Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
AS MULHERES EM O PRIMO BASÍLIO Jacicarla Souza da Silva – UNESP/Assis carlaworks@yahoo.com.br Resumo: Através de alguns textos publicados no jornal As Farpas de Eça de Queirós, este estudo propõe, em linhas gerais, discutir a representação da imagem feminina presente na obra O primo Basílio também de autoria do escritor português. Deste modo, pretende-se mostrar como as personagens Luísa, Leopoldina, Juliana e D.Felicidade reproduzem a concepção de Mulher defendida por Eça no referido ensaio. Palavras-chave: Literatura Portuguesa; Realismo; Eça de Queirós; O primo Basílio; Personagens femininas. Resumen: A través de algunos textos publicados en el periodico As Farpas de Eça de Queirós, este estudio propone, en líneas generales, discutir la representación de la imagen femenina en la obra O primo Basílio también de autoría del escritor portugués. De este modo, se pretiende apuntar como los personajes Luísa, Leopoldina, Juliana e D. Felicidade reproducen el concepto de Mujer defendido por Eça en el dicho ensayo. Palabras-llave: Literatura Portuguesa; Realismo; Eça de Queirós; O primo Basílio; Personajes femeninos. O periódico revolucionário As Farpas1, editado por Eça de Queirós e Ramalho Urtigão no ano de 1871, como se sabe, surge da necessidade de questionar os costumes da sociedade portuguesa do final do século XIX. É com um tom bastante irônico que o jornal tentará “acordar o país do torpor e da sonolência em que vegetava”; sacudi-lo e obrigá-lo a caminhar com o século”, conforme lembra Augusto Pissarra (1979, p.VI). Assim, não é de se estranhar que os temas abordados no panfleto serão os mais diversos: família, arte, política, economia, moral, costumes, entre outros. Diante da diversidade de assuntos, é interessante observar o texto publicado em Uma campanha alegre: As Farpas em março de 18722, que será enfocado neste artigo, em que Eça tece considerações em relação à figura feminina, principalmente a mulher lisboeta desse período. Os comentários destinados à mulher são os mais diversos (desde 1 Vale mencionar que os textos de Eça de Queirós escritos em As Farpas foram recopilados pelo próprio autor e publicados em dois volumes no ano de 1890 que receberam o título de Uma campanha alegre. O que explica o fato das suas Obras completas apresentarem os artigos publicados neste periódico sob o título Uma campanha alegre: As Farpas. 2 Texto publicado sob o número LXXV(março de 1872) na edição de Uma campanha alegre: As Farpas. In: QUEIRÓS, Eça. Obras de Eça de Queirós. Porto: Lello&Irmão, 1979, v.3. juliana Lápis moda à educação feminina). Assim, as colocações feitas pelo autor português sobre essa questão surpreendem tanto pelo grande teor irônico de suas observações como pelo diálogo que esses comentários estabelecem com o “retrato” feminino presente em sua obra O primo Basílio. Nesse sentido, torna-se mais fácil compreender as personagens Luísa, Leopoldina, Juliana e D. Felicidade de O primo Basílio, uma vez que elas refletem o entendimento de Eça de Queirós, elucidado também nos artigos publicados em As Farpas, a respeito da figura feminina pertencente à sociedade daquela época. Não resta dúvida de que o autor consegue nessa obra “reproduzir” essa mulher lisboeta do século XIX, embora sob uma concepção masculina que, sem dúvida, deixa as suas impressões negativas em relação ao universo feminino. De acordo com Eça de Queirós no texto de março de 1872, mencionado anteriormente, a mulher seria responsável pelo destino dos homens, ou seja, da humanidade: “a valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães” (QUEIRÓS, 1979, v.3, p.1200). A mãe é quem irá transmitir aos seus filhos os valores morais, desta forma, uma mulher sem princípios jamais poderia passar aos seus filhos algo que não possui, não poderia, portanto, educá-los. Diante desse quadro, o autor confessa estar preocupado com os possíveis filhos das mulheres portuguesas de sua época, pois estas não estariam capacitadas para ser mães, o que teria como conseqüência uma geração de filhos “mal educados”, homens e mulheres sem preparo, formando uma sociedade incapacitada e sem valores. Essa