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No início da nossa era, os celtas tinham colonizado grande extensão da Europa Continental ao sul do rio Reno, bem como as ilhas britânicas. França, Suíça, Bélgica, Espanha, Portugal, Inglaterra, Gales, Escócia e Irlanda conservam, ainda hoje, traços marcadamente celtas. Do Haloween às histórias de bruxas, dos cavaleiros do graal às fadas, a cultural ocidental tam- bém é influenciada pelo folclore desse povo. Este guia leva o leitor por um passeio através do mundo celta, a partir da sua sociedade, das guerras que travaram, sua religião, deuses, deusas e heróis, numa viagem através do tempo e do espaço a um universo mágico e místico. Boa leitura! Claudio Blanc www.revistaonline.com.br redacao@editoraonline.com.br PR EFÁ CI O W ik ic om m on s CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ G971 GUIA DA MITOLOGIA CELTA / -- [2. ED.] SÃO PAULO : ON LINE, 2016. IL. ISBN 978-85-432-1321-7 1. MITOLOGIA CELTA. 2. CELTAS - FOLCLORE. 16-34384 CDD: 299.16 CDU: 257.6 04/07/2016 04/07/2016 PRESIDENTE: Paulo Roberto Houch • VICE-PRESIDENTE EDITORIAL: Andrea Calmon (redacao@editoraonline.com.br) • JORNALISTA RESPONSÁVEL: Andrea Calmon (MTB 47714) • COORDENADOR DE ARTE: Rubens Martim (diagramacao@editoraonline.com.br) • COLABORARAM NESTA EDIÇÃO: Claudio Blanc (redação, edição e pesquisa iconográfica) • Beth Nito e Sergio Alberto – Storm Graphics Programação Visual (Arte) • GERENTE COMERCIAL: Elaine Houch (elainehouch@ editoraonline.com.br) • SUPERVISOR DE MARKETING: Vinicius Fernandes • ASSISTENTE DE MARKETING: José Antonio • CANAIS ALTERNATIVOS: Luiz Carlos Sarra • DEP. 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OS CELTAS ......................................................... 6 HALLSTATT ....................................................... 8 LA TÈNE ........................................................... 3 A SOCIEDADE CELTA ......................................... 10 MULHERES ...................................................... 13 BOADICEA ........................................................ 13 A CULTURA GALO-LATINA ............................. 15 OS GAULESES .................................................... 16 A REBELIÃO GAULESA ................................... 16 UM GRANDE LÍDER ........................................ 18 A ÚLTIMA BATALHA ...................................... 19 OS HELVÉCIOS ................................................... 20 A MIGRAÇÃO DOS HELVÉCIOS ....................... 21 2. A RELIGIÃO CELTA ........................................... 24 O POLITEÍSMO ................................................ 24 O CRISTIANISMO CELTA ................................. 25 SÃO PATRÍCIO .................................................. 25 TEMPLOS ......................................................... 26 CULTO ÀS ÁRVORES ........................................ 26 OS RITOS CELTAS ............................................ 28 NUDEZ ............................................................ 29 OS DRUIDAS..................................................... 30 A CONVERSÃO DOS DRUIDAS ......................... 32 SACRIFÍCIOS HUMANOS ................................ 34 W ik ic om m on s W ik ic om m on s W ik ic om m on s W ik ic om m on s ÍNDICE CULTO À CABEÇA ............................................ 37 OBSERVATÓRIOS MEGALÍTICOS .................... 38 HENGES ........................................................... 39 STONEHENGE .................................................. 39 OGHAM ............................................................. 41 OS FESTIVAIS CELTAS DO FOGO .................... 42 SAMHAIN - O ANO NOVO CELTA .................... 42 IMBOLC ............................................................ 42 BELTANE ......................................................... 42 LUGHNASADH ................................................ 43 3. MITOLOGIA ....................................................... 46 VIAGENS .......................................................... 47 CONTOS FOLCLÓRICOS ................................... 47 TUATHA DE DANAN ........................................ 48 A LENDA DE TUAN MACCARELL ................... 49 OS DESCENDENTES DE NEMED ..................... 51 OS FILHOS DA DEUSA DANA .......................... 52 OS MILESIANOS ............................................. 53 MABINOGION ................................................... 54 TRÍADES GALESAS ......................................... 55 QUATRO RAMOS DO MABINOGION ................. 55 PWYLL, PRÍNCIPE DE DYFED ....................... 55 BRANWEN, FILHA DE LLYR ........................... 56 MANAWYDDAN, FILHO DE LLYR ................... 57 MATH, FILHO DE MANTHONWY ..................... 60 4. DEUSES, DEUSAS, HERÓIS E HEROÍNAS ....... 64 W ik ic om m on s W ik ic om m on s OS CELTAS A nação celta era formada por diversas tribos estabelecidas ao sul do Reno, desde sua nascente, até a Irlanda. Sua cultura guerreira era semelhante à dos germânicos; os romanos reconheciam muitos dos seus deuses nas entidades por eles cultuadas Sh ut te rs to ck .c om 6 Embora os fenícios tenham sido os primeiros a frequen-tar as Ilhas Britânicas para se abastecer de estanho, séculos antes dos gregos, os escritores helênicos são a mais antiga fonte do conhecimento sobre os celtas, ou hiperbóreos, como eles os chamavam. Hecateu de Mileto, no século 6 a.C., foi o primeiro a registrar informações sobre os celtas. Ele situou o país dos hiperbóreos ao norte dos Alpes – um fato confirmado pela arqueologia. Um século depois, Heródoto, o grande historiador grego, estendeu o domínio da civilização celta aos Pirineus e identifi- cou sua presença até o oeste da Península Ibérica, onde hoje é Portugal. O filósofo Aristóteles se referia a eles como keltos e dá conta que eram belicosos e que mergulhavam os bebês recém-nascidos na água gelada para fortalecê-los. Outro gre- go que deixou relatos sobre os celtas foi Éforo, que escreveu no século 6 a.C. Segundo Éforo, os hiperbóreos multavam os homens gordos demais. Para isso tinham um padrão autoriza- do que determinava a largura da cintura. Esse autor também informa que os celtas habitavam os Países Baixos e que, se- gundo Olivier Launay, em seu livro A Civilização dos Celtas “não tinham medo de nada.” As descobertas modernas confirmam as afirmações de Hecateu de Mileto e de outros escritores antigos sobre a loca- lização do “país celta”. Embora tenha dominado toda a área correspondente à França, Península Ibérica, Ilhas Britânicas e Textos de Claudio Blanc Broche celta, século 4 a.C. A cidade de Hallstatt República da Irlanda, a matriz da cultura celta era a área alpina e o sul da Alemanha. Essa cultura se desenvolveu em duas fases durante a Idade do Ferro europeia: a cultura Hallstatt (c. 900 – 400 a.C.) e a La Tène (c. 550-15 a.C.). W ik ic om m on s W ik ic om m on s 7 A CIVILIZAÇÃO DOS CAMPOS E DOS BOSQUES Os celtas chegaram à Europa, durante o se- gundo milênio antes de nossa era, para ocupar nela uma paisagem que tinha sido modelada, ao longo de dezenas de séculos de duro labor, cominstrumentos de pedra e madeira, pelos camponeses do neolítico. Eles pouco a modifica- ram, embora edificassem nela a sua sociedade. Essa paisagem apresentava então, como hoje, três aspectos principais: nas grandes planícies do Reno, do Meuse, do Tâmisa, do Sena, uma pai- sagem de campos abertos, cujas longas tiras que nada separam irradiam ainda ao redor de certas cidades; as grandes florestas da cadeia herci- niana às Ardenas e à Brocéliande; o basquete, de taludes e cercas-vivas nas regiões graníticas, xistosas ou vulcânicas do Oeste e do Norte. Os celtas desenvolveram ali uma civilização dos campos e dos bosques, que não era a dos selva- gens vestidos de peles de animais dormindo so- bre as árvores, mas de camponeses habilidosos que tinham sabido organizar e aperfeiçoar seu modo de vida sem construir cidades. Efetuavam cálculos de distância e de superfície. As palavras francesas arpent e lieue vêm da língua deles (arepennis, leuga). Os romanos, na Gália e na Bretanha, edificaram cidades nas encruzilhadas comerciais e vilas, com aquecimento central, nos centros agrícolas. Mas, na Gália, o vasto povo de mãos barrentas permaneceu em seus cam- pos e, desde a partida dos Romanos da grande ilha celta, os bretões por seu lado abandona- ram fóruns, termas e pretorias às raposas e aos morcegos, para voltar a suas campinas e seus pequenos burgos. Oliver Launay, A Civilização dos Celtas O termo “celta” engloba todo o conjunto de povos que se espalhou por grande parte do oeste idiomas pertencentes à família indo-europeia, a qual inclui as principais línguas da Europa, Irã, norte da Índia e Ásia Central Escudo ritual com padrões decorativos La Tène HALLSTATT Hallstatt é uma pequena cidade austríaca, a trinta quilôme- tros de Salzburg, onde foram encontradas as primeiras evidên- cias arqueológicas de objetos que caracterizam a cultura celta. Nesse primeiro estágio da cultura celta, onde se vivia em casas feitas de troncos e os animais domesticados eram os porcos, carneiros, gado, cães e cavalos, os ritos funerais eram consti- tuídos de cremação, embora enterros não fossem incomuns. W ik ic om m on s 8 Moeda cunhada pela tribo gaulesa parisi Tratava-se de um povo com cultura complexa, que habitava pequenas aldeias lideradas por chefes guerreiros Cada chefe gaulês era cercado de vassa- los, que formavam com ele uma fraternidade de combate. O vassalo na Irlanda é um cele, denominação cujo sentido é “associado”. Os esposos são ceIe um do outro e não, como no Sul, a mulher propriedade do marido. César pretende que a condição dos vassalos gauleses era próxima da escravidão. Pode-se duvidar pois tinham o direito de voto