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1 Museologia e Memoria

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO 
Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH 
 
 
 
Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT 
 
 
 
MUSEOLOGIA E MEMÓRIA 
 
 
Dominique Ponau – Diretora, Escola do Louvre 
 
 
 
A memória é, não esqueçamos, a mãe das musas. O museu, a sua morada. Na morada das 
musas, no museu, a Memória está em família. Mas o que são as musas? São cantoras. Sua missão 
essencial é cantar. O museu, sua casa, é a morada do canto. E a museologia, seria uma espécie 
de teoria do concerto? Do concerto de câmara? Teoria? Nada mais abstrato que este termo. Uma 
teoria é bem mais do que um espetáculo: é uma procissão. A teoria do concerto das musas em 
sua morada é teoria em ato. É uma procissão cantante. É uma dança cujo coreógrafo é ao mesmo 
tempo o corifeu e o Logos. A Palavra, o Verbo. O pensamento criador, ordenador do mundo. A 
museologia é a dança cantante das musas em sua morada, cuja música e ritmo brotam de sua 
própria fonte, o Verbo criador. 
Mas o que faz então aqui a Memória? Estará ela bem à vontade nesta alegre morada, viva e leve? 
Memória, este nome não seria muito pesado? Mãe das musas, dizia eu. Sim. Certamente. Mas 
receptáculo de todas as lembranças do mundo, de todas as idéias dos homens. E como sabem, o 
pensamento, etimologicamente, é o que pesa, o que tem peso. Pensamento não está longe de 
pensum! Que maior peso que o do pensamento dos homens, sobretudo quando este pensamento 
se encarna nas coisas, o que é bem freqüente no caso dos museus. A idéia das coisas não seria 
muito pesada sobre os ombros da Memória? E frente à leveza dançante de suas filhas não se 
sentiria ela aplastada, colada ao solo? 
Nem um pouco! E porque estamos na morada do canto, escutamos o som, a retenção da palavra. 
Memória, a palavra ‘memória’, não é igualmente leve? Dois ‘M’, duas labiais, duas mudas, como 
dois montinhos de tule. Duas vogais transparentes, o é inicial e o e final. E entre as duas, um raio 
límpido e cambiante, ‘moire’1. Memória é uma palavra muito leve. Muito leve, muito discreta, 
muito econômica, e portanto magnânima, pois é ela que porta. 
Fazer memória. Quando Enéias2 teve que deixar a cidade de Tróia em chamas, ele transformou 
ativamente a cidade em memória. Como? Arrebatando-lhe o essencial. Os penates da cidade e, 
sobre os seus ombros, Anchises, seu velho pai. Imaginemos se ele tivesse se impregnado de 
 
1 [N.T.] A autora refere-se ao termo ‘mémoire’ – do original francês. 
2 Enéias (português brasileiro) ou Eneias (português europeu) (AO 1990: Eneias) (do latim Æneas, do grego Α�νείας) - personagem da 
mitologia greco-romana, cuja história é contada na "Ilíada", de Homero, mas sobretudo na "Eneida", de Virgílio. Segundo a 
lenda, Enéias foi um chefe troiano, filho de Anquises e da deusa Afrodite (a romana Vénus). Era casado com Creusa, filha 
do rei Príamo. Tinha um filho, Iulo (na literatura romana Ascânio). Na guerra de Tróia, brilhou como o mais valoroso 
guerreiro troiano depois de Heitor. Favorecido pelos deuses, em várias ocasiões foi por eles salvo, durante os combates. 
Com a queda de Tróia, sua mãe o aconselhou a deixar a cidade, levando sua família, pois lhe estaria reservado o destino 
de fazer reviver a glória troiana em outras terras. Sob a proteção de Afrodite, Enéias deixa Tróia (incendiada pelos 
gregos), levando sua esposa, o filho, seu velho pai Anquises (que ele carrega às costas) e um punhado de soldados 
troianos. Leva ainda os Penates troianos, divindades que protegiam o Estado, os governos e as instituições que regem um 
e o outro para assim fundar uma nova cidade. Após várias aventuras, numa das quais morre a esposa, chega ao local 
antes chamado Hespéria, agora Itália – e seu pai lembra-se que Cassandra profetizara que ali se ergueria uma nova 
Tróia. De novo a caminho, passa pela Sicília e por Cartago, chega ao Lácio – onde se casa com a princesa Lavínia, mas 
abdica do trono em favor do filho e regressa à pátria, para reconstruir Tróia. Após sua morte, seu filho Iulo, ou Ascânio, 
funda Alba Longa, da qual seus descendentes serão reis sucessivos. Em 753 a.C. seria fundada Roma, a segunda Tróia, 
por Rômulo e Remo, descendentes maternos de Enéias, mas filhos diretos do deus Marte. Esta versão da fundação da 
Cidade Eterna, ou melhor, da ascendência de Rômulo remontar a Enéias, é tida por pesquisadores modernos como mera 
recordação de contactos entre o mundo Egeu e a Itália. Tal versão foi tomando forma a partir do século III a.C.. Apareceu 
inicialmente em Pictor (200 a.C.) e posteriormente em Virgilio (na sua obra Eneida), em Ovídio e Tito Lívio. In: 
http://pt.wikipedia.org/wiki/En%C3%A9ias. Acessado em 30.03.2010. 
 
