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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT - - 1 - MEMÓRIA E MUSEU: Expressões do passado, visões do futuro Tereza Cristina Scheiner - UNI-RIO, Brasil 1. MEMÓRIA OU MEMÓRIAS? ... O que é a memória? É um processo de associações mentais que se origina de um sistema de relações entre nossa própria percepção e imagens, fatos, fenômenos e/ou experiências vividos. Este processo é fortemente vinculado ao presente (o indivíduo percebe o passado a partir do presente); permanente e contínuo (a cada momento, retemos na memória imagens e impressões que serão, um dia, utilizadas); e inconsciente, ainda que nem sempre involuntário. É o processo de memória que identifica o homem como gerador de cultura, e que oferece os parâmetros utilizados pela espécie humana no seu caminho civilizatório. 1.1 - Eu me lembro, eu me recordo Segundo Bergson, estamos sempre cercados de imagens, que agem e reagem umas sobre as outras em todas as suas partes elementares, segundo leis constantes da natureza. Neste meio, uma imagem se destaca sobre todas as demais: o nosso corpo. É através do corpo que estabelecemos relações com o mundo (mundo interior, mundo exterior), que nos recordamos, que retemos e comparamos lembranças. Tudo se passa como se, neste conjunto de imagens que denominamos o universo, nada se pudesse produzir de realmente novo sem a intermediação de certas imagens específicas, cujo tipo me é fornecido por meu corpo. (...) Mudem os objetos, modifiquem suas relações com o meu corpo, e tudo estará mudado nos movimentos interiores de meus centros perceptivos (...) tudo estará mudado também na minha percepção 1. O conhecimento do real começa, portanto, pela consciência, por uma percepção muito particular que cada indivíduo possui do mundo exterior. Esta consciência se desenvolve pelo cruzamento múltiplo e sucessivo de dois tipos de funções cerebrais: uma, que o cérebro apreende pela repetição; outra, sempre tendente à ação, “situada no presente mas voltada para o futuro” 2. A memória se faz, portanto, pelo cruzamento destas duas memórias, num processo segundo o qual “uma imagina e a outra repete” 3. De fato, não há percepção que não esteja impregnada de lembranças, que não tenha uma certa duração, e que não exija um esforço de memória: 1 BERGSON, Henri. Matière et Mémoire. Quadrige/Presses Universitaires de France. Paris: 1990. p. 12-17 2 Ibid. Op. Cit., p. 86 3 Ibid., p. 87 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT - - 2 - A imensa maioria de nossas lembranças versa sobre os fatos e detalhes de nossa vida, cuja essência é serem datados e, portanto, jamais serem reproduzíveis (...) o registro, pela memória, de fatos e imagens únicos em seu gênero ocorre em todos os momentos do tempo, considerando sua duração. Mas como as lembranças apreendidas são as mais úteis, nós as anotamos primeiro 4. A aquisição de lembranças faz-se assim por hábito, e estas são trazidas ao primeiro plano da consciência na medida de sua utilidade. A recordação espontânea “pode revelar-se por bruscos lampejos: mas ela se dissolve, ao menor movimento da memória voluntária” 5. Isto nos leva à perspectiva ilusional de que a memória tem uma relação absoluta com o passado. Mas percebemos, também, que imaginar não é recordar: “sem dúvida uma recordação, à medida em que se atualiza, tende a viver (a expressar-se) através de uma imagem; mas a recíproca não é verdadeira” 6. Na estrutura verdadeiramente caótica do real complexo, é o ato da percepção em si mesmo que cria uma ordem a cada instante. Ver, reconhecer, dizer, aí estão as palavras de ordem num moto perpétuo, num caos potencial que necessita ser organizado e reorganizado a cada instante (...) quando a descontinuidade é reconvertida, integrada discretamente na corrente de uma sintaxe fundamental 7. 1. 