para escolher o chefe de guerra. Havia, em realidade, na Gália, duas classes de vassalos. Uns, os ambactes, camaradas de combate, que eram os vassalos francos. Os outros, pastores, tarefeiros, eram os predecessores dos servos, em geral desclas- sificados considerados provavelmente por seus contemporâneos o rebotalho da tribo. Havia, também, escravos, mas eram poucos, pois os celtas não faziam prisioneiros: preferiam cortar a cabeça dos vencidos e ignoravam a piedade. Os trabalhos mais desagradáveis eram reservados aos escravos. Pois o trabalho propriamente dito não era uma ocupação nobre. Nobre era a ação desinteressada, o jogo, a guerra, o amor, a obra de arte, a especulação intelectual, as funções re- ligiosas, a ascese. A sociedade irlandesa dividia- -se em oito cate gorias, desde o rei supremo até o plebeu ou servo. Oliver Launay, A Civilização dos Celtas Os celtas da cultura Hallstatt não restringiram seu domínio apenas ao Sul da Alemanha. A moderna arqueologia sustenta que, no seu último século de desenvolvimento, os celtas já ha- viam penetrado e se instalado na Península Ibérica, Bretanha, Ilhas Britânicas e Escandinávia. E é sobre os desenvolvimentos produzidos durante a fase Hallstatt que surge a cultura La Tène – a segunda Idade do Ferro da Europa Central e Ocidental. Em La Tène, uma pequena cidade suíça, foram descobertas as pri- meiras instâncias de uma evolução cultural baseada no período anterior, isto é, o Hallstatt. O estilo La Tène tem marcas claras dos padrões decorativos gregos, etruscos e citas, com que os celtas mantinham contatos comerciais. LA TÈNE Foi durante o período La Tène que os celtas atingiram sua máxima extensão cultural. A sociedade celta era organizada em torno da guerra – uma estrutura característica de culturas em processo de migração. Poderosos guerreiros, habilidosos cavaleiros, ferreiros, sitiaram e saquearam a cidade de Roma em 390 a.C., e invadiram a Ásia Menor. Também invadiram a Península Itálica e fundaram Mediolanum, hoje, Milão. Tribos de cultura La Tène chegaram até o sul da Rússia, mas seu grande movimento foi em direção ao oeste, onde ocuparam os antigos centros dos celtas Hallstatt. No entanto, não há evidência arqueológica de invasões mi- litares em larga escala em outras áreas do Oeste europeu. Esse fato originou uma escola de pensamento que afirma que a língua e a cultura celta se espalhou nessas áreas por meio do contato e não por invasões. Os imigrantes, e em alguns casos invasores, que vinham com a “onda celta” se miscigenavam com a população que já estava instalada nos locais onde se es- tabeleciam. O cronista romano Amiano Marcelino, que escre- veu no século 4 d.C., confirma, por exemplo, que “uma parte da população (da Gália) era nativa, mas alguns haviam vindo de ilhas e terras além do Reno, deixando seus lares originais por conta de guerras e de invasões”. No final do século 5 a.C., os celtas já haviam se instalado às margens do Reno e do Elba, e no começo do quarto século an- tes de Cristo, a tribo dos bretões (Brythons) e a dos goidélicos (vindos do Norte da Espanha) cruzaram o Canal da Mancha e ocuparam a Inglaterra e a Irlanda. A Gália, a Espanha e o nor- te de Portugal também foram ocupados por grupos tribais de cultura La Tène. Os nomes de algumas tribos celtas continuam a determinar etnias até hoje, como é o caso dos lusitanos e os galegos, em Portugal e na Espanha. Todo o centro e o Oeste da Europa viram florescer uma poderosa cultura que, apesar das inegáveis influências gregas, itálicas e do Oriente Médio, era, nas palavras do mitólogo americano Joseph Campbell (1904 – 1987), basicamente “bárbara”. W ik ic om m on s 9 Brenn e sua parte no butim, de Paul Jamin (1893) W ik ic om m on s 10 A SOCIEDADE CELTA Os celtas não eram uma raça homogênea, mas, sim, uma nação com uma cultura comum, dividida em tribos diferentes. O que unia essas sociedades tribais era a língua, o comércio, instituições políticas semelhantes e a religião. No entanto, cada tribo tinha seu próprio corpo de tradições locais O termo “celta”, se refere a qualquer membro de um dos povos europeus que usavam a lingual celta – do ramo linguístico indo-europeu – e que compar-tilhavam de uma arte e religião comuns. A sociedade era tribal e baseada no parentesco. A identi- dade étnica era sedimentada principalmente no grupo tribal maior, chamado pelos celtas irlandeses, os goidélicos, de tua- th, ou “povo”. Essa identidade era, por sua vez, determinada pela unidade familiar, o clã, cenedl, isto é “aparentado”, em irlandês. Além de identidade, o clã garantia proteção: as dis- putas entre os indivíduos sempre irradiavam para a esfera do clã. E como era obrigação do clã proteger os seus, os crimes contra um dos protegidos eram considerados ofensas contra todo o clã. Um dos principais princípios éticos celtas era a con- tenda de sangue; um assassinato ou insulto qualquer exigia que cada membro do clã buscasse vingança. A contenda de sangue era tão comum que surgiu uma classe de mediadores profissionais, chamados na Irlanda de brithem. Os clãs que formavam as tribos eram liderados por reis, embora tenham surgido repúblicas oligárquicas em áreas que tinham contato próximo com a cultura romana. Normalmente, asociedade celta se dividia em três classes: a aristocracia de guerreiros, a classe intelectual, formada pelo clero, pelos poe- tas, juristas e outros, e o povo comum. Júlio César, o primeiro imperador de Roma, é o cronista da época que mais detalhadamente descreve os costumes dos celtas La Tène. César combateu os celtas na Gália, a atual França, e registrou suas impressões sobre eles na sua obra As Guerras da Gália. César confirma a existência de três classes entre os celtas da Gália, os gauleses. As pessoas comuns eram tratadas praticamente como escravos. “A maior parte deles”, escreveu César, “oprimida por dívidas, pelo peso dos tributos ou pelas injustiças dos poderosos, permite-se escravizar pe- los nobres”. César descreveu duas classes superiores, a dos Cavaleiros e a dos Druidas. Aos primeiros, liderados por um rei, cabia a defesa da tribo durante as guerras – e os celtas das diferentes tribos combatiam muito entre si. Eram os cavaleiros que amealhavam poder e influência política sobre as pessoas Cerâmica celta Ornamentos de ouro para sapatos, c. 530 a.C. comuns. Nos tempos históricos, na Irlanda, sabe-se que os reis eram eleitos por meio de um sistema de sucessão. Embora a sociedade celta fosse guerreira e assim estrutura- da, a promoção de guerras não era um processo organizado de conquista territorial. A guerra era travada de uma forma semelhante a dos índios brasileiros e americanos, isto é, incur- sões guerreiras motivadas principalmente por vingança, con- quista de glória militar ou busca de butim ou de saque. Mas quando os celtas passaram a ter maior contato com os roma- nos, eles modernizaram e adaptaram suas táticas de guerra a fim de poder enfrentar exércitos maiores. W ik ic om m on s W ik ic om m on s 11 Os autores antigos registram que, durante os combates, os celtas se postavam diante do exército inimigo, gritando e batendo as lanças e espadas nos seus escudos. Em geral, combatiam nus, com o corpo pintado de azul e com cabeças dos inimigos que abateram em outras batalhas amarradas à cintura. Então disparavam a correr em direção dos seus opositores, berrando durante todo o percurso. Ante a visão estarrecedora de um bando de selvagens assassinos, os ini- migos, muitas vezes, abandonavam suas fileiras e fugiam. Os celtas, então, se valiam da vantagem proporcionada por um exército em fuga. Se, porém, as forças contrárias não rompessem suas fileiras, os celtas paravam perto do exército, retornavam a sua posição original e repetiam o processo. A segunda classe descrita por César é a dos druidas, os quais se ocupavam dos cultos, dos sacrifícios – tanto públicos como privados – da interpretação de desígnios. Os druidas gozavam de grande prestígio entre os celtas, assumindo igualmente o papel de conselheiros e juízes, decidindo sobre crimes e disputas de propriedade. “Se uma pessoa ou pessoas não se atêm às suas decisões”, regis- trou César, “os druidas os proíbem de fazer sacrifício, o que constitui sua maior punição”. Outros escritores da Antiguidade indicam a ordem religiosa também se dividia em três classes. Estas pertenceriam, segundo alguns autores, à ordem druídica. Estrabo afirma na sua obra Geographica, que “entre todos os povos da Gália, falando de forma geral, há três tipos de homem tidos na mais alta honra: os bardos, os vates e os druidas.” Estrabo segue explicando que “os bardos eram cantores e poetas; os vates, adivinhos e filósofos naturais; e os druidas, além da filosofia natural, também estudavam filosofia moral”. Os bardos cele- bravam os feitos dos heróis compondo “ver- sos épicos”, os quais recitavam acompanhados pela lira, enquanto os vates procuravam expli- car os grandes mistérios da natureza. É deles que deriva o verbo “vaticinar”. Um torque de ouro, colar típico dos celtas FOSTERAGE A educação das crianças: o “fosterage” Entretanto, essa Iiberdade não obnubilava em nada o senso de responsabi- lidade social. Uma instituição, que não foi somente céltica, mas que adquiriu entre os celtas importância considerável, a do fosterage, mostra que nossos ancestrais tinham sobre a educação das crianças ideias mais profundas do que nós. Era difundido o hábito de confiar a educacão das crianças a um pai nutridor, um pai que se houvesse destacado por suas aptidões educativas. Quando a pensão era paga, um rei pa- gava até 30 animais de chifre ao preceptor de seu filho, mas um plebeu somente três. Os rapazes aprendiam os esportes; as moças, costura. Se o pai nutridor era um filé, um sábio- -poeta, o caso assumia outra dimensão. Vejamos os escritos hindus: “Quando um pai e uma mãe, unindo-se por amor, dão a vida a um filho, não se deve considerar esse nasci- mento como outra coisa senão um fato humano, porque o filho se forma na matriz. Mas a vida que lhe comunica o pai espiritual é a verdadeira vida, que não está sujeita à velhice nem à morte.” o estágio terminava, para os rapazes, aos 17 anos, para as moças aos 14. Rapazes e moças regressavam a suas famílias, ricos com o que haviam aprendido e forta- lecidos por uma educação que não sofrera por causa das fraquezas maternais. As crianças conservavam obrigações de caráter filial em relação a seus pais nutridores. Deviam a eles auxílio e assistência. Do mesmo modo, os irmãos-de leite” permaneciam estreitamente unidos e solidários, o que nem sempre acontecia entre irmãos pelo sangue. Em gaélico, eram chamados de comaltae. A mes ma palavra em galês significa, hoje, amigo” e em bretão, sócio”. Oliver Launay, A Civilização dos Celtas O Gaulês Moribundo, cópia em mármore de um original em bronze do século 1 ou 2 d.C., retrata a morte de um guerreiro celta ferido em batalha. A escultura enfatiza a bravura do combatente bárbaro W ik ic om m on s W ik ic om m on s 12 César disse que [a poliandria] se praticava na Bretanha. Isso explicaria por que a palavra “gwely” (leito) adquiriu, em bretão insular, o sentido de “família”. Não há fumaça sem fogo. A lenda irlandesa nos mostra Clothru, esposa si- multânea de seus três irmãos e, em consequên- cia, mãe de Lugard, rei supremo - que tem três pais no ciclo de Cuchulainn - e que ela esposa a seguir para ter dele um filho que será rei por seu turno. Certamente, não se deve tomar ao pé da letra essas histórias, que aliás se contradizem, mas elas dão certa credibilidade a São Jerônimo quando deplorava que os irlandeses fizessem amor com liberdade total. Oliver Launay, A Civilização dos Celtas Em termos econômicos, a sociedade celta não se basea- va no comércio. Havia escambo, mas o princípio econômico predominante era a reciprocidade. Na economia de recipro- cidade, os bens e serviços não são trocados por outros bens ou serviços, mas são distribuídos de acordo com relações de parentesco e obrigações. Por outro lado, evidências arqueológicas sugerem que os celtas anteriores à invasão romana desenvolveram um com- plexo de rotas comerciais que chegava a Eurásia. O território ocupado pelos celtas tinha zinco, chumbo, ferro, prata e ouro. Os ferreiros e ourives celtas criavam armas e joias para o co- mércio, particularmente com os romanos, mas também com outros povos. Peças de ouro produzidas na Irlanda pré-romana foram descobertas em sítios arqueológicos da Palestina. MULHERES Contrárias às gregas e romanas, as mulheres celtas tinham uma participação efetiva na sua sociedade. Apesar de ser uma cultura centrada na aristocracia guerreira, descobertas arque- ológicas indicam que as mulheres podiam gozar de elevado status social. Antes da fusão da cultura celta com a romana, as mulheres tinham direito de exigir divórcio e deixar o ca- samento com as propriedades que possuía quando solteira. Além disso, elas tinham todo o direito de se casar de novo. Há registros sobre mulheres que tomavam parte na guerra e no governo do seu povo, embora fossem a minoria. Talvez o melhor exemplo seja o de Boadicea. BOADICEA Boadicea, ou Boudica, rainha da tribo dos icenos, quevivia no Leste da Grã-Bretanha, liderou um insurreição de diver- sas tribos contra os invasores romanos. Quando o marido de Boadicea, o rei Prasutagus, morreu, os romanos anexaram seu reino e humilharam a rainha e suas filhas.Os invasores açoita- ram Boadicea e estupraram as moças. Boadicea incendiou toda Inglaterra. Ela liderou uma alian- ça de diversas tribos que, entre 60 e 61, ameaçou a perma- nência dos romanos na Grã-Bretanha. O exército de Boadicea destruiu as colônias de Camulodunum, atual Colchester, Londinium, a moderna Londres, e Verulamium, presentemente Saint Albans, deixando em seu caminho um rastro de destrui- ção que fez cerca de oitenta mil vítimas. O imperador Nero chegou até mesmo a considerar retirar as forças romanas da ilha. No entanto, Boadicea foi finalmente derrotada na Batalha de Watling Street, pelas forças consideravelmente menores do governador Suetonio. Quando a revolta começou, o legado Caio Seutônio Paulino, com duas das quatro legiões estacionadas na pro- víncia, tinha acabado de capturar a ilha de Mona (a moderna Anglesey), o centro principal do culto druídico. Esta foi uma das poucas religiões ativamente perseguidas pelos romanos, que não aprovavam o papel de relevo dos sacrifícios huma- nos nos rituais druídicos e que também tinham consciência de que a religião promovera a união de elementos contrários aos romanos na Gália e na Bretanha. Enquanto Paulino estava ocupado com a invasão de Mona e com o massacre dos druidas e dos seus seguidores, a rebelião no leste da província teve tempo de se intensificar. A colônia de Camuloduno (Colchester) foi o primeiro alvo dos rebeldes, pois os locais ressentiam a confiscação das suas terras para serem dadas aos veteranos romanos lá estabelecidos no final do seu serviço militar. Alguns dos veteranos conseguiram re- sistir durante dois dias no grande Templo de Cláudio, mas a colônia não tinha fortificações apropriadas nem condições de se defender daquela força. A fúria dos bretões levou a atos de tortura e mutilação, quando massacraram toda a população da cidade. Nas semanas seguintes Verulamium (St Albans) e Londinium (Londres) sofreram o mesmo destino. Boadiceia, por John Opie (c. 1793) W ik ic om m on s 13 A primeira resposta significativa do exército romano foi di- rigida para o lugar de onde a rebelião se irradiava, esperando quebrar a resistência dos bretões com uma demonstração de força. Em lugar disso, os romanos encontraram um exérci- to muito mais poderoso do que anteciparam. Talvez numa emboscada, ou possivelmente num ataque noturno ao seu acampamento, quase todos os legionários foram mortos e apenas o legado e alguns membros da cavalaria conseguiram fugir do desastre. Paulino pôde chegar a Londinium antes de a cidade cair, mas tinha apenas um pequeno corpo da cava- laria sob seu comando, pois tinha deixado a maior parte do exército para trás. Alguns refugiados conseguiram alcançar a proteção do governador e da sua cavalaria, mas a maior parte da população foi massacrada. Quando retirou-se para encontrar o exército principal, Paulino reuniu algo em tor- no de dez mil homens. A Legio IX tivera muitas baixas para continuar a tomar parte na campanha, mas o governador tinha enviado mensageiros com ordens de chamar a outra legião estacionada na Bretanha, II Augusta, da sua base no sudoeste para reunir-se a ele. Seu comandante, o prefeito Poênio Póstumo, por algum motivo desconhecido, recusou- -se a obedecer as ordens de Paulino. Desse modo, foi forçado a confrontar Boadicea cujo exército era muitas vezes maior, apenas com suas próprias tropas. Os Gauleses tinham vici, cidades não cercadas de muros, feitas de casas isoladas, de pedra tra- balhada com argila e cobertas de colmo ou de ta- buinhas, e de oppida, isto é, cercados fortificados, refúgios para as populações em tempo de guerra, mas já também esboço de cidades permanentes, se podemos chamar assim a simples aglomerações de cabanas ou casinholas rústicas, dispostas sem or- dem e sem serviços públicos. A nação dos helvécios tinha 400 vici e 12 oppida. Os biturígios tinham menos vici, mas 20 oppida. Os lexovianos tinham um oppidum de 160 hectares. A maioria não era tão vasta, muitas não tinham mais do que cinco, 10 ou 30. A Irlanda tinha também seus raths ou duns. A predileção dos celtas por uma vida atlética ao ar livre, apesar dos rigores hibernais do clima, explica que cuidassem da aparência exterior até a faceirice, sendo apaixonados pelas roupas de cores vivas e pelas joias preciosas, faziam vir de longe objetos de arte que sabiam apreciar, decoravam com gosto e habilidade suas armas, mas se conten- tavam, em matéria de casas, com simples abrigos noturnos, onde a fumaça saía por um buraco, através do teto. Contudo, nas aglomerações mais próximas dos centros de civilização greco-romana, se revela uma evolução do gosto: melhora-se o ha- bitat, constroem-se moradias mais vastas, templos, piscinas, ruas lajeadas. Quanto mais se subia para o norte, mais o modo de vida era rude e rústico. Quando veio a conquista romana, nem os vídu- casses (os que combatem com a madeira), nem os eburões (os homens do teixo, a árvore sagrada) estavam ainda atingidos pelo mal da cidade. Na Irlanda, as mais antigas cidades, Dublin, Waterford, Limerick foram construídas pelos Vikings; outras, mais tarde, pelos conquistadores normandos. Mesmo na Pequena Bretanha moderna, Brest, Lorient e, sobretudo, Saint-Nazaire são criações artificiais. As cidades da Terra Céltica moderna, à parte as zonas da alta indústria, permaneceram pequenas e participam intimamente da vida rural. A paisagem celta: algo semi-sagrado Essa é a razão do apego do celta a suas paisagens. Estas são o quadro onde há 10 ou 15 séculos ele luta pela existência, agarrado desesperadamente a cada palmo de terreno, a cada campo, a cada rocha, a cada árvore. É o caso de se falar de osmose. Essa é a chave do amor passional que o irlandês dedica a suas verdes campinas, o escocês a seus lochs, os galeses a suas montanhas e o bretão da França a suas matas, embora muitas destas, hoje, tenham dado seu lugar a culturas. As causas muito antigas desse sentimento não agem mais diretamente, mas marcaram a hereditariedade psíquica. Como a terra pertencia à tribo ou a uma família, era impossível doá-Ia sem doar os homens que estavam sobre ela. Oliver Launay, A Civilização dos Celtas O general romano Júlio César, que subjugou os celtas da Gália, perseguiu os druidas e