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Sintaxe I – Fundamentos Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Profa. Dra. Geovana Gentili Santos Revisão Textual: Profa. Ms. Sílvia Albert Gramática: História, Definições e Tipologia 5 • Introdução • Gramática e o seu surgimento • Os Gramáticos Alexandrinos • Os Gramáticos “Quinhentistas” e a Língua Portuguesa • Tipos de Gramática · O objetivo desta unidade é iniciar os estudos de análise sintática da língua portuguesa. Para tanto, primeiramente, alguns termos básicos nesta área de estudo serão retomados e, na sequência, se estudará os elementos essenciais de uma oração; mais especificamente, os tipos de sujeitos. Caros(as) alunos(as), Seu roteiro de estudo deve começar pela leitura do texto teórico que contém, inicialmente, uma contextualização temática. Nele, você encontrará informações importantes sobre pesquisas a respeito do desenvolvimento da língua portuguesa, da gramática e do surgimento da sintaxe. Este material é capaz de instrumentalizá-lo para participação em todas as atividades propostas. Consulte, ainda, as indicações sugeridas em Material Complementar e Referências Bibliográficas para aprofundar e ampliar seus conhecimentos. Lembramos a você da importância de realizar todas as leituras e as atividades propostas dentro do prazo estabelecido no cronograma da disciplina. Para isso, organize uma rotina de trabalho e evite acumular conteúdos e realizar atividades no último minuto. Em caso de dúvidas, utilize a ferramenta “Mensagens” ou “Fórum de dúvidas” para entrar em contato com o tutor. É muito importante que você exerça a sua autonomia de estudante e que seja proativo para construir novos conhecimentos. Bom trabalho! Gramática: História, Definições e Tipologia 6 Unidade: Gramática: História, Definições e Tipologia Contextualização “Todas as palavras exigem o conhecimento do outro, da capacidade alheia de ouvir e entender, ler e decifrar um código comum, e nenhuma sociedade existe sem uma linguagem compartilhada por todos” (Alberto Manguel). Para comunicar-se – processo que envolve ouvir, entender, ler e decifrar –, o falante de qualquer língua realiza combinações de unidades: unem morfemas para formar vocábulos; vocábulos para formar frases e frases para formar sentenças discursivas. Nesse processo, o falante sabe que essas combinações obedecem a certas restrições intrínsecas da língua e que ele não pode ordenar os elementos de qualquer maneira. Analise os exemplos abaixo: • O gato bebeu o leite. • O leite o gato bebeu. • Bebeu o gato o leite. • Gato o bebeu leite o. No primeiro exemplo (a), a combinação dos elementos segue a ordem mais comum da língua portuguesa: sujeito-verbo-objeto. A inversão presente no exemplo (b), ainda que não seja tão comum, é possível e dá ênfase ao termo “o leite”. Já a combinação dada aos elementos no item (c) é menos comum e pode ser encontrada em discursos de alta formalidade, em especial, na língua escrita. Por fim, no exemplo (d), a estrutura dada à sentença não é possível e praticável na língua portuguesa. Tais exemplos comprovam a tese de que: [...] os falantes não combinam unidades de qualquer modo. Eles seguem tendências de colocação que parecem estar associadas ao conhecimento geral que possuem da própria língua, que lhes permite formular e compreender frases em contextos específicos de comunicação (MARTELOTTA, 2013, p. 44). Partindo desta premissa, é que se dá o interesse em entender a natureza desse conhecimento geral das restrições e combinações intrínsecas de uma língua. Para estudar e compreender esse processo, nesta unidade, vamos retomar um pouco da história, das definições e das tipologias presentes nos estudos sobre língua. 