2 - Memória individual e memória coletiva Bergson crê numa memória pura, individual, feita de imagens e possível de encontrar quando nos isolamos nossa consciência individual do social. Para ele, lembrar-se é “voltar as costas ao presente e à exterioridade social, para mergulhar na interioridade, afim de buscar um passado vivido” 8, presente na alma de cada indivíduo. A memória-imagem, a memória pura, individual, opor-se-ia à uma memória-hábito, construída a partir de pensamentos sociais. Para Halbwachs, ao contrário, nós recordamos o passado por meio de um ato de inteligência, um ato puramente social. “A consciência individual não é senão um lugar de passagem dessas correntes, o ponto de encontro de nossos tempos coletivos” 9. As memórias coletivas combinam-se com as memórias individuais, num complexo jogo de reatualização-reconstrução de uma lembrança por uma experiência - um processo sem princípio nem fim: “à medida em que me encontro mais engajado nesses grupos e que participo mais estreitamente de sua memória, minhas lembranças se renovam e se completam” 10. Há uma parte da sociedade que funciona como memória, uma memória- 4 Ibid., ibidem. p. 87/88 5 Ibid., ibidem. p. 93 6 Ibid., p.150 7 HEIZ, André Vladimir - Séma et Soma: l’Ancêtre fait l’époque. In: Les Ancêtres Sont Parmi Nous. Edité par Jacques Hainard et al. Musée d’Etnographie de Neuchâtel, Suisse. Neuchâtel: 1988. p. 112 8 NAMER, Gérard - Mémoire et Société. Col. Sociétés. Paris : Méridien Klincksieck, 1987. p. 38 9 HALBWACHS. Mémoire. Apud NAMER, Gérard. Op. Cit. ,p. 127 10 Ibid, In Op. Cit., p. 62 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT - - 3 - saber-consciente, essencialmente intelectual. Toda memória individual se particulariza por seu ponto de vista sobre a memória coletiva: a sociedade é, portanto, a origem da memória individual. Esta memória individual aparece sob a forma de uma ‘memória dos outros’, ou mesmo pela experiência “do reforço de nossas lembranças pelo Outro. Os outros suscitam nossa memória por meio de questões, legitimam nossa memória ou a completam” 11. A memória far-se-ia, assim, a partir de uma experiência simbólica do Outro - uma experiência de reconhecimento pela razão: “reconhecer é colocar-se no lugar de um Outro interiorizado” 12. Quando memorizamos, dialogamos com um Outro presente-ausente, que habita dentro de nós ou no mundo. Para Halbwachs, a vivência da memória é sempre social: a lembrança parte do presente, “do sistema de idéias gerais que está sempre diante de nós” 13 e nos remete a uma totalização de numerosas memórias coletivas. Apresentada sob a forma de noções virtuais, nossa memória social pode ser entendida como “uma virtualidade de memória coletiva, pois ela é o que resta de uma ou várias memórias coletivas passadas, de um tempo desaparecido quando havia coesão e coerência do grupo” 14. Halbwachs afirma que a desaparição das recordações verbais está vinculada ao desaparecimento de nossa capacidade de nos situarmos desde o ponto de vista do Outro, e neste caso o que nos resta é a memória do impessoal, a memória da convenção. É este o princípio que nos permite pensar numa memória plural, construída pela pluralidade, ou por uma infinidade de memórias coletivas - cujas formas e meios são essencialmente a língua, o tempo e o espaço. Trata-se, portanto, de uma memória cultural. Se acreditamos em uma memória social, é possível compartilhar com Halbwachs, Namer e com outros filósofos a idéia de uma memória múltipla, isto é, de diferentes manifestações de memória, coexistindopor cruzamentos, sucessão, acumulação, ou por oposição. Cada memória teria sua própria lógica. Haveria, assim, uma memória sábia, por oposição a uma memória popular, uma memória dominante e uma memória dominada. Por outro lado, se adotamos a abordagem historiográfica, identificaremos uma sucessão de memórias sociais no tempo e no espaço. “Aqui, a memória coletiva reduz-se aos usos ou aos símbolos que se tornam tradição, coisa vaga que se transmite”15. Sempre cultural e sempre social, a memória não é coletiva “a não ser quando é dominante ou ao menos importante para um número expressivo de indivíduos, na sociedade global ou nacional” 16. Ainda que tenha a característica de memória de grupo, ela pode estender-se para além do espaço e do tempo desses mesmos grupos, renovando-se através de correntes de pensamento social: Os relicários do passado são, à parte dessas correntes, formas de memória social. Esses restos do passado já foram outrora objeto de memória coletiva. As velhas paredes, os velhos bibelôs, os velhos 11 Namer, Gérard. Op. Cit., p. 22 12 Ibid., ibidem. 13 HALBWACHS. Cadres. Apud , NAMER, Gérard. Op. Cit., p. 25. 