escreveu a respeito desse povo W ik ic om m on s 14 Paulino escolheu um local onde um desfiladeiro coberto por bosque oferecia proteção aos seus flancos e retaguar- da. O modo como colocou suas forças em formação, com as legiões no centro, a infantaria auxiliar nos flancos e a cavalaria nas alas, era totalmente convencional. Como Mário em Águas Sextias e César contra os helvéticos, ele manteve seus homens parados e silenciosos enquanto a massa de bretões avançava em sua direção. Foi apenas no último minuto que ordenou que seus homens arremessassem seu pila e atacassem. A chuva dos dardos pesados di- minuiu a velocidade dos britânicos, mas os guerreiros estraram numa formação tão den- sa ao penetrarem no desfiladeiro para atacar seus inimigos que não puderam se retirar. Como o exército romano em Canas, tinham se tornado uma grande massa incapaz de manobrar ou de combater com eficiência. Lenta e continuamente, foram abatidos pe- los romanos, embora estes tenham pagado um alto preço pela sua vitória. As forças de Paulino tiveram poucas baixas. Num único dia de luta, a espinha dorsal da rebelião foi quebrada. Boadiceia fugiu, mas logo depois suicidou-se tomando veneno. Paulino e seus homens promoveram uma campanha cruel ao longo do inverno para extinguir todas as bra- sas que ainda restavam da resistência, o ódio resultante das atrocidades que os bretões co- meteram era profundo. A CULTURA GALO-LATINA Após dominarem a Europa Ocidental eco- mandarem incursões até a Ásia Menor, no século 3 a.C., as forças da coalizão sanita, celta e etrusca foram derrotadas por Roma. Estátua de Boadicea, em Londres A Terceira Guerra Sanita, o nome pelo qual o conflito pas- sou para a história, pôs um fim à supremacia celta. Mesmo assim, os últimos reinos celtas independentes da Itália só vieram a cair completamente em 192 a.C. No século 1 a.C., os romanos conquistaram, sob Júlio César, a Gália celta. O golpe final foi desferido no século 1 d.C. pelo impera- dor Cláudio, que estendeu o poder de Roma até algumas partes da Ilhas Britânicas, particularmente onde hoje é a Inglaterra. A partir de então, os celtas se tornaram romani- zados. A língua oficial nesses lugares passou a ser o latim, e a administração, a arquitetura, os usos, enfim, passaram a ser o dos romanos. Após a invasão romana da Gália e da Inglaterra, muito dessa cultura se perdeu, ou melhor, se mesclou com a influência romana. Uma nova cultura surgiu baseada no sincretismo celto-romano, ou galo-romano. Houve, porém, lugares onde a influência de Roma não che- gou e onde a essência da cultura celta foi mantida até os dias de hoje. São os chamados países celtas modernos. A Irlanda, a Escócia e o País de Gales são os que melhor preservaram a literatura celta, a qual nos ajuda a reconstituir a vivência e as crenças desse povo tal como ela era. Os mitos preservados se instilaram no folclore dessas áreas. Principalmente nesses países, ainda é possível constatar o espírito, a disposição, os modos e maneiras dos antigos celtas. W ik ic om m on s W ik ic om m on s 15 Os celtas que ocupavam o norte da Itália, a França e o Norte da Espanha eram os gauleses. Primeiro inimigos, os gauleses acabaram sendo conquista-dos pelos romanos e passaram a constituir duas importantes províncias, a Gália Cisalpina, “Gália aquém dos Alpes” – a região da Itália habitada pelos gauleses e que hoje corresponde ao norte da Itália – e Gália Transalpina, que en- globava os atuais territórios da Bélgica, França e Suíça. Em al- guns períodos, a Gália Transalpina chegou a cobrir parte do Norte da Itália e Centro-Norte da Espanha. As tribos gaulesas, como todas as outras da nação celta, eram guerreiras, e sua sociedade se organizava em torno da guer- ra. Invariavelmente, os cavaleiros do exército gaulês, eram os membros mais ricos e aristocráticos da tribo, que podiam com- prar um cavalo e o equipamento adequado. A cavalaria gaulesa era, em geral, bem formada – os romanos iriam, posteriormen- te, copiar muitos dos arreios dos cavalos e do treinamento dos cavaleiros gauleses –, e seus membros eram extremamente co- rajosos, embora sem sofisticação tática. Esses homens tinham de justificar sua posição honrada na sociedade demonstrando coragem na guerra. Por isso, valores como honra e bravura eram muito considerados entre esse povo. Os gauleses saquearam Roma em 390 a.C. e a ameaçaram de novo em 225 a.C., até que, com muita sorte, mais do que planejamento, os dois cônsules daquele ano conseguiram ata- car o exército inimigo, um de cada lado, em Telamon. Em 216, no vale do rio Pó, uma coalizão formada por tribos gaulesas emboscou e dizimou um exército de duas legiões e duas alas. Entre os mortos estavam o comandante romano, o pretor Lúcio Postúmio Albino, um homem muito experiente que já havia sido cônsul duas vezes e acabava de ser eleito, na sua ausência, para um terceiro mandato no ano seguinte. Esta foi, talvez, a derrota de Roma mais espetacular nessa região, ape- sar de não ter sido a única. A ameaça gaulesa só terminou quando Júlio César derro- tou o maior líder gaulês, Vercingetórix, comandante da últi- ma grande rebelião gaulesa. César também é responsável por grande parte do conhecimento que temos sobre esses povos, uma vez que o general romano cuidou de registrar seus usos e costumes no seu livro As Guerras Gálicas. A REBELIÃO GAULESA As intervenções iniciais de César na Gália tinham sido reali- zadas a pedido dos líderes das tribos gaulesas aliadas. Embora os povos gauleses compartilhassem uma língua e cultura co- muns, as tribos eram ferozmente independentes e quase sem- pre hostis. Nenhuma tribo nem seus chefes que buscavam do- minar seu próprio povo tinham escrúpulos e buscavam auxílio externo contra os inimigos ou rivais. Mas, por volta do inverno de 53-52 a.C., um ressentimen- to generalizado contra a presença romana havia surgido. Um grupo de nobres de muitas tribos reuniu-se secretamente e planejou uma rebelião coordenada. Muitos desses líderes es- OS GAULESES As tribos gaulesas viviam na região da atual França e chegaram a saquear Roma, no período da república. Conquistados por Júlio César, foram colonizados pelos romanos, submetidos à sua política e legislação Guerreiro galo-romano, século 1 d.C. W ik ic om m on s 16 peravam que a glória obtida ao derrotar Roma lhes traria influ- ência política entre sua própria tribo e outras. O homem que logo emergiu como principal líder da rebelião foi Vercingetórix, da tribo dos arvernos. Vercingetórix formou um exército recrutado não apenas entre os membros de sua própria tribo, mas da maioria dos povos da Gália ocidental e central. Comparada com os exércitos tribais normais, a força que ele reu- niu era maior e bem mais organizada e disciplinada, ainda que inferior aos romanos em termos de organização e disciplina. A primeira irrupção da rebelião aconteceu bem no início do ano de 52 a.C., em Cénabo, na terra dos carnutos, onde dois chefes tribais e seus seguidores massacraram todos os merca- dores romanos que encontraram na cidade. César, o governa- dor da Gália Cisalpina, ao saber da rebelião, levou as forças à sua disposição à Gália Transalpina para enfrentar os rebeldes. Ainda era inverno e o passo principal nos Alpes era con- siderado impraticável, por isso os arvernos não esperavam represálias. Mas César levou seus homens através do passo, limpando as trilhas cobertas com até dois metros de neve e lançou um ataque contra o inimigo. A surpresa foi completa e, durante dois dias, a coluna romana saqueou e destruiu à von- tade, com a cavalaria auxiliar galopando à frente para espalhar pânico através da maior área possível. Logo, Vercingetórix recebeu incontáveis mensagens de seus conterrâneos exigindo auxílio imediato. Quando Vercingetórix avançou para sitiar Gorgobina, a aldeia princi- pal da tribo dos boios, aliados dos romanos e que tinham re- cebido permissão para estabelecer-se em território dos éduos em 58, César enfrentou um dilema. Seu exército não tinha provisões para uma campanha longa e não podia esperar obter quantidades significativas de suprimentos no inverno. Contudo, se ele não fosse proteger as tribos aliadas, isso es- timularia a deserção para o lado inimigo. O general romano decidiu que era melhor assumir imediata- mente a ofensiva. Ele ordenou aos éduos que reunissem grãos e levassem a ele tão logo quanto possível e avançou imediata- mente em auxílio dos boios, tomando qualquer fortaleza hostil pela qual passava em sua rota e confiscando todos os supri- mentos e animais de carga que encontrava. Mapa das campanhas de Júlio César O avanço das legiões atraiu Vercingetórix, que buscou se aproximar do inimigo. César tinha acabado de aceitar a ren- dição de outra cidade murada, Novioduno, quando o exército gaulês surgiu, reacendendo o entusiasmo dos habitantes da cidade para continuar a resistir. As cavalarias dos dois exércitos começaram a lutar, com a vantagem passando ora para um lado, ora para outro, do modo usual de tais combates. Finalmente, César enviou seus cavaleiros germânicos e essa reserva, combinada com a signi- ficativa vantagem moral que os guerreiros germânicos tinham sobre seus pares gauleses provocou a fuga do inimigo. A cidade se rendeu mais uma vez, e as legiões continuaram sua marcha para atacar Avárico, uma das comunidades mais prósperas e importantes dos biturígios. César estava confiante que a capturadessa cidade, após suas recentes vitórias, seria suficiente para persuadir a tribo a capitular. Vercingetórix decidiu que era melhor, naquele momento, evitar o confronto direto com os romanos e, em lugar disso desgastar as legiões, promovendo um bloqueio nas suas linhas de abastecimento. Ele acampou a cerca de 25 quilômetros de Avárico e ordenou que sua cavalaria acossasse os grupos de forrageadores romanos. O