7 Introdução “Desde a Antiguidade Clássica, os estudiosos da linguagem vêm sugerindo interpretações que reflitam a natureza do funcionamento das línguas, bem como propostas de sistematização descritiva apoiadas nessas interpretações. Com a evolução dos estudos linguísticos, essas interpretações foram sendo aperfeiçoadas, abandonadas e até mesmo retomadas em função de novas descobertas científicas. O conjunto dessas interpretações e descrições acerca do funcionamento da língua recebe o nome de gramática”. (MARTELOTTA, 2013, p. 44). Para entendermos esse processo de desenvolvimento dos estudos relacionados às interpretações sobre o funcionamento das línguas – e aqui cabe lembrar que partiremos do geral para, pouco a pouco, nos aproximarmos do caso específico da língua portuguesa – recuaremos na linha do tempo para o período da cultura grega. Gramática e o seu Surgimento A gramática surgiu no mundo ocidental por volta do século V a.C., na Grécia, como ramo da filosofia ou, mais especificamente, como um apêndice da lógica. Os filósofos gregos estavam interessados em entender a relação entre a linguagem, o pensamento e a realidade. De acordo com Lobato (1986), o estudo sobre a linguagem e seu funcionamento na Grécia Antiga pode ser dividido em três períodos: a) dos filósofos pré-socráticos, dos primeiros retóricos e de Sócrates, Platão e Aristóteles; b) dos estoicos; c) dos alexandrinos. Sócrates Platão Aristóteles Thinkstock/Getty Images 8 Unidade: Gramática: História, Definições e Tipologia No primeiro período, a língua não era uma preocupação independente, encontrando-se de forma esparsa na obra de cada pensador. A informação que se tem dos filósofos pré- socráticos, dos primeiros retóricos e de Sócrates, é indireta. Platão, tampouco escreveu um compêndio gramatical ou elaborou uma discussão específica e direta sobre a língua. As suas reflexões a respeito do tema estão diluídas em algumas de suas obras. Em Crátilo – um dos mais importantes diálogos escritos pelo filósofo – encontra-se um texto no qual o filósofo teceu considerações relacionadas à língua, discutindo se haveria uma relação natural entre o significado das palavras e a motivação ou arbitrariedade do signo linguístico. Glossário Crátilo é o nome de um diálogo platônico. Nele se coloca em questão o nome, sua origem, seu estatuto, discutindo também se é naturalista ou convencionalista. O filósofo pensava que fosse impossível dar um nome às coisas, pois, estando estas em constante devir, não seriam mais aquelas. Deve-se a Platão a distinção clara entre “substantivos e verbos”. Segundo o filósofo, os substantivos funcionavam como sujeitos de um predicado e, os verbos, como termos que expressavam a ação ou afirmavam a qualidade. Tais definições estão embasadas em fundamentos lógicos: sujeito é aquele de que se afirma; atributo é o que afirma; a ligação é o verbo. Dentre os filósofos gregos, Aristóteles foi o primeiro a realizar uma análise mais apurada da estrutura linguística, ainda que suas ideias não estejam reunidas em um único volume e, sim, diluídas nas suas obras. Diferentemente de Platão que propunha “a forma do nome (onomatos eidos) que pertence à própria coisa”, Aristóteles defendeu o caráter convencional da linguagem e da relação arbitrária entre palavra e significado. A denominação das categorias gramaticais ou classes de palavras como hoje conhecemos – substantivo, verbo, conjunção etc. – são provenientes das “categorias do pensamento” ou “categorias aristotélicas” para classificar um objeto no mundo. Leia o fragmento extraído da obra Categorias, de Aristóteles: As palavras sem combinação umas com as outras significam por si mesmas uma das seguintes coisas: o que (substância), o quanto (quantidade), o como (qualidade), com o que se relaciona (relação), onde está (lugar), quando (tempo), como está (estado), em que circunstância (hábito), atividade (ação) e passividade (paixão). Dizendo de modo elementar, são exemplos de substância, homem, cavalo; de quantidade, de dois côvados de largura, ou de três côvados de largura; de qualidade, branco, gramatical; de relação, dobro, metade, maior; de lugar, no Liceu, no Mercado; de tempo, ontem, o ano passado; de estado, deitado, sentado; de hábito, calçado,armado; de ação, corta, queima; de paixão, é cortado, é queimado” (Cat., IV, 1 b). 