idéia que atribui à mulher a tarefa de ser responsável pelo futuro da nação está atrelada à concepção masculina que tenta confiná-la ao espaço doméstico. Em outras palavras, trata-se de uma maneira de legitimar a ordem estabelecida pela organização patriarcal, esse modelo único que nega a pluralidade representada pela voz feminina. Em As Farpas Eça de Queirós, por exemplo, considera a palidez, a debilidade física que, segundo ele, é tão presente nas mulheres de sua época, como uma conseqüência da vida ociosa que elas levavam, propiciando, portanto, uma série de enfermidades e problemas de saúde. O que pode ser observado a seguir, por meio de algumas considerações feitas pelo escritor acerca dessa mulher portuguesa do século XIX: juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis Os seus dias são passados na preguiça de um sofá, com janelas fechadas; -ou percorrendo num passinho derreado a Baixa e sua poeira [...] Depois, não fazem exercício [...] Além disso, o hábito do sofá, do recosto e da almofada- acostuma às posições lânguidas; cabeça errante, braços amolecidos, corpo abandonado [...] Outra causa da doença é a toilette. Com estes penteados enormes, eriçados, insólitos, em forma de capacete, de fronha [...] Ouve-se dizer quase sempre às mulheres – “Sinto hoje um peso na cabeça!...” É o fardo! É o crânio que, sem ar, amolentado, está adoecendo como um corpo que não se despe. Lisboa é a cidade do universo onde as meninas mais se apertam e se espartilham... (QUEIRÓS, 1979, p.1021-1022) Além da forte ironia e do ácido humor do fragmento acima, ainda é possível observar como essa mulher ociosa e grande adepta da moda está presente em O primo Basílio. Essa postura atribuída como tipicamente “feminina” pode ser notada, por exemplo, quando o narrador desse romance descreve uma visita de Leopoldina à casa de Luísa: Leopoldina tinha então vinte e sete anos. Não era alta, mas passava por ser a mulher mais bem-feita de Lisboa. Usava sempre os vestidos muito colados, com uma justeza que acusa, modelava o corpo, como uma pelica, sem largueza de roda, apanhados atrás [...] E Leopoldina, sentada no sofá, enrolando devagarinho a seda clara do guarda- sol, começou a queixar-se: tinha estado adoentada, muito secada, com tonturas. O calor matava-a. E que tinha ela feito? Achava-a mais gorda. (IDEM, 1997, p.23-24) Segundo trecho acima, Leopoldina é considerada “a mulher mais bem-feita de Lisboa”, pois ela segue os padrões da moda da sociedade em que está inserida e esta, por sua vez, a considera a mais formosa. Luísa também se mostra uma “consumidora” assídua e se pode dizer que o termo toilette acaba tornando uma marca registrada dessa personagem; o narrador enfatiza constantemente esse vocábulo que, na maioria das vezes, aparece relacionado a ela. Já D. Felicidade não podia usufruir com tanta freqüência “dos objetos da moda” devido a sua idade e a sua saúde. “Tinha cinqüenta anos, era muito nutrida, e, como sofria de dispepsia e de gases, àquela hora não se podia espartilhar e suas formas transbordavam.” (IBIDEM, p.36) juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis Juliana, apesar das suas poucas condições financeiras, pois não pertencia à mesma classe social que as outras, sempre almejou e sonhou usar as mesmas roupas e adereços de sua patroa Luísa, o que só consegue através de suas chantagens: Às vezes só no seu quarto, punha-se a olhar em redor com um riso de avaro; desdobrava, batia os vestidos de seda; punha as botinas em fileira, contemplando-as de longe, extática; e debruçada sobre as gavetas abertasda cômoda contava, recontava a roupa- branca, acariciando-se com o olhar de posse satisfeita. Como o da “Piorrinha”! (QUEIRÓS, 1997, p.311) Percebe-se, portanto, que essas personagens femininas preocupam-se em seguir os padrões impostos pela sociedade. Elas têm em comum a ociosidade e a debilidade física (todas possuem problemas de saúde): “[...] a sua preguiça é um dos seus males [...] vai-se pentear, corre o Diário de notícias, cantarola um pouco pela casa [...] come um bocadinho [...] derreada com sua ociosidade...” (QUEIRÓS, 1979, v.3, p.1204). Tal afirmação também pode ser evidenciada