comandante gaulês persuadiu os bi- turigios a retirar ou abater seus animais e destruir seus depósitos de alimentos para evitar que caíssem nas mãos dos inimigos. Assim, muitas das suas aldeias e plantações foram incendiadas. Perseverando, apesar dos revezes, César sitiou Avárico, or- denando a construção de uma grande rampa de cerco através do vale entre seu acampamento e a cidade, que era situada no alto de uma colina. Na medida em que o cerco continuava, o exército gaulês também começou a enfrentar a falta de provisões. A autorida- de de Vercingetórix sobre o exército não era, de modo algum, Capacete decorado com triskeis, importante símbolo celta W ik ic om m on s W ik ic om m on s 17 absoluta, e os outros chefes foram contra sua decisão de apro- ximar-se da cidade e tentar libertá-la. Vercingetórix conseguiu enviar dez mil guerreiros para reforçar a cidade sitiada, mas não foi capaz de libertá-la. Os gauleses perceberam agora que sua defesa não era pos- sível, porém, uma tentativa feita pelos guerreiros para romper o cerco foi frustrada. Na manhã seguinte, durante uma pesada tempestade, quando o inimigo menos esperava um ataque, César ordenou que seus legionários tomassem a cidade. As muralhas foram rapidamente conquistadas e romanos se con- centraram em tomar os pontos principais das defesas. Os gau- leses entraram em pânico. O saque da cidade foi brutal ao extremo, uma vez que os cansados legionários deram vazão à sua frustração depois do seu trabalho prolongado e difícil e produziram outra vingan- ça por Cenabum. Virtualmente todos os homens, mulheres e crianças foram massacrados. O exército permaneceu na cida- de por vários dias para se recuperar, e César teve o prazer de descobrir grandes depósitos de grãos dentro das muralhas. UM GRANDE GENERAL Apesar da perda de Avárico, que ele havia se mostrado con- trário a defender, a influência de Vercingetórix foi reforçada por esse episódio e ele foi capaz de persuadir mais tribos a participarem da aliança. No entanto, a rápida ação de César conseguiu sufocar rapidamente a insurreição. O exército gaulês principal estava acampado no cume de uma serra, próxima a Gergovia. César levou seu exército até Vercingetórix depõe suas armas diante de César, por Lionel Royer (1899) Um carnyx, trombeta de guerra gaulesa as proximidades da cidade, ergueu acampamento e esperou uma oportunidade. Durante os dias seguintes, houve frequentes escaramuças entre a cavalaria e as tropas ligeiras dos exércitos rivais. Então, depois de algum tempo, César resolveu realizar um grande ataque contra uma parte exposta da serra na qual o exército gaulês estava acampado. Por meio de um estratagema, César realizou um ataque-sur- presa. O ataque foi bem-sucedido e rápido. Surpreendidos, os gauleses, não ofereceram nenhuma resistência. Os legio- nários, desobedecendo ordens, atacaram, então, as muralhas de Gergovia. Num primeiro momento, parecia que o ataque impetuoso e mal organizado seria bem-sucedido devido ao W ik ic om m on s W ik ic om m on s 18 forte entusiasmo e ao pânico que se espalhou entre os poucos defensores da cidade. No entanto, os gauleses rapidamente começaram a se re- cuperar, e grandes números de guerreiros foram tentar deter a incursão, entrando em formação em densos blocos por trás das muralhas. Os gauleses massacraram muitos soldados ro- manos. César, então, retirou suas forças. A ÚLTIMA BATALHA Depois de suas vitórias, os gauleses rebeldes enviaram pe- quenos grupos de cavalaria para ameaçar as linhas romanas de suprimento que vinham da Gália Transalpina. César tinha perdido a iniciativa em Gergovia, e seu revés fora suficiente para encorajar a maioria das tribos gaulesas a juntar-se aos rebeldes. Para compensar, ele lançou uma contraofensiva. Enquanto isso, Vercingetórix foi capaz de aumentar o núme- ro de guerreiros do seu exército principal e encorajou outras tribos gaulesas a atacar os romanos onde quer que pudessem. Vercingetórix reuniu uma grande força de cavalaria para ata- car o exército romano em marcha. Mas, durante a batalha, a cavalaria romana derrotou seus oponentes, provocando a retirada do resto da cavalaria gau- lesa. Desencorajados pelo fracasso de um ataque executado pelo que eles achavam ser sua arma mais forte, Vercingetórix e o exército gaulês retiraram-se para a cidade de Alesia. César os perseguiu, acossando a retaguarda gaulesa, infli- gindo pesadas baixas. Na manhã seguinte, toda a força ro- mana dirigiu-se a Alesia, onde encontraram o exército gaulês acampado no terreno elevado fora da cidade. Com seu exército agora concentrado e bem provisionado, dessa vez César não hesitou em iniciar o bloqueio da cidade e do acampamento de Vercingetórix. Enquanto sua cavalaria pro- tegia os trabalhos e travava diversas escaramuças com os cava- leiros gauleses, os legionários começaram a construir uma linha de fortificações de cerca de dezessete quilômetros de compri- mento com 23 fortes ligados por uma vala e um baluarte. Antes de o circuito ser completado, o comandante gau- lês ordenou que sua cavalaria se dispersasse, instruindo cada contingente a retornar às suas tribos e arregimentassem tro- pas, formando um grande exército de reforço que retornaria e derrotaria o inimigo. O comandante romano soube da retirada da cavalaria ini- miga e da determinação de Vercingetórix de resistir ao cerco. César aumentou ainda mais a construção das fortificações, dobrando em escala. Embora Vercingetórix tenha tentado lan- çar ataques com o objetivo de atrapalhar as obras, não foi capaz de evitar que as mesmas fossem concluídas. Quando a fortificação terminou, o exército de César ficou protegido de ataques de qualquer direção. Entrementes, as tribos gaulesas estavam reunindo reforços. Quando essa força chegou Vercingetórix posicionou seus ho- mens para a batalha e ordenou que os guerreiros que estavam dentro da cidade saíssem e se unissem a eles. César dividiu suas tropas para defender-se de um ataque de qualquer direção e, então, enviou sua cavalaria para lutar com os cavaleiros gauleses. A cavalaria germânica, uma tro- pa auxiliar que combatia ao lado dos romanos, foi superior aos cavaleiros gauleses, desbaratando o inimigo. A infantaria ligeira gaulesa, abandonada pela cavalaria, foi quase que in- teiramente massacrada. No dia seguinte, os gauleses atacaram à meia noite. Os guerreiros celtas atacaram em massa, desviando-se dos obstá- culos e passando por sobre as valas, enquanto lançavam uma barragem de pedras, flechas e dardos era lançada contra o baluarte. Os romanos responderam com dardos e pedras. A luta foi feroz e confusa, pois a escuridão dificultava o controle, mas os ataques acabaram sendo, finalmente, repelidos. Na manhã seguinte, os gauleses concentraram-se principal- mente contra a seção mais vulnerável da linha de defesa. Mas Vercingetórix não estava em contato com o exército de refor- ço. No final, os gauleses foram repelidos mais uma vez. No dia seguinte, enviados gauleses foram até o acampamen- to romano e aceitaram a exigência de rendição incondicional estipulada por César. De acordo com Plutarco, Vercingetórix envergava sua melhor armadura e cavalgava seu mais belo cavalo de batalha. Depois de cavalgar ao redor do tribunal, ele desmontou, depositou suas armas no chão e sentou-se na grama esperando em silêncio, para ser levado dali. O número de cativos era enorme – cada soldado do exército recebeu um prisioneiro para vender como escravo - aumen- tando o já grande número de homens aprisionadospor César durante as campanhas na Gália. Plínio acreditava que mais de um milhão de pessoas foram vendidas como escravos, em consequência das conquistas. César tratou os arvernos como e os éduos com clemência, permitindo que os guerreiros capturados retornassem às suas terras, em vez de serem vendidos como escravos. A atitude de César muito contribuiu para conquistar uma dis- posição amistosa das tribos gaulesas. Quanto a Vercingetórix, do mesmo modo que muitos outros líderes que tinham enfren- tado Roma, ele não recebeu clemência. Foi mantido prisioneiro durante alguns anos. Então, acompanhou a procissão triunfal de César e, no final da celebração, foi ritualmente estrangulado. Camponesa celta em relevo romano (c. século 1 d.C.) W ik ic om m on s 19 Os helvécios, uma tribo celta originária do Sul da atual Alemanha, estabeleceu-se na região da Suíça por volta do século 1 a.C. Na medida em que sua população aumentava, os helvécios empreenderam novas migrações e acabaram entrando em choque com os ro- manos. Em 58 a.C., foram repelidos por Júlio César e volta- ram à Suíça. Décadas depois, a partir de 15 a.C. O Império Romano fundou colônias na região, estabelecendo a província da Helvécia. Em 260 a.C., tribos germânicas cruzaram as fron- teiras e expulsaram os romanos. Segundo os autores antigos, os helvécios se subdividiam em outras tribos, como os verbigenos, os tigurinos e os töygenoi. Como muitas outras tribos celtas, na época em que enfrentaram OS HELVÉCIOS Os helvécios eram a tribo celta que habitava a região da atual Suiça. Mais uma vez, Júlio César descreve este povo, nos permitindo conhecê-lo melhor Mapa da Gália, com o país dos helvécios ao Norte No mapa com os nomes originais, em latim, das tribos gaulesas em cerca de 15 d.C.; os helvécios estão na região denominada pelos romanos de Gália Belga W ik ic om m on s W ik ic om m on s 20 César, os helvécios não possuíam reis. Eram lide- rados por uma classe de nobres, a qual os roma- nos comparavam com a sua classe de cavaleiros, os équites, a mais baixa das duas classes aristo- cráticas romanas, abaixo da ordem senatorial. De fato, segundo César, os helvécios pare- ciam abominar a instituição real. O general ro- mano registrou a história de Orgetórix, um dos nobres helvécios mais proeminentes e