9 Saiba Mais 1b 25. Of things said without any combination, each signifies either substance or quantity or qualification or a relative or where or when or being-in-a-position or having or doing or beingaffected. To give a rough idea, examples of substance are man, horse; of quantity: four-foot, fivefoot; of qualification: white, grammatical; of a relative: double, half, larger; of where: in the Lyceum, in the market-place; of when: yesterday, last-year; of being-in-a-position: is-lying, issitting; of having: has- shoes-on, has-armour-on; of doing: cutting, burning; of being-affected: being-cut, being-burned. (Disponível em: http://faculty.washington.edu/smcohen/520/Cats1-5.pdf. Acesso: 21/04/2015). Foi apenas no terceiro período – o da Escola Estoica – que a língua passou a ser discutida em obras independentes. Entretanto, tal como os pensadores dos períodos anteriores, os estoicos também conceberam o estudo da linguagem no âmbito da filosofia e não da língua em si mesma. Como filósofos, entendiam e percebiam a língua como a expressão do pensamento e dos sentimentos; e, sob este olhar, é que a língua deveria ser investigada. (Cf. LOBATO, 1986). A compreensão da linguagem, para os estoicos, relacionava-se à concepção do homem como uma espécie de página em branco que, por sua vez, a partir do nascimento, seria preenchida com as experiências sensoriais e intelectuais. Sob essa perspectiva, a língua converteu-se na expressão do pensamento do homem e a voz no veículo dessa expressão. Daí o interesse dos estoicos por questões relacionadas à pronúncia, à etimologia e aos estudos gramaticais, sendo estes, referentes às classes de palavras e aos paradigmas flexionais. Uma das grandes contribuições que a Escola Estoica oferece ao estudo da língua é a percepção da relação dicotômica entre forma e significado, semelhante à distinção entre significado e significante que o linguista Ferdinand Saussure apresenta tempos depois. Para os estoicos, o significado é construído por meio do conhecimento global que se tem da língua; já para Saussure, o significado é uma representação mental. Seguindo cronologicamente a história dos estudos sobre a língua, o período seguinte, será o “alexandrino”. Os estudiosos alexandrinos recebem esse nome por terem desenvolvido seus estudos na colônia grega de Alexandria, onde, no séc. III a.C., nasceu um grande centro de estudos literários e linguísticos. Foram eles que passaram a considerar o estudo linguístico como parte do estudo literário. A escolha pelo estudo literário deveu-se a dois fatores: o primeiro deles era tornar acessível aos contemporâneos a obra de Homero; segundo porque existia uma preocupação com o uso correto da língua, a fim de preservar o grego clássico de possíveis alterações de uso. Os alexandrinos tinham como objetivo educar os povos conquistados na língua e na cultura grega. Assumiram uma postura purista da língua, ao privilegiarem a escrita dos grandes escritores em detrimento dos demais usos da língua. Dividiam-se em duas posturas linguísticas baseadas nas regularidades e irregularidades da língua: os analogistas e os anomalistas. • os primeiros privilegiaram as regularidades linguísticas, adotando uma atitude normativa (preocupação em como a língua dever ser); • já os anomalistas reconheciam a existência de irregularidades e enfatizavam o uso efetivo da língua (preocupação em como a língua é). 10 Unidade: Gramática: História, Definições e Tipologia Os estudos realizados pelos alexandrinos marcaram profundamente o período helenístico. É deles a identificação de oito classes de palavras – nome, verbo, particípio, artigo, pronome, preposição, advérbio e conjunção – bem como o reconhecimento de categorias gramaticais relacionadas às classes – caso, tempo, número, gênero, etc. Helenístico: “O período helenístico foi um marco entre o domínio da cultura grega e o advento da civilização romana. Os sopros inspiradores da Grécia se disseminaram, nesta época, por toda uma região exterior conquistada por Alexandre Magno, rei da Macedônia. Com suas investidas bélicas ele incorporou ao universo grego, o Egito, a Pérsia e parte do território oriental, incluindo a Índia”. Para saber mais: http://www.infoescola.com/historia/helenismo/ As classes de palavras foram criadas paulatinamente como resultado de contribuições de vários estudiosos em diferentes épocas. Para a conceituação das classes de palavras, os gregos utilizavam uma mistura de critérios: semânticos, sintáticos e morfológicos, o que ainda caracteriza nossas gramáticas. (Lobato, 1986). Como vimos, os gregos empreenderam estudos nas áreas da Etimologia (origem das palavras), da Fonética (pronúncia) e da Gramática (morfologia). Foram, no entanto, os estudos morfológicos que mais se notabilizaram. Importante! A gramática normativa foi elaborada a partir de critérios filosóficos. Desde a sua origem, na Antiguidade Clássica (séc. II ou III a.C.) até nossos dias, apesar dos diferentes paradigmas socioculturais, ela mantém essa característica. 