 
 
 
 
 
 
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO 
Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH 
 
 
 
Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT 
 
 
 
outras lembranças. As conseqüências teriam sido pesadas. Ele não teria jamais deixado as 
margens da Troade e Roma não teria sido jamais fundada. E não estaríamos hoje aqui, para falar 
este dialeto latino do século XX que é o francês. Não. Enéias encarregou-se do essencial da 
memória de Tróia: o símbolo místico; e seu pai, da fonte biológica. Quanto a sua mãe, era uma 
deusa. Ela não pesava nada e não cessava de impelir adiante seu filho. Enéias soube assim, para 
ir mais longe, privar-se de tudo o que não era necessário para avançar, não guardando senão a 
alma espiritual e carnal da memória das origens. Assim nos legou ele Virgilio, seu aedo, e Dante, e 
nós. 
E assim a memória de Enéias, de Anchises e dos penates de sua cidade estaria constituída das 
lembranças dos tempos primeiros. 
Memória é ainda bem mais audaciosa. Ela é memória também, e sobretudo, juntamente com os 
tempos primeiros, dos últimos tempos. 
Memória é a categoria psicológica que, com efeito, os teólogos comparam à virtude teologal da 
Esperança. Não da esperança, em sentido restrito: mas da Esperança3 - esta flor teologal que 
desabrocha sobre o terreno psicológico do desespero. 
Memória, tradução psicológica da esperança metafísica! Como seria isto possível? A esperança 
desdobra-se inteiramente para o devir, não é mesmo? “Ver o que nos espera”, diria o apóstolo, 
“não é mais do que ter esperança”. Da mesma forma, fazer memória é retirar-se para o essencial 
das fontes originais. Memória nostálgica? Pode ser. Mas memória esperança!... 
E afinal, o símbolo da esperança é bem paradoxal. É a ancora. A ancora marinha. Ora, a ancora 
marinha, nós o sabemos, está lá para a ancoragem. Ela não é exatamente sugestiva da aventura 
das travessias. E portanto... 
Releiamos a Epístola aos Hebreus. O Cristo, diz ela, ingressou de uma vez por todas no santuário 
do céu, que é o coração do Pai. Ele não atirou a ancora: ele a lançou! Muito longe, muito adiante, 
e como ela lá está, a ancora de nossa esperança, bem ancorada no santuário do coração do Pai, 
nós remontamos a ela, em direção a Ele. Quando fazemos memória, assim, pedimos apoio ao fio 
que remete ao coração do mistério eterno, e fazemos esforço para prosseguir. 
A anamnèse, sabemos o que é no mistério eucarístico. A anamnese é hoje, aqui, a memória do 
devir eterno, na recapitulação efêmera de todos os instantes do homem que foram, que são, e 
que advirão. 
Memória é a certeza do que há de mais denso, do que há de mais leve, o que nos dá confiança. 
Memória é o oposto da miséria que nos impede de avançar. Memória é o élan. Memória 
verdadeiramente está em casa na procissão cantante das musas. Com o logos, é ela que a 
conduz. 
Uma última palavra. Em grego, sabemos o que é a verdade: Aletheia. A – lêthé, “aquela que 
recusa o esquecimento”, a que não bebe do rio do esquecimento. Nem mais, nem menos. Em 
grego, a verdade é humilde. Memória também o é. Ela é hoje, fundada sobre nosso ontem, a 
alma de nossos futuros. 
 
20 junho 1997 
Trad. para o português: T. Scheiner3 [N.T.] A autora faz aqui diferença entre ‘espoir’, esperança no sentido mais restrito, e ‘Esperance’, no sentido filosófico.

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