ambicio- sos de seu tempo. Quando Orgetórix tornou-se rei das tribos helvécias, foi preso, condenado como traidor e executado. A MIGRAÇÃO DOS HELVÉCIOS No começo da primavera de 58 a.C., os hel- vécios começou a migrar, seguindo uma rota que os levaria através do rio Reno e da provín- cia romana da Gália Transalpina. A migração foi motivada pelo crescimento da população que precisava de terra fértil e extensa para cultivar. Muitas das tribos, especialmente do Sul e do centro da Gália, estavam evoluindo do sistema de liderança tribal para Estados organizados governados por magistrados eleitos. Contudo, alguns indivíduos da nobreza ainda detinham considerável poder, baseado nos guerreiros sob seu comando e apoiados por homens a eles li- gados por laços de sangue ou por dívidas. Um desses homens, Orgetorix, que havia habilmente casado suas parentes com nobres poderosos das tribos vizinhas para conquistar influência, originalmente inspirou os helvécios a migrarem em 61 a.C. No entanto, enquanto os helvécios preparavam-se para migrar, as am- bições de Orgetorix o puseram em conflito com os magistrados da tribo. Depois de uma tentativa fracassada de intimidá-los com uma mostra da força à sua disposição, ele foi julgado e executado. Mesmo assim, pelo menos um dos associados de Orgetorix, seu genro, um nobre da tribo dos éduos chamado Dumnorix, ajudou a liderar os helvécios durante sua migração. Como a determinação de não voltar, incendiaram suas próprias aldeias e fazendas antes de partir. César afirma que cerca de 368 mil pessoas migraram, sustentando que tal número era baseado em registros mantidos pelos helvécios e escritos com caracteres gregos, os quais seus legionários capturaram no final da sua cam- panha. Mas não há como comprovar essa estimativa. Os helvécios, como as outras tribos bárbaras em migração, não viajavam numa única coluna, mas em diversos grupos se- parados espalhados por uma grande área. É possível imaginar a extensão da horda em movimento por um relato de César. O general romano observa que os helvécios demoraram três semanas de travessias ininterruptas para cruzar um rio. César recebeu um relatório da migração enquanto ainda estava em Roma e partiu imediatamente à Gália Cisalpina. A velocidade com que viajou, tanto cavalgando como em carru- Os helvécios obrigam os romanos a passar sob o jugo, de Charles Gleyre (1858) agem leve, impressionou seus contemporâneos. Ele estava de- terminado a evitar qualquer incursão de bárbaros ao território romano, o que os cidadãos de Roma consideravam uma gran- de ameaça. Para atrasar os helvécios, enquanto reunia mais forças, César ordenou que a ponte sobre o Reno, próxima de Genebra, fosse destruída. Uma embaixada dos helvécios foi ao encontro de César para pedir permissão para passar através de parte da província romana durante sua jornada, prometendo não causar danos enquanto atravessavam o território. O general romano pediu tempo para considerar sua res- posta e ordenou aos seus soldados que construíssem uma linha de fortificações que se estendia por cerca de trinta qui- lômetros a partir do lago Genebra até as Montanhas Jura - uma cordilheira ao norte dos Alpes, na fronteira entre a França, Suíça e Alemanha. Quando os enviados dos helvécios retornaram, César in- formou não lhes daria permissão para passar pelo território romano e que resistiria a qualquer tentativa que eles fizessem de cruzar a província. W ik ic om m on s 21 Com a cooperação de Dumnorix, os helvécios tomaram uma rota alternativa através das terras dos sequanos, outra tribo gaulesa que vivia na cordilheira do Jura. César, por sua vez, re- tornou à Gália Cisalpina para buscar reforços e, então, voltou pela rota mais curta. Os helvécios continuavam a avançar, saqueando as terras das tribos aliadas de Roma. Assim que cruzou o Reno, César avançou contra os migrantes, alcançando as colunas mais à retaguarda, constituídas principalmente pelos tigurinos, às margens do Saône. À frente das três legiões, o general romano deixou o acam- pamento durante a noite e lançou um ataque repentino. A surpresa foi completa, e os helvécios foram massacrados ou dispersados com poucas perdas para os romanos. O exército romano cruzou, então, o rio Saône e seguiu o corpo principal dos helvécios. Enviados das tribos helvécias pe- diam agora que os romanos lhes concedessem terras, afirman- do que se estabeleceriam com prazer onde quer que tais terras lhes fossem dadas. No entanto, recusaram de imediato a exi- gência que César fez de receber reféns em troca da concessão. No dia seguinte, os helvécios retiraram-se, porém, sua cavalaria em número inferior à dos romanos, infligiu uma derrota vergonhosa nos cavaleiros auxiliares de Roma que os perseguiram sem tomar as devidas precauções. Houve ru- mores de que o ataque foi liderado por Dumnorix e seus ho- mens. Encorajados, alguns dos helvécios se detiveram para oferecer batalha. César declinou e pelas duas semanas se- Júlio César e Divico negociam, depois da Batalha do Saône guintes seguiu o inimigo, com sua vanguarda permanecendo a cerca de dez quilômetros atrás da tribo mais próxima. A certa altura, os batedores de César reportaram que os helvécios tinham acampado à noite numa planície dominada por terreno elevado a cerca de quinze quilômetros do acam- pamento romano. Uma patrulha foi enviada para examinar essas colinas e as trilhas que levavam a elas. Descobriu-se que eram fáceis de atravessar, e César decidiu lançar outro ataque surpresa sob a proteção da escuridão. César armou uma emboscada. Ordenou que seu legado, um general do exército romano, TitoLabieno, e duas legiões, guiados por homens que tinham tomado parte na patrulha anterior, ocu- passem uma área de terreno elevado. Labieno recebeu or- dens estritas para não entrar em batalha até que ele visse o resto do exército chegando para a operação. O próprio César comandou a força principal. Ao amanhecer, Labieno já tinha dominado o térreo eleva- do e César estava a mais de dois quilômetros de distância. Os helvécios, que, como muitos exércitos celtas, moviam- -se desordenadamente e tomavam poucas precauções para proteger-se de ataques surpresa, ainda não tinham percebido a presença das forças romanas. Mas a tentativa de surpreender o acampamento inimigo fra- cassou por um problema de comunicação entre César e seu le- gado Labieno, que atrasou o ataque e permitiu que os helvécios em marcha prosseguissem, escapando, sem saber, da cilada. Àquela altura, o exército romano estava ficando com W ik ic om m on s 22 pouquíssimos suprimentos e, como os éduos não tinham ainda entregue os grãos prometidos, César resolveu levar o exército até o local onde estavam os suprimentos, marchan- do para a sua principal cidade, Bibracte, a cerca de trinta quilômetros de onde estava. As notícias dessa mudança foram levadas aos helvécios por alguns cavaleiros auxiliares gauleses que desertaram o exército romano. Os celtas interpretaram a manobra como medo dos romanos e decidiram que agora era o melhor momento de livrar-se de seu perseguidor. Assim, os helvécios passaram a seguir os romanos, atacando repetidamente a retaguarda. César levou seus homens a uma colina e, enviando a cava- laria para atrasar o inimigo, colocou suas legiões em formação de batalha. César, montado em seu cavalo, colocou-se bem à vista de todos e fez um discurso encorajador – provavelmente, várias vezes, pois não teria sido possível dirigir-se à toda a linha simultaneamente. Conforme os romanos preparavam-se para batalha, os helvécios formaram uma densa linha de guerreiros aos pés da colina. Atrás dos guerreiros estavam seus familiares em carroças para observar a luta e testemunhar o comporta- mento de seus homens. Os helvécios estavam extremamente confiantes e avança- ram de pronto colina acima para atacar a linha romana que aguardava. Os legionários esperaram até que estivessem ao alcance de seus pesados dardos, chamados pila (singular pi- lum), e, então, os arremessaram. As pequenas pontas em for- ma de pirâmide das armas pesadas perfuravam os escudos, e as longas e finas hastes passavam através do orifício e atin- giam o guerreiro. Alguns helvécios foram mortos ou gravemente feridos, e muitos outros tiveram seus escudos cravados com o pesado pilum, que não podia ser retirado com facilidade, fazendo com que os largassem e lutassem sem proteção. A combinação do avanço morro acima e o devastador lançamento de dardos dos romanos tinha quebrado a for- mação dos helvécios e tirado muito do ímpeto do seu avanço. Quando os romanos sacaram suas espadas e atacaram morro abaixo em formação ordenada, tinham uma vantagem marcante. Mesmo assim, demorou algum tempo até que os helvécios começassem a desistir. Eles recuaram cerca de oitocentos metros, e as legiões avançaram para retomar a batalha. Contudo, os romanos encontraram, de repen- te, uma nova ameaça. Os boios e os tulingos, dois subgrupos gauleses que acompanhavam os migrantes, tinham formado a retaguarda e, em função disso, chegaram mais tarde na batalha. Agora, eles ameaçavam o flanco ex- posto dos romanos. Segundo César, a luta continuou por cer- ca de cinco horas, os romanos gradualmente forçando os helvécios cada vez mais morro abaixo. Os boios e os tulingos conseguiram chegar às carroças de carga, onde as usaram para formar uma barricada. Alguns guerreiros lançaram dardos do alto desse baluarte im- Soldado romano retratado na Coluna de Trajano provisado, enquanto outros arremessavam objetos entre as rodas, mas no final os legionários forçaram essa defesa e a romperam. As baixas romanas foram bastante pesadas. Os romanos passaram os três dias seguintes cuidando dos feridos e enter- rando os mortos. As baixas gaulesas foram, como é comum para um exército derrotado, consideravelmente maiores e diversos