14 Namer, Gérard - Mémoire et Société. Op. Cit., p 24 15 Ibid., ibidem. p. 27 16 Ibid., ibidem. p. 28. Grifo nosso. UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT - - 4 - modelos de sociabilidade, um grupo amanhã deverá revivê-los ou repensá-los numa reconstrução do passado 17. Uma sociologia da memória nos ofereceria, assim, a noção de ‘quadros sociais da memória’ - constituídos pela soma de lembranças individuais, ou mesmo, como diria Durkheim, de representações coletivas. “Cada grupo tem uma memória cujo quadro nós nos valemos quando desejamos encontrar uma lembrança vivida no grupo”18. Na essência mesma da memória encontraríamos, portanto, a dimensão espacio-temporal das recordações. E como o quadro social influencia sempre o sistema de idéias por meio das quais pensamos (como indivíduos) a sociedade - e a sociedade se pensa (como coletivo), a memória do sistema de valores de um grupo nos dá a ilusão de que “nossa memória poderia fazer-nos reviver afetivamente o passado” 19. É a ilusão de repetir o passado - viagem impossível, já que percebemos que as recordações mudam no tempo, segundo nossa experiência de vida: temos a prova disto tentando reviver as emoções do passado, relendo um livro de infância, ou retornando a um lugar que há muito conhecemos. Diretamente vinculada à psicologia de interesse de cada grupo, a rede de quadros de memória nos oferece um itinerário para reconstruir e localizar as lembranças, mesmo em situações de continuada modificação. O quadro da memória familiar nos oferece signos bem conhecidos, como o sistema de valores de cada família, seus costumes, os signos genealógicos que a identificam entre todas as outras. A memória religiosa nos coloca frente a uma tradição contraditória: de um lado, a memória racional, dogmática; do outro, a memória mística. A memória de classe nos oferece a percepção das lembranças vinculadas a uma coordenação hierarquizada, a partir de um sistema de valores que as funcionaliza: memória da nobreza, do mundo burguês, ou das experiências contemporâneas. Há, portanto, uma multiplicidade de quadros sociais através dos quais a memória se exprime, e o entrecruzamento contínuo desses quadros assegura, por sua vez, “a ordem do tempo pela imagem e a ordem do sentido pela idéia”20. A experiência da memória coletiva é também uma experiência concreta, afetiva: como memória vivida, ela nos liga à experiência da significação compartilhada, traz um sentimento de coesão dos espaços e dos tempos, numa determinada ordem de significações. Ela faz-se mais importante por completar o sentido de nossa lembrança individual. “A totalidade de sentidos, a coerência, a coesão da memória coletiva, são em última análise a experiência do centro organizador da memória coletiva, o princípio de uma instituição ou a visão de mundo de um grupo” 21. Quanto aos seus atributos, a memória coletiva seria, ao mesmo tempo: • normativa - as imagens, fatos, linguagens que a representam são também aspectos expressivos da natureza do grupo: nós nos lembramos da família como de um ideal a continuar; 17 Ibid., ibidem. p 31 18 Ibid., ibidem. p 34 19 Ibid., ibidem. p. 37/38 20 Ibid., ibidem. p. 49 21 Ibid., ibidem. p 57 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT - - 5 - • simbólica - pois funciona por meio de símbolos que nos remetem a uma essência; • uma memória fora do tempo - constituída por fatos datados, por imagens que não duraram mais do que um tempo, a memória tem, ainda assim, uma característica imutável que se revela no sentido de permanência de certas lembranças; • uma memória intelectual - feita de noções intermediárias entre conceito e imagem. Buscando fazer uma tipologia da memória coletiva, Halbwachs terminou por excluir do campo da memória social a memória recente, a memória do passado imediato, “caleidoscópio de todas as nossas lembranças ontem coexistentes” 22, ainda não classificadas ou percebidas numa ordem hierárquica derivada do sentido. Haveria portanto, para Halbwachs, um itinerário lógico de memória, partindo da memória coletiva (passado vivido de um grupo) para a memória social (caracterizada por correntes de pensamento) e desta para os costumes, a história oral e a tradição, onde tende a desaparecer a referência a uma experiência vivida no grupo. A última etapa seria a prática da História, já sem relação direta com a memória coletiva: “porque em geral a história não começa senão no ponto em que termina a tradição, momento em que se extingue ou se decompõe a memória social...” 