cada deliberação em particular torna-se um processo de aprendizado dos
implicados não só quanto à questão debatida, mas também quanto a se
tornarem mais aptos e receptivos à deliberação (COELHO, 2013e, p. 1).
Em síntese, podemos concluir que a introdução de mecanismos de deliberação
direta no sistema de justiça criminal brasileiro, como é o caso da justiça
restaurativa, pode ampliá-lo e incrementar o seu teor cognitivo, permitindo
sua evolução para um estágio mais avançado de democracia. O sistema seria
composto de mecanismos decisórios-democráticos, que congregaria as
perspectivas da participação, deliberação e representação, as quais, como
visto, não são incompatíveis entre si e, por isso, podem coexistir. Assim, as
decisões seriam tomadas diretamente pelos interessados e monitoradas pelo
Poder Judiciário.
A justiça restaurativa como forma de poliarquia diretamente deliberativa não
deve ser tomada como substituta do atual sistema judicial, mas como forma
de reconstrução racional da sua lógica democrática. Neste sistema, a maior
parte das decisões é tomada de modo racional e fundamentado, porém não
deliberativo. A deliberação apresenta ganhos cognitivos e emancipatórios,
como adverte André Coelho (2013e, p. 1), e corresponderia a um
aperfeiçoamento da experiência democrática acumulada ao do tempo. As
decisões judiciais se tornariam também mais democráticas, à medida que
incorporam visões mais abrangentes, pluralistas, sensíveis e sofisticadas no
sentido transmoderno visto na seção 3.1.1, ultrapassando a tomada de
decisões uniformes e polarizadas, de ganhadores e perdedores, tipicamente
modernas. Afinal, já anunciava Warat (2001, p. 121), não há nada mais
democrático do que a possibilidade de decidir por si e por meio da reflexão
com o outro.
3.3 Compreendendo a dinâmica do encontro restaurativo e as suas bases
filosóficas
Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 45) observa que, depois da euforia
cientista do século XIX e da aversão à reflexão filosófica simbolizada pelo
positivismo, há um desejo de se complementar o conhecimento “das coisas”,
da sua dinâmica por meio de uma compreensão mais profunda, interativa, de
ordem filosófica e sociológica (um conhecimento inclusive sobre “nós
próprios”, diz ou autor). O direito, por exemplo, que reduziu a complexidade
da vida jurídica à dogmática jurídica, redescobre a filosofia e a sociologia em
busca desta nova consciência (SOUSA SANTOS, 2010, p. 46).
Tal como o salto paradigmático descrito na seção 3.1, abandona-se o
paradigma da consciência, alicerçado na relação cognitiva sujeito-objeto (em
que o sujeito pensante, solitário, procura desvendar as leis gerais que
governam o mundo repleto de diversidade), em prol de um paradigma mais
comunicativo, dinâmico, de natureza intersubjetiva, que visa alcançar o
entendimento com o outro (PINTO, 1995, p. 1).
No campo da justiça penal, a justiça restaurativa se propõe a atender a este
novo modelo, em busca de um acertamento entre ofensor e vítima, eis que
aberta à consideração das responsabilidades e necessidades de cada
envolvido. Com auxílio das teorias filosóficas de Jürgen Habermas,
Emmanuel Lévinas e Axel Honneth, podemos compreender os fundamentos
éticos e filosóficos dessa nova abordagem e aclarar o significado e a dinâmica
do encontro restaurativo.
Habermas, com base no interacionismo simbólico de Mead 118 , no conceito de
jogos de linguagem de Wittgenstein 119 , na teoria dos atos de fala de Austin 120 e
na hermenêutica de Gadamer, propôs uma teoria da comunicação em que,
assim como ocorre na justiça restaurativa, sujeitos interagem em ação
comunicativa 121 , em uma esfera pública de deliberação, estabelecendo relações
interpessoais, com o objetivo de alcançar uma compreensão sobre fatos e
planos de ação, coordenando suas ações pela via do entendimento. Neste
locus apropriado e por intermédio do agir comunicativo, os interlocutores
remetem a pretensões de validade criticáveis quanto à sua veracidade,
correção normativa e autenticidade, que se referem ao mundo objetivo dos
fatos, ao mundo social das normas e ao mundo das experiências subjetivas,
respectivamente (PINTO, 1995, p. 1).
Em seguida, Honneth elaborou a sua teoria crítica, segundo a qual se deve
interpretar a sociedade a partir de uma única categoria, a do reconhecimento,
com base no conceito de luta por reconhecimento de Hegel. Na ausência de
reconhecimento de valores e de reivindicações estaria a origem dos conflitos.
Sob esta perspectiva, a função da justiça restaurativa pode igualmente ser
compreendida, constituindo-se em um fórum para o reconhecimento recíproco
de diferenças e de minimização de conflitos.
Por fim, Lévinas nos fornece uma filosofia existencial a partir da experiência
ética do encontro com o outro, a qual pode auxiliar na compreensão do
impacto e do efeito transformativo de atitudes sobre os participantes do
procedimento de justiça restaurativa.
Em síntese, com o apoio da filosofia destes autores, seria possível
compreender a dinâmica restaurativa e o seu potencial para comunicar o
impacto do comportamento ofensivo sobre formas de sua administração(Habermas), para promover o reconhecimento intersubjetivo recíproco das
partes em conflito, a aceitação da outridade (Honneth) e reconhecer a
humanidade presente no outro, assumindo responsabilidades por ele (Lévinas)
122 .
As teorias destes filósofos são complexas, profundas e expansivas, a cujo
desenvolvimento dedicaram a vida profissional. A discussão que aqui se
apresenta não tem o propósito de abordar todas as dimensões da teoria
completa de cada um deles, mas de explorar apenas uma pequena parte delas,
com o objetivo de refletir e traduzir aspectos do processo restaurativo. A
utilização de tais teorias se limita a abordar algumas perspectivas que sejam
relevantes para o propósito desta pesquisa, sempre com o cuidado de não
deturpar essas ideias ao retirá-las do seu contexto original.
3.3.1 A justiça restaurativa como esfera pública de deliberação
Habermas refere-se à ideia de “esfera pública” para designar espaços sociais
onde as pessoas se reúnem para discutir assuntos comuns e, dessa forma,
podem se organizar contra as formas arbitrárias e opressivas de exercício do
poder estatal. Habermas (1997b, p. 92) a define da seguinte maneira:
A esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, nem como uma
organização, pois ela não constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre
competências e papéis, nem regula o modo de pertencer a uma organização, etc.
Tampouco ela constitui um sistema, pois, mesmo que seja possível delinear seus limites
internos, exteriormente ela se caracteriza através de horizontes abertos, permeáveis e
deslocáveis. A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a
comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões, nela os fluxos
comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões
públicas enfeixadas em temas específicos […]. A esfera pública se reproduz através do
agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em
sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana.
A esfera pública de Habermas é concebida, portanto, como um locus para a
troca de informações, discussão, contestação, luta política e organização. Um
dos seus princípios é a discussão aberta de todas as questões de interesse
comum. Ela pressupõe liberdade de expressão, de reunião e o direito de
participar livremente do debate e da tomada de decisão.
A esfera pública habermasiana é constituída e mantida por meio do diálogo,
dos atos de fala, do debate e da discussão que possibilitam a comunicação e
participação política. Segundo Habermas (1997b, p. 191), ela apresenta o
mérito de ser sensível e, ao mesmo tempo, não especializada: “A esfera
pública é um sistema de alarme dotado de sensores não especializados,
porém, sensíveis no âmbito de toda a sociedade.”
Outra vantagem da esfera pública, de acordo com o autor, é “ser um meio de
comunicação isento de limitações, no qual é possível captar melhor novos
problemas, conduzir discursos expressivos de autoentendimento e articular, de
modo mais livre, identidades coletivas e interpretações de necessidades”
(HABERMAS, 1997b, p. 33). O filósofo a vislumbra como única forma
possível de solução comunicativa de conflitos capaz de gerar “solidariedade
entre estranhos” (HABERMAS, 1997b, p. 33).
É, neste caso, adequado compreender o encontro restaurativo como uma
esfera pública habermasiana de comunicação tendo em vista a interlocução
propiciada por ele, que o torna uma arena voltada para a discussão racional,
para o debate e o consenso. Este locus neutro e apropriado à comunicação
favorece também a formação da empatia, o reconhecimento recíproco e a
assunção de responsabilidades intersubjetivas dos interlocutores, em um
processo detalhado a seguir. 123
3.3.2 Justiça restaurativa: um locus para o reconhecimento
recíproco
Para Honneth (2004, p. 105), com o advento da modernidade, o indivíduo se
desvencilhou dos seus laços tradicionais e pôde determinar os objetivos
relevantes de sua própria vida. Entretanto, um elemento extra de significação
se estabeleceu na compreensão moderna da liberdade: a de que o indivíduo,
na realização de sua liberdade, poderia fazê-lo independente dos demais
participantes na interação.
De acordo com o autor, este conceito individualista de autonomia pessoal,
apesar de equívoco, também se infiltrou nas modernas teorias da justiça 124 . O
filósofo defende uma revisão conceitual dessas teorias consoante a
perspectiva de que a justiça alcança não apenas a liberdade de ação
individual, mas também as esferas de comunicação social. Como acentua
Honneth (2004, p. 111), na medida em que as partes são concebidas
isoladamente umas das outras, elas têm necessidade de se visualizar além
desta cortina de fumaça, que passa a ser a ignorância sobre o próprio destino.
Honneth (2004, p. 105) lembra que Hegel foi o primeiro a se opor contra o
delineamento individualista da concepção de liberdade moderna. Enquanto
seus antecessores consideravam o Estado como o assegurador da autonomia
individual dos participantes da sociedade, Hegel se concentrou, com o mesmo
propósito, no caráter garantidor de liberdade das esferas de interação social.
Para Hegel (1991, p. 42), apenas por meio da experiência do reconhecimento
de suas capacidades e necessidades é que os seres humanos estão em posição
de ganhar força para a configuração autônoma de seus objetivos de vida.
Destarte, para estes dois filósofos, as liberdades individuais são o produto de
uma forma de comunicação intersubjetiva (Zwischenmenschlicher ) que
contém o caráter de um reconhecimento recíproco (HONNETH, 2004, p.
112). Longe de construir uma limitação, as liberdades intersubjetivas são uma
condição da liberdade do sujeito partindo do princípio de que o indivíduo só
estaria capacitado para o desenvolvimento da autonomia porque mantém
relações com outros sujeitos, relações que possibilitam o reconhecimento
recíproco de suas personalidades individuadas. Dessa forma, podemos inferir
que os homens dependem das experiências básicas de reconhecimento
recíproco para assegurar suas autonomias individuais. Este reconhecimento
sucederia em três esferas de interação intersubjetivas: a do amor (entre
pessoas íntimas, o que gera autoconfiança), a do direito (que produz o
autorrespeito) e a da solidariedade (que germina a autoestima). A injustiça,
nesse caso, estaria relacionada aos sentimentos morais de não reconhecimento
social das faculdades e necessidades individuais.