prisioneiros distintos caíram nas mãos dos romanos, inclusive uma das filhas de Orgetorix. Os helvécios retiraram-se até o território dos lingones, mas César havia enviado mensageiros até estes instruindo-os a não prestar qualquer auxílio ou dar alimentos aos fugitivos, do con- trário teriam de enfrentar um ataque romano. Ameaçados pela fome, os helvécios mandaram enviados para pedir a paz e dessa vez submeteram à exigência de deixar reféns com os romanos. O poder dos líderes nas sociedades tribais raramente era absoluto, e, pode ter sido essa independência de espírito que estimulou um grupo de cerca de seis mil pessoas a fugir durante a noite. César enviou mensageiros informando as tribos por cujas terras os fugitivos passassem para prendê- -los. César afirma que todos foram detidos e enviados a eles e vendidos como escravos. O remanescente dos helvécios recebeu instruções de retor- nar às suas terras de origem. Os alóbroges, um povo celta vi- zinho que vivia dentro da província romana, receberam ordens de dar aos helvécios uma quantidade considerável de grãos para sustentá-los enquanto reconstruíam suas comunidades e semeavam plantações para o ano seguinte. César afirma que apenas 110 mil helvécios retornaram aos seus lares, porém, devido ao desejo dos romanos de mensurar o sucesso militar com números espetacularmente grandes e aparentemente precisos dos mortos e capturados, o historiador militar britânico Adrian Goldsworthy observa que “devemos tratar com extremo ceticismo a implicação de que cerca de 258 mil pessoas pereceram ou foram escra- vizadas na campanha”. W ik ic om m on s 23 O POLITEÍSMO O politeísmo celta, como o próprio termo sugere, é o conjunto de crenças, práticas e representações religiosas dos antigos povos celtas, localizados por várias das regiões da Europa Ocidental, que viriam a se tornar a Irlanda, País de Gales, Escócia, Grã-Bretanha, como também por regiões da Alemanha, Bélgica, Holanda, Dinamarca, França e Espanha. Apesar das origens dos povos celtas serem controversas, devido à es- cassa quantidade de documentos originais, é fundamentada, contudo, a afirmação de que os povos celtas são ainda mais antigos do que os pró- prios gregos e romanos antigos, datando desde, aproximadamente, 4000 anos a.C., sendo o primeiro povo civilizado da Europa desde 1800 a.C. O politeísmo celta era animista (do latim animus, “alma”), ou seja, acreditava que animais, plantas, rochas e fenômenos climáticos possuí- am uma essência espiritual. Os ritos eram quase sempre realizados ao ar livre, pois viam a natureza como a manifestação mais sublime da Deusa- Mãe, divindade mais profunda de todas. Esta filosofia animista visava o equilíbrio. Para alcançá-lo, a vida humana deveria conectar-se à fonte espiritual, através do contato com a Natureza. Como a essência-prima era feminina, enxergavam na mulher um ser com maior domínio sobre as forças da natureza, embora a cultura celta não fosse matriarcal. Os povos celtas eram muito variados entre si, conforme localização e etnia, e também as práticas religiosas diferiam para cada um destes “subpovos”, apesar de existirem características em comum a todos estes. Os celtas perderam seu poder após a invasão dos romanos, durando cerca de dois séculos, do séc. 1 a.C. ao 1 d.C. Após tal período sangrento de resistência e conflitos, já no início da Idade Média, a cultura e arte celtas ressurgiam, porém agora em ambiente católico e cristão. A RELIGIÃO CELTA O mundo celta era povoado de criaturas sobrenaturais, como as fadas que habitam os bosques e os leprecaus que guardam seu pote de ouro no fim do arco-íris. Um universo mágico, no qual os deuses interagem com os homens por meio dos elementos e dos seresque os cercam. Os celtas acreditavam na imortalidade da alma e na transmigração do espírito de um corpo para outro e observavam os desígnios dos homens no caminhar dos astros através do céu Três deusas celtas em relevo na fonte Coventina W ik ic om m on s 24 O CRISTIANISMO CELTA Ao mesmo tempo em que o cristianismo se espalhava pelo Império romano, populações de áreas não conquistadas da Escócia, Irlanda e País de Gales passaram a adotar espontanea- mente o cristianismo. Era, porém, uma versão própria da religião de Jesus, independente da Igreja de Roma, uma forma conheci- da como cristianismo celta. A conversão dos habitantes celtas ao cristianismo, a fundação de mosteiros e de escolas monásticas e o uso da escrita trouxeram grande expansão cultural às Ilhas Britânicas. Durante os séculos 6 e 7 d.C., essas escolas estavam entre as mais importantes do mundo ocidental. Estudantes de toda a Europa iam para a Irlanda em busca de conhecimento, pois o continente, pilhado e saqueado pelos bárbaros depois da queda de Roma – em 476 –, iniciava sua Idade das Trevas. Nos mosteiros irlandeses independentes da Igreja romana, produzia- São Patrício em vitral da igreja de Nossa Senhora Stela Maris, em Cork, Irlanda -se arte e conhecimento. Os manuscritos ornamentados com iluminuras são a principal síntese da onda cultural desse tempo, a Renascença Celta. A maior figura do esforço missionário do cristianismo celta foi São Patrício, o Apóstolo da Irlanda SÃO PATRÍCIO São Patrício, o Apóstolo da Irlanda, escreveu na sua auto- biografia, Confissão, ter nascido em 377, num lugar chamado Bonaven Taberniae – uma aldeia não identificada pelos historia- dores, talvez na França ou Escócia. Membro de uma família de clérigos (naquela época os padres podiam casar), admitiu que não se sentia inclinado à vida religiosa. Isso mudou quando, ainda adolescente, foi raptado por piratas e vendido como es- cravo. Então, a solidão e o desamparo do cativeiro o fizeram se voltar a Deus. Seu senhor, Milchu, era um grande druida, e, nos seis anos que passou escravizado, Patrício se familiarizou com a língua e o misticismo celta. A Igreja Irlandesa que fundou tem, segundo diversos autores, muitas reminiscências do druidismo. Patrício fugiu do cativeiro, reencontrou a família, mas foi cap- turado e vendido como escravo por mais duas vezes. Depois do último cativeiro, ele foi viver na abadia de São Martinho de Tours, onde passou quatro anos. Foi aí, por inspiração divina, se- gundo contou na sua Confissão, que ele decidiu ir catequizar a Irlanda. O abade do mosteiro recomendou-o, e Patrício embar- cou para a ilha para substituir seu antecessor, o bispo Paládio, assassinado pelos “hereges”. O futuro santo, apesar da opo- sição dos druidas, acabou tendo sucesso. Seus conhecimentos de druidismo o ajudaram. Segundo alguns estudiosos, Patrício simplesmente revestiu os preceitos místicos dos celtas com sím- bolos cristãos. Prova disso é que seus mais fiéis discípulos eram bardos – os antigos poetas e músicos celtas. Uma precondição para se tornar druida era ser um bardo – os guardiões da tradi- ção e conhecimentos celtas. De fato, muitos mosteiros funda- dos por Patrício acabaram se tornando centros de poesia celta. Patrício não morreu mártir, mas em paz, no dia 17 de março de 461, depois de 30 anos de apostolado na Ilha dos Santos – como a Irlanda veio a ser chamada depois dele. Solidificada, a obra de Patrício continuou por si só. A fundação de mosteiros e de escolas monásticas e o uso da escrita trouxeram grande expansão cultural ao país. Durante os séculos 6 e 7, essas es- colas estavam entre as mais importantes do mundo ocidental. Por influência de Patrício, enquanto todo o resto da Europa vi- via a Idade das Trevas, a Irlanda passava pela sua Era de Ouro. A ERA DE OURO DA IRLANDA No século 6 d.C., a Irlanda viveu sua Era do Ouro. Estudantes de toda a Europa iam para a Irlanda em busca de conhecimento, evitando ou fugindo dos bárbaros que saqueavam os despojos de Roma e de suas colônias na Europa Central e Ocidental. Nos mosteiros irlandeses, que eram independentes da Igreja Romana, produzia-se arte e conhecimento. Os manuscri- tos ornamentados com iluminuras são a principal síntese da cultura desse tempo. W ik ic om m on s 25 TEMPLOS Embora seja comum a ideia de que os povos celtas não construíam templos e que suas práticas religiosas ocorriam apenas em altares e bosques, arqueólogos encontraram vá- rias estruturas de templos em regiões da Irlanda, País de Gales e outras regiões, outrora povoadas pelo povo celta. Após a invasão romana, templos celto-romanos surgiam com caracte- rísticas mescladas de ambas as culturas. A vida ritualística celta era centrada quase sempre em luga- res da natureza. A paisagem tinha uma influência muito gran- de na mística desse povo. Havia templos, mas não eram tão comuns quanto as catedrais naturais, isto é, bosques, nascen- tes e poços, onde realizavam seus cultos. As fontes e florestas eram os locais mais cultuados. O poder contido na natureza se relaciona, também, a um dos aspectos mais proeminentes da religião dos celtas: o culto às árvores. Vistas como deusas – as árvores sagradas eram guardadas por fadas – cada tipo de ár- vore tinha determinado atributo e poder. Eram habitadas por um espírito da natureza que, como tal, passava de um ser a outro, ou de um elemento da paisagem – rocha, fonte, cascata – a outro. Venerar a árvore equivalia a honrar a divindade que a habitava e cultuar o poder que ela incorporava. Os nomes de reis e heróis irlandeses, muitos ainda em uso, dão teste- munho ao caráter divino que as árvores evocavam: MacCuill, um rei lendário, quer dizer “Filho da Aveleira”, outro herói, McCulinn, é o “Filho do Azevinho.” O culto às árvores fez surgir construções que as incluíssem como elementos arquitetônicos Na Inglaterra, o folclore de certas regiões preserva relatos de palácios ou templos cons- truídos em torno de árvores sagradas. Também costumavam plantar o que o escritor Nigel Pennik chamou de “aldeia-ár- vore” . Na região oeste da Inglaterra, a que mais