23. Tal processo se desenvolve sob a forma de certos mecanismos, como a globalização - onde a fixação coletiva das memórias permite a formação de uma imagem genérica; ou a simbolização, onde uma imagem específica permite reencontrar um julgamento. Há ainda mecanismos secundários, como a mnemotécnica, a reiteração - “onde toda a memória é memória de memória” - ou a comemoração - “processo de reiteração que funda a ilusão de eternidade” 24. Fora desses mecanismos, a memória coletiva se apóia sobre os notáveis como mediadores: na memória coletiva familiar, são os avós; nas sociedades rurais, os velhos, os notários (guardiões dos cadastros de memória coletiva); nos grupos religiosos, os santos. Esses notáveis têm a função de estimular os sentimentos de nostalgia e de afetividade, que nos permitem sair da sociedade atual e perceber o passado “como um lugar de significação”25. Possuem também uma função de legitimação e de valorização, fazendo com que a memória de um fato seja dada como ensinamento, como um valor a continuar. Entre os notáveis, um lugar especial é ocupado pelos ancestrais, representações da morte fundadora, mediadores “entre o cheio e o vazio, entre o caos e a ordem, entre o contínuo e o descontínuo” 26. Transfigurações da própria sociedade, os ancestrais tornam-se personagens pela sua própria existência, eles são o princípio, o começo, a origem, o Outro anterior que nos define e justifica a nossa própria existência.“ O ancestral e o Eu são uma das formas complexas pelas quais a dualidade do ser se 22 Ibid., ibidem. p. 63 23 HALBWACHS. Mémoire. Op. Cit., p. 69. 24 NAMER, Gérard. Mémoire et Société. Op. Cit., p. 67/68 25 Ibid., ibidem. p. 71 26 HEIZ, André Vladimir - Séma et Soma: l’Ancêtre fait l’époque, In: Les Ancêtres Sont Parmi Nous. Op. Cit.,p. 112. UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT - - 6 - aspectualiza. Eu não seria nada sem o meu ancestral; não haveria um ancestral sem mim” 27. 2. MEMÓRIA, MUDANÇA, ESQUECIMENTO A memória se funda sobre o tempo social de cada indivíduo ou grupo social: a sua permanência se apóia sobre um espaço social onde ela coloca sua marca. E portanto, toda memória não é senão “reconstrução a partir da visão de mundo atual do grupo sobre o que já foi reconstruído” 28. A memória muda, entretanto, e essa mudança é essencialmente uma mudança das idéias dominantes do grupo, unificadas em sistemas de representação. Do outro lado, está o esquecimento - trabalho fundamental para o grupo, pois consiste na eliminação de certas lembranças individuais e coletivas. Este esquecimento é semi-espontâneo, semi-voluntário, mas tem sempre uma finalidade utilitária. O trabalho da memória é, portanto, ao mesmo tempo um trabalho de esquecimento e de reconstrução - delicado mecanismo onde a noção de valor é o parâmetro que define a ação. Nesta dinâmica, é necessário integrar os conflitos, as memórias conflituosas, hierarquizar as percepções; e isto se dá sob a forma de uma memória dominante - ponto de vista a partir do qual se faz a síntese simbólica das recordações - e de uma memória dominada, “reduzida a fragmentos do passado... uma memória fora da memória” 29. Um trabalho de legitimação das lembranças pela sua duração no tempo permite avaliar o que é importante para o grupo, como base das memórias dominantes: “os homens devem lembrar-se... de onde partiram” 30. A memória coletiva pode ser entendida, portanto, como uma reatualização dos restos do passado. Ela é sem dúvida um processo cultural, e poder-se-ia falar de uma memória cultural enquanto memória de um sentido, uma memória que representasse a essência da memória coletiva e que pudesse ser transmitida pela fala, mas também por meio de instrumentos mediáticos como os livros, o teatro, a música e o museu. O problema que se coloca é, então, o de identificar até que ponto cada um desses instrumentos mediáticos representa as correntes dominantes de pensamento. Sabemos que a história oral “é um conservatório das antigas correntes de memória dominante” 31. Qual seria o papel do museu nessa dinâmica? Isto depende de como cada um desses mediadores interpreta as dinâmicas e as complexidades de expressão dos meios de memória: a língua, o tempo e o espaço. A música, por exemplo, possui