Assim, diversamente dos clássicos, para quem a justiça social é obtenível
mediante a garantia uniforme das liberdades individuais fundamentais,
Honneth defende que tal justiça só é possível por meio da participação
igualitária em relações de reconhecimento que só são viáveis se encontrarem
as esferas de comunicação apropriadas.
Segundo o representante da “terceira geração” da Escola de Frankfurt 125 , mais
do que a demanda por uma distribuição equitativa de bens materiais, a justiça
diz respeito ao reconhecimento proporcionado nas relações sociais e pela
harmonia das várias esferas de comunicação. A sua teoria da justiça
pressupõe, então, um conceito intersubjetivo e não individualista de liberdade.
A justiça restaurativa atende a este ideal de Honneth, ao ideal de uma justiça
igualitária e ao mesmo tempo promotora da autonomia individual. Nessa
proposta terapêutica, vítima e ofensor são reconhecidos reciprocamente,
mediante o seu envolvimento ativo no processo por meio dodiálogo. São
adjudicados como principais intervenientes no sistema e detêm o controle do
resultado, graças ao processo decisório compartilhado. Diferentemente do
método tradicional, em que as partes se manifestam por meio dos seus
advogados, sua participação é direta e todos têm a oportunidade de contar
suas histórias e expressar suas dores emocionais e psicológicas. Tais aspectos
são geralmente ignorados quando se trata do arranjo ordinário de justiça, no
qual os depoentes devem se cingir às perguntas objetivamente formuladas,
abstendo-se de declarações subjetivas, que “não interessam para o julgamento
do fato”, pois as partes muitas vezes são consideradas como “um entrave” ao
procedimento por levarem uma emoção indesejada para uma deliberação
objetiva e jurídica dos fatos.
Dessa forma, de acordo com a ideia de “luta por reconhecimento” de Axel
Honneth, os conflitos são pautados pelo não reconhecimento de diferenças no
mosaico plural da vida em sociedade, palco de embates pela afirmação de
valores e interesses diversos. Em conclusão, o círculo restaurativo pode
constituir um locus apropriado para o reconhecimento intersubjetivo
recíproco das partes em conflito. A harmonia do encontro gerado nesta esfera
comunicativa tem o potencial de promover a afirmação e o reconhecimento da
outridade, ao invés de sua eliminação.
3.3.3 O impacto do encontro face a face segundo Lévinas
Lévinas, filósofo francês nascido numa família judaica na Lituânia, é
considerado um visionário de sensibilidade ímpar que explora o status
negligenciado da ética da alteridade de quem a ideia é fundamental para a
justiça restaurativa (LECHTE, 2006, p. 15). A ideia de alteridade é explicada
por José Rossini Campos do Couto Corrêa (2011, p. 287):
Alteridade, no sentido de relação entre Ego (Eu) e Alter (Outro), pois abertura para
outrem é a essência verdadeira da Justiça, que não se esgota em “A”, mas se projeta para
“B”, o alcança e o envolve, conformando uma bilateralidade A e B.
O pensamento e a crítica de Lévinas acerca da alteridade estão relacionados
com os princípios de justiça restaurativa e assumem total pertinência e
aplicação à realidade atual quando se trata especificamente do encontro
restaurativo.
A realização da justiça, para Lévinas, tem sua origem na proximidade dos
relacionamentos face a face, nos quais tanto ofensor quanto ofendido estariam
envolvidos. Qualquer imposição de pena sem dar atenção aos
relacionamentos face a face acaba sendo um “tirar de” alguém em vez de um
“dar ao” outro (LECHTE, 2006, p. 149). A justiça constitui, assim, uma
exigência de responsabilidades infinitas por todos os desejos,
independentemente de quem os possua. Ela conecta esses “eus” individuais
em sua própria diferença sem despojá-los de individualidade.
A filosofia de Lévinas se destaca por conferir primazia à alteridade em
relação ao sujeito pensante. Como fenomenólogo, Lévinas explorou aspectos
(como o conceito de responsabilidade e a relação com o “Outro”)
negligenciados pela ética, para quem, antecede à própria ontologia. Nas suas
palavras, a responsabilidade pelo outro é “pré-originária”, uma
responsabilidade “sempre mais antiga que o conatus da substância, mais
antiga que o começo e o princípio” (LÉVINAS, 2012, p. 106). Essa
responsabilidade do “Eu” pelo “Outro” seria anterior até mesmo à própria
liberdade ou vontade do indivíduo, o que torna a ética da responsabilidade - e
não a liberdade — a sua “primeira filosofia” (HUTCHENS, 2009, p. 19).
O ideal da justiça restaurativa se realiza apenas por meio da outridade, do
colocar-se no lugar do outro, com foco nas possibilidades do futuro ao invés
de nas perdas do passado. Essa premissa é válida tanto para ofensores quanto
para vítimas, a fim de que não fiquem reféns da culpa e do ressentimento
gerados pelo crime. Para alcançar esse objetivo, as partes são ouvidas e
consideradas em sua inteireza, sem desprezo ou desrespeito aos seus traumas
e conflitos. Trata-se de “uma justiça que olha, escuta, compreende, bem
diferente da deusa tradicional, surda, muda, cega, empunhando a espada”
(CHRISTIE, 1993, p. 149).
Ainda em relação à outridade, Lévinas diz que nada que esteja relacionado
com o alheio pode nos deixar indiferente 126 , já que o homem é “tecido de
responsabilidades”. Declara Lévinas (2012, p 105): “A humanidade do
homem, a subjetividade, é uma responsabilidade pelos outros, uma
vulnerabilidade extrema”. Sua ética da responsabilidade indica, portanto, que
nascemos em um mundo de relacionamentos sociais, os quais não escolhemos
e não podemos ignorar (HUTCHENS, 2009, p. 35). O “Eu” não pode
conceber-se isolado dos demais, retirado em si, visto que, “bem antes da
consciência e da escolha, antes mesmo do homem se reunir em presente e
representação para se fazer essência, ele se aproxima de outro homem”
(LÉVINAS, 2012, p 105) 127 . Até mesmo o homem que se considera livre é
voltado ao próximo, já que ninguém pode salvar-se sem os outros (LÉVINAS,
2012, p. 104).
Até inconscientemente, diz Lévinas (2012, p. 98), somos dependentes uns dos
outros:
No aconchegar do outro em que este se encontra imediatamente sob minha
responsabilidade, ‘alguma coisa’ extrapolou minhas decisões livremente
tomadas, infiltrou-se em mim sem eu saber, alienando assim minha
identidade.
Essa responsabilidade é “indeclinável”, de modo que não podemos dizer
“não” a ela. “Ser eu”, proclama, significa não ser capaz de evitar a
responsabilidade, pois estamos ligados, de uma maneira peculiar, ao “Outro”.
Assim, a aproximação da face daquela pessoa evoca uma inevitável
responsabilidade para com ela 128 . De certa forma, a face por si só já fala antes
que qualquer palavra seja emitida, como descreve (LÉVINAS, 2012, p. 51):
“o rosto fala. A manifestação do rosto é o primeiro discurso. Falar é, antes de
tudo, este modo de chegar por detrás de sua aparência, uma abertura na
abertura”.
De mais a mais, a face do “Outro” é uma epifania que nos solicita: no face a
face humano se irrompe todo sentido da nossa existência 129 . Ainda que nos
recusemos a falar, há meramente uma recusa a responder por meio da fala,
simplesmente já respondemos ao rejeitar o impulso de falar (HUTCHENS,
2009, p. 75-76). “Lá onde eu teria podido permanecer como espectador, eu
sou responsável” (LÉVINAS, 2012, p. 85).
Lévinas (2012, p. 52-53) descreve a repercussão do encontro face a face com
o outro nos seguintes termos:
Despojado de sua própria forma, o rosto é transido em sua nudez. Ele é uma miséria. A
nudez do rosto é a indigência e a suplica na retidão que me visa. Mas esta súplica é uma
exigência. O rosto impõe-se a mim sem que eu possa permanecer surdo a seu apelo, ou
esquecê-lo, sem que eu possa cessar de ser responsável pela sua miséria. A presença do
rosto significa, assim, uma ordem irrecusável, um mandamento. O rosto desconcerta a
intencionalidade que o visa. A sua presença é uma intimidação para responder. Ser Eu
(Moi) significa, a partir daí, não se poder furtar à responsabilidade, como se todo o
edifício da criação repousasse sobre meus ombros. O Eu (Moi) diante do Outro é
infinitamente responsável e ninguém pode responder em meu lugar. O Outro provoca esse
movimento ético na consciência, que desordena a consciência da coincidência do Mesmo
consigo próprio. Isto é o Desejo: queimar de um fogo diverso que o da necessidade,
pensar além daquilo que se pensa, entrar em relação com o inapreensível, um excesso
inassimilável que une o Eu (Moi) a outro, numa ideia de infinito.No caso da justiça restaurativa, no momento do diálogo restaurativo, há o
“desnudamento da pele exposta à ferida e à ofensa, para além de tudo aquilo
que se pode mostrar, para além de tudo aquilo que pode expor-se à
compreensão” (LÉVINAS, 2012, p. 99). Neste momento, o indivíduo
“coloca-se a descoberto, expõe-se um nu mais nu que a pele que, forma e
beleza, inspira as artes plásticas, nu de uma pele exposta ao contato, à carícia
que sempre é sofrimento pelo sofrimento do outro” (LÉVINAS, 2012, p. 99).
Diante do rosto do “Outro”, o sujeito se descobre responsável e lhe vem à
ideia o “Infinito” 130 .
3.3.4 O agir comunicativo habermasiano
Segundo Habermas (2012b, p. 120), os seres humanos são seres racionais e
autônomos que se relacionam e interagem com o mundo por meio da
linguagem. Para ele, a linguagem é muito mais do que apenas palavras e
frases. Não só transmite significado por meio de símbolos, mas é por meio
dela que somos capazes, entre outras coisas, de estabelecer relações
interpessoais, influenciar pessoas, de chegar a uma compreensão sobre o
mundo, sobre os outros e sobre nós mesmos e coordenar nossas ações. Nas
palavras dele:
Na própria prática cotidiana, o entendimento entre sujeitos que agem comunicativamente
se mede por pretensões de validade, as quais levam a uma tomada de posição em termos
de sim/não perante o maciço pano de fundo de um mundo da vida compartilhado
intersubjetivamente. Elas estão abertas à crítica e mantêm atualizado, não somente o
risco do dissenso, mas também a possibilidade de um resgate discursivo. Neste sentido, o
agir comunicativo aponta para uma argumentação, na qual os participantes justificam
suas pretensões de validade perante um auditório ideal sem fronteiras (HABERMAS,
1997b, p. 50).
Em sua teoria, Habermas (2012b, p. 124) preocupa-se não só com o
significado da linguagem, mas também com o que ela é capaz de empreender.
O autor explica que, implicitamente num discurso, nós levantamos várias
pretensões de validade, de sinceridade, de verdade e de retidão 131 .