preserva a influência celta, plantavam-se carvalhos e olmeiros, amar- Monumento funerário celta na Alemanha rando seus galhos de forma que fossem se entrecruzando na medida em que cresciam. Nos dias de festa, os aldeões içavam plataformas de madeira e as colocavam sobre os galhos. E era sobre esses tablados em meio às árvores que a festa, a música e as danças aconteciam. CULTO ÀS ÁRVORES Normalmente, a forma mais comum de se venerar uma ár- vore sagrada em particular era nela amarrar faixas, fitas ou panos. Quase sempre isso era feito por aqueles que buscavam a cura para algum mal. A oferenda tinha de ser amarrada à ár- vore com lã crua, pois os celtas acreditavam que esse material era capaz de absorver substâncias maléficas. Algumas vezes, porém, as fitas ou panos eram pregados na árvore. Há no folclore irlandês um exemplo famoso dessas árvo- res votivas. O Carvalho de Maelrubha era coberto de pregos, nos quais se fixavam faixas. Mas também havia moedas, me- dalhões, fivelas e ferraduras pregados nessa árvore lendária. Também entre os gauleses havia o célebre carvalho Lapalud. Todos os homens cuja ocupação empregava o martelo, isto é, ferreiros, carpinteiros ou pedreiros, cravavam um prego em Lapalud quando passavam por ele pela primeira vez. De acor- do com Nigel Pennik, um correspondente de Lapalud, chamado “Stock-im-Eisen, é preservado até hoje, ainda cheio de pregos, numa redoma de vidro no pátio de um edifício de Viena”. O espírito que habita a árvore não é, necessariamente, o Espírito da Vegetação. Um dos locais que os celtas conside- ravam mais sagrados e onde normalmente buscavam a cura de alguma doença, eram os poços, olhos-d’água e nascentes. Essas fontes naturais eram manifestação de alguma divindade. A água estava, assim, imbuída do poder daquele espírito. No entanto, quando um poço sagrado eraprofanado, ele secava. A divindade migrava, então, para uma árvore nas proximida- W ik ic om m on s 26 des e passava a habitá-la. Dessa forma, as árvores absorviam o poder das fontes e se tornavam “árvores-poço”. Entre todas as árvores, o carvalho era a mais sagrada. De acor- do com James Frazer, autor do monumental O Ramo Dourado, o carvalho “não era apenas a árvore sagrada, mas o principal objeto de culto dos celtas”. Durante as festividades e cerimônias cujo objeto era a fazer o sol brilhar e os frutos da terra crescerem, os celtas acendiam e alimentavam os fogos cerimoniais com ma- deira de carvalho. Ainda é comum hoje em dia, fazer fogueiras de carvalho durante os festivais de verão, como os Fogos de Beltane que continua a acontecer todo dia 1 de maio, na Escócia. Cruz céltica Associado ao culto do carvalho, estava a importância do vis- co. Trata-se, na verdade, de um parasita do carvalho. O visco que cresce nos carvalhos era visto como o espírito da árvore. Se alguma coisa acontece com a alma, o corpo é afetado. A lenda de Balder – um símbolo do carvalho –, que, apesar de ser nórdica, é congruente com a visão celta, ecoa essa crença. Nada podia afetar o supostamente invulnerável Balder, a não ser o visco. O significado disso é que “a matéria é afetada pelo espírito”. De fato, Balder é abatido por um ramo de visco. A ideia do visco como a alma que sustenta o carvalho vem de uma percepção singela. Enquanto o carvalho perde as folhas durante o outono e o inverno, o visco sobre ele permanece sem- pre verde. “No inverno, a visão das suas folhas verdes entre os galhos nus deve ter sido cultuado pelos fiéis como um sinal de que a vida divina, a qual tinha parado de animar os galhos, ainda sobrevivia no visco, como o coração daquele que dorme que con- tinua a bater enquanto o corpo permanece imóvel”. O visco está intrinsecamente associado aos druidas, os quais se embrenhavam nos bosques com suas foices de ouro em busca dessa planta. Era, portanto, justamente o visco que conferia ao carvalho seu lugar de destaque no culto às árvores. Ao observá-lo crescendo sobre o carvalho, os celtas – e outros povos europeus – concluíam que a árvore “não só era imortal, mas invulnerável.” BOSQUES SAGRADOS Os bosques, ainda mais do que os lagos e rios, eram lugares de presença divina. Lucain conta como César arrasou, perto de Marselha, um bosque sagrado, onde troncos de árvo- res eram esculpidos para representar deuses. Empenhado em fornecer a seus compatriotas um álibi civilizador, acrescenta que ali se prati- cavam ritos bárbaros e que as árvores estavam salpicadas de sangue humano. Por toda parte onde os romanos descobriam um bosque onde os celtas se reuniam para celebrar seu culto, eles o destruíam. O que restou não foi poupado pela Igreja cristã, embora às vezes de maneira mais diplomática. Certo magnífico carvalho da floresta bávara, objeto de fervor popular, que os marcomanos haviam herdado dos helvécios, torna-se docemente o “Carvalho de Maria” e está hoje coberto de piedosos ex-votos. O bosque estava tão intimamente ligado à cultura dos celtas que não lhes era possível dissociá-Io de seu afã de repelir o estrangeiro. Os romanos o tinham compreendido imediatamente: abater os santuários florestais dos celtas era tão impor- tante como desbaratar suas tropas no campo de batalha. Em sua desesperada luta contra os Saxões, no século 6, os bretões do norte apela- ram para o Criador. “Tornaí a forma de árvores”, respondeu-Ihes ele, “e ficai em linha de batalha, para assim frustrar os inimigos no terrível corpo- -a-corpo.” Então eles foram transformados em árvores e, à espera de se tornarem de novo eles mesmos, ergueram a voz em ondas de harmo- nia, em pleno combate. Os amieiros à testa da tropa formavam a vanguarda, os salgueiros e sorveiras se dispunham em ordem a seguir. “ ... O espinheiro armado com seus espinhos feria as mãos, a faia cortava as cabeças e foi ela própria podada na confusão ... O rápido carvalho, em sua marcha, fazia tremer a terra ... “ Foi o com- bate de Godeu, que teve seu igual na Irlanda. Oliver Launay, A Civilização dos Celtas W ik ic om m on s 27 Além da imortalidade e invulnerabilidade, o carvalho também estava vinculado à ideia de justiça. No templo do deus Essus, o deus gaulês que elaborava e mantinha as leis, crescia um car- valho através de uma abertura no teto do templo, no qual os criminosos que incorreram em faltas repetidamente eram exe- cutados. O culpado era pendurado num dos ramos do carvalho e seu ventre era cortado de forma a expor o estômago. A falsa ideia de que os celtas não construíam templos prova- velmente se deve ao fato de que a maioria dos ritos religiosos acontecia em altares fundados em bosques e florestas. As árvores eram contempladas e consideradas sagradas. O azevinho, por ser de coloração vermelha, era comparado ao sangue menstrual, assim como o as brancas frutas do visco simbolizavam o sêmen. A importância das árvores na religião celta é nítida. São vários os desenhos de árvores, entrelaçados pelos nós celtas, assim como também são várias as reverências a tais plantas. Triskell, um importante grafismo celta RITOS O rito, nas religiões antigas, não proporcio- nava uma expansão da alma. Era o desenrolar de uma técnica comprovada, criada para obter o fe- nômeno desejado. O sacerdote pagão não pedia fé no dogma, mas respeito ao rito. A prece, que, no nível superior, é a busca de uma união mística e, no nível inferior, o apelo à misericórdia divina, era desconhecida. A união com o cosmos era percebida sem esforço em todos os atos da vida, e a submissão às forças naturais sem discussão nem recurso. Os modestos monumentos mate- riais do culto druídico nos são conhecidos. São pequenos templos de madeira, uma peça simples contendo uma efígie divina, cercada por um peristilo, o fanum, amiúde estabelecidos sobre uma elevação e circundados por uma paliçada ou um fosso. Eram mais abrigos do que igrejas. As cerimônias do culto se efetuavam nas clareiras de bosques consagrados, que tomavam o nome de nemeton, santuários. Uma floresta dos arredores de Ouimper ainda tem esse nome: Névet. O ato cultual por excelência era o sacrifício. Outras cerimônias tinham um colorido mágico que as apartava um pouco da religião propria- mente dita. O deus Borvo se associava às águas termais, como testifica Bourbonne-Ies-Bains. Sua cabeça, achada na Inglaterra, contém uma cavidade no topo, provavelmente destinada a libações simbólicas. A palavra “cantaan”, que se acha nas estelas funerárias, pode ser o nome de uma cerimônia funerária, pois, na Irlanda, todas as fórmulas encantatórias eram cantadas. Em bretão, kentel tomou o sentido de lição, pois na origem as lições eram cantadas. Aqui, a linguística lança suas luzes sobre a arqueologia. Oliver Launay, A Civilização dos Celtas Enxergavam nelas, além da essência da vida, formas para prever o futuro, levando em conta a inteligência suprema da natureza, observando como a queda das folhas gerava, para- doxalmente, os melhores brotos. As árvores proporcionavam o lar, sombra, lenha e o sustento de aves que poderiam vir a ser alimento a tribo. OS RITOS CELTAS Os rituais celtas consistiam em três leis principais: Cultuar os deuses; Não praticar o mal; Ser forte e corajoso. Prendedor de capa gaulês W ik ic om m on s W ik ic om m on s 28 A tese de que aconteciam sacrifícios durante os ritos celtas é duvidosa – ao menos em larga escala – visto que esta se ba- seia em escritos romanos. Muitos historiadores atuais, contudo, creem que os sacrifícios eram extremamente raros. Afinal, a ar- queologia tem informações extremamente escassas quanto aos sacrifícios, insuficientes para afirmar tal suposição com certeza. A cultura celta não é considerada uma cultura histórica por não ter uma história escrita. Sua escrita era rudimentar, basea- da em traços horizontais e verticais. Suas histórias eram transmitidas
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