11 Os Gramáticos Alexandrinos É dos gramáticos alexandrinos que vem uma sistematização da linguagem de caráter mais gramatical, tal como explica, Maria Helena de Moura Neves (2001, p.50-1): Os gramáticos alexandrinos representam a consolidação da passagem para um terreno gramatical, específico e determinado, das considerações sobre a linguagem, que se vinham fazendo, através dos tempos, no terreno da filosofia. O simples reconhecimento da existência da analogia linguística constitui, ainda, procedimento filosófico, mas a busca da analogia de formas representa a passagem para o terreno da fenomelogia. E foi assim que os gramáticos alexandrinos, buscando, nas formas sonoras, analogias que permitissem o estabelecimento de paradigmas, codificaram a gramática grega e lançaram o que seria o modelo da gramática ocidental tradicional. Condicionada por sua finalidade prática, a gramática elege por exame, especialmente, a fonética e a morfologia, fixando-se nos fatos de manifestação depreensível, passíveis de organização em quadros concretos. Se considerada nesse estágio, a sintaxe teria fatalmente compromisso com a lógica, constituindo uma deriva das considerações filosóficas. Ela é, portanto, praticamente ignorada, não tendo lugar nessa nova disciplina, que pelas condições de surgimento, só tem sentido se empírica. O estudo dos elementos sonoros é o que mais próximo fica do tratamento, já dado pela filosofia, uma vez que os dados fonéticos, de qualquer modo, têm de representar um estudo concreto. Mas a motivação do exame é outra, o que dá como resultado que na gramática se estabeleça um quadro explícito e organizado. No estudo dos esquemas lógicos, a gramática trata diferentemente os dados que retira da grande construção teórica que a filosofia estabelecera. As partes do discurso tinham sido o objetivo privilegiado das investigações filosóficas concernentes aos problemas da linguagem. Agora, procurando examinar fatos da língua, a gramática instaura como classes de palavras as partes do discurso. No estudo dos chamados acessórios, que são as indicações de gênero, número, caso, tempo, modo, voz e pessoa, encontra-se um terreno particularmente, propício ao tratamento gramatical. Nesses fatos, especialmente, o criticismo encontrava discrepâncias dos poetas. Além disso, esses são fatos facilmente codificáveis e formalmente sistematizáveis, favorecendo a instituição de paradigmas. A primeira gramática publicada no ocidente – a Tékhnē Grammatikḗ (1715) – que significa “a arte de ler e escrever” foi elaborada por Dionísio, o Trácio. Nascido em Alexandria, Dionísio viveu entre 170 e 90 a. C. (séculos II e I a. C.) e com sua obra de doutrina gramatical tem-se a “primeira descrição ampla e sistemática publicada no mundo ocidental” de uma língua – o grego ático. Para Dionísio, a gramática era o conhecimentoprático dos usos da língua feita pelos poetas e escritores de prosa. Naquele momento, a gramática já era considerada disciplina independente da lógica e da filosofia. Assim, a Tékhnē Grammatikḗ alexandrina surge como uma arte/ técnica voltada para capacitar as novas gerações a ler, a apreciar, a entender e a criticar os poetas. (NEVES, 2002) 12 Unidade: Gramática: História, Definições e Tipologia A gramática de Dionísio enfatizava a flexão paradigmática das palavras gregas e tinha uma finalidade pedagógica por meio da contemplação da literatura grega clássica: “Ele deu à gramática uma forma que, por muito tempo, foi definitiva, e cujos traços fundamentais ainda hoje podem ser reconhecidos em muitas obras gramaticais do Ocidente” (NEVES, 2001, p. 51-2). Dionysius Thrax. Grammar. Davidson. 1874 Fonte: Davidson/Wikimedia Commons A obra de Dionísio contempla três domínios: os elementos; as partes do discurso; e os acessórios. Vejamos, as palavras de Neves (2001, p. 52-8) para explicar cada uma delas: I. A doutrina dos son é, na grammatiké, essencialmente um estudo dos grámmata, especificamente, considerados como caracteres da escrita. Os elementos já não são, pois como no estudo filosófico, modelos para os elementos físicos ou para a análise e a síntese dialéticas. Eles são, por si, objeto de exame, embora tudo o que se codifica arrebanhe a pesquisa disponível no material dos filósofos. II. A classificação de Dionísio, o Trácio, das partes do discurso representa a tradição da escola de Aristarco, a escola de Alexandria. É um esquema bastante semelhante ao das nossas gramáticas, separando, porém o particípio da classe dos verbos, o que não ocorria na classificação dos estóicos. Ainda em contraposição aos estóicos, a classe das conjunções e preposições, e a classe dos artigos e pronomes, embora os pronomes relativos se mantenham na classe dos artigos. 