uma qualidade sonora que pode ser entendida como memória socialmente construída e como memória sábia, a partir de uma utilização convencional das notas musicais; haveria ainda uma memória popular da música, ligada aos ritmos e às palavras espontâneos. A música teria, assim, “um estatuto de metalinguagem, de axiomática universal”, que lhe permitiria expressar cada linguagem particular como modalidade da língua da sociedade onde fosse produzida. “A musica é 27 Ibid., In Op. Cit., p. 117 28 NAMER, Gérard. Op. Cit., p. 71 29 Ibid., ibidem. p 78 30 HALBWACHS. Cadres. In Op. Cit, p. 185 31 NAMER, Gérard. In Op. Cit., p. 100 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT - - 7 - eterna e se desenvolver inteiramente no tempo, ela é língua universal e linguagem de um grupo” 32. O museu também possui, como bem o sabemos, uma linguagem específica, ou melhor, uma metalinguagem que se constitui no cruzamento de múltiplas linguagens de comunicação, de infinitas expressões materiais e não materiais da memória humana, que atravessam a língua, o tempo e o espaço como instrumentos de memória. Mas há uma diferença entre a linguagem e os quadros espaciais ou temporais da memória. Cada grupo tem seu próprio ritmo de memória, definido pelos seus tempos sociais - e assim, a prática coletiva da duração será diferente, de um grupo de memória para outro. Cada sociedade se pensa no presente, mas o pensamento dos grupos é conseqüência de uma forma muito particular de cada grupo de vincular passado e presente. Isto é o que entendemos como ‘hábito de pensar’ , um processo através do qual cada grupo se pensa como identidade. Não se trata de reconstruir o passado, mas de reconstituí-lo, buscando o campo de significações de cada lembrança num tempo particular, para melhor compreender como as memórias se situam no que poderíamos chamar de ‘tempo universal’ - as datas, os acontecimentos. Vemos assim que os acontecimentos não têm senão um sentido relativo para cada grupo, e que a identidade do tempo coletivo corresponde ao tempo no qual o grupo se identifica. Vemos, aqui, o problema da História: “há uma construção artificial de uma ciência histórica como instrumento de memória nacional baseada sobre a reconstrução abstrata de um tempo exterior às durações coletivas” 33. Quanto ao espaço, seria o desenho sobre o solo por meio do qual cada grupo organiza suas lembranças coletivas: concentrações num mesmo lugar, repartição no espaço, dualidades entre regiões opostas, estes são os meios familiares dos quais se servem os grupos “para fixar, organizar suas lembranças de lugares mas também de tempos, de acontecimentos, de pessoas” 34. Tudo contribui para o estabelecimento de uma topografia sensível, fundada no afeto: Cada sociedade decupa o espaço à sua maneira, de modo a constituir um quadro fixo onde ela encerra e reencontra suas lembranças (...) cerremos os olhos, remontemos ao tempo mais longínquo que possamos recordar... jamais saímos do espaço. Não nos encontraremos num espaço indeterminado, mas em regiões que nos são conhecidas 35. Poderíamos ainda identificar diferentes abordagens das relações entre memória e espaço: a primeira relacionada aos grupos locais, cuja prática coincide com o espaço, ao contrário dos grupos religiosos, onde o espaço imaginário do ritual define uma topografia religiosa pela repetição. Em todos os casos, o ponto de partida dessas memórias é quase sempre um conjunto de fatos sociais observáveis. 32 Ibid., ibidem. p 111 33 Ibid., ibidem. p 115 34 HALBWACHS. Topographie. Op. Cit, p. 147 35 Ibid., ibidem. p. 166 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT - - 8 - 3. MEMÓRIA E DOCUMENTO - DO REAL AO MUSEU Nas sociedades iletradas, a necessidade de memorizar se resolvia por meio de atividades mnemônicas, onde ocupavam lugar especial a palavra (a oratória, o canto, a poesia, as histórias contadas), a imagem (o grafismo, a arte, em todas as suas expressões), o som (a musica, a dança) e os jogos de representação (origem do teatro e do museu). Em certas sociedades, as atividades mnemônicas tiveram um papel tão importante na referenciação dos processos simbólicos e de organização social que são muitas vezes mencionadas como uma forma de arte: a arte de memorizar. As sociedades da cultura escrita desenvolveram, por sua vez, métodos e instrumentos