nos seguintes trechos de O primo Basílio, quando o narrador, ao se referir à Luísa, afirma: “Ficara sentada à mesa a ler o ‘Diário de Notícias’, no seu roupão de manhã de fazenda preta, bordado a soutache [...] Mas estava tão farta de estar só! Aborrecia-se tanto! De manhã ainda tinha os arranjos, a costura, a ‘toilette’, algum romance... Mas de tarde!” (IDEM, 1997, passim). Essas características atreladas às personagens femininas são compatíveis com as idéias que Eça defende em seu artigo. Elas representam e exemplificam a imagem de mulher que o autor retrata em As Farpas. Os valores morais e princípios dessas mulheres também são bastante ressaltados pelo escritor, tanto em O primo Basílio quanto no mencionado artigo: “Depois da anemia do corpo, o que nas nossas raparigas mais impressiona é a fraqueza moral que revelam os modos e os hábitos.” (IDEM, 1979). Fraqueza moral que é corroborada pela imagem estereotipada das personagens femininas de O primo Basílio: Luísa – adúltera; Juliana – chantagista, ambiciosa; Leopoldina – adúltera, pervertida; D. Felicidade vive à procura de um casamento à beira dos 50 anos. Esta última, inclusive, em relação as outras, é a menos salientada por Eça quanto a sua “imoralidade”. Nota-se que as mulheres que fogem “do procedimento correto”, da moral e dos bons costumes são “punidas’. Luísa e Juliana morrem e juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis Leopoldina é constantemente hostilizada por todos. “Em Eça [...] há um apelo permanente à norma, e os que dela se afastam estão condenados”. (CANDIDO, 1978). Em O Primo Basílio essa “condenação” limita-se às mulheres. Ainda no texto de março de 1872 de Uma campanha alegre: As Farpas, o escritor português comenta: Outro mal seu é o medo, um medo de tudo [...], dos castigos de Deus [...] É necessário que tudo em roda na vida seja muito fácil, muito claro, muito pronto; [...] daqui vem a sua falta de acção, a sua infeliz <<passividade>>. Uma menina portuguesa, não tem iniciativa, nem vontade. Precisa ser mandada e governada. Perante um perigo, uma crise de família, uma situação difícil, rezam! (QUEIRÓS, 1979) Pode-se remeter tal citação às próprias atitudes e o caráter de Luísa. Quando Jorge pede a Sebastião que cuide dela, fica clara essa relação de passividade e dependência: “Por isso, Sebastião, enquanto eu estiver fora, se te constar que a Leopoldina vem pra cá, avisa a Luísa! Porque ela é assim, esquece-se, não reflexiona.” (QUEIRÓS, 1997, p.50). Essa afirmação de Jorge coloca Luísa como um ser que não pensa, completamente “inoperante”, que não possui preparo para enfrentar problemas e decepções e quando os têm apega-se à religião como refúgio: “Luísa, só consigo, tinha outras resoluções. Não tornaria a ver Leopoldina, e freqüentaria as igrejas. Saía da doença com uma vaga sentimentalidade devota. [...] E depois sentia-se tão infeliz que se lembrou de Deus!” (IBIDEM, passim). O predomínio do ponto de vista masculino em O Primo Basílio, bem como do discurso patriarcal, é evidente pelo modo pelo qual o narrador conduz o relato. “O foco narrativo nunca se fixa na consciência de nenhuma mulher, sempre as conhecemos através de seu discurso ou do seu agir, de outras personagens ou do olhar onisciente do narrador” (BERRINI, 1984). As personagens femininas d’O Primo Basílio são personagens “tipos”, uma vez que retratam um determinado grupo da sociedade lisboeta (Mulher portuguesa do século XIX). Assim, não é possível exigir delas uma complexidade psicológica, pois suas atitudes e ações são previsíveis, torna-se importante olhar para elas sob uma visão sociológica e não psicológica. “Eça não poderia, como escritor realista, deixar de criar tipos de mulheres transviadas [...]” (WERNECK,1946, p.259-260). Por outro lado, não juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis se pode negar os princípios do patriarcado presente no discurso do escritor português. É diante da representação de imagens femininas como as apresentadas por Eça que se tenta legitimar a idéia da mulher como a parte negativa e o homem como a parte positiva do gênero humano. Essa oposição, conforme apontou a crítica feminista francesa