13 São apontados como partes dos discursos: 1 O nome 5 O pronome 2 O verbo 6 A preposição 3 O particípio 7 O advérbio 4 O artigo 8 A conjunção III. Dionísio trata das diversas categorias gramaticais, os “acessórios” das classes de palavras: 1 Gênero 5 Modo 2 Número 6 Voz 3 Caso 7 Pessoa 4 Tempo Essa sistematização proposta por Dionísio revela sua importância por dois aspectos: primeiramente, por ser representativa da forma de conceber o procedimento gramatical surgido na época alexandrina e, em segundo, por ser o modelo sobre o qual a tradição da gramática ocidental se apoia. Além de Dionísio o Trácio, merece destaque outro gramático alexandrino: Apolônio Díscolo, responsável pela primeira teoria sintática ao estudar a língua grega. Na obra deste autor, percebemos características básicas que orientaram os trabalhos dos primeiros gramáticos e que foram transmitidas ao Ocidente – a exclusividade de atenção ao uso da língua feito por autores consagrados em detrimento de outras variantes de menor prestígio. Seus estudos abrangeram questões de diacronia, estilística, ortografia, prosódia, dialetos, elementos e partes das orações. Contudo, sua importância na história da gramática ocidental deve- se ao tratamento dado à sintaxe, até então, ausente nos trabalhos dos gramáticos alexandrinos. Os estudos sintáticos revelaram a influência dos trabalhos de Dionísio de Trácia e a dos estoicos. Apolônio foi o único gramático antigo que escreveu uma obra completa e independente sobre sintaxe, segundo Neves (2002). O gramático não foi partidário de nenhuma das correntes que investigavam a origem da linguagem e suas relações com o pensamento, tampouco procurou delimitar a natureza da gramática à arte x ciência. Os estudos de Dionísio de Trácia e de Apolônio Díscolo não só influenciaram significativamente o ensino do grego, como despertaram o interesse para o estudo dessa língua em momentos históricos posteriores. Na época helenística, uma grammatiké seria um “exame dos textos escritos” com a finalidade de resguardar as obras que representavam o espírito grego, constituindo-se em uma disciplina de cunho didático. Ela é, então, definida por Dionísio como empeiriá (conhecimento empírico). Glossário Empeiriá: Segundo o dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0: conhecimento empírico é aquele “baseado na experiência e na observação, metódicas ou não”. 14 Unidade: Gramática: História, Definições e Tipologia Concluímos, então, que os filósofos não fizeram gramática, apenas criaram doutrinas, já que seus estudos não foram desenvolvidos de maneira autônoma e sistemática. Os filósofos gregos consideravam-na apenas um caminho para o desvendamento da atividade linguística, enquanto os filólogos alexandrinos estudavam-na como um meio de se alcançar a regularidade do uso. Em suma: Na filosofia grega grammatiké é “um sistema regulador da interdependência dos elementos linguísticos”; Na cultura helenística grammatiké é uma “regulamentação de um determinado uso da língua, num dado momento de sua história”; Na ciência linguística moderna gramática é a “explicitação das regras que regem a Linguística” (Neves, 2002). Trabalhos sobre sintaxe, posteriores a Apolônio Díscolo, se perderam e a fonte mais confiável e abrangente na antiguidade é o texto de Prisciano. É com este estudioso romano que a gramática latina chega ao seu apogeu. Ele é o primeiro a elaborar uma sintaxe, inspirado nas teorias lógicas dos gregos. A intenção primeira do autor teria sido traduzir as obras gramaticais dos gregos. O estudioso lançou mão de discussões da lógica para construir uma sintaxe com estes princípios. Para Prisciano, a sintaxe visa estudar “a obtenção de uma oração perfeita (oratio perfecta)”. Assim, o autor tenta recuperar as primeiras especulações filosóficas gregas sobre a linguagem, que a entendiam como a expressão do pensamento. Portanto, a sintaxe de Prisciano, baseada principalmente nas reflexões de Apolônio Díscolo, parte