de registro de memória: a palavra escrita (origem dos alfabetos e dos códigos numéricos), o desenho temático, científico, os métodos de identificação, classificação e registro de fatos, fenômenos e das diferentes estruturas móveis e imóveis do mundo material. E não deixemos em segundo plano o papel fundamental que vem desempenhando, em todos os tempos e em todas as sociedades, os objetos enquanto elementos de memória - representações de uma percepção específica de mundo, cada um deles imagem, signo ou símbolo de diferentes formas de ser no mundo. O objeto,“ancestral compensatório” 36, cuja presença camufla a ausência e impede o esquecimento está, como os ancestrais, sempre entre nós. Símbolo material do Mesmo, o objeto ilustra todas as viagens da mente humana: o animus, a anima, a sombra, o duplo, a atração dos opostos, o herói interior. Ele expressa a relação de cada indivíduo com o mundo, com a vida e a morte. Representa a busca e a transcendência (livre e total expressão do ego humano), a constante batalha entre consciência e o inconsciente. O objeto é, em si mesmo, um símbolo de totalidade: símbolo material da natureza, ilustra a trajetória do Homem sobre a Terra. Lembremos, ainda, que o processo de memória é extremamente dinâmico: a vida cotidiana nos submete a um constante e rápido processo de mudança, e enquanto mudamos, muda a nossa memória. Existe, então, uma memória afetiva da mudança ou uma figuração voluntarista de certos grupos, que utilizam esta dinâmica para definir o curso da ação. O compromisso afetivo com a memória pode ser assim utilizado como instrumento de prática social. É o caso das organizações de memória-mensagem - “animadas por uma vontade de difundir, conservar, administrar uma memória, de inserir lembranças... na sociedade global” 37. Estas organizações trabalham com a constituição de uma memória coletiva, a partir de lembranças individuais. E o fazem pela utilização de uma sociabilidade da palavra, onde desempenham um importante papel os processos de documentação, classificação e registro dos testemunhos com os quais se construirá cada lembrança. Tais organizações atuam, assim, como guardiões da memória coletiva. Há inclusive lugares que são exclusivamente dedicados ao estudo e à difusão da memória, caracterizando um gênero de memória social dada: a memória cultural. São as organizações culturais - o centro cultural, a biblioteca, o arquivo, o museu - onde se faz “uma memória social virtual: uma sociedade que funciona como memória cuja totalidade 36 PERROT, Dominique. Les Ancêtres du Futur. In: Les Ancêtres Sont Parmi Nous. Op. Cit., p. 82 37 NAMER, Gérard. Op. Cit., p. 142 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT - - 9 - não foi ainda elaborada ou desejada por nenhum grupo particular” 38. Cada organização cultural unifica continuamente as memórias culturais com todas as demais dimensões de memória: a memória política, a memória sábia, a memória espontânea e tantas outras. Nelas, “o acúmulo da memória sábia irá criar uma legitimação deste mesmo saber e suscitar um discurso de legitimação racional, unificador das memórias da história” 39. As políticas de cada época unificam assim os testemunhos das sucessivas memórias coletivas, transformando-os, por meio de técnicas específicas de ordenação e de interpretação, em conjuntos coerentes. A apresentação ao público desses ‘tesouros’ torna-lhes possível recriar os momentos vividos de intensa afetividade coletiva. Meios de acesso às sensibilidades do passado, neles representadas em estado virtual, museus, bibliotecas, arquivos e centros culturais desenvolvem práticas específicas que os transformam em causa e conseqüência simultâneas dos processos de legitimação da memória coletiva. Arquivistas, bibliotecários e museólogos desempenham nesse contexto o papel de instrumentos administrativos dessas memórias, com suas atividades de classificação, os catálogos, a ordenação dos testemunhos, o registro nos fichários (ou planilhas de computador), com termos específicos e precisos, a tal ponto que esses testemunhos acabam por constituir uma ‘memória das memórias’. É da competência desse corpo especializado a decisão de modificar essas regras ou dar-lhes continuidade, observando, sempre, em todos os casos, os princípios de salvaguarda e difusão que justificam a existências