É por meio de um acordo ou de discordância em relação a estas pretensões
implícitas que os indivíduos são capazes de chegar a um entendimento e
concordância para se coordenar a ação. Quando concordamos com as
pretensões levantadas no discurso, pode-se dizer que há um consenso; quando
não, solicitamos justificativas ou razões pelas quais devemos aceitar estas
reivindicações como verdadeiras, sinceras e corretas. Se a justificativa é
suficiente, então há uma aprendizagem e é atingido um consenso com base
nestas informações. Se a justificativa não é suficiente, as partes entabulam
diálogo e raciocínio adicionais até que se chegue a um consenso ou até que a
comunicação seja interrompida (BARRET, 2011, p. 41).
Habermas reconhece que a linguagem também é usada para o conflito, para a
competição e para a ação estratégica, no entanto, segundo ele, estes são
simplesmente resultados derivados do objetivo original da linguagem, qual
seja, o de alcançar a compreensão e a ação coordenada (HABERMAS, 2012b,
p. 124). Assim, quando nos expressamos por meio da fala, fazemo-lo com
objetivo de sermos compreendidos. O alcance deste consenso compartilhado,
do entendimento e da ação coordenada é denominado por Habermas de
“mútua intersubjetividade” ou “reconhecimento intersubjetivo da validade do
que alega o interlocutor” (HABERMAS, 2012b, p. 131).
Na justiça penal, parte-se de uma situação de conflito, na qual há uma falta de
consenso, de compreensão e de ação coordenada. Demanda-se, portanto, um
processo de ação comunicativa para trazer entendimento, consenso e ação
coordenada (que é a proposta restaurativa). Nesta forma de justiça, o processo
de diálogo é um meio de expressar pensamentos, sentimentos e experiências 132
, de entender o ocorrido, bem como as consequências das ações e de chegar a
um consenso e a um acordo formal sobre a melhor forma de lidar com o mal
causado 133 .
Mais detalhadamente em sua obra “A teoria do agir comunicativo”, Habermas
(2012b, p. 125) se reporta ao trabalho de Piaget para explicar os três âmbitos
diferentes da realidade em que a pessoa se percebe e se envolve: o domínio do
objetivo, do subjetivo e do campo social (compartilhado).
Inicialmente, o indivíduo apenas alcança a perspectiva do seu próprio
universo interno, ou seja, ele reconhece o mundo apenas através de seus
olhos. À medida que interage com o mundo físico e observa os demais
fazendo o mesmo, ele passa a perceber que o “mundo” pode ser visto a partir
de outras perspectivas subjetivas. Ou seja, ele pode ver a si mesmo por meio
de outros olhos (alter ), ele pode ver o outro através de outras lentes, ele pode
ver a interação entre o eu e o outro por intermédio de outra perspectiva (3 ª
pessoa) e ele pode ver o mundo com outro olhar. Assim como no processo
desenvolvido e explicado por Piaget em relação às crianças, os adultos
também se desenvolvem a ponto de se tornarem mais reflexivos, levando a
sua perspectiva ao outro e percebendo o seu próprio pensamento e
comportamento (BARRET, 2011, p. 44).
3.3.5 A dinâmica do círculo restaurativo
Do ponto de vista restaurativo, a capacidade de tomar várias perspectivas ou
“tomar a atitude do outro” é crucial, pois é ela que possibilita às partes a
empatia com os demais e a estarem, metaforicamente, “no lugar do outro”.
Nos círculos restaurativos, a metodologia de “contar histórias”, por exemplo,
pode desencadear este processo. Nesta fase, os participantes são estimulados a
contar histórias de suas vidas a fim de construir compreensão um do outro e
para aumentar a empatia 134 .
A Comunicação não-violenta (CNV) é outra técnica bastante útil e
pedagógica para se alcançar este objetivo. Desenvolvida por Marshall
Rosemberg 135 , a técnica propõe a divisão do diálogo em quatro etapas
sucessivas, quais sejam: observação, sentimento, necessidades e pedido. Essas
etapas expressam as pretensões de validade habermasianas e repercutem os
três domínios mencionados por Piaget (CNVC, 2012).
3.3.5.1 A metodologia da CNV
A metodologia da CNV pode ser sintetizada nos seguintes passos: em
primeiro lugar, cada um dos participantes discute o que aconteceu no mundo
dos fatos (mundo objetivo), identificando as ações concretas do outro que
afetaram o seu bem-estar. Rosemberg (2003, p. 126) ilustra com exemplos o
que se entende por observação: “São 2:00h e ele ouve música estéreo” (fato
observado), ao invés de “É muito tarde para ele estar fazendo esse barulho
horrível” (introduz uma avaliação); ou “Eu olhei na geladeira e vi que não há
comida, então percebi que você não foi às compras de supermercado” (fato
observado), em vez de “Você desperdiçou o dia inteiro” (faz uma avaliação).
Em seguida, o interlocutor relata o seu sentimento quanto às ações observadas
(mundo subjetivo): decepção, susto, alegria, irritação etc. Por exemplo: “Eu
vejo o seu cão correndo sem coleira e latindo” (observação — 1ª etapa).
“Estou com medo” (sentimento — 2ª etapa). Para a justiça restaurativa, a
expressão de sentimentos e intenções é fundamental, a fim de que os demais
saibam o que cada um sente e o efeito da sua conduta em relação ao outro.
Em terceiro lugar, as pessoas relatam os seus valores, desejos e necessidades
relacionados a estes sentimentos, por exemplo, o que eles desejam que seja
feito a respeito do fato e o que eles próprios podem fazer para melhorá-los.
Seria o caso de: “Eu te vejo olhando para longe, enquanto eu estou falando”
(1ª fase - observação). “Estou me sentindo desconfortável” (2ª fase -
sentimento),“porque eu estou precisando de atenção agora” (3ª fase -
necessidade).
Outro exemplo de aplicação destas três etapas pode ocorrer numa situação
cotidiana de uma mãe com seu filho adolescente, dizendo: “Filho, quando
vejo duas bolas de meias sujas debaixo da mesa de café e outras três ao lado
da televisão (observação), eu me sinto irritada (sentimento) porque preciso de
mais ordem na área comum (necessidade)”. De imediato, segue-se o quarto
componente, que constitui um pedido específico de ações concretas que se
espera da outra pessoa: “Você estaria disposto a colocar suas meias no seu
quarto ou na máquina de lavar?” (pedido — 4ª etapa).
Após esta etapa, em resposta ao orador e a fim de construir empatia com ele,
o ouvinte lhe responde com versões reformuladas de declarações do próprio
locutor (“eu ouvi você dizendo que ….”), confirmando, assim, que ele foi
ouvido e compreendido. Isto porque a CNV exige escuta atenta e paciente do
outro, especialmente quando o falante e o ouvinte estão em conflito.
Qualquer que seja a técnica empregada, está no cerne do processo de justiça
restaurativa a necessidade de expressão dos três tipos de pretensões de
validade identificados por Habermas (de sinceridade, de verdade e de
retidão), as quais refletem, respectivamente, os três âmbitos da realidade de
uma pessoa, distinguidos por Piaget (o objetivo, o subjetivo e o social).
Uma das características essenciais das técnicas restaurativas é o
desenvolvimento da habilidade dos interlocutores de articularem observações
sem a introdução de julgamentos ou avaliações. Por meio destas técnicas, as
partes se expressam em termos objetivos e neutros (preferindo observações
factuais sobre sentimentos e necessidades) em vez de em termos de
julgamento (como bem e mal, certo ou errado, justo ou abusivo), propiciando
uma compreensão mais profunda do outro. Por meio destes métodos, é
possível que o processo restaurativo atinja seu escopo de chegar a um acordo
sobre quais ações devem ser tomadas para reparar os danos e reestabelecer as
relações entre os envolvidos (CNVC, 2012). Assim, a dinâmica do encontro
possibilita reconhecer os erros cometidos, estabelecer expectativas
comportamentais adequadas e desenvolver relações interpessoais.
Após o ritual introdutório, de apresentação e ambientação, o momento é de
recontar a versão de cada participante para o conflito em questão. Nesta
ocasião, eles colocam as três pretensões de validade habermasianas nos seus
atos de fala (sinceridade, verdade e correção), alegando que o que eles estão
dizendo sobre o evento é verdade, que eles estão sendo sinceros, e o que estão
dizendo sobre o evento é normativamente adequado no contexto (BARRET,
2011, p. 51)
No encontro, todos os participantes têm a oportunidade de apresentar
reivindicações e explicar o porquê delas. Também têm a chance de questionar,
argumentar, aceitar ou desafiar o ponto de vista dos demais, tudo em um
espaço de diálogo aberto e honesto.
Superada a fase “objetiva” de exposição dos acontecimentos segundo a
perspectiva do falante (o mundo objetivo de Piaget), vem a parte “subjetiva”,
onde os participantes são indagados sobre como se sentiram com o fato, suas
consequências e o impacto sobre suas vidas. A cada pronunciamento,
levantam novamente pretensões de validade, agora tematizando o seu mundo
subjetivo. Neste ponto, podem expressar suas necessidades, desejos e
sentimentos. As vítimas são capazes de tornar conhecidas a natureza e a
extensão de suas lesões e, ao ouvi-las, o ofensor pode expressar
arrependimento e remorso, pois se torna capaz de assumir a atitude do outro e
ver a sua experiência no mundo subjetivo sob outra perspectiva. Assim, por
meio da aceitação, de críticas e do engajamento em argumentos, as partes
chegam à compreensão do mundo subjetivo do outro (BARRET, 2011, p. 62).
Após conhecer o ponto de vista do outro, pode-se adquirir autoconhecimento,
superar as dificuldades de compreensão, identificar falhas e melhorá-las com
base nas razões válidas oferecidas. Isso resulta em uma mudança de
pensamento e de “saber” e pode ajudar as pessoas a adquirirem uma nova
visão dos fatos, superar o autoengano e as dificuldades para compreensão. A
esse respeito, comenta García-Pablos de Molina (2012, p. 449):
O confronto direto e pessoal humaniza uma vivência traumática e a torna mais
compreensível, mais aceitável, liberando a vítima de estereótipos e imagens interessadas
que radicalizariam e potencializariam a confrontação. […] “Seu” infrator-não é o
inimigo sem rosto, “o” outro, senão mais um “como” os outros.
Dessa forma, os participantes podem, por exemplo, abandonar falsas crenças
sobre o que aconteceu na cena do crime ou por que este ocorreu e superar os
estereótipos e preconceitos em relação a outras pessoas e como elas se sentem
sobre o fato. Barnett (2011, p. 71) cita o exemplo de um ofensor em um crime
patrimonial que, ao se deparar com sua vítima, percebeu que ela não tinha
seguro, que ela não era rica e que cresceu no mesmo bairro que ele cresceu,
sob as mesmas condições socioeconômicas e desafios que ele.