do átomo até a formação da sentença conexa, representada pela oratio perfecta. A gramática desse estudioso torna-se o modelo de todos os gramáticos da Idade Média. É nesse período que um impasse ocorre: se as construções linguísticas latinas eram lógicas e, portanto, naturais, as línguas modernas deveriam seguir essas mesmas causas? É a gramática proposta pelos estudiosos de Port-Royal (1660) que vai tentar esclarecer esse impasse. É somente no século XVII, com Grammaire générale et raisonée de Port Royal, organizada por Lancelot e Arnauld, que vai se definir claramente os postulados de todas as categorias relacionais lógicas a que são submetidas as categorias linguísticas, desde os tão distantes povos gregos e romanos. A Gramática de Lancelot e Arnauld era baseada nos princípios aperfeiçoados por Descartes, que idealizava a existência de um pensamento extralinguístico e designava a linguagem como uma das causas dos nossos erros. A Grammaire générale et raisonée de Port Royal dominou o século XVII, trazendo uma grande contribuição para estudos posteriores. A tentativa lógica de Port-Royal marca de tal forma o estudo da linguagem que, até os nossos dias, os linguistas vão ter grande dificuldade em separar a sua análise da dos componentes lógicos. A linguística vai oscilar entre um formalismo empirista (descrição das estruturas formais) e um logicismo transcendental (divisão do conteúdo em categorias tomadas à lógica). 15 Os Gramáticos “Quinhentistas” e a Língua Portuguesa Passando para o âmbito da Língua Portuguesa, cabe lembrar que, no século XVI, as línguas românicas passaram a ser descritas em gramáticas. Os dois primeiros gramáticos portugueses foram Fernão de Oliveira e João de Barros que publicaram, respectivamente, a Gramática da Linguagem Portuguesa, em 1536, e a Gramática da Língua Portuguesa, em 1540. Para Silva (2000), dos quatro gramáticos quinhentistas – Fernão de Oliveira (1536), A gramática da linguagem portuguesa; João de Barros (1540), Gramática da língua portuguesa; Pero de Magalhães Gândavo (1574), Regras que ensinama maneira de escrever e a ortografia da língua portuguesa; e Duarte Nunes de Leão (1576), Ortografia e origem da língua portuguesa – apenas João de Barros trata do que hoje se chama sintaxe. Apesar de o autor considerar a sintaxe como uma parte da gramática, a ela é dado pouco relevo no conjunto de sua obra. Sua sintaxe resume-se a observações sobre concordância e regência, elementos essenciais da Gramática Tradicional. João de Barros, juntamente com outros gramáticos, é alvo das críticas de Jerônimo Soares Barbosa (1737- 1816) por construírem uma gramática da língua portuguesa que imitasse a latina. Soares Barbosa segue a abordagem da Grammaire générale et raisonée de Port Royal, da qual já tratamos anteriormente. Soares Barbosa defende que qualquer gramática tem uma parte mecânica e uma parte lógica. Na parte mecânica encontram-se a Orthoepia, que se preocupa com os sons da língua; e a Orthographia, preocupada com os sinais. Na parte lógica, estão a Etymologia, que ensina as espécies de palavras que entram na composição de qualquer oração e a analogia de suas variações e propriedades gerais; e a Syntaxe, que ensina a coordenar estas palavras e a dispô- las no discurso de modo que façam um sentido, ao mesmo tempo distinto e ligado. Ainda que a gramática tradicional não tenha acolhido a classificatória complexa proposta por Jerônimo Soares Barbosa, Silva (2000) lembra que, até fins da década de 1950, qualquer bom professor de português seguia os ensinamentos desse estudioso. Fonte: Wikimedia Commons 16 Unidade: Gramática: História, Definições e Tipologia Tipos de Gramática “Pronominais” Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido. Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro. *** (Oswald de Andrade) Para pensar Do que nos fala o poema, de Oswald de Andrade? Quais os dois tipos de uso da linguagem representados nos versos? Isso mesmo, na primeira estrofe do poema, verificamos que o eu-lírico faz referência e emprega a linguagem culta ou normativa da língua portuguesa, expressa no verso: “Dê-me um cigarro” com a colocação pronominal posterior ao verbo. Contrapondo-se a essa construção que segue as regras gramaticais da língua – “Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido”, o eu-lírico apresenta, na estrofe seguinte, a forma usual da linguagem feita pelo cidadão brasileiro: “Me dá um cigarro”. Partindo do contraste proposto nos versos de Oswald de Andrade sobre os diferentes usos da linguagem, podemos retomar os tipos de gramática de uma língua. A classificação desses tipos pauta-se – tal como expressa Luiz Carlos Travaglia (2005) – nos diferentes usos feitos das regras gramaticais. Travaglia destaca três dos usos mais frequentes: A conjunto de regras que devem ser seguidas; falar e escrever corretamente; B conjunto de regras que são seguidas; tornar conhecidas, de forma explícita, as regras de fato utilizadas pelos falantes; C conjunto de regras que o falante da língua domina – refere-se a hipóteses dos conhecimentos linguísticos que habilitam o falante a produzir frases ou sequências de palavras de maneira tal que essas produções são compreensíveis ou reconhecidas como pertencendo a uma língua, o que nos remete a Chomsky, não é mesmo? 17 Cada um desses usos denota uma concepção de gramática que, de acordo com Travaglia, são respectivamente denominadas: A gramática normativa B gramática descritiva C gramática internalizada Retomemos cada um desses tipos a fim de ter clara a diferença entre eles. A primeira concepção de linguagem refere-se à gramática normativa, isto é, àquela que é “concebida como um manual com regras de bom uso da língua a serem seguidas por aqueles que querem se expressar adequadamente”. (TRAVAGLIA, 2005, p. 24). Luiz Carlos Travaglia é Professor Doutor de Língua Portuguesa e Linguística do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e importante nome na área da Linguística. Essa concepção de gramática privilegia a norma culta padrão, o indivíduo conhece as regras e as domina; com isso, rechaça todas as outras formas que sejam diferentes dessa variedade, considerando seu uso como erro ou fórmula agramatical. É um tipo de abordagem que se preocupa com o estudo da palavra e da frase descontextualizada, reduzindo as aulas de português a aulas de teoria gramatical e de atividades metalinguísticas. Ler, nessa perspectiva, é reconhecer o pensamento do autor do texto, ou seja, decodificar imediatamente os sinais linguísticos. Logo, o texto apresenta, sempre, um único sentido possível, já dado, pronto e acabado. Na segunda concepção, a da gramática descritiva, existe uma preocupação em descrever os fatos da língua, elaborando uma descrição de como a língua funciona e como as regras são usadas pelos falantes. Nesse caso, para uma construção ser considerada gramatical, não precisa seguir os modelos canônicos de escrita, mas atender às regras de funcionamento da língua em uma de suas variedades. Portanto, leva em conta tudo o que está incluído no sistema e não necessariamente na norma. É a isso que se propõem os estudos da gramática descritiva. A gramática descritiva abarca subdivisões em vários tipos de gramáticas que tratam de assuntos mais específicos: Gramática contrastiva abrange duas ou mais normas de uma língua e mostra a interferência que elas exercem na língua materna; Gramática geral busca explicitar o maior número de línguas e estabelecer as possibilidades de uso que elas oferecem; Gramática universal busca explicitar o maior número de línguas e estabelecer as características comuns entre elas; Gramática histórica mostra a evolução histórica de uma língua; Gramática comparada mostra a evolução histórica de um conjunto de línguas. 18 Unidade: Gramática: História, Definições e Tipologia A terceira vertente é a gramática internalizada, conjunto de regras que o falante domina e utiliza para interagir com os demais interlocutores nas situações reais de comunicação. Considera-se a gramática como contextualizada, o que implica num ensino que não seja normativo nem descritivo. Nessa perspectiva, considera-se que as regras da língua são inerentes ao homem, as quais ele recebe assim que entra em contato com uma comunidade falante. Nesse sentido, o saber gramatical é algo que antecede qualquer princípio de escolarização ou processo de aprendizagem, refere-se à capacidade genética do falante de perceber e internalizar as regras da gramática da língua, usando-as de acordo com o que é exigido pela situação de interação comunicativa de que participa. Daí a crítica de alguns estudiosos ao fato de muitos professores acreditarem que os alunos chegam