desses institutos. Lugares de acúmulo de memórias-mensagem, cuja permanência é hoje assegurada por lei, as instituições de memória oferecem uma memória seletiva do mundo. ...Quais seriam, então, as relações possíveis entre museu e memória? Contradizendo Namer - para quem a biblioteca é a memória de um saber, enquanto o museu é portador da memória dos valores - diríamos que o museu, mais que lugar de honra dos valores supremos da sociedade, é uma instância de consagração de todas as modalidades de memória, no tempo e no espaço. Mais que um meio de legitimação da memória dos objetos materiais, o museu se revela também como instância dinâmica de construção de memórias, sejam estas materiais ou não-materiais. É verdade que, no museu tradicional, cada objeto se organiza ainda em coleções que acabam por desempenhar um papel de memória-mensagem; nesses casos, o museu atua como instância de reforço da memória de um contexto passado do objeto, e pode criar, com a ajuda de uma museografia sensível, múltiplos contextos ou ambiências que representam ou evocam as diferentes experiências da memória coletiva. “Nessa tradição há toda uma série de memórias-mensagem, organizadas pelo museu e que se tornam memórias de afetividade e logo, memórias de ideologia” 40. Aqui o prazer estético domina os demais, e a prática da memória se faz, da parte do público, por uma ‘memória de freqüência’, que transforma em prazer a repetição, pela coincidência da experiência individual com o que está sendo visto. 38 Ibid., ibidem. p. 160 39 Ibid., ibidem. p. 161 40 Ibid., ibidem. p. 179 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT - - 10 - É desse prazer que deriva, em certos casos, a vaidade de ver o museu apenas para dizer que vimos... Mas a admiração do objeto pode também ser considerada como uma resposta afetiva e criativa de memória: admirar é descobrir, a cada vez, um novo sentido para a coisa admirada. Dentre as organizações de memória cultural, é o museu - como bem o diz Namer - que nos leva em direção à memória-prazer, à memória criação. “Cada exposição é uma vontade de memória ligada à nossa sensibilidade contemporânea para criar uma nova memória-saber e uma nova memória-prazer” 41. Há, mesmo, projetos que virtualizam o jogo da memória, como ocorreu com a exposição ‘Fragmentos de Identidade’, realizada há alguns anos atrás pelo Museu da Civilização de Québec, tendo como objeto de análise a memória coletiva. Nessa exposição, as lembranças e os testemunhos foram apresentados segundo o tipo de memória que evocavam: a memória nostálgica, que organiza, elege, constrói, integra tempo, espaço e sociedade; que vive de nossos mitos, de nossas crenças num futuro melhor e através da qual as representações sociais positivas de um passado coletivo são reunidas, selecionadas, ligadas e pensadas sob um ponto de vista coerente; a memória adaptativa, que reporta ao que fazemos; cheia de contradições, ela se afasta do sagrado e se inscreve na dimensão do profano; a memória esquecida, ou memória do silêncio como portador de sentidos; a memória regulamentada, relativa a tudo o que constitui um meio ou uma prescrição para regular a vida em sociedade: a organização e a evolução das responsabilidades, as instituições enquanto movimentos coletivos, a vida política; a memória livre, isto é, a desordem, o retorno do rejeitado, a transgressão, o interdito (alegria e cólera), mas também a festa, a celebração, as manifestações públicas. O museu é também a organização de memória cultural que nos coloca em contato com a mais ampla pluralidade de expressões de memória. Pensemos nos museus de território, nos ecomuseus, nos sítios musealizados, onde a memória não é mais vista pela lógica dos monumentos e do patrimônio material,mas assume a característica de uma arqueologia social, baseada na convergência das lembranças individuais que configuram as memórias coletivas - e onde as relações e os documentos tornam-se mais importantes que os lugares ou os objetos. Nesses museus, que se desejam ‘integrais’, “a memória não pode instalar-se senão através de uma atividade permanente de representação da própria gênese dos patrimônios”42. Neles, a conservação já não mais é entendida como uma sobrevivência dos ambientes e dos costumes de vida de um passado: há lugar para representações culturais onde a