Num último momento, as partes entabulam o acordo restaurativo, no qual
novamente colocam em debate as suas pretensões de validade, agora dirigidas
ao campo social (compartilhado) de Piaget. Desafiar e criticar reivindicações
alheias dá origem ao processo de aprendizagem potencial referido por
Habermas 136 . Durante este procedimento, as reivindicações recíprocas são
novamente contestadas, alteradas e até melhoradas 137 . A argumentação confere
aos participantes a oportunidade de aprender, modificar as suas
reivindicações, o seu comportamento e alcançar a compreensão mútua e a
ação coordenada, tudo por meio do reconhecimento intersubjetivo de
pretensões de validade recíprocas (BARRET, 2011, p. 55).
Outra vantagem da dinâmica habermasiana neste campo social identificado
por Piaget é o potencial de ligação (uma relação de obrigatoriedade entre
falante e ouvinte) que pode auxiliar no fortalecimento das relações sociais.
Habermas (2012b, p. 155) refere-se a esta ligação como “força vinculativa
ilocucionária ou racionalmente motivada da ação comunicativa”.
Com o envolvimento das partes na ação comunicativa e com o potencial de
chegarem a um acordo, eles formam uma compreensão e um conhecimento
recíprocos. Eles sabem o que o outro está pensando, sentindo e
experimentando por meio das reivindicações de pensamento, sentimento e
experiência levantadas. Esse “saber” reforça as relações sociais. Quando as
pessoas experimentam situações de igualdade e respeito mútuo, elas se
tornam mais propensas a abandonar suas defesas que são, muitas vezes, a
causa do comportamento destrutivo ou não-cooperativo. Elas se tornam
abertas para reconhecerem um terreno comum e para agirem no interesse
comum, o que é elementar no conceito de comunidade (BARRET, 2011, p.
57).
3.3.5.2 O caso do encontro entre um adolescente autor
de “sequestro relâmpago” e sua vítima, um policial
Relatos de mudanças de atitude das partes, de que foi possível reconhecer a
humanidade no outro, de que o processo restaurativo foi capaz de tocar
corações e mentes podem ser explicados, em parte, pela modificação ou
abandono de pretensões de validade não sustentadas referidas. Um exemplo é
o encontro restaurativo relatado por Dominic Barter, ocorrido em abril de
2007, durante um círculo de conferência realizado na Vara da Infância e
Juventude no Rio de Janeiro. Mediados por um servidor do Tribunal de
Justiça local, participaram, de um lado, um adolescentede 16 anos autor de
ato infracional, sua avó, seu pai e a namorada do pai. De outro lado, um
policial militar (vítima), sua esposa e seu filho de um relacionamento anterior.
O fato ensejador do encontro foi um “sequestro relâmpago” praticado pelo
adolescente e um amigo não identificado contra o policial. Na noite do crime,
os jovens viram um homem sair sozinho de seu carro em um estacionamento
ermo e decidiram assaltá-lo. Armados, eles o surpreenderam, colocaram-no
no banco de trás do carro e se dirigiram ao caixa eletrônico mais próximo, a
fim de sacar dinheiro. Os jovens não perceberam que o homem era um
policial à paisana e que portava uma arma pequena junto ao corpo. O policial
reagiu e baleou o adolescente por três vezes na perna. O outro jovem fugiu.
Cada parte envolvida no ato e, em seguida, o seu núcleo de apoio, teve a
oportunidade de narrar seu ponto de vista sobre o delito e como este impactou
a vida de cada um deles. Num primeiro momento, o policial fez uma
descrição do fato em detalhes gráficos, como quando foi levado para o
assento detrás do carro, onde pensou como seria sua reação: na cabeça de qual
jovem atiraria primeiro? Cogitou esta possibilidade como uma forma de
proteger a si mesmo, a sua propriedade e como sendo a reação natural de um
policial. Descreveu que, quando o adolescente virou a cabeça, percebeu que
algo no rosto dele lembrava o de seu filho. Pensou, em seguida, nos pais dos
jovens, nas famílias perdendo entes queridos e decidiu que em vez de mata-
los, iria rendê-los e prendê-los. O policial pôde expor suas lembranças desde
o dia em que foi sequestrado, como sua rotina mudou, como trabalhou
durante anos para adquirir seu carro sem recorrer a atos deste tipo, como um
sentimento de medo afetou sua família e que foi condenado ao ostracismo por
seus pares por não “fazer a coisa esperada” de um agente da segurança.
O jovem, por seu turno, falou de sua vida no momento do crime, sobre o
momento de tomar a decisão de cometer o sequestro, sobre o que ele e seu
colega esperavam fazer com o dinheiro, sobre seus pensamentos a respeito da
polícia, sobre seu pânico ao descobrir que sua vítima estava armada e que se
tratava de um policial militar. Relatou a sua semana de recuperação no
hospital, o seu desejo de estar morto quando se sentou no piso da cela, falou
da perda de sua mãe recentemente falecida, falou sobre ser preso, estudar na
prisão e estar separado de sua família.
Na última etapa do círculo, todos colaboraram na elaboração de ações
específicas para cada um, a fim de contribuir para o bem-estar do outro e
atender às necessidades não satisfeitas. Muitos planos foram feitos no acordo
como, por exemplo, o policial levaria seu filho à praia, a avó visitaria o neto
adolescente internado a fim de compartilhar histórias de sua filha (recém-
falecida) com o neto, o policial faria uma palestra para os detentos na unidade
de internação de jovens e o adolescente internado daria uma palestra aos seus
colegas. A finalidade foi compartilhar este plano de ação com o juiz de
condenação do jovem (ele foi sentenciado a 18 meses de internação, no
mínimo), para que o magistrado o considere quando da sua liberação
condicional e para que houvesse comprometimento do adolescente com os
estudos durante a internação. Ao fim do diálogo, quando se indagou a todos
se ouviram uns aos outros com atenção, o adolescente disse ao policial: “Você
é como um espelho para mim”.
3.3.5.3 O caso do encontro entre uma vítima idosa e o ladrão de sua
residência
Um caso emblemático de como as partes podem estabelecer um entendimento
comum sobre o mundo objetivo (fatos), o mundo subjetivo (sentimentos e
intenções) e o mundo social (normativo, erros, e o que é necessário para
corrigi-lo) em relação a um conflito particular foi o furto à residência de uma
idosa (LAUGHLAND, 2011, p. 1), de 72 anos por parte de Reggie Aitchison,
um jovem de 34 anos, dependente químico e conhecido pela prática contumaz
de furtos a residências. Ele ingressou na casa de Kethleen enquanto estava sob
o efeito de um coquetel de drogas (álcool, crack e diazepam). Depois da sua
condenação, eles aceitaram se encontrar no âmbito da justiça restaurativa para
tratarem as consequências do delito.
Segundo o autor, ele estava a caminho da cidade para praticar alguns furtos a
fim de financiar o seu vício em drogas. Naquele dia, ele e seus amigos já
tinham feito cinco tentativas frustradas de subtração em lojas. Os seguranças
locais perceberam a intenção deles e eles foram impedidos de entrar nos
estabelecimentos. Reggie já retornava para casa, quando passou em frente à
casa da idosa e avistou a janela aberta. Por meio dela, ele ingressou na
residência à procura de algo rápido para vender (como ouro ou mesmo
dinheiro). A vítima apareceu assim que ele abriu a porta da frente para sair e,
então, ele correu com medo de ser pego. O autor informou que temia ser
preso e passar novamente pelo processo de desintoxicação.
Na versão da vítima, ao chegar a casa, ela tentou ingressar pela porta da
frente, mas viu o autor sair correndo de dentro de sua casa. Ela ainda tentou
segurá-lo, mas ele fugiu. No andar de cima, ela encontrou tudo em absoluta
desordem. Ligou para a polícia, que foi até o local. Após o fato, a vítima não
se sentiu mais segura em casa. Sempre andava pela residência imaginando
que alguém estivesse ali e, quando ia para a cama, escutava ruídos. A sua neta
morava do outro lado da rua e, então, Kathleen foi residir com ela por
algumas semanas. Mesmo após o episódio, a idosa não se sentia segura ao
voltar para casa. Por isso ela deixou a casa e foi para um alojamento. Ela teve
que passar a tomar medicamentos para ajudar a superar o medo e o seu
sentimento era de raiva do autor.
Após exporem suas visões e sentimentos sobre o mesmo fato, as partes
puderam manifestar-se sobre o ponto de vista um do outro. Reggie informou
que, um dia, após ser preso, mesmo ainda estando sob a influência das drogas,
sabia o que tinha feito: assaltado a casa de uma senhora de idade. Nesse
momento, ele ainda não tinha se arrependido do feito, mas, após a sua
desintoxicação, ele começou a se sentir mal.
Além da necessidade de expressar seu sofrimento e da raiva que sentia, a
vítima disse que gostaria de tirar algumas dúvidas. Ela quis saber por que o
ofensor escolhera furtar residências. Ele respondeu a ela que era por
desespero, porque já haviam esgotado todas as outras possibilidades (bens da
família, suas próprias posses etc.), pois as drogas levam seu dependente a um
ponto em que ele não se importa consigo mesmo, não tem sentimentos para os
outros e tudo o que faz é motivado por ela e pelo desejo de usá-la.
A vítima quis saber se esse tipo de pensamento seria uma obsessão, ao que ele
respondeu que sim, que a mente de um viciado diz: “Tudo bem, pode fazer,
porque você precisa da droga.” A partir desse momento, ele só pensa
satisfazer a sua necessidade e nada mais.
Após o encontro, as partes concederam entrevista ao jornalista Oliver
Laughland, do “The Guardian”, no dia 21 de maio de 2011, a fim de relatarem
como a experiência de diálogo os ajudou. Perguntados se se recordavam do
dia em que se conheceram por meio do processo de justiça restaurativa,
Reggie respondeu que estava com muito medo, pensando como é que a vítima
iria reagir. Entretanto, ele sentiu que ela merecia uma explicação e que ela
merecia dizer a ele como se sentiu a respeito dos fatos. Ele imaginou que a
vítima esperava que ele fosse “uma espécie de monstro” antes do encontro.
Kethleen respondeu que, quando foi ao encontro com Reggie,ainda tinha
muita raiva acumulada. Disse também que, quando se falaram, explodiu em
lágrimas. Todos os maus sentimentos que o ódio tinha construído dentro dela
foram liberados e, depois disso, ela pôde retomar a vida.
Reggie afirma que imagina quão assustador foi o fato e que certamente
compreende o sofrimento da vítima e que se sente mal por isso. Disse refletir
sobre o que fez a uma senhora que trabalhou toda a vida, tem todas as suas
coisas, para que alguém simplesmente chegue e invada sua propriedade desse
jeito. Por tudo isso, ele se sentiu mal e quis enfrentar a sua vítima para saber o
que tinha feito. Informou a Kethleen que tudo o que ela disse está “bem
guardado na sua cabeça”, porque é um constante lembrete do que ele era
capaz de fazer em virtude do vício em drogas. Afinal, ele “roubou” a
independência dela.
Kethleen afirma que não sabia que o autor era viciado em drogas até que ele
contou no encontro. Para ela, ele era um rapaz completamente diferente,
muito distinto do Reggie que ela tinha visto sair correndo de sua casa.