à escola como uma “tábula rasa”, imaginando-os sem nenhum saber linguístico e, por isso, devem aprender a língua portuguesa a partir de uma única concepção, a do certo e do errado. Há várias formas de ensinar e de aprender o uso de uma língua e todas serão válidas desde que se leve em conta o saber dos estudantes e se alcance o objetivo pretendido. É nesse sentido que vão as palavras de Celso Luft na obra Língua e Liberdade: O que me preocupa profundamente é a maneira de se ensinar a língua materna, as noções falsas de língua e gramática, a obsessão gramaticalista, a distorcida visão de que ensinar uma língua seja ensinar a escrever ‘certo’, esquecimento a que se relega a prática da língua, e, mais que tudo: a postura opressora e repressiva, alienada e alienante desse ensino, como em geral de todo o nosso ensino em qualquer nível e disciplina. [...] Penso ser urgentíssimo promover uma mudança radical em nossas “aulas de Português”, ou como quer que as chamem: passando de uma postura normativa, purista e alienada, à visão do aluno como alguém que JÁ SABE a sua língua, pois a maneja com naturalidade muito antes de ir à escola, mas precisa apenas LIBERAR mais suas capacidadesnesse campo, aprender a ler e escrever, ser exposto a excelentes modelos de língua escrita e oral, e fazer tudo isso com prazer e segurança, sem medo (LUFT, 1993, p. 11-2, destaques do autor). Encerramos esta unidade com as palavras de Celso Luft para que elas estejam sempre presente ao longo do curso, como chave reflexiva para a nossa formação enquanto professores de língua materna. Que todo o conhecimento adquirido sobre o funcionamento normativo da língua portuguesa possa ser uma ferramenta útil que possibilite a “formação de cidadãos lúcidos e livres. Senhores de sua linguagem” (LUFT, 1993, p. 12). 19 Material Complementar Para ampliar seus conhecimentos, leia o artigo, intitulado “Prisciano e a história da gramática: considerações acerca da sintaxe e da morfologia”, de Rodrigo Tadeu Gonçalves, que é Professor Doutor de Língua e Literatura Latina do DLLCV/UFPR. Considerando que as reflexões linguísticas na antiguidade tiveram reflexos nos estudos atuais, o artigo trata da gramática antiga, feita nos moldes da tradição grega do precursor Dionísio Trácio. Em especial, o escopo deste trabalho é baseado em duas obras do gramático Prisciano (Bizâncio, séc. VI). Com o objetivo de mostrar a concepção linguística do pensamento gramatical de Prisciano, o artigo aborda a sintaxe na obra Institutiones Grammaticae e a morfologia na Institutio denomine et pronomine et verbo. Para esboçar a característica de veículo transmissor da tradição grega e para explicitar os conceitos de sintaxe e morfologia, este trabalho lança mão de traduções de excertos das duas obras, algumas inclusive inéditas. Ao fim, fica evidente uma sintaxe atomista baseada na ideia de oratio perfecta e uma morfologia que faz uso de operações de manipulação de letras e de modelos paradigmáticos. O artigo foi publicado na Revista Eletrônica Antiguidade Clássica ISSN 1983 7614 – No. 005/ Semestre I/2010/pp.85-99 e você o encontra no link: Não se esqueça de fazer registros durante a leitura, anotando as ideias principais de que trata o artigo. Essa é uma forma de ir criando ao longo da disciplina um material para consulta e estudos posteriores. Site: Prisciano e a história da gramática: considerações acerca da sintaxe e da morfologia: http://goo.gl/7Gu9qC 20 Unidade: Gramática: História, Definições e Tipologia Referências ANDRADE, Oswald de. Seleção de textos. São Paulo: Nova Cultural, 1988. BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. JOTA, Zélio dos Santos. Dicionário de Lingüística. Rio de Janeiro: Presença Edições, 1976. LOBATO, Lúcia Maria Pinheiro. Sintaxe Gerativa do Português. Belo Horizonte: Belo Horizonte, 1986. LUFT, Celso. Língua e liberdade: por uma nova concepção da língua materna. 2ª ed. ref. e ampl. São Paulo: Ática, 1993. MANGUEL, Alberto. A cidade das palavras. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Cia das Letras, 2008, pp.59. NEVES, Maria Helena de Moura. A Gramática: história, teoria e análise, ensino. São Paulo: UNESP, 2002. SILVA, Rosa Mattos. Tradição Gramatical e Gramática Tradicional. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2000.
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