Hélène Cixous (1995), corresponderia a passividade feminina e atividade masculina. Para ela, é a partir dessa posição dual que submete a mulher à inferioridade que o poder masculino sustenta a sua supremacia. Segundo o autor de Os Maias, essa mulher portuguesa do século XIX é fruto de uma má educação (familiar e intelectual), proveniente de uma sociedade que forma mulheres alienadas que, influenciadas pelos padrões e valores burgueses, se deixam corromper facilmente pelo meio social. O autor a coloca como um ser inferior, fraco, muito suscetível à alienação e vulnerável ao meio: “[...] a mulher na presença do mundo tentador – está hoje desarmada [...] A família, com sua dignidade, enfraqueceu; a religião tornou-se um hábito incompreendido; a moral está transformando [...] em que se apoiará a mulher?” (QUEIRÓS, 1979, p.1213). Além disso, Eça atribui à mulher menos capacidade intelectual que ao homem, conforme se observa nos trechos a seguir: [...] – porque a mulher, pela simples constituição do seu cérebro, é adversa ao estudo e à ciência: nem a satisfação de cumprir o dever - porque a compreensão abstracta do dever não tem pressa sobre o espírito feminino... Entre nós nenhuma senhora se dá às sérias leituras de ciência. Não da profunda ciência (o seu cérebro não suportaria) [...] – preferem o drama e o romance ... (IBIDEM, p.1211) Essa diferenciação entre os sexos também é notada em O primo Basílio. Evidencia-se com nitidez a desigualdade entre o homem e a mulher nessa obra: Basílio “sai impune” do adultério, o mesmo não ocorre com Luísa. Além disso, a própria visão dessa personagem masculina revela o seu machismo, pois trata Luísa como um objeto. O feminino mais uma vez aqui é colocado de maneira negativa, consolidando as oposições binárias entre macho/fêmea, como esclarece Rosiska Darcy Oliveira em Elogio da diferença: No imaginário masculino, as mulheres, percebidas não só como diferentes, mas sobretudo, como inferiores, ocupam paradoxalmente, o lugar de “metade perigosa da sociedade”. [...] Em razão mesmo de uma situação de alteridade, a mulher é definida como perigosa e juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis juliana Lápis antagônica. Em virtude dessa relação de oposição, é freqüentemente associada às forças da mudança que corroem a ordem social e a cultura estabelecida. (OLIVEIRA, 1999, p.30) Diante das observações tecidas até o momento, é perceptível o diálogo que se estabelece entre os artigos de As Farpas e a obra O primo Basílio no que concerne a visão acerca das mulheres lisboetas. Outro aspecto que se sobressai nesses textos, sem dúvida, refere-se aos conceitos moralistas que, por sua vez, se fundamentam na hegemonia masculina do poder. Como lembra Francisco Werneck (1946, p.260): “As censuras às personagens femininas são deveras excessivas [...]”. Nesse sentido, esse breve estudoprocurou refletir sobre alguns valores defendidos por Eça de Queirós sob a perspectiva da crítica feminista que visa a focalizar o modo como as mulheres são representadas de acordo com as normas sociais e culturais predominantes. Torna-se fundamental, portanto, verificar como esses padrões se perpetuam mesmo depois de um século e como eles ainda refletem problemáticas do universo contemporâneo. Referências bibliográficas: BERRINI, Beatriz. Portugal de Eça de Queiroz. Lisboa: Imprensa Nacional, 1984. CANDIDO, Antonio. Entre a cidade e o campo. In: CANDIDO, Antonio. Tese e antítese. 3ed. São Paulo: Nacional, 1978. p. 29-56. CIXOUS, Hélène. La risa de la Medusa: ensayos sobre la escritura. Prólogo y traducción de Ana Maria Moix; traducción revisada por Myriam Díaz-Diocaretz. Barcelona: Anthropos, 1995. OLIVEIRA, Rosiska Darcy. Elogio da diferença: o feminino emergente. São Paulo: Brasiliense, 1999. PISSARRA, Augusto. Introdução. In: QUEIRÓS, Eça. Obras de Eça de Queirós. São Paulo: Brasiliense, 1961. v.3. p. V-X. QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio. São Paulo: Klick, 1997. 463p. QUEIRÓS, Eça de.. As Farpas. In: QUEIRÓS, Eça de.. Obras de Eça de Queirós. Porto: Lello & Irmão, 1979. v.3. WERNECK, Francisco. As idéias de Eça de Queirós. Rio de Janeiro: Agir, 1946. 396p.
Compartilhar