reconstituição ativa das memórias projetas as lembranças no devir. É isto que entendemos como ‘memória prospectiva’, ou ‘memória do devir’. Mas mesmo em museus desse tipo a referencia aos modelos permanece essencial: “a memória administrada se impõe como espelho das comunidades ideais” 43 41 Ibid., ibidem. p. 182 42 JEUDI, Henri-Pierre. Memórias do Social. Col. Ensaio e Teoria. Trad. Márcia Cavalcanti. RJ: Forense Universitária, 1990. p. 18 43 Ibid. In Op. Cit., p. 24 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT - - 11 - - ela própria é tratada como lembrança, e o poder de transformação dos fatos não é totalmente apreendido. Embora esses museus nos ofereçam uma relação mais completa entre o real complexo e o universo da memória, já que nos colocam frente à memória enquanto processo (memória em tempo real), diríamos que todo esforço de musealização é, em si mesmo, limitado. No caso dos ecomuseus e dos museus de território, a musealização assume uma característica de ‘ficção das trocas simbólicas’ e faz-se como um ato de restituição do qual participam as coletividades; mais que musealização trata-se de uma atualização da vida social em torno do fato cultural. A incorporação do social como fato cultural pode mesmo significar que o social está morto: a memória torna-se objeto cultural polimorfo, sujeita a todos os tipos de manipulações de sentido; a vida cotidiana deixa de ser um conjunto de expressões espontâneas do grupo para tornar-se, em certos casos, objeto de animação cultural. 4. A AVENTURA IMAGÉTICA O desenvolvimento dos mídia e a globalização das redes virtuais nos colocam frente à uma outra dimensão da memória: a memória que nasce da correspondência entre o real e a virtualidade imagética. Vivemos hoje num universo notadamente visual, onde a força mágica das imagens nos dá a ilusão de que o real é o que vemos diante de nós. A imagética engendra um ‘novo real’, reconhecível pela infinita e vertiginosa capacidade de criação, dinamização, modificação e reprodução de imagens de todos os tipos, cujo poder mágico é o de “engendrar essa ilusão fundamental onde o real se desapropria a si mesmo” 44. O mundo imagético se cria fora das ordens simbólicas - que se tornam, elas mesmas, “docemente, grandes peças de museu” 45, sob o efeito de toda sorte de operações de classificação e de ordenação documental. Ele se auto reproduz e permite múltiplas operações de geração e de reprodução de imagens. Ainda que a imagem não possa jamais substituir o objeto (ela perde seu aspecto mágico na confrontação com a verdade do objeto), ou mesmo as expressões de vida existentes num território, a força da imagética se apóia na sua capacidade múltipla de reter e, ao mesmo tempo, modificar os registros do real. E isto ocorre não apenas com os testemunhos do ‘real exterior’, mas também com uma multiplicidade (jamais antes possível) de representações de nosso mundo interior, do universo simbólico que configura nossos sonhos, nossa personalidade. A imagética nos dá, assim, a ilusão de ser senhores de nossas próprias lembranças: a memória torna-se uma memória desejada, esperada, manipulada pelo indivíduo - como se fosse possível mergulhar em nossos próprios sonhos, abraçar nosso museu interior. Esta perspectiva ilusional nos leva a uma relação ilusória com o 44 Ibid., ibidem. p. 74 45 Ibid., ibidem. p. 75 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT - - 12 - real - onde a percepção de sermos parte do real complexo é substituída pela fantasia de termos o real como parte integrante de nós. Nada parece ser obstáculo à irrupção contínua das imagens: a saída para além do cotidiano já não se faz pelas manifestações coletivas. Já não é mais necessário projetarmo-nos para o outro lado do espelho: a capacidade de produzir e difundir imagens nos dá a medida do poder - poder de criação, de repetição infinita, de projeção no tempo e no espaço, poder de sermos simultaneamente o Mesmo, o Outro, o Duplo, a Sombra, o Amor e a Morte. Este é o museu virtual, Narciso absoluto, onde o homem é simultaneamente criador e criatura do seu próprio caleidoscópio de representações. Rio de Janeiro, novembro de 1997 Original em francês e inglês, fevereiro de 1997 - apresentado durante a Conferência Anual do ICOFOM - Paris, Grenoble e Annecy, França, julho 97 Revisado em março de 2004