Ele afirma que Kathleen ter dado a ele a oportunidade de se explicar foi muito
terapêutico para ele também. Naquele dia, isso o motivou a ficar
desintoxicado porque ele ainda estava sob o efeito da metadona. Segundo ele,
a desintoxicação durou cinco semanas e foi um pesadelo, a pior abstinência
que já teve. Ele passou pelo processo e agora tem o seu próprio apartamento.
Ele não se aproxima mais de pessoas que usam drogas e diz estar tentando
reorganizar a vida (LAUGHLAND, 2011, p. 1).
Com base na filosofia do face a face levinasiano, do agir comunicativo de
Habermas e do reconhecimento recíproco de Axel Honneth, podemos
compreender como o processo de argumentação, a capacidade de tomar a
perspectiva do outro e o simples fato de sentarem-se frente a frente e se
olharem, antes mesmo do diálogo, dão origem à empatia e às mudanças “no
coração e nas mentes” dos participantes. Eles podem transformar a imagem
subjetiva inicial que tinham do outro. Como visto no caso citado, esse aspecto
é especialmente relevante em relação às vítimas, que podem “livrar-se” da
imagem “poderosa” do ofensor, criada devido à violência sofrida, mas que
não corresponde à realidade. As vítimas podem, assim, ressignificar o
potencial da ofensa (COSTA; MOURA, 2010, p. 616).
Em conclusão, denota-se que a justiça restaurativa se vale de um processo
dialógico que congrega os afetados pelo delito com o objetivo de
proporcionar o entendimento de um com o outro e a um acordo sobre que
ações podem ser tomadas para reparar o dano causado e, a partir disso,
coordenar suas ações. Nesta senda, a teoria do agir comunicativo de
Habermas, a explanação sobre a necessidade de reconhecimento de Honneth e
o despertar da responsabilidade e da empatia pela proximidade face a face de
Lévinas são perspectivas úteis para compreender o desenrolar do encontro,
especialmente porque fornecem um conjunto de mecanismos que nos ajuda a
entender a importância da linguagem e do despertar empático para se chegar a
um consenso 138 e à assunção de responsabilidades compartilhadas para a
solução das consequências do conflito.
Estas não são as únicas perspectivas ou os únicos quadros a partir dos quais se
pode explicar o processo restaurativo, no entanto, eles proporcionam um
ponto de partida para uma discussão mais aprofundada que possa colmatar a
lacuna entre teoria e prática restaurativa.
3.4 Uma nova racionalidade para a pena: a função comunicativa
A teoria de Habermas foi utilizada em três momentos distintos neste trabalho.
Em primeiro lugar, utilizou-se a tensão identificada pelo autor entre
facticidade e validade do direito para compreender a crise de legitimidade por
que passa a lei penal. Por meio de suas ideias, foi possível perceber que, mais
importante do que o rigor da lei penal, está o preenchimento das condições
validade do direito, a fim de que este seja reconhecido legítimo e merecedor
de obediência (seção 1.1).
Em segundo lugar, valemo-nos do conceito de esfera pública habermasiana
para assimilar a importância de uma arena neutra, voltada para a discussão
racional, para o debate e o consenso, da qual participam comunidade, ofensor,
vítima e seus apoiadores no tratamento de conflitos (seção 3.3.1).
A interlocução realizada neste encontro é denominada por Habermas de “agir
comunicativo”, o qual possui uma racionalidade própria, emancipadora,
chamada por ele de “racionalidade comunicativa”. A razão comunicativa não
estabelece normas, valores, formas de agir ou resultados válidos a serem
alcançados, mas permite às partes chegarem a um acordo racionalmente
motivado sobre a melhor maneira de agir.
Por meio desta nova racionalidade, é possível comunicar ao ofensor sobre a
sua responsabilização, de um modo racional e persuasivo, oferecendo-lhe uma
justificação para a pena. A sanção, comunicada nestes termos, assumiria uma
função de persuasão e de expressão da condenação, não se tratando de
simples ato de incapacitação, retribuição ou vingança. Portanto, às funções de
prevenção e retribuição da pena, atualmente existentes, acrescentar-se-ia,
como alternativa, a comunicativa, estudada por James Fishkin na teoria
explicitada a seguir.
Nesta seção, portanto, explicamos a racionalidade comunicativa presente no
encontro restaurativo e como ela pode atuar para conferir uma nova função à
pena, mais consentânea com os princípios da justiça restaurativa.
3.4.1 A racionalidade comunicativa de Habermas
A racionalidade comunicativa de Habermas diz respeito à formação de
consensos com base em razões aceitáveis para todos os envolvidos. Ela se
vale das razões para chegar a um entendimento comum sobre algo por meio
de um convencimento livre, manifestando-se nos processos de comunicação
(COELHO, 2013b, p. 1). As suas razões não se encontram vinculadas a
nenhum dos sujeitos, mas emergem do próprio meio, do agir comunicativo.
A racionalidade comunicativa não teria por objetivo o êxito, mas o
entendimento. Seus participantes não se tratam como objetos e meios, senão
como sujeitos livres e iguais, capazes de avaliação e crítica 139 . Habermas
(1997b, p. 92) ressalta a finalidade de compreensão mútua (na razão
comunicativa) em contraposição à de satisfação de interesses individuais (da
razão instrumental), nos seguintes termos:
Ainda conforme Habermas (1997a, p. 20), “a razão comunicativa, ao
contrário da figura clássica da razão prática, não é uma fonte de normas do
agir”. Ou seja, a razão comunicativa não estabelece de antemão normas,
valores, formas de agir ou resultados válidos a serem alcançados (COELHO,
2013c, p. 1). Segundo o filósofo tedesco:
O que age comunicativamente não se defronta com o “ter que” prescritivo de uma regra
de ação e, sim, com o “ter que” de uma coerção transcendental fraca — derivado da
validade deontológica de um mandamento moral, da validade axiológica de uma
constelação de valores preferidos ou da eficácia empírica de uma regra técnica
(HABERMAS, 1997a, p. 20).
A razão comunicativa fixa um processo (no caso, o discurso) em que os
próprios participantes podem, em caso de problematização, chegar a um
acordo racionalmente motivado sobre a melhor maneira de agir. Ela atribui a
este resultado, qualquer que ele seja, a presunção de ser racional em virtude
de ter sido obtido mediante um discurso. Trata-se, portanto, de uma razão
procedimental, cuja racionalidade está no processo que justificam suas
normas, ou seja, no fato de as normas terem sido obtidas por meio do discurso
(COELHO, 2013c, p. 1).
3.4.2 A função comunicativada pena
A ausência de resultados auspiciosos e efetivos para as propostas de
retribuição e prevenção da pena, vista nas seções 1.4 e 1.6, leva-nos a
perquirir se haveria, no âmbito da filosofia penal, uma finalidade proveitosa a
se perseguir com a punição. Afinal, pode haver maneiras melhores e mais
úteis de lidar com os delitos em sociedade do que punir ofensores, como
respostas reparatórias, terapêuticas, conciliatórias etc.
Encarar a punição pura e simples como resposta a um ato criminoso
corresponde a ignorar o fato de que quase todos os que estão encarcerados um
dia retornarão para a comunidade, talvez até mais irascíveis que antes.
Quando as pessoas são condenadas ao ostracismo da comunidade, elas não
têm motivos para se preocupar sobre como suas ações poderão atingi-las ou
aos demais membros (BRANCHER, 2007, p. 7).
Em vista disso, convém lembrar que a censura ao ofensor pode ser transmitida
de várias formas — das mais severas até as mais veniais. A justiça
restaurativa anima o nosso sistema penal para a construção de um modelo
menos vingativo. De acordo com a proposta restaurativa, a repreensão estatal
não precisa corresponder necessariamente à violência ou à prisão, pois,
muitas vezes, este tipo de tratamento é improdutivo e tampouco necessário. A
sua proposta é a de valorização, muito mais do que da retribuição ou
prevenção, da função comunicativa da pena.
Na justiça restaurativa, a função comunicativa decorreria do procedimento de
deliberação racional entre os participantes (vítima, ofensor e comunidade) que
discutem, no decorrer do encontro restaurativo, a respeito da contribuição de
cada um para o fato criminoso, da forma de responsabilização do autor e da
reparação dos danos à vítima e à comunidade, entre outras questões que
entenderem relevantes. Nela, a definição da pena é feita de forma
participativa e não apenas imposta por uma autoridade exterior ao conflito. A
sanção não seria uma consequência ontológica, natural, mas uma construção
social a partir do dano causado com vistas para o futuro (BERISTAIN, 2000,
p. 187).
Ao final do encontro, firma-se consensualmente o acordo restaurativo, que
contém obrigações e compromissos recíprocos. Por meio dele, e também
devido à sua participação ativa em todo o processo, as partes tanto podem
comunicar as razões que as levaram àquela situação conflituosa como podem
ser comunicadas sobre as consequências de suas ações e como repará-las. Em
que pese o processo restaurativo possa não desfazer o mal causado, ele é
guiado pela possibilidade, entre outras, de transformar a compreensão de cada
um sobre suas ações e parcela de contribuição para solução do fato. Essa
compreensão é assaz importante, como explica Raimon Panikkar, citado por
Beristain (2000, P. 179): “O delito e o mal desaparecem, em certo grau, ou
quase todo, quando são compreendidos. Ainda que, sociologicamente,
permaneça todo o dano produzido”.
A participação dos envolvidos também apresenta a vantagem de evitar
distorções sobre seus posicionamentos e interesses. Nas questões criminais, a
participação do ofensor é importante não apenas porque confere a
oportunidade de conhecer a sua versão dos fatos, mas também devido ao
próprio significado da sua presença e do status concedido a ele (de
participante e protagonista do processo decisório). Afinal, o objetivo de um
julgamento não precisaria ser o de realizar uma determinação precisa dos
fatos e determinar uma sanção, mas também o de envolver o ofensor de forma
racional no processo de discussão, de julgamento e de reparação (DUFF,
1986, p. 35).
Em relação ao ofensor, uma vez que a função comunicativa da pena se
manifesta por meio da discussão e do convencimento racional, ele pode ser
racionalmente persuadido sobre a importância de respeito às normas sociais e
jurídicas, pois o diálogo expõe as necessidades de informações e emocionais
da vítima, necessidades centrais para sua recuperação e para o
desenvolvimento entre eles de uma empatia que pode conduzir a uma
diminuição do comportamento criminoso no futuro (UMBREIT, 2007, p. 1).
A justiça restaurativa propicia, assim, um processo mais dialógico, visto que
não comunica simplesmente, mas persuade as partes envolvidas 140 .
Em relação ao ofensor, o objetivo de responsabilizá-lo não é apenas para levá-
lo a mudar seu comportamento, mas a fazê-lo pelas razões certas. Ou seja, ele
deve ser convencido, por um processo de argumentação que procura levá-lo a
compreender e a aceitar sua responsabilidade para avaliar o seu
comportamento passado e orientar sua conduta futura (DUFF, 1986, p. 48).
A pena, assim, assume uma função de comunicação, de persuasão e de
expressão da condenação, não se tratando de simples meio de incapacitação
ou de tutela das partes e dos ofensores.
Oferece-se, destarte, uma justificação da pena ao autor e não mera retribuição
ou vingança. Portanto, às funções de prevenção e retribuição da pena,
atualmente existentes, acrescentar-se-ia, como alternativa, a comunicativa
propiciada pela justiça restaurativa. Neste ponto, o conceito de esfera pública
de deliberação de Habermas e a sua teoria da ação comunicativa são
particularmente úteis para a compreensão do encontro restaurativo como
locus para o encontro entre comunidade, ofensor, vítima e seus apoiadores,
bem como a comunicação ao ofensor da sua responsabilização de modo
racional e persuasivo.
Além disso, uma função comunicativa da pena introduziria no processo
criminal o conceito de cidadania responsável que exige comprometimento do
ofensor e dos demais no cumprimento das obrigações assumidas (SIMÕES,
2010, p. 43). Se, no modelo vigente, o papel reservado ao ofensor é cumprir
(sofrer) a pena, na proposta restaurativa, sua responsabilidade consiste em
compreender o impacto de sua ação e o comprometer-se em reparar esse
dano. Desta forma, se no modelo atual o ofensor não tem responsabilidade de
solução do problema (do delito), mas apenas de cumprir a pena, no
restaurativo, ele a assume. A sua dívida não é mais abstrata perante o Estado e
a sociedade, mas concreta e também em prol da vítima (BERISTAIN, 2000, p.
175). Trata-se, em última instância, de uma orientação favorável ao
empoderamento, à responsabilização e ao reconhecimento da autonomia dos
implicados no conflito.
3.4.3 As ponderações de Joel Feinberg
A questão da pertinência da via comunicativa para a transmissão da rigidez
penal foi estudada por Joel Feinberg 141 (1965, p. 397), nos idos de 1960. Para
este filósofo político, a desaprovação social e sua adequada expressão são o
que melhor respondem ao crime, ao invés do tratamento rígido ou da dor.
Assim, para exprimir juízos sobre a responsabilidade, o sistema de justiça
criminal não precisaria fazê-lo necessariamente por meio da imposição de
penas de prisão. Haveria situações em que modos alternativos de expressão
estenderiam o manto da responsabilidade de forma mais eficaz e mais justa.
Nas palavras de Feinberg (1965, p. 415):
É claro que devemos condenar a prática de crimes. Mas por que esta condenação
envolveria qualquer dor ou dificuldade? Por que a condenação viria pelo meio físico
usual, o encarceramento e o tratamento corporal? Poder-se-ia imaginar um ritual
público, explorando os dispositivos mais confiáveis de religião e de mistério, de música e
drama, tudo para expressar da forma mais solene a condenação do criminoso pela
comunidade por seu ato covarde. 142
Assim, de acordo com Feinberg, a censura pelo ato praticado, o pesar e a
aflição decorrentes deste podem sercomunicados ao ofensor até mesmo por
meio de um sistema de punições simbólicas, como o serviço comunitário
obrigatório ou multa. Acrescente-se a isso que, numa perspectiva
comunicativa, é perfeitamente possível que as partes cheguem a um
entendimento quanto à aplicação deste tipo de penalidade.
Feinberg se dedicou a distinguir a gravidade da pena em relação aos demais
tipos de sanções, em função da capacidade expressiva de cada uma delas.
Para tanto, o filósofo americano salientou que estamos sujeitos às mais
diversas penalidades, em vários aspectos (civil, administrativo etc.), tais como
a multa pecuniária, a multa de trânsito, a suspensão do direito de dirigir, entre
outras. A diferença entre elas não estaria necessariamente na sua gravidade ou
na rigidez em que são aplicadas (Feinberg, 1965, p. 403) . Por exemplo, a
perda do poder familiar de um pai em relação a todos os seus filhos pela
prática de maus-tratos contra um deles, ou a perda de um herdeiro do seu
direito sucessório por indignidade podem ser muito mais severas do que o
castigo imposto na condenação pela prática de maus-tratos ou mesmo de
crime contra a honra do autor da herança, cujas penas são menores do que
dois anos de prisão 143 .
O que as diferencia, segundo Feinberg, é que as punições de natureza criminal
teriam um significado simbólico ou expressivo, que falta às demais
penalidades. As penas expressariam atitudes de ressentimento, de indignação
e desaprovação, em nome de quem o castigo é infligido (Feinberg, 1965, p.
398). Esta expressão da pena seria uma fonte “independente” de sofrimento e
é o que lhe conferiria atributos que a distinguem das demais sanções. O autor
cita exemplos ou situações que evidenciam as características distintivas das
penas, as quais transmitiriam a reprovação social:
a) a desaprovação oficial (authoritative disavowal) : ao punir um
funcionário público corrupto, por exemplo, um governo expressaria a
intolerância com sua ação. Assim, a chamada do faltante para a punição
indica que ele não agiu com o beneplácito do Estado;
b) não-aquiescência simbólica (nonacquiescence simbolic ): para
Feinberg, ao não punir assassinatos de amantes em crimes passionais,
pode-se afirmar que o estado do Texas os tolera. Chamá-los para a
responsabilização penal pode significar uma recusa em identificar-se
com estes;
c) justificar a lei (vindicating the law ): apesar da previsão legal, se os
linchamentos nunca são punidos, conclui-se que a lei contra eles é
ineficaz. A punição do linchador, neste caso, poderia funcionar como
uma reafirmação da lei;
d) absolvição dos demais (absolution of others ): a punição de uma
pessoa por um crime alivia outros de suspeita e de culpa pela prática do
mesmo crime.
Feinberg conclui, destarte, que uma condenação simbólica não se confunde
necessariamente com um tratamento rígido. Em favor da suavidade das penas,
informando que elas não necessitam ser cruéis para serem dissuasórias,
também já se manifestou Beccaria, na sua célebre obra de 1764, no parágrafo
intitulado “Da doçura das penas”. Entretanto, a conclusão dos filósofos não é
indene de críticas.
3.4.4 Críticas e respostas à proposta comunicativa da pena
A proposta comunicativa contempla o castigo como forma de comunicação
entre comunidade e ofensor, com vistas a quatro metas: o arrependimento, a
autorreforma, a reparação e a conciliação. Apresenta, dessa forma, um novo
modelo de controle penal (eunômico) frente ao modelo repressivo clássico
(anômico), que apresenta as vantagens de ser mais “comunicativo, horizontal,
responsabilizador, educativo, inovador, orgânico, terapêutico, racional, de
direito real, funcional, liberalizador e reparador” (GARCÍA-PABLOS DE
MOLINA; GOMES, 2012, p. 444).
Entretanto, a atribuição de uma função essencialmente comunicativa à pena
está longe de ser consenso. O primeiro argumento contrário é que ela não
comportaria a rigidez necessária para fazer frente aos crimes mais graves cujo
castigo também deve ser exemplarmente comunicado.
Numa perspectiva consequencialista, critica-se a teoria comunicativa da pena
argumentando que muitos ofensores não seriam demovidos por um sistema de
censura meramente formal ou por castigos meramente simbólicos 144 . Afinal, o
tratamento penal endurecido adicionaria um elemento dissuasor e apelaria
para o cumprimento da lei. Do ponto de vista retribucionista, pode-se alegar
que o tratamento rigoroso traduz o desprezo da sociedade para com o sistema
de valores do indivíduo recalcitrante e, portanto, ele seria indispensável e
incompatível com uma função simbólica-comunicativa da pena 145 . Assim,
segundo tais convicções, a condenação deve ser expressa por uma providência
rígida e o seu grau de dureza expressaria a intensidade de reprovação.
Em resposta, argumenta Feinberg que há situações em que a punição rigorosa
não é necessária, tampouco seria suficiente para transmitir a rigidez
pretendida. A introdução de penas mais severas não resolveu necessariamente
o problema da redução da criminalidade 146 . Ao contrário, esta medida
apresenta o risco de tornar as penas austeras e, paradoxalmente, menos
frequentemente aplicáveis. Beato Filho (1999, p. 22), por exemplo,
identificou que “estados americanos que adotaram severas sanções para o
porte de armas verificaram que, após algum tempo, os policiais tendiam a
aplicá-las muito menos”.
Para o filósofo, ainda que não se possa descartar totalmente a punição, ela não
serve isoladamente a nenhum propósito social útil:
Houve um tempo em que a forca e a tortura foram os principais símbolos claros de
vergonha e ignomínia. Agora vamos condenar criminosos à servidão penal como forma de
tornar seus crimes infames. Não seria possível fazer o trabalho mais economicamente?
Será que não existe uma forma de estigmatizar sem infligir qualquer dor (inútil) ainda
mais para o corpo, para a família e para a capacidade criativa? 147 (1965, p. 401).
Feinberg destaca, ademais, a falta de economicidade da punição por meio da
prisão e a inutilidade da dor por ela infligida (não só ao apenado, mas também
aos seus familiares e à nossa capacidade de reflexão). Nils Christie (1977, p.
9) assinalou que a imposição meramente de dor para o delito passado não é
moral, mas bárbara e se podemos comunicar a reprovação aos ofensores por
meio da censura, não devemos fazê-lo pela entrega da dor punitiva. No
mesmo sentido, Foucault (2008, p. 66), que salientou o abandono da
dramaturgia das execuções públicas, substituído pela brutalidade da pena
corporal e “pelo concreto e aço” do sistema carcerário moderno. Este poder
punitivo e manipulador mudou de locus, mas manteve inalterada a sua
natureza, estando oculto em outros projetos “humanitários”, igualmente
reformadores de pessoas, ainda que inconscientemente.
Uma abordagem comunicativa para a pena tampouco significa leniência para
com o ofensor. Ao contrário, exige-lhe o reconhecimento voluntário da
prática do seu ato, disposição para reparar suas consequências e para o
encontro com a vítima, o que nem sempre é fácil e pode lhe trazer
desconforto, pois deve revelar-se e lidar com a vergonha e a culpa. Portanto,
por meio deste ritual de crítica e censura, a função comunicativa da pena
atende à demanda da sociedade de reafirmação dos seus valores e
demonstração da sua seriedade. Por outro lado, ela também confere uma
resposta honesta ao delito, respeitando os ofensores como agentes morais
responsáveis.
A concepção da punição sob o aspecto comunicativo serve, em algum grau,
aos objetivosutilitaristas do sistema penal, em especial de prevenção do
crime, pois a ameaça e a imposição de punição transmitiriam aos potenciais
ofensores a mensagem de que sofrerão algo desagradável caso transgridam a
lei. Por isso, a função comunicativa seria uma forma de codificá-los a não o
fazerem, influenciando comportamentos futuros.
Uma teoria comunicativa da pena poderia ser criticada por representar um
retribucionismo disfarçado, já que ambos têm em comum o fato de serem
retrógrados, ou seja, relacionados a fatos passados e dados em resposta a uma
ação digna de reprovação. Entretanto, o retribucionismo presente no papel
comunicativo não é absoluto, já que atribui à punição uma sofisticada relação
com outro fim social: a dissuasão.
Nas palavras de Hampton (1981, p. 215), a punição seria então justificada
como uma forma de prevenir delitos, na medida em que se preocupa em
educar cidadãos para não se envolverem nesse tipo de comportamento. Neste
aspecto, Feinberg (1965, p. 416) apresenta outra distinção entre a função
comunicativa e a retribuição: esta visaria distribuir sofrimento para os que
moralmente o merecem, enquanto aquela visaria expressar a condenação da
sociedade.
Foucault, que sempre nutriu uma profunda desconfiança em relação às
“formas humanizadas” de punição da sociedade contemporânea, também
criticaria a função comunicativa da pena sob este ponto de vista. Até mesmo a
novel proposta comunicativa poderia ser tornar uma delas, caso não realize
uma verdadeira ruptura paradigmática com o sistema anterior.
Na verdade, Foucault desafia qualquer tentativa de justificação da prática da
punição, a qual ele considera sempre suspeita. Seu ponto de vista é o de que
qualquer justificação da punição ou outra prática social similar estará sempre
ligada a ideologias, a suposições e ao uso do poder de forma irracional e
altamente duvidosa. Segundo ele (FOUCAULT, 2008, p.107), o poder de
ameaçar, coagir, suprimir, destruir, transformar está presente em qualquer
época. A censura agiria para modificar a conduta da pessoa tratando-o como
um objeto a ser manipulado e não como um sujeito responsável e autônomo.
A perspectiva suspeitosa de Foucault serve como reflexão e alerta para
práticas punitivas de nosso tempo. Uma função comunicativa da pena deve
conter limites para a pretendida persuasão racional do indivíduo (encontrados
nos princípios restaurativos estudados na seção 5.1) e jamais objetivar a
reforma, a manipulação ou o condicionamento do apenado, como apregoado
pelas teorias “reeducativas” e “ressocializadoras” típicas do paradigma
punitivo. Se assim fosse, ela se limitaria a endossar as práticas punitivas
atuais, ofuscando o seu potencial de mudar a abordagem punitiva do sistema
de justiça criminal. Afinal, como disse o filósofo, “as luzes que descobriram
as liberdades inventaram também as disciplinas” (FOUCAULT, 2008, p. 183).
Após a análise da teoria de Feinberg e das críticas de Foucault, podemos
perceber que muitas das punições instituídas pelo sistema jurídico hodierno
— prisão, multas e serviço comunitário obrigatório — apartadas de quaisquer
objetivos restaurativos ou emancipadores constituem não só atos simbólicos
de censura, mas também têm funcionado como castigo retributivo ao ofensor,
buscando sua obediência por meio de ameaça, coação ou reforma.
Conclui-se, portanto, que o sistema penal tem fracassado não só em atingir os
seus objetivos declarados de punir e reeducar. Falhou, também, ao definir
tanto seus objetivos como suas finalidades. Com base na teoria comunicativa
da pena, percebemos, sobretudo, que o sistema penal tem errado nos meios
empregados para alcançá-los. Trata-se de uma alternativa violenta,
dispendiosa e inútil. A atribuição de uma função comunicativa à pena pode
igualmente demonstrar a desaprovação social à conduta e responder
satisfatoriamente a alguns crimes, ao invés do tratamento rígido ou da dor.
87 Reis Friede (2009, p. 249) observa que a ciência do direito tem sido classificada como efetiva
ciência social, de nítida feição hermenêutica. Entretanto, a ciência jurídica não se restringe a isso, pois
se caracteriza por ser uma ciência particular, com características especiais tais como, projeção
comportamental (ciência de projeção de um mundo ideal - meta do dever-ser) e por ser uma ciência
inexoravelmente axiológica (valorativa). Nem por isso o Direito estaria distante da característica
fundamental de todas as ciências: a busca permanente e contínua pela verdade, por meio da
interpretação de fatos (naturais ou sociais) e da necessária e insuperável valoração intrínseca de um
dado fenômeno, originando uma norma ou tese (explicativa e/ou comportamental).
88 Entende-se, aqui, cultura como um conjunto de símbolos, de significados, de crenças, de atitudes e
de valores compartilhados, transmissíveis e apreendidos (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 10).
89 Ressalta Lola Aniyar de Castro (1983, p. 72) que há dois momentos marcantes da história da
criminologia: o aparecimento do livro de Cesare Lombroso, o “Homem Delinquente”, em 1876, que
acentua o nascimento da Criminologia e, em segundo lugar, o discurso pronunciado por Sutherland
perante a Sociedade Americana de Criminologia, em 1949, na qual define o conceito de “crime do
colarinho branco”.
90 Um exemplo citado pelo autor de revitalização do positivismo criminológico, a fim de explicar o
comportamento criminoso, seria a “neurocriminologia”, influenciada pela neurociência (CARVALHO,
2009, p. 319).
91 Vale aqui anotar a observação de Bruno Amaral Machado (2007, p. 20) acerca da imprecisão no uso
do termo “pós-modernidade”: “embora não exista consenso sobre como denominar o momento atual,
pós-modernidade, modernidade tardia ou sociedade diferenciada funcionalmente, a sociedade
contemporânea apresenta elevada complexidade, que se reflete na forma como operam os sistemas
político, econômico e jurídico, entre outros (LUHMANN, 1990a; LUHMANN e DE GIORGI, 2003)”.
92 Sousa Santos (2010, p. 31) observa que as leis da ciência moderna pressupõem ordem e estabilidade
do mundo. A simplicidade das leis constitui uma simplificação arbitrária da realidade, que confina o
homem a um horizonte mínimo para além do qual outros conhecimentos da natureza, provavelmente
mais ricos e com mais interesse humano, ficam por conhecer.
93 Warat (2001, p. 161) define humanização como “a possibilidade de escapar das condições de
alienação (em muitos casos, determinadas pelo próprio Direito) e fugir para as condições de produção e
realização existencial da autonomia”.
94 O mecanicismo é uma teoria que oferece uma explicação possível para os fatos naturais
interpretando-os como movimentos ou combinações de movimentos de corpos no espaço. Aqui, o termo
é empregado para designar o método diretivo da pesquisa científica, de índole causalista (em
contraposição ao finalismo), reducionista (por exemplo, em sociologia, reduzindo as leis sociológicas a
leis biológicas e psicológicas), que privilegia a exigência de análise quantitativa, por exemplo
(ABBAGNANO, 1998, p. 653-654).
95 O conhecimento pós-moderno, segundo Sousa Santos (2010, p. 48), é um conhecimento sobre as
condições de possibilidade da ação humana ser projetada no mundo a partir de um espaço-tempo local.
Um conhecimento deste tipo é relativamente imetódico, utilizando-se de uma pluralidade metodológica.
O sociólogo lusitano cita o exemplo de Foucault que é, ao mesmo tempo, historiador, filósofo,
sociólogo e cientista político, cujo trabalho apresenta inquestionável composição transdisciplinar semdeixar de ser científico.
96 Observa Sousa Santos (2010, p. 52) que a ciência moderna não é a única explicação possível da
realidade e não há sequer qualquer razão científica para considerá-la melhor que as explicações
alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia. A razão por que hoje se
privilegia determinada forma de conhecimento nada tem de científico. Seria, no seu ponto de vista, um
juízo de valor (SOUSA SANTOS, 2010, p. 52).
97 Ainda segundo o autor, “o sistema de justiça que não oferecer o acesso pela justiça restaurativa não
poderá ser considerado, na contemporaneidade, um sistema realmente humanizado de resolução de
conflitos” (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 451).
98 Por exemplo, se antes as decisões judiciais se circunscreviam aos autos e às partes, hoje a resolução
de litígios geralmente implica a implementação de políticas públicas cuja responsabilidade é do
Executivo, segundo Faria (2004, p. 106).
99 Neste sentido, Chiovenda (1969, p. 11) ensina que a jurisdição “é função do Estado que tem como
escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos,
da atividade de particulares ou de órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no
torná-la, praticamente efetiva.”
100 Além do déficit participativo, da exiguidade de respostas adequadas aos conflitos, da ausência de
deliberação racional entre os interessados e de todos dos fatores acima elencados, Boaventura Sousa
Santos (1996, p. 301 e 435) identificou outros que impedem o bom funcionamento (de forma correta e a
tempo) da jurisdição na seara penal, capazes de gerar o descrédito do sistema. Seriam eles: a
irracionalidade da distribuição de recursos humanos e a sua mobilidade; a nem sempre pronta
substituição dos funcionários ausentes (inclusive magistrados, ressalta o autor, pois há Varas que
permanecem longos períodos sem juízes, gerando atraso e acúmulo de serviço, muito difíceis de sanar
posteriormente); a falta de conhecimento, formação ou experiência de alguns funcionários; a falta de
brio e de motivação de servidores e magistrados para minorarem os revezes; a incapacidade de resposta
das polícias; a carência de instalações e de condições de trabalho (como a falta de espaço, mobiliário ou
equipamento); a demora das perícias e exames médicos (nomeadamente nos hospitais e institutos de
medicina legal); o tempo que os processos aguardam despachos ou andamento nos escaninhos judiciais,
a ponto de ensejar a sua prescrição; a demora no cumprimento de cartas rogatórias ou precatórias para
inquirição de testemunhas; a ausência ou revelia do réu, entre outros.
O sociólogo ressalta que o mau funcionamento do sistema de justiça criminal em virtude dessas razões,
além do déficit participativo e deliberativo, é determinante na imagem que os cidadãos têm da justiça.
Afinal, tais fatores provocam a desconfiança no sistema, o impedimento da justa reparação do direito
violado e a agravação do seu custo econômico, constituindo um desincentivo do recurso ao sistema de
justiça (SOUSA SANTOS, 1996, p. 387 e 432).
Uma das missões contemporâneas do arranjo democrático seria justamente adotar estratégias defensivas
para limitar a erosão das suas instituições, entre elas o Poder Judiciário e o Ministério Público, se
possível, fortalecê-las e estendê-las (FARIA, 2004, p. 114).
101 Nas palavras do filósofo tedesco: “Esses direitos subjetivos [de comunicação e de participação] não
podem ser tidos como os de sujeitos jurídicos privados e isolados. Eles têm que ser apreendidos no
enfoque de participantes orientados pelo entendimento, que se encontram numa prática intersubjetiva de
entendimento” (HABERMAS, 1997a, p. 53).
102 No original: “El juicio penal atañe a toda la sociedad (es lo que se pretende en un Estado
democrático) y ésta debe participar del momento comunicacional que en él se desarrolla. La función
simbólica, como proyección de imágenes que se quierem dar de la sociedad, tendrá éxito sólo si es
realizada por los ciudadanos y no sólo para ellos. A la vez esto permitirá, también, generar la reflexión
democrática sobre ciertas funciones sociales que se realizan privilegiadamente el marco estatal”
(ANITUA, 2013, p. 115).
103 A cidadania a que se refere a justiça restaurativa, vista sob a óptica da doutrina de Nancy Fraser,
não se confunde com o conceito formal e individual do liberalismo, mas de uma cidadania exercitada
com viés coletivo, dotada de força de pressão, negociação e controle (FERRAJOLI, 2010, p. 763).
104 Especialista norte-americana em políticas públicas, em especial da área de saúde.
105 (ARNSTEIN, 1969, p. 1).
106 A medição difere da conciliação, por ser uma “forma de solução de conflitos em que um terceiro
neutro e imparcial auxilia as partes a conversar, refletir, entender o conflito e buscar, por elas próprias, a
solução. Nesse caso, as próprias partes é que tomam a decisão, agindo o mediador como um
facilitador”. Já a conciliação é uma “forma de solução de conflitos em que as partes, através da ação de
um terceiro, o conciliador, chegam a um acordo, solucionando a controvérsia. Nesse caso, o conciliador
terá a função de orientá-las e ajudá-las, fazendo sugestões de acordo que melhor atendam aos interesses
dos dois lados em conflito”. Por fim, a arbitragem é “forma de solução de conflitos em que as partes,
por livre e espontânea vontade, elegem um terceiro, o árbitro ou o Tribunal Arbitral, para que este
resolva a controvérsia, de acordo com as regras estabelecidas no Manual de Procedimento Arbitral das
Centrais de Conciliação, Mediação e Arbitragem (v. Legislação). O árbitro ou Tribunal Arbitral
escolhido pelas partes emitirá uma sentença que terá a mesma força de título executivo judicial, contra a
qual não caberá qualquer recurso, exceto embargos de declaração. É, o árbitro, juiz de fato e de direito,
especializado no assunto em conflito, exercendo seu trabalho com imparcialidade e confidencialidade”
(TJPE, 2013, p. 1).
107 Professor de políticas públicas na Escola de Governo John F. Kennedy, da Universidade de Havard.
108 (FUNG, 2006, p. 68).
109 (FUNG, 2006, p. 69).
110 (FUNG, 2006, p. 70).
111 (adaptado de FUNG, 2006, p. 71).
112 No original: “Los rituales comunicativos de la justicia penal son ceremonias que despiertan
compromisos de valor específicos en los participantes y en el público, y actúan así con un importante
contenido legitimante y pedagógico, reproduciendo los valores republicanos y democráticos y a la vez
generando y regenerando una mentalidad y sensibilidad mayores hacia el conflito y la violência”
(ANITUA, 2013, p. 114).
113 Os ideais clássicos de democracia como “auto-organização política da sociedade”, “associação de
sujeitos livres e iguais” ou relacionados à “regra da maioria” são censurados por Habermas (1997b, p.
13), para quem “as regras de uma democracia apoiada na concorrência, que obtém sua legitimidade a
partir do voto da maioria, através de eleições livres, iguais e secretas, tornam-se plausíveis a partir de
uma peculiar compreensão do mundo e de si mesmo. Tal compreensão apoia-se num “subjetivismo
ético” que seculariza, de um lado, a compreensão judaico-cristã da igualdade de cada ser humano
perante Deus e toma como ponto de partida a igualdade fundamental de todos os indivíduos”. O autor
cita, também, a opinião de John Dewey: “Os críticos têm razão em afirmar que a regra da maioria,
enquanto tal, é absurda. Porém, ela nunca é pura e simplesmente uma regra da maioria… É importante
saber quais são os meios através dos quais uma maioria chega a ser maioria: os debates anteriores, a
modificação dos pontos de vista para levar em contaas opiniões das minorias… Noutras palavras, a
coisa mais importante consiste em aprimorar os métodos e condições do debate, da discussão e da
persuasão” (HABERMAS, 1997b, p. 27).
114 Joshua Cohen é um filósofo norte-americano especializado em filosofia política, professor de
ciência política, filosofia e direito na Universidade de Stanford. Charles Frederick Sabel é professor de
direito e ciências sociais na Universidade de Columbia.
115 James Fishkin (2009, p.1) projetou implementações práticas de democracia deliberativa, descritas
em cinco características essenciais para deliberação legítima: informação (dados precisos e relevantes
seriam disponibilizados a todos os participantes); equilíbrio material; diversidade (todas as posições
relevantes para o assunto seriam consideradas); conscienciosidade (os participantes pesam todos os
argumentos); e igual consideração dos pontos de vista.
116 A respeito do tema, citamos, na seção 1.3, a analogia médica utilizada por Jerome Miller (1989, p.
1) para descrever as opções de “tratamento” bastante limitadas, oferecidas pelo sistema criminal: “Seria
como pedir a um médico uma solução para o alívio da dor de cabeça, sendo-lhe informado que há
apenas dois tratamentos: uma aspirina ou uma lobotomia. Ou então ir ao médico com um braço
quebrado ou com uma apendicite aguda e ele lhe oferece os mesmos dois tratamentos disponíveis: uma
aspirina ou uma lobotomia”.
117 Em When the people speak: deliberative democracy and public consultation , publicado em 2011,
Fishkin critica que, em todo o mundo, as reformas democráticas trouxeram o poder para o povo, mas em
condições nas quais as pessoas têm poucas oportunidades de pensar sobre o poder que elas exercem. A
partir desta ideia, James Fishkin combina uma nova teoria da democracia com a prática real e mostra
como uma ideia que remonta à antiga Atenas pode ser utilizada para reavivar nossas democracias
modernas. Disponível em: http://cdd.stanford.edu/research/whenthepeoplespeak/ . Acesso em: 13 out.
13.
Na sua obra T he voice of the people: public opinion and democracy , de 1995, o pesquisador avalia as
práticas democráticas modernas e explica como tem sido a luta histórica para que se escute a “voz do
povo”. Ele narra o histórico de mudança de conceitos e práticas da democracia, com exemplos que
incluem a realidade norte-americana. Disponível em: http://www.nuibooks.com/the-voice-of-the-
people-public-opinion-and-democracy-PDF-1258109/.
Por fim, em T he dialogue of justice: toward a self-reflective society , de 1993, Fishkin propõe o ideal de
uma “sociedade autorreflexiva” - uma cultura política em que os cidadãos são capazes de decidir seus
próprios destinos por meio de um diálogo sem restrições que levaria a uma democracia mais
participativa. Nesta obra, o autor apresenta pesquisas de opinião sobre o tema. Disponível em:
http://www.muebooks.com/the-dialogue-of-justice-toward-a-self-reflective-society-hardcover-PDF-
205209/ .
118 Segundo Glória Maria Palma (2004, p. 1), o interacionismo simbólico de George Hebert Mead
(1863-1931) concebe a sociedade humana como fundamentada na base do consenso em sentido
compartilhado na forma de compreensões e expectativas comuns. Trata-se de um método científico de
construção do conhecimento que concebe a vida social como interações mediadas simbolicamente. “O
símbolo é construído nas interações e dá o sentido da ação individual, assim como coordena as ações
interindividuais. O simbólico não é resultado da interação do sujeito consigo, nem do sujeito com o
objeto, mas do sujeito constituído e do sujeito projetado pela linguagem. O sujeito está em si e está no
outro em interação, construindo a realidade” (PALMA, 2004, p. 1).
119 Wittgenstein utiliza a expressão “jogo de linguagem” para salientar que “o falar da linguagem é
uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida” (1999, §23). Para o filósofo da linguagem, “a
significação de uma palavra é seu uso na linguagem” (1999, §43), ou seja, o significado da palavra não
deve mais ser compreendido como algo fixo e determinado, como uma propriedade que emana da
palavra, mas de acordo com o seu uso em um determinado contexto, no qual falante e ouvinte
interagem, empregando tais expressões com um objetivo determinado (RUY, 2008, p. 2-3).
120 Assim como Wittigenstein, Austin se distanciou das posições essencialistas da filosofia que
restringiam a linguagem à sua função designativa, dando precedência à semântica (RODRIGUES, 2012,
p. 36).
Em sua obra How to do Things With Words , resultado de doze conferências ministradas nos anos 50,
Austin apresenta sua “teoria dos atos de fala”, na qual investiga o fato de determinadas sentenças
(enunciados performativos) corresponderem, na verdade, a ações (por exemplo, em “aceito”, “batizo”,
“lego”, “aposto”) (AUSTIN, 1990, p. 24). O enunciado performativo teria três dimensões indissociáveis
e simultâneas (locucionária, ilocucionária e perlocucionária) (AUSTIN, 1990, p. 85), sendo que o
filósofo britânico classificou as expressões em cinco grupos, conforme a força ilocucionária de cada
uma delas (veridictivas, exercitivas, comissivas, comportamentais e expositivas) (AUSTIN, 1990, p.
124).
121 Habermas (1997b, p. 56) define a ação comunicativa ou o agir comunicativo como o “uso da
linguagem orientada pelo entendimento, através da qual os atores coordenam suas ações”.
122 Uma situação prática em que foi possível a “conexão com o outro” e o reconhecimento da sua
humanidade é relatada pela professora Soraia Melo, num dos encontros restaurativos realizados numa
escola do Rio de Janeiro: “Não há nada tão intenso e transformador como aprender a se conectar com o
outro, por meio da humanidade, da verdade que cada um tem e divide por meio de seus valores, sonhos
e fraquezas. Quando alguém chorava ou contava uma história muito pessoal, eu tinha o desejo de chorar
também. Aprendi que escutar é, muitas vezes, muito mais interessante e libertador do que falar e que
não há ninguém que possa ter controle absoluto sobre o outro. Há uma força no círculo, ela está viva e
por isso não possui um dono — pertence a todos” (CECIP, 2013, p. 98).
123 Um relato de reconhecimento empático propiciado pela justiça restaurativa é feito por uma
educadora de uma escola no Rio de Janeiro que se disse mais próxima de seus alunos após participar de
encontros restaurativos: “Ah, eu mudei bastante coisa, né? Eu olhei os problemas dos alunos mais de
perto, que eu desconhecia, da personalidade. Passei a vê-los com outros olhos a partir do momento que
conheci um pouco de cada um, no nosso círculo aqui” (CECIP, 2013, p. 76 e 77).
124 Honneth critica especificamente as teorias liberais por adotarem um conceito de liberdade de
caráter individualista. Segundo a tradição liberal, em uma situação originária ideal (denominada por
Rawls de “véu da ignorância”), os futuros membros de uma sociedade deliberariam acerca dos
princípios morais que os regerão. Neste momento, eles calculariam suas perspectivas de vida segundo o
grau de liberdade individual colocado à sua disposição. Para Honneth, essa suposição não pode ser
absolutamente verdadeira, já que as escolhas dos deliberantes devem contemplar também a qualidade
das relações sociais esperadas, ou seja, não só a garantia da liberdade individual, mas também a
reciprocidade social. Isso por si só já seria suficiente para questionar a validade da tese de deliberação
hipotética proposta pelos liberais (HONNETH, 2004, p. 110).
125 O termo “Escola de Frankfurt” é utilizado para se referir aos pensadores afiliados ao Instituto para
